Cipó e Imaginário entre Seringueiros do Alto Juruá

Maria Gabriela Jahnel de Araújo[*] []

Resumo

Baseado em pesquisas feitas entre 1994 e 1995 na Reserva Extrativista do Alto Juruá, Acre, Brasil, o artigo trata do uso do cipó (ayahuasca) entre os seringueiros locais. A partir de relatos da memória oral, a narrativa reconstruiu os usos que os habitantes não indígenas fazem do chá, dos anos 60 à fase das pesquisas de campo, quando presenciamos o uso ritual e acompanhamos momentos das trajetórias de seringueiros junto à bebida. Como background, retratamos a história local, da abertura dos seringais à instituição da Reserva Extrativista. Tal reconstituição é fundamental para a compreensão de mudanças do uso ritual do cipó. Também apoiada em relatos, pesquisa participante e literatura, aproveitamos para pincelar um quadro com nuanças do imaginário local – e suas semelhanças com outras regiões amazônicas - buscando contextualizar o cipó. Percebemos que a história recente e as mudanças sócio-políticas se fizeram acompanhar por transformações no universo religioso, que, por sua vez, mostra-se carregado de diversidades das linhas religiosas ali presentes. Observamos ainda que tal dimensão se faz acompanhar por uma visão do universo ao redor: a floresta e seus habitantes, entre eles plantas, bichos, homens, encantes e o próprio cipó.

Abstract

The article deals with the use of cipó (ayahuasca) among local seringuieros in the reservation of Extrativista do Alto Juruá, in the Brazilian State of Acre. The material was ascertained between 1994 and 1995 and consists in reported memories which go back to the 1960s, that is the time when non-indigenous started to participate in the tea-ritual. It is showed how the natural surroundings shaped their religious imaginary and how the practice has changed over the years in reaction to overall conditions of local history including socio-political changes.

Apresentação

Estas notas pretendem fazer uma reflexão preliminar sobre os usos do cipó (ayahuasca) entre os seringueiros do Alto Juruá, Acre.[1] Baseados em pesquisas de campo[2] e apoiados em uma bibliografia, descreveremos, do ponto de vista sócio-cultural, os usos da bebida entre seringueiros da Reserva Extrativista do Alto Juruá, noroeste amazônico, local atualmente habitado por seringueiros e agricultores ribeirinhos, vizinho de diferentes povos indígenas de origem Pano e Aruak.

Para isso, vamos expor a história recente e o imaginário dos habitantes não indígenas desta região dividindo este trabalho em três partes: a primeira, trata brevemente da ocupação do Alto Juruá e de alguns aspectos sociais e políticos de sua história recente. A segunda, refere-se às paisagens do imaginário local e suas relações com a cultura amazônica. Finalmente, a terceira, introduz o cipó dentro deste contexto imaginário e sócio-histórico.

O Alto Juruá: dos Seringais à Reserva Extrativista

A Reserva Extrativista do Alto Juruá, outrora dividida em propriedades de seringalistas, é uma área de conservação ambiental fronteiriça ao Peru, com mais de 500 mil hectares, e de usufruto de seus moradores tradicionais - seringueiros e agricultores ribeirinhos descendentes de nordestinos e índios da região.

As histórias sobre a região poderiam começar em estudos arqueológicos, no Nordeste brasileiro ou nas florestas rios e índios do Alto Juruá, que até 1850, tinha sido visitados por alguns exploradores e comerciantes brancos em busca das “drogas do sertão”.[3] Estes atingiram o médio Juruá em busca de borracha[4] e, com o aumento da demanda internacional pela borracha, em cem anos, a área que vai de Cruzeiro do Sul até o rio Breu foi ocupada.

A migração para o Acre foi estimulada especialmente no Nordeste,[5] cuja população trouxe na bagagem sua tradição regional: os falares, as celebrações, a devoção, os cordéis e as cantorias.[6]

A presença das diferentes nações indígenas foi encarada como obstáculo à expansão dos seringais, o que marcou a história da região e de suas populações originais. Foi uma época de corrida pelas terras e de correrias[7] contra os índios: confrontos que marcaram os primeiros encontros entre migrantes e índios, nos quais malocas foram destruídas, índios dizimados e índias capturadas para esposas dos seringueiros.[8] Em meio a conflitos e embates, aconteceram trocas de conhecimento e casamentos.[9] Monopolizando a propriedade da terra estavam os patrões,[10] cujos territórios - os seringais - eram divididos em colocações.[11] Essas abrigavam os trabalhadores e as famílias que, após a primeira crise do mercado da borracha (1910-1920), desempenhavam várias atividades além da extração do látex.[12]

O patrão dominava o abastecimento do seringal através do barracão, onde estocava mercadorias (bens de consumo) como óleo, sal, querosene, tecido, munição, remédios e outros. Os seringueiros tinham o prazo de uma safra de produção de borracha para o pagamento das mercadorias adquiridas e obrigavam-se a comprar apenas do patrão que as vendera, efetuando o pagamento em quilos de borracha. Essa relação ficou conhecida como sistema de aviamento.

As décadas de 1970-1980 implicaram em mudanças em toda Amazônia, inclusive no Alto Juruá. Conjunturas nacionais e internacionais redirecionaram os interesses dos donos de seringais e tiveram inicio diversos movimentos entre os seringueiros.[13] Entre eles é importante ressaltar a chegada, ao Alto Juruá, em 1988, do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS),[14] representado pelo sertanista da FUNAI e ex-seringueiro Antonio Macedo. Seu objetivo era difundir entre os seringueiros a proposta, já elaborada e desenvolvida pelo CNS, de criação da Reserva Extrativista.[15] Macedo tinha um modo singular – admirado e criticado - de trabalhar: subia os rios com seu violão, organizando reuniões, unificando o movimento e, na palavra de alguns seringueiros, “dando coragem”.[16] Conforme veremos adiante, Antonio Macedo foi precursor de algumas das transformações que o uso do cipó sofreu a partir desse período.

O desfecho do processo político descrito acima – e início de um novo período – foi a instituição, em 1990, da Reserva Extrativista do Alto Juruá, alternativa com fins sociais, políticos, econômicos e ambientais. De moradores, os seringueiros passaram a guardiães e conservadores responsáveis pela floresta.

