São muitas as questões humanas sobre as quais a Igreja não tem mais competência do que aquela derivada do âmbito das ciências e da ética naturais. Os teólogos reconhecem que a homossexualidade é uma delas: “a homossexualidade é um problema humano, que deve ser resolvido de forma humana. Não há normas especificamente humanas para julgar a homossexualidade” (Edward Shillebeeckx). Além disso, a revelação divina encontra sua máxima expressão em Jesus de Nazaré, que acolheu, reinterpretou e transformou radicalmente a revelação do Antigo Testamento. Mas há pessoas que, incorretamente, fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia.
Ela consiste, por exemplo, em dizer que a sexualidade, segundo prescrição do Levítico (18,22), é uma abominação. Seguir ao pé da letra essa prescrição pressupõe que é revelação direta de Deus e é preciso obedecê-la incondicionalmente. Qualquer cristão medianamente instruído sabe que o que está escrito no Antigo Testamento é palavra de Deus, mas é produto também da mediação histórica e humana – palavra de homem. A interpretação fundamentalista nos levaria a dizer que se pode vender a própria irmã e ter escravos de países estrangeiros, mas não é permitido se acercar do altar com um defeito visual ou com o cabelo cortado rente à têmporas, nem comer mariscos, nem tocar a pele de um porco. Todas essas coisas estão proibidas no Antigo Testamento, e os que não as cumprem deveriam sofrer castigos, apedrejamento, morte.
A qualificação da homossexualidade como abominação procede de uma hermenêutica mecanicista e deslocada. A Bíblia não é um texto sagrado, intocável, para ser aplicado como se fosse um ditado direto de Deus. A Bíblia não é um aerólito, não é algo caído do céu, mas um instrumento que ajuda a entender a vontade de divina tal como ela é percebida a partir dos condicionamentos culturais, irremediavelmente limitados, daquele tempo e sociedade.
São muitos os que se escudam na Bíblia para se esquivar de sua responsabilidade e esquecer preceitos fundamentais próprios. Quantos escribas, fariseus, juristas e especialistas de hoje perguntam a Jesus, para colocá-lo à prova: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?”. Todos sabem de cor o mandamento principal. Jesus os faz recitá-lo. Mas replicam: “E quem é meu próximo?”. No fim da ceia, Jesus pergunta: “Qual dos três se fez próximo do que caiu na mão dos bandidos?”. O letrado responde: “O que teve compaixão dele”. Jesus diz: “Pois anda, faz tu o mesmo”. (Lc 10, 25-37). Demolidor! O único que interpreta bem a lei é o samaritano, desconhecedor da lei, pagão e herege: opta pelo pobre, tem piedade do necessitado.
Um texto muito citado, referente à homossexualidade, é o de Sodoma (Gn 19, 1-29), usado para desqualificar aqueles que possuem orientação homossexual. Estudos recentes mostram que esse texto não se refere à homossexualidade, e sim à falta de hospitalidade. Ele se converteu, paradoxalmente e contra seu sentido original, para proscrever e exilar de nossa sociedade os homossexuais. Não é de estranhar que Jesus chame de bem-aventurado o que acolhe o forasteiro: “Era emigrante e me acolhestes”, era homossexual (excluído) e me aceitastes.
A Bíblia, obviamente, implica determinada visão cultural da homossexualidade apoiada em pressupostos antropológicos hoje superados. Muitas coisas mudaram sobre a sexualidade humana. A Igreja, cuja missão não é outra senão a de Jesus, tem no Evangelho alguns critérios que deveriam regular a conduta humana com respeito à sexualidade: 1. Jesus não marginaliza nem discrimina ninguém; 2. Jesus se mostra profundamente misericordioso; 3. Jesus relativiza a Lei. Seus inimigos foram precisamente os que utilizavam a religião para discriminar e marginalizar.
Posto isto, leia-se a Instrução sobre os homossexuais aprovada pelo Papa em 31 de agosto e tornada pública em 29 de novembro: "Com respeito aos atos homossexuais, o Magistério ensina que são apresentados como pecados graves na escritura. A Tradição sempre os considerou intrinsecamente imorais e contrários à lei natural. Por conseqüência, não podem nunca ser aprovados. No que diz respeito às tendências homossexuais profundamente arraigadas, são também objetivamente desordenadas. Não se pode admitir, portanto, nos seminários nem nas Ordens sagradas aquelas pessoas que praticam o homossexualismo, apresentam tendências homossexuais profundamente arraigadas ou apóiam a chamada cultura gay. Essas pessoas se encontram numa situação que prejudica gravemente um correto relacionamento entre homens e mulheres” .
Estamos diante do cerne do problema. O Concílio Vaticano II exorta para um maior entendimento das Escrituras e um estudo delas com os instrumentos oportunos. Qual exegeta moderno admitiria como válida a interpretação fundamentalista que se faz sobre a homossexualidade na Instrução? A hermenêutica moderna está longe de ver nos textos bíblicos uma condenação da homossexualidade. A Bíblia não leva a argumentos para isso, nem é coisa que se proponha. Então, não resta outro recurso senão chegar a ela, pela via da ciência, da ética, da filosofia ou das disciplinas humanas pertinentes. Isso quer dizer que, como católicos, não podemos acrescentar nada de específico a um problema que deve ser analisado da perspectiva das ciências humanas.
Isto significa que, catolicamente, pode-se manter uma posição distinta da que proclama oficialmente a hierarquia, pois a doutrina sobre a homossexualidade não faz parte do repositório imutável da fé. Se a homossexualidade tem algo de constitutivo, que possui a pessoa e a obriga a agir de acordo com sua natureza, por que não considerar a homossexualidade como outra maneira de viver a sexualidade, não desviada?
Se é assim, seria preciso explicar então por que os homossexuais são imorais, por que não podem ser tratados com normalidade na Igreja e por que se decide agora excluí-los do sacerdócio presbiteral. Um desafio para a Igreja é admitira diversidade sexual como um valor enriquecedor. As pessoas homossexuais têm o direito, como todas as outras, de se relacionar com Deus, receber oportunidades de seguir Jesus e ser testemunhas Del no mundo. É na base das comunidades que se deve ir gestando um novo tipo de experiência de inclusão.
Os católicos podem ter claro que, partindo de uma corrente doutrinária sólida, não há razões para discriminar e depreciar os homossexuais. Primeiro porque a Igreja não tem razão de ser em si, e sim no Reino de Deus, ao qual deve acolher, viver e anunciar, como fez Jesus. Segundo, muitas vezes a hierarquia chega a se acreditar depositária direta do Evangelho e absolutiza seus ensinamentos sem confronta-los devidamente com o sentir da Igreja e, sobretudo, com o espírito do Evangelho. Quando a hierarquia falha, é preciso mostrar-lhe que sua obediência ao Evangelho é sua norma fundamental, a correção e a profecia são um dever: “ Ainda em nossos dias, é grande a distância entre a mensagem que a Igreja prega e a humana debilidade daqueles a quem confia o Evangelho. Devemos estar conscientes desses defeitos e combate-los valentemente para não prejudicar sua difusão” (Concílio Vaticano II: Gaudium