Esse número da REVER traz quatro artigos originalmente apresentados como comunicações no Grupo de Pesquisa Protestantismos e Pentecostalismos, no VII Simpósio de História das Religiões, promovida pela Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), em parceria com PUC-MG, em Belo Horizonte, no último mês de maio.
A Associação Brasileira de História das Religiões vem se notabilizando por abrir anualmente um frutífero espaço de troca de idéias entre pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento - História, Sociologia, Antropologia, Teologia, Psicologia, Filosofia - de diversas partes do país. Entre mesas-redondas, conferências e sessões de comunicação o campo de estudos da Religião vem se ampliando, fazendo jus à complexidade religiosa da história do Brasil.
No Grupo de Pesquisa Protestantismos e Pentecostalismos é um exemplo de como um espaço de discussão permite não somente o conhecimento e o registro de trabalhos recentes, mas o estabelecimento de laços entre os pesquisadores após o Simpósio. Nesse número, o leitor poderá apreciar recentes pesquisas cujo denominador comum é a afinidade com os questionamentos teóricos levantados pela História Cultural francesa e pelos Estudos Culturais ingleses. Autores como Michel de Certeau, Michel Foucault, Jean Delumeau e Stuart Hall são citados em praticamente em todos os artigos, mas cada autor faz um uso bastante peculiar das proposições teóricas e metodológicas culturalistas, mostrando como essa vertente permite um olhar generoso e diversificado sobre o fenômeno religioso, contemplando relações de poder, subjetividades, identidades, sensibilidades, recepção e circulação de idéias, práticas e crenças. Com isso, as tradicionais periodizações e classificações atribuídas ao protestantismo brasileiro são revistas à luz de novos objetos e/ou novas abordagens a objetos tradicionais.
O primeiro artigo, As Outras Faces do Sagrado: Protestantismo e Cultura na Primeira República Brasileira, é um ensaio do professor doutor Lyndon de Araújo Santos, da UFMA, sobre os resultados finais de sua recém-defendida tese de doutoramento sobre as matrizes do protestantismo brasileiro na Primeira República, cujos resultados parciais podem ser conferidos na REVER de 2003. Partindo do estabelecimento de práticas culturais difundidas pelos missionários evangélicos por todo o país, Santos traça uma comparação com o estado do Maranhão a fim de mostrar as particularidades do protestantismo conforme o seu local de instalação e conforme o contexto social em que ele foi implantado. O caso da conversão de Miguel Vieira Ferreira, fundador da Igreja Evangélica Brasileira em 1879, e a história da circulação do clássico quadro “Os Dois Caminhos”, um dos raros “ícones” autorizados entre os meios protestantes no Brasil, são desenvolvidos pelo jovem doutor tendo em vista a questão das subjetividades, da recepção, e das relações de poder dentro e fora do universo cultural protestante.
Relações de poder, por sua vez, são o foco principal do mestrando Tiago Watanabe, da UMESP, que propõe uma ousada abordagem da historiografia do protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil (Caminhos e Histórias: a historiografia do protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil). Munido de conceituações como a recepção (Michel de Certeau), e a teoria do poder (Foucault), Watanabe procura analisar a construção do discurso historiográfico protestante confeccionado no período de ditadura militar no Brasil e de conservadorismo teológico na IPB (anos 1960-1980). Sua crítica teórica repousa sobre categorias não incorporadas pela historiografia “clássica”, como a formação da identidade protestante do fiel comum, afastado das disputas de cúpula, imerso no cotidiano de um país majoritariamente católico. Utilizando fontes da cidade de Apiaí-SP, Watanabe mostra como o perfil do protestante brasileiro pode muitas vezes fugir à caracterização teórica que é referência para nossos estudos.
O terceiro artigo, Os Últimos Dias: os Pentecostais e o Imaginário do Fim dos Tempos, versa sobre um tema raramente abordado na historiografia pentecostal: o imaginário apocalíptico. Estudando o caso de fiéis da Assembléia de Deus de Belo Horizonte, Robson Franco Guimarães, mestre em Ciências da Religião pela UMESP, defende a tese de que o medo do fim dos tempos foi uma realidade para muitos pentecostais no Brasil entre os anos 1980 e 1990. A escatologia sempre foi associada ao protestantismo norte-americano, que deu origem a movimentos milenaristas ao longo do século XIX, e chegou ao século XX por meio da mídia. Contudo, Guimarães demonstra que o arrebatamento e os sinais dos tempos estão muito mais difundidos no Brasil do que se imaginava, e ao analisar a fala de assembleianos, constata que nem sempre o que era difundido pelo órgão oficial da Igreja, o Mensageiro da Paz, era entendido e vivenciado pelos fiéis.
O quarto artigo, Mudança de Habitus: Religião e Mídia Empresarial-Religiosa, versa sobre um tema bastante evidente nos últimos vinte anos no campo protestante brasileiro: a relação entre mídia e religião. O doutorando Luther King de Andrade Santana aborda o caso de duas emissoras de rádio FM que fazem muito sucesso entre os cariocas: a El Shadai e a Melodia, ambas voltadas para o público evangélico mas sem propósitos missionários. É o que Santana denomina de mídia empresarial-religiosa, fruto das transformações que a religião vem sofrendo ao longo do século XX, com a incorporação de uma mentalidade capitalista a empreendimentos religiosos não denominacionais. Para tal, utiliza o conceito de habitus de Pierre Bourdieu para vislumbrar as modificações no competitivo campo evangélico brasileiro.
E por falar em comércio religioso, na seção Intercâmbio a REVER traz o texto do mestrando em Antropologia Social da UFRJ, José Renato de Carvalho Batista, “No candomblé nada é de graça...": um estudo preliminar sobre a ambigüidade nas trocas no contexto religioso do candomblé. Inspirado em uma frase dita por um pai de santo, Batista investiga os sentidos que os praticantes de candomblé atribuem às trocas simbólicas envolvendo dinheiro.
Outro artigo da seção Intercâmbio é O lugar da cidadania: Estado moderno, pluralismo religioso e representação política, de Marcelo Gruman, antropólogo da UFRJ e pesquisador do CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais). Nesse texto, o autor analisa como a laicização do espaço público no Brasil abriu espaço não somente para o pluralismo religioso, mas também para a redefinição de política e cidadania, ligada a expressões identitárias, como a do caso dos políticos pentecostais ligados à Igreja Universal do Reino de Deus.
Gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Frank Usarski e à equipe da REVER pelo convite para organizar esse número, e aos colegas pelas contribuições dos artigos.
Karina Kosicki Bellotti[*] []
[*] Mestre e doutoranda em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atual coordenadora do GP Protestantismos e Pentecostalismos da Associação Brasileira de História das Religiões.