O Alto Juruá e a Cultura Cabocla da Amazônia

Vamos agora descrever aspectos da cosmologia dos seringueiros e sua relação com a natureza para compreender a ayahuasca neste imaginário. A cultura do Alto Juruá guarda semelhanças com a cultura cabocla[17] de outras regiões da Amazônia, onde, além de humanos e animais, fazem-se presentes os santos, as almas e os encantados[18]- localmente conhecidos por encantes.

Segundo relatos, os encantes seriam seres deixados por Deus como responsáveis pela floresta, pelas águas, pelas caças etc. Trata-se de entidades com poderes de encantamento, metamorfose e hipnose, que podem ser generosos ou vingativos. Encontramos entre eles o pai ou caboclo da mata, protetor da floresta; a mãe da seringueira, entidade que cuida das seringueiras; a caipora, responsável pelas caças, ou os caboclos d’água, habitantes dos rios e igarapés que podem levar humanos para o fundo das águas. Além dos encantes, há, também, animais que podem proteger, devorar, enganar, hipnotizar ou realizar pactos. Entre eles estão a jibóia, o sapo campu, o veado e o jabuti. Esses são alguns seres com os quais os moradores do Alto Juruá se deparam e se relacionam cotidianamente. Eles habitam ou se originam na natureza, e guardam algumas características humanas e outras próprias de sua qualidade de encante ou ser supra-natural.

No Peru, Luis Eduardo Luna também se deparou com tal universo múltiplo e povoado por uma gama de seres inteligentes e espíritos, figuras “percebidas não como algo totalmente outro, mas como de alguma maneira fluidamente ligadas ao mundo natural” (2002, p. 183). Ali, esses também seriam “donos” de seres ou objetos do mundo natural, com quem seria possível estabelecer contato, entre outras formas, através de plantas de poder.

A presença de tais entidades na natureza torna notável a relação ritualizada com a floresta, as águas e a caça. Atividades cotidianas, como entrar na mata, caçar, cortar seringa, pescar ou relacionar-se com rios são permeadas por atitudes rituais (uma prece, um pedido de licença, um procedimento). O sagrado, neste sentido, se faz perceber em rituais cotidianos que marcam as relações entre seringueiros e o mundo imediato ao seu redor. Por exemplo, o caçador deve seguir alguns procedimentos ao caçar e ter um cuidado especial com o animal já caçado para continuar a ser um caçador produtivo; caso contrário, poderá ficar enrascado.[19] Enrascado é o mesmo que panema, definido por Galvão como uma força mágica capaz de infectar homens, animais ou objetos, incapacitando-os para a ação (1976, p. 81). Há procedimentos, remédios, banhos, defumações para curar uma pessoa enrascada.

Existem, também, artifícios para dotar o caçador de maior poder de caça. Esses são os caborjes, cabojas, pautos (pactos). Feitos com plantas ou animais, alguns caborjes podem também se prestar para atração e sucesso no amor. São realizados secretamente e há quem os condene como porqueira ou porcaria (feitiço, bruxaria).[20] Há caborjes feitos com partes de animais (Almeida 2002, p. 325). Outros com os próprios animais, ou plantas que, em troca do sangue da caça, tornam o caçador mais produtivo (Araujo 1998, p. 67).

Vale lembrar que estamos falando de uma população que depende da floresta para sobreviver, seja pelo extrativismo, seja por ter nela as fontes primeiras de alimentação. Para essas pessoas, cortar seringa, penetrar a floresta, caçar, pescar ou limpar um animal morto são atividades diárias. Ou seja, as recomendações e cuidados para com os encantes e para não ficar enrascado ou enrascar alguém devem ser observados e seguidos quotidianamente. A partir destas observações, podemos perceber que:

  1. Aspectos do campo religioso permeiam o mundo real e são vivenciados e/ou acionados em ações cotidianas.
  2. Há uma humanização da natureza. Isso é percebido quando alguns seres da natureza são dotados de personalidade e preferências. Eles são capazes de se relacionar, realizar trocas e pactos e de realizarem atividades humanas, sejam elas afetivas, ativas ou passivas[21].
  3. Os seres supra-naturais, bem como os encantes, são, ao mesmo tempo, fonte de poder e de perigo[22].

A floresta é local respeitado e temido. Há com ela uma relação de dependência que se mantém equilibrada respeitando-se normas de relação com seus habitantes e de exploração de seus recursos. Seguir tais regras é tentar garantir uma relação pacífica com alguns encantes. Perceberemos adiante que a ayahuasca faz parte desse universo de seres que mediam a relação entre homem e natureza no Alto Juruá.

Há, ao mesmo tempo, um esforço em se distinguir da natureza que se revela em diferenças apontadas por seringueiros entre si e os caboclos. Algumas atitudes desses últimos sinalizariam uma maior proximidade do campo da natureza, como supostos “hábitos” indígenas de comer sem sal, parir no mato e viver por demais próximo da floresta. Ainda no que se refere aos índios, eles são distinguidos em brabos, que vivem plenamente sua própria cultura sem se relacionar com os brancos, e mansos, que de alguma maneira foram integrados à sociedade de seringal. Os brabos, temidos por seus feitiços e pela possibilidade de que façam correrias contra os brancos, estariam mais próximos da natureza, enquanto os mansos mais próximos da cultura.[23] Percebemos, aqui, uma relação homem/natureza mediada por caboclos de um lado, e encantes e seres supra-naturais de outro.

Outra peça do mosaico que constitui o campo religioso do alto Juruá é o catolicismo, cujas crenças e instituições atuam junto aos encantes e seres supranaturais - os quais são provavelmente de origem ameríndia. Galvão os vê como “partes integrantes de um mesmo sistema religioso” (1976, p. 5), como entidades de um só universo, não percebidas como forças opostas. Aparentemente, santos são mais acionados para lidar com assuntos ligados às pessoas, enquanto encantes e caborjes seriam acionados para relações com animais. No entanto, não esqueçamos que há caborjes feitos para o amor (que poderia ser visto, também, como uma caçada) e há, ainda, feitiçarias e técnicas de cura (que poderiam ser vistos como embates) que fazem uso de plantas pertencentes ao âmbito dos “seres supra-naturais”[24]. Ainda que com certo temor, o poder de tais seres é acionado quando se faz necessário[25].

A forma local de vivenciar o catolicismo guarda semelhanças com o catolicismo popular comum a outras regiões brasileiras. No Alto Juruá há atividades e festas nas quais pessoas reúnem-se para rezas de terço; comemorações juninas com fogueiras, pratos típicos, festejos; e novenas ou novenários destinados a santos padroeiros. A presença da Igreja Católica no Alto Juruá se resume a algumas viagens anuais feitas pelo padre, ocasiões em que ele navega os rios promovendo sacramentos diversos (confissões, missas, casamentos e batismos) pelos quais cobra, além de vender remédios e mercadorias.

Tradições como a fé no Cristo, sacramentos e orações, foram fortalecidas no Alto Juruá por Irmão José.[26] Em viagem pela região, na década de 70 do séc. XX, o beato milenarista pregou a proximidade do fim do mundo e ainda hoje esse peregrino - cujo retrato segurando um cajado é presença comum nas casas dos moradores da região – é considerado homem santo que realizou milagres e que, por conta disso, recebe devoção. Ele proscreveu a ayahuasca classificando-a como uma bebida da parte “do outro” e por isso, conforme veremos, interferiu em seus usos (e desusos). Durante a pesquisa de campo, percebemos que o pertencimento a alguma das tradições religiosas institucionalizadas não interferia na vivência de outros aspectos da religiosidade dos seringueiros. Ser católico ou evangélico é, ali, uma experiência acrescida da relação com encantados e seres supra-naturais.[27]

A Ayahuasca

É na paisagem esboçada até aqui que nos deparamos com a ayahuasca. Durante a pesquisa de campo, tivemos oportunidade de conhecer diferentes curadores tradicionais e usuários da bebida e, através deles, perceber como a memória oral recorda o encontro entre o cipó e os seringueiros da bacia do Tejo. Pude ouvir sobre algumas iniciações pessoais, caminhos e relações com o chá. É a partir dessas trajetórias, histórias e estórias, e de seus encontro com uma bibliografia adequada que as notas que seguem serão construídas. As histórias dos usos da bebida na região remontam a quatro fases aqui descritas: a primeira, narra a chegada da bebida até os seringueiros através de reconhecidos xamãs de origem indígena; a segunda, contempla um momento em que seu uso por seringueiros era feito secretamente; a terceira, em situação de fortes experiências sócio-políticas, aborda a chegada de elementos exógenos e a transição da tradicional forma de uso entre os seringueiros; finalmente, a quarta fase, que descreve algumas sínteses locais e seus usos mais recentes.

A ayahuasca é usada imemorialmente pelos índios da região e foi a partir dessas populações que os seringueiros tomaram contato com a bebida. Ainda hoje, povos indígenas vizinhos à Reserva Extrativista do Alto Juruá, entre eles Kaxinawás e Ashaninkas,[28] utilizam ritualmente a bebida. Alguns personagens foram marcantes e ainda hoje são localmente lembrados como os responsáveis pela difusão da ayahuasca entre os seringueiros do Alto Juruá. Um deles é Crispim,[29] renomado xamã tanto entre os índios como entre os seringueiros da região. Jamináwa do alto Bagé, Crispim foi adotado por brancos, e viveu também no Ceará e em Belém. Depois, voltou a viver entre os índios, quando foi iniciado no uso da ayahuasca, aprendendo a utilizá-la para a cura.

Crispim passou seus últimos anos no igarapé Dourado, afluente do Tejo, longamente habitado por povos Arara e Jamináwa. Chegou por volta de 1950 e permaneceu até sua morte, no início da década de 80. Ali construiu sua fama de curador utilizando ayahuasca e plantas medicinais. Joaquim Cunha, seringueiro aposentado e curador afamado amigo dos “caboclos do Bagé”, com quem convivi intensamente em 1994, contou-me que Crispim o convidara para aprender seus conhecimentos de cura. O aprendiz recebeu inúmeros ensinamentos sobre plantas da floresta utilizadas para cura, até que chegou o momento de aprender sobre a ayahuasca. Nessa ocasião, Joaquim Cunha viajou ao rio Amônia para conhecer Irmão José.[30] Consultou-se com o pregador a respeito das artes da cura quando foi por ele desaconselhado a trabalhar com a ayahuasca, pois esta seria uma “bebida do diabo”. Temeroso, Joaquim retornou ao Dourado e recusou os ensinamentos do amigo Crispim, que logo veio a falecer. Ainda segundo Joaquim Cunha e depoimentos coletados por Pantoja Franco e Conceição, Crispim preparava a ayahuasca, realizava rituais e, através dela, chegava a diagnósticos, receitas e curas (2002, p. 206).[31] O depoimento de Joaquim Cunha é importante, pois, como em seu caso, outros moradores do Alto Juruá citam Irmão José para mostrar suas dúvidas de que a bebida possa não ser “de Deus”, e, com essa justificativa, evitam utilizá-la, sem, no entanto, condenar aqueles que dela fazem uso.

Para tratar da “segunda fase do cipó” me basearei principalmente em depoimentos de João Cunha, irmão de Joaquim Cunha. João Cunha, hoje com quase 90 anos, é um dos mais respeitados curadores do Alto Juruá. É rezador, benzedor,[32] cura com plantas e remédios de farmácia, com a saliva cura picada de cobra e através da ajuda de um espírito cura feitiços, encosto e atuação de encantes.[33] É também um diplomata, negociador de conflitos e liderança respeitada. Conheceu a ayahuasca com Sebastião Pereira, o Sebastião do Cipó.

Sebastião Pereira foi um seringueiro que chegou ao rio Tejo na década de 60. Aprendeu a utilizar ayahuasca com Crispim e tornou-se um importante nome na expansão do uso da bebida entre os seringueiros. Sebastião curava com plantas e com a ayahuasca, bebida conhecida na região pelo nome de cipó, daí a alcunha que o acompanhou desde então, Sebastião do Cipó. Em suas viagens, promovia beberagens de cipó na casa de algumas pessoas. Eram sessões noturnas, das quais apenas homens participavam. Segundo relatos de João Cunha, no início do ritual ele dava voltas em torno da casa tocando seu maracá feito de cabaça e, ao parar, todos percebiam a chegada dos efeitos da bebida. A finalização do ritual era feita da mesma forma: ele saía ao terreiro com o maracá cantando, assobiando e rodeando a casa.[34] Contam que Sebastião do Cipó tinha poderes extraordinários e que, durante as sessões, curava com a imposição das mãos (Pantoja Franco 2002, p. 207). Ele parece ter sido introdutor de um dos elementos mais comuns nas sessões de cipó do Alto Juruá: o uso da música popular.

A cura não era único mote para as beberagens de Cipó. A possibilidade de desvelar segredos, como a fidelidade da esposa ou a honestidade do patrão; de prever o futuro e saber o resultado da lavoura; de realizar “viagens” para outros lugares, conhecer cidades, eram também impulsos para a realização de sessões. Na década de 70, dizem os seringueiros que, temerosos diante dos possíveis poderes da bebida, os patrões proibiram seu uso, alegando que ela trazia preguiça.[35] As beberagens continuaram, discretas e secretas. Há testemunhos da existência de sessões dessa natureza nos anos 80 e 90. Eram rituais onde os participantes, todos homens, ficavam no escuro deitados em suas redes. Havia silêncio ou a música de um compositor popular. Também a folha de determinada palmeira (jarina) era opcionalmente colocada sob a rede, com o intuito de dar bom rumo à sessão.[36] Esse uso provavelmente continua, porém, dado seu secretismo, tivemos poucas informações a seu respeito e o grupo que realizava este tipo de sessão por ocasião da pesquisa se mostrou fechado e pouco dado a conversas sobre o assunto.

Atualmente, com a idade avançada, João Cunha não bebe mais Cipó; no entanto, seus filhos mantém a tradição das sessões masculinas noturnas.[37] Conversando sobre essa fase, João Cunha disse que “o cipó é a bebida de todos os encantes”.[38] Animais, vegetais, índios (brabos e mansos), brancos, almas, encantes, o cipó a tudo engloba, tudo tem, e tudo contém. O chá permite curar, revelar, produzir visões, receber instruções e adquirir aprendizados. Ele é tratado como um ser, uma entidade poderosa e perigosa.

Essa era a situação do consumo da ayahuasca na região até 1988, quando se iniciaram as lutas do processo que teve como desfecho a criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Naquela ocasião, Antonio Macedo, forte liderança política entre os seringueiros, promoveu beberagens de cipó. Elas ocorreram entre participantes das reuniões de mobilização para o rompimento do monopólio dos patrões. Tais sessões traziam novas características:

  1. Eram públicas, e não secretas;
  2. Eram abertas à participação feminina (inicialmente pequena);
  3. A música era um componente forte do encontro. Interpretava-se canções inspiradas pela bebida que remetiam à floresta, a natureza, à própria bebida, ou falavam da vida dos seringueiros e de amor.

Nesse período, em viagens que buscavam a união dos Povos da Floresta,[39] também ocorreram sessões de ayahuasca com a participação de índios e pajés Kaxinawás e Ashaninkas. Reinava um clima de transformação, novidade, luta e união. Neste momento, as sessões não eram fortemente movidas pela cura física - contudo, elas contribuíram para a união do grupo, fortalecendo amizades e demarcando fidelidades. Portanto, junto com as transformações sócio-políticas surgia um novo uso da bebida, que chamo, aqui, de “terceira fase do cipó”. Tive oportunidade de presenciar sessões orientadas por Macedo - nelas, os participantes podiam se deitar, sentar e, desde que o comunicassem, se afastar do grupo ou fumar um cigarro. Eram cantadas canções populares ou inspiradas pela bebida da floresta.

O início da quarta fase é marcado pela chegada de pessoas de fora, visitantes, simpatizantes do movimento e pesquisadores que vieram para o Alto Juruá nesse período. Alguns faziam parte ou eram simpáticos ao Santo Daime[40] - religião ayahuasqueira sediada em Rio Branco, capital do Acre - e dali trouxeram elementos para as sessões de cipó, entre eles orações, hinos e a presença de um ponto de luz, fosse uma vela ou lamparina a querosene. Constituiu-se um novo ritual e, ao mesmo tempo, uma nova geração de preparadores e bebedores de cipó. Cipó, daime, ayahuasca ou vegetal, eram nomes utilizados para se referir à bebida na floresta, as diferentes denominações, contudo, não apontavam necessariamente diversidade em sua forma de uso.

Em 1994 e 1995 presenciamos alguns rituais dessa fase. Eles começavam com orações católicas (Pai Nosso, Ave Maria). Em seguida, a bebida, comumente servida por quem a tinha preparado, era oferecida com o desejo de que o usuário fosse guiado pela “santa luz”. Ao pegar o copo cada um se levantava, fazia o “sinal da cruz” e depois acomodava-se numa cadeira, banco ou rede. Alguns fumavam um cigarro para ajudar a “força” a chegar, até o ambiente se aquietar. Quando os efeitos da bebida começavam a se fazer sentir, ouvia-se comentários como “ele está chegando”, como se alguém estivesse se aproximando. No que se refere à música, cada sessão seguia um padrão: algumas eram mais silenciosas, outras, tão logo a “força” chegava, iniciava uma cantoria de hinos do Daime.[41] Havia um intervalo onde era permitida a conversa ou música popular; seguido de nova dose da bebida para quem assim o desejasse e, depois, momentos de introspecção ou, novamente, canto de hinos. O encerramento ocorria com uma oração seguida de impressões pessoais, abraços, conversas e o compartilhar de alimentos.

As motivações de seus bebedores incluíam cura, busca de conhecimentos místicos, de auto-transformação e autorização da bebida para vir a prepará-la. Alguns testemunham seu aprendizado no preparo do cipó onde tiveram como professor a própria bebida, que lhes ensinou a reconhecer as plantas que a compõem e os modos de preparo. Gostaríamos de chamar atenção para três elementos importantes para a compreensão desse período: primeiro temos a formação de um novo grupo bebedor de cipó que se utiliza de um novo ritual; segundo, a ligação desse grupo ao processo anterior de criação da Reserva Extrativista; terceiro, a inserção de elementos e valores exógenos, alguns pertencentes a outro referencial religioso que utiliza a bebida, o Santo Daime.

Nesse contexto de uso, a bebida torna-se associada ao Bem. Curiosamente, os encantes e caborjes, originários da floresta, assim como o cipó (“a bebida de todos os encantes”), têm a propriedade da ambigüidade, podem servir ao bem ou ao mal. Tanto pode-se fazer uma defumação para desenrascar, quanto para feitiçaria. Um mesmo animal, como a jibóia, por exemplo, pode se prestar a um caborje que torne um caçador feliz, ou hipnotizar um homem na floresta e devorá-lo. Um veado pode salvar uma criança ou fazer alguém se perder. São seres ambíguos, fonte de poder e perigo. Não há exclusividade dessas propriedades (bem/mal) nos encantes e seres especiais. Alguns podem ser mais perigosos (caboclos d’água), outros mais generosos (mãe da seringueira), porém todos são imprevisíveis e potencialmente vingativos.[42] A dicotomia bem/mal presente no catolicismo, no Alto Juruá, se encontrava com essa realidade ambígua e com ela se amalgamava. Talvez pela total dependência do homem da floresta, essa era ambígua de per se: fonte de sustento e riquezas, e de perigos e mistérios.

É importante ressaltar que tudo isso faz parte da experiência religiosa do seringueiro. O campo religioso perpassava, como vimos, toda a vida cotidiana. Ao serem inquiridos, a maioria afirmava ser católica, um catolicismo que incluía a possibilidade de ficar enrascado, de realizar um caborje, de ser pego por um caboclo d’água, de se relacionar com a caipora, de ir ao novenário, de curar uma doença com uma benzedura e de beber cipó. Beber cipó era uma experiência que fazia parte deste modo de vivenciar o universo religioso[43].

Gradualmente, beber cipó passa a ser percebido como um dos mais importantes momentos da experiência religiosa. Alguns que antes diziam “sou católico”, passam a afirmar “sou daimista”. Porém não diziam “sou cipozeiro” ou “sou vegetalista”. Este daimismo, assim como o catolicismo acima escrito, foi constituído localmente de modo singular. Elementos novos foram trazidos de fora e incorporados ao uso do cipó através do acesso a hinários, fitas-cassete gravadas, descrições de rituais de igrejas do Santo Daime etc. A partir de 1995 alguns seringueiros começaram a participar dos trabalhos daimistas em localidades próximas à Reserva, como Cruzeiro do Sul, ali criando fortes laços com a igreja do Santo Daime dessa cidade. Seres dessa religião foram incorporados ao panteão local, entre eles a Rainha da Floresta, entidade protetora da bebida. Veio também o respeito ao Mestre Irineu[44] e a personagens centrais do universo do Santo Daime.

Não se excluíram, no entanto, antigas devoções, como ao Irmão José e às Almas Milagrosas de Nova Olinda,[45] e continuaram vivências do catolicismo popular, assim como as iniciações pessoais com a bebida.

O percurso do cipó no Alto Juruá foi construído por trajetórias pessoais e caminhos de iniciação individual. Isso se faz perceber, também, em algumas histórias que narraremos agora.

O processo de surgimento de novos preparadores e bebedores de cipó - que contavam com a própria bebida como professora - para alguns foi frutífero e, para outros, uma inserção em terreno perigoso entre a loucura e o terror.

Nessa última situação encontramos, na ocasião da pesquisa, um grupo de seringueiros ligado por laços de parentesco, compadrio e vizinhança. Tratava-se de um grupo de sete homens liderados por Miário, temido por suas relações com caboclos d’água. Ele comandava sessões nas quais exercia uma liderança violenta, agredindo verbal e fisicamente os membros do grupo. Dois desses membros quase enlouqueceram, acessaram imagens de terror e tomaram atitudes violentas. Durante o surto psíquico, procuraram e/ou foram levados a João Cunha, que, com a ajuda de seu espírito auxiliar, “tirou o cipó” de seus corpos e aconselhou Miário a não mais preparar a bebida, ao que esse fez ouvidos moucos. Outros dois membros converteram-se temporariamente à uma religião evangélica. O quinto não mais quis beber, de modo que o antigo grupo tornou-se uma dupla formada por dois cunhados: Miário e o irmão de sua esposa, Jorge. Este sentia grande aflição pois não conseguia “ver nada”, de modo que Miário “via” por ele e lhe determinava atitudes que teriam sido transmitidas pela Rainha da Floresta.[46] Essas diziam respeito principalmente à esposa de Jorge, a qual, segundo Miário, lhe era infiel e fazia feitiços que impediam as mirações do esposo. A partir de então, o casal passou a viver em crescente desarmonia.

A situação entre a dupla de bebedores era tensa, e pessoas ligadas à um aos dois estavam aflitas por um desfecho da situação. Foi quando Antonio Macedo subiu o rio e realizou uma sessão de cipó com a presença de Miário, que lhe trouxe sua própria bebida. Macedo disse ter os lábios queimados ao provar o cipó de Miário, constatando que este não sabia prepará-lo. Nessa sessão, catártica para Miário, ele recebeu uma reprimenda de Macedo e outro companheiro, e viveu uma longa noite de mirações (visões proporcionadas pela bebida). No dia seguinte veio ter conosco e contou que seu sonho era ser “um pajé do Daime”[47] e que, agora, estava pacificado pois “abriu o coração” para os companheiros sem esconder nada. Descobriu que o ódio que sentia e também uma “vontade de matar” eram pela esposa de Jorge, por quem, supomos, ele nutria um amor reprimido. Aceitou a recomendação, agora proferida por Macedo, de não mais preparar a bebida ou liderar sessões com ela.

Em outra ponta dos novos usos do cipó, destaca-se a participação da família do patriarca Milton Gomes da Conceição e seus filhos, conhecida como os Milton.[48] De reconhecida ascendência indígena, membros dessa família foram se iniciando nos mistérios da bebida, de seu preparo e de seus rituais ao longo do processo de instauração da Reserva Extrativista. Em suas iniciações, a presença indígena foi marcante, seja em encontros pessoais ou em mirações.[49] Entre os Milton as orientações para o preparo da bebida aconteceram sob seus efeitos (Franco e Conceição 2002). O patriarca desenvolveu um modo particular de beber e trabalhar com a bebida e, atualmente, os Milton constituem um respeitado grupo de bebedores do cipó, que realizou suas sínteses a partir das mudanças iniciadas com Macedo, posteriormente influenciadas pelo Daime e absolutamente diferentes da linha de Miário. Temperados pelo Daime, os usos do cipó trazem um olhar transformador para a vida, buscando o bem. A bebida é a professora de conhecimentos espirituais e os usuários buscam uma limpeza física, moral e espiritual que pode ser propiciada por ela. As possibilidades de previsões e as visões são utilizadas agora, também, como orientações de vida. No caso dos Milton, ainda, o cipó veio a reforçar o valor da herança indígena dessa família, a qual é hoje entre eles um fator constitutivo da identidade do grupo.

Refletindo Sobre as Fases do Cipó

Buscamos descrever a ayahuasca dentro de uma cosmologia local que inclui profetismo, encantes, seres supra-naturais e catolicismo popular.[50] Isso foi descrito e interrelacionado a um processo sócio-histórico de transformação, no qual a cultura local soube incluir eventos e personagens e também manter tradições.

Em sua fase inicial, o cipó pertencia à mesma categoria ambígua dos encantes e seres supra-naturais. Atualmente ele coexiste com o cipó-daime, forma de uso da bebida da qual os Milton são um bom exemplo, que pertence a uma ótica onde há a nítida oposição bem/mal.[51] No Alto Juruá houve um crescente uso do cipó junto às transformações sócio-econômicas. Manuela Carneiro da Cunha percebe que “em todo ocidente amazônico (...) o crescimento do xamanismo parece ter coincidido com o enfraquecimento ou o desmoronamento das instituições políticas e econômicas de tipo dito tradicional” (1998, p. 223). No caso específico dos Milton, é importante ressaltar que sua atuação política foi fortíssima no processo que culminou com a instituição da Reserva Extrativista.

Gostaríamos de refletir sobre isso junto à observação de Fernando La Rocque Couto (1989) que percebe as sessões de Daime como exercício de um “xamanismo coletivo”. Apesar das iniciações e trajetórias pessoais, os Milton, usados aqui como um modelo do cipó-daime, parecem vivenciar em suas experiências ayahuasqueiras esse “xamanismo coletivo”. Um olhar ampliado percebe que, nas sessões de ayahuasca, os membros desse grupo de bebedores de cipó (e possivelmente também os membros dos grupos secretistas) atuam coletivamente como xamãs. Tomando a concepção do xamã como tradutor, caberia a todos esses seringueiros serem tradutores, decifradores e interlocutores do global e do local.[52] Neste sentido, é como se esses seringueiros, além de seus próprios patrões, fossem seus próprios xamãs.

Com as mudanças, encontros e desencontros que continuam a ocorrer no Alto Juruá, ao universo, construído em conjunto por pessoas de origens diversas - cearenses, índios, seringueiros, patrões, homens, mulheres, crianças, e outros - são acrescidos novos elementos e significações. Os rituais, campo explícito de mudança - aqui, falamos especificamente do cipó - se transformaram. Eles, agora, podem também contar com vela, orações, cantoria de hinos e ainda com redes, canções populares, onde Irmão José e as Almas Milagrosas da Nova Olinda são fontes de inspiração e devoção tanto quanto a Rainha da Floresta. Um rearranjo integrou o antigo conhecimento à mudanças da estrutura social e à novidades do imaginário de outra “tradição” que faz uso da mesma bebida. Como se, ao adquirir um móvel novo, fosse preciso rever toda a organização dos móveis da casa, criando um novo espaço e modificando os antigos.

Bibliografia

ALMEIDA, Mauro W. B. Rubber tappers of the upper Jurua river, Brazil. The making of a forest peasant economy., PhD. Dissertation, University of Cambridge, 1992.

________. “Caçar” in, Carneiro da Cunha e Almeida (org.) Enciclopédia da Floresta, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

AQUINO, Terri V. Kaxinawá: de seringueiro “caboclo” a peão “acreano”. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Brasília. UNB, 1977.

ARAUJO, Maria Gabriela Jahnel. Entre almas, encantes e cipó. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Campinas, Unicamp, 1988.

_________. Percursos religiosos e trajetórias individuais no alto Juruá. Projeto de Doutorado. Unicamp, Campinas, 1998.

BRANDÃO. Carlos R. Somos as águas puras. Campinas, Papirus Editora, 1994.

CABRAL, Alfredo L. Dez anos no Amazonas (1897 - 1907). Mimeo, Brasília, 1984 [1949].

CARNEIRO DA CUNHA, M. Manuela. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução”, in Mana, volume 4, número 1, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998.

COUTO, Fernando La Rocque. Santos e Xamãs. Dissertação (Mestrado). Brasília, UNB, 1989.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.

GOULART, Sandra. As raízes culturais do Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). São Paulo, USP, 1998.

GUARESCHI, Pedrinho A. A cruz e o poder. Petrópolis, Editora Vozes, 1985.

LABATE e ARAUJO, O uso ritual da Ayahuasca. Campinas, Mercado de Letras, 2002.

LAGROU, Elsje M. Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Florianópolis, UFSC, 1991.

LOZANO COSTA, Da patronagem à associação: poderes em disputa na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Campinas, Unicamp, 1998.

LUNA, Luis Eduardo, in Labate e Araújo (org.) O uso ritual da ayahuasca, Campinas, Mercado de Letras, 2002.

______, Vegetalismo – shamanism among the mestizo population of the peruvian amazon. Estocolmo, Almqvist and Wiksell International, 1986.

MacRAE, Edward. Guiado pela lua. São Paulo, Editora Brasiliense, 1992.

MAUÉS, R.aymundo H. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular controle eclesiástico. Belém, Editora Cejup, 1995.

MENDES, Margarete K. Etnografia preliminar dos Ashaninka da Amazônia brasileira. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Campinas, Unicamp, 1991.

PANTOJA FRANCO, Mariana P. e CONCEIÇÃO, Osmildo. “Breves Revelações sobre a Ayahuasca” in, Labate e Araújo (org.) O uso ritual da ayahuasca, Campinas, Mercado de Letras, 2002.

PANTOJA FRANCO, Mariana P. Os Milton. Cem anos de história familiar nos seringais. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Campinas, Unicamp, 2001.

PORRO, Antônio. “História indígena do alto e médio amazonas: séculos XVI a XVIII” in, Carneiro da Cunha (org.) História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” in Mana, volume 2, número 2, Rio de Janeiro, contra Capa, 1996.

WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica - estudo do homem nos trópicos, São Paulo, Brasiliana, 1977.

WOLFF, Cristina S. Mulheres da floresta: uma história – alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo, Editora Hucitec, 1999.

Notas

[*] Mestra em Ciências Socias pela Unicamp.

[1] Até então este tema foi tratado apenas em artigo de Pantoja Franco & Conceição, 2002a, e 2002b e em dissertação de mestrado de Araujo, 1998.

[2] Pesquisas de campo realizadas em convênio com a Associação de Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (ASAREAJ) ao longo de seis meses, em 1994, quando moramos com famílias seringueiras como parte do Projeto de Pesquisa e Monitoramento da Reserva Extrativista do Alto Juruá; e quatro meses, em 1995, em trabalho realizado junto a curadores tradicionais e agentes de saúde para o Projeto de Saúde da ASAREAJ.

[3] Craveiro Costa, 1940, Wolff, 1999.

[4] Lustosa Cabral (1984) [1949] e Almeida (1992).

[5] Segundo Almeida (1992), em 1878 morreram em torno de cinqüenta mil pessoas dos males da seca, e outras cinqüenta mil foram para a Amazônia.

[6] Cristina S. Wolff (1999) mostra que o Nordeste fez-se e faz-se presente na cultura seringueira amazônica.

[7] Correrias são expedições armadas para enfrentar, expulsar e/ou capturar grupos indígenas na floresta.

[8] Ver Cabral (1984), Wolff (1999) e Pantoja Franco (2001).

[9] Wolff (1999) e Pantoja Franco 2002 falam desse encontro violento e também com uma reinvenção da vida pelas mulheres índias.

[10] Suposto “proprietário” a quem se paga uma renda ou a quem adianta mercadorias para pagamento posterior com a produção de borracha.

[11] Local onde o seringueiro é “colocado”, a unidade mínima de exploração da floresta. Território que contém a casa, o terreiro e a zona de floresta - onde estão a área de roçado, a zona de caça e as estradas de seringa (conjuntos de seringueiras silvestres interligadas por trilhas) de uma família.

[12] Ver Almeida 1992 e Wolff, 1999.

[13] Lozano Costa (1998, pp. 44 – 60).

[14] Fundado em 1985, o CNS teve atuação mais marcante no Vale do Acre. Ver Almeida (1992) e Lozano Costa (1998).

[15] Projeto que propôs a desapropriação dos seringais, permitindo o uso costumeiro dos recursos da floresta, sem divisão da terra em lotes. Tal proposta unia idéias de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável com a permanência humana em área de preservação e com uma dimensão forte de justiça social. Ver Almeida (1992), Lozano Costa (1998).

[16] Eliza Lozano Costa fala que “para pensar a política local é fundamental compreender a ação de três agentes” (1998, p. 64): do sindicalista Chico Ginu, do antropólogo Mauro Almeida e a de Antonio Macedo.

[17] Na literatura e em outras regiões, “caboclo” é termo utilizado para designar o habitante mestiço compreendido culturalmente. Localmente, o termo caboclo refere-se aos índios.

[18] Para situação similar em outros contextos amazônicos, ver Galvão (1976), Wagley (1977), Luna (2002) e MacRae (1992).

[19] As causas do enrasco podem ser conhecidas. Segundo Almeida, “o caçador pode ficar enrascado porque levou os cachorros para caçar na quinta-feira, dia que pertence ao caipora. Ou então o caçador fica enrascado quando os ossos ou o sangue do animal que ele trouxe da mata entram em contato com substâncias como fezes, urina, ou sangue humano, e, particularmente, se o animal for consumido por mulheres grávidas ou menstruadas” (2002, p. 323).

[20] Ver Carneiro da Cunha e Almeida, 2002, Araujo 1998.

[21] O tema comum a muitos povos americanos do “pensamento perspectivo” - que permite observar sob todos os ângulos um mundo habitado por diferentes sujeitos, humanos ou não humanos, com “atributos humanos e animais, em um contexto comum de intercomunicabilidade” e onde a humanidade, e não a animalidade, “é a condição original comum aos humanos e animais” - é tratado magistralmente em artigos de Eduardo Viveiros de Castro (1996).

[22] “Muitos desses poderes estão diretamente ligados à caça e à pesca – a exploração do ambiente natural” (Wagley 1977, p. 229).

[23] Analisando identidade e diferença, Brandão comenta que o índio, sem um rosto cultural, completa o reino da natureza selvagem (a floresta), sendo associado ao oposto da vida e do modo de ser civilizado (1994, p. 168).

[24] As técnicas de cura (pajelança, rezas, uso de ervas, auxílio de espíritos), a reima (fator que torna um alimento passível de causar doença) e tabus alimentares são alguns outros elementos que compõem essa aquarela cosmológica. Porém não pretendemos, aqui, esgotar essa paisagem. Ver mais em Araujo (1988) e Carneiro da Cunha e Almeida (2002).

[25] Em situação semelhante no baixo Amazonas, Galvão (1976, p. 4) comenta que, ao contrário dos santos, os “bichos visagentos” [seres supra-naturais] não recebem culto ou devoção. Eles são evitados tanto quanto possível e recorre-se à técnicas de neutralização de seus poderes.

[26] Irmão José, ou Padre José, é figura controversa. Em suas peregrinações catequizou muitos índios e fundou a Irmandade da Santa Cruz, no Alto Solimões, conforme pode ser conferido em: Guareschi, (1985), Oro (1989) e Aguero (1992). Além do Alto Juruá, visitou outros locais da Amazônia, da Colômbia e do Peru.

[27] MacRae (1992, p. 37 - 39) comenta que o caboclo da Amazônia peruana, assim como o da brasileira, se considera católico [se bem que, recentemente, as religiões evangélicas venham crescendo na região], religião composta de um universo próprio povoado de santos e seres como encantes ou “bichos visagentos”.

[28] Ver Aquino 1977, Lagrou 1991 e Mendes 1991.

[29] Manuela Carneiro da Cunha faz uso inspirado da trajetória de Crispim para refletir sobre xamanismo, tradução e estrutura fractal (1998). Sobre Crispim ver, também, Araujo (1998) e Pantoja Franco e Conceição (2002).

[30] Algumas das histórias que narramos anteriormente aqui se encontram: nesta ocasião Irmão José visitou e pregou no rio Amônia e Joaquim Cunha foi para lá ver de perto o afamado beato.

[31] “Eu ouvi ele dizer para o meu avô que ele tomando Ayahuasca, tinha capacidade de operar pessoas. Ele fazia trabalho de operação dentro da ayahuasca” (Pantoja Franco e Conceição, 2002, p.206).

[32] São técnicas de cura. Rezando, invoca-se ajuda de um santo para a cura. Benzendo, profere-se certas palavras que levam à cura. Tais técnicas podem ser auxiliadas pelo chacoalhar de certas plantas. Curam males de origem física ou oriundos de invejas e feitiços.

[33] Eventualmente um encante faz com que alguém se perca, fique hipnotizado ou seja levado a para o fundo do rio. João Cunha consegue trazer estas pessoas de volta.

[34] Luna (1986)e MacRae (1992) falam dos ícaros, cantos mágicos utilizados pelos xamãs que podem produzir transe. Também descrevem o vegetalista que acompanha os ícaros com um maracá chacoalhado sobre a cabeça e o corpo para provocar visões ou curar doenças. Em 2003, o professor e antropólogo Robin Wright, durante aula na Unicamp, afirmou que a música é o principal meio dos ameríndios expressarem sua religiosidade.

[35] Há depoimentos de que os patrões chegaram a recorrer à polícia para coibir os usos da bebida.

[36] Mauro Almeida, comunicação pessoal (novembro 2003).

[37] Ver mais sobre João Cunha em Araujo, 1998.

[38] Luis Cunha, filho de João que mantém a tradição das sessões masculinas secretas, afirma que o cipó é intimamente relacionado à jibóia, e que matas onde muitas jibóias se fazem presentes são matas de muito cipó (banisteriopis caapi), e ainda que essas podem se transformar em cipó, razão pela qual aparecem cobras nas mirações. Lembremo-nos que no Alto Juruá a jibóia é um animal de poder com o qual se fazem caborjes. Elsje Lagrou (1991) fala das relações entre a ayahuasca e a sucuri junto aos Kaxinawá.

[39] No Alto Juruá a expressão “Povos da Floresta” se referia a uma aliança ente índios, seringueiros e castanheiros. Ver Carneiro da Cunha e Almeida (2002).

[40] Ver Couto 1989 e MacRae 1992.

[41] Hinos são cânticos de estrofes simples recebidos espiritualmente (“do Astral”) graças ao uso do Daime. Sua entoação conduz as sessões.

[42] Entre os vegetalistas peruanos essa ambigüidade se faz presente. A bebida pode ser utilizada para curar ou enfeitiçar, e há vegetalistas “benignos” e “malignos”. Ver Luna (1986) e MacRae (1992).

[43] É possível estabelecer paralelos com o que fala Galvão sobre a pajelança (xamanismo), no baixo Amazonas. Ali, o autor afirma não haver antagonismo entre catolicismo e pajelança. Esta, assim como as festas de santo, novenas, promessas, é “parte integral da religião do caboclo. São aspectos ou maneiras de encarar e explicar o seu universo” (Galvão, 1976, p. 107).

[44] Fundador da religião do Santo Daime. Conferir Labate e Araújo (2002).

[45] As Almas Milagrosas de Nova Olinda são dois irmãos nordestinos mortos por índios nos tempos pioneiros de abertura dos seringais. São considerados milagrosos e dignos de devoção e promessas.

[46] A ayahuasca produz visões, também chamadas mirações (entre seringueiros do Alto Juruá e daimistas) ou mareações (entre vegetalistas peruanos).

[47] MacRae fala da existência de “vegetalistas benignos e malignos”. Diz que, segundo os vegetalistas, seria “mais fácil tornar-se um feiticeiro maléfico (...) pois os espíritos primeiro oferecem grandes poderes e presentes que podem causar o mal”, cabendo a cada iniciado escolher o que vai aceitar (1992, p. 44).

[48] Mariana Pantoja Franco (2001) realizou tese de doutorado sobre a trajetória e memória deste grupo familiar.

[49] O xamã e seu público parecem buscar aval e suporte para seu poder em técnicas ditas tradicionais. Nos casos descritos, vimos isso ocorrer com Crispim, que após viver na cidade foi viver com índios de outra etnia, para ali se tornar xamã; com Sebastião do Cipó, que teve em Crispim os fundamentos da “tradição”; com Macedo, que alude aos índios para mostrar seu pé nesta mesma tradição; e com os Milton, que se remetem aos índios em encontros, mirações e na própria ascendência. Estes últimos somam aos ensinamentos indígenas a “tradição” do Daime.

[50] Certamente não pretendemos esgotar esta cosmologia. Há toda uma série de elementos que aqui não tiveram espaço (como uma noção particular de tempo, a escatologia, as almas etc.)

[51] MacRae (1992) e Goulart (1998), chamam atenção para o afastamento da ambigüidade moral da cultura cabocla e incorporação radical da ética cristã pelo Santo Daime, onde a retidão moral, o amor e a luz. tornam-se valores de força e poder na “luta pelo Bem” exercida por seus seguidores.

[52] O xamã como tradutor é tema desenvolvido em artigos por Carneiro da Cunha: “cabe-lhes, sem dúvida, interpretar o inusitado, conferir ao inédito um lugar inteligível, uma inserção na ordem das coisas” (1998, p. 232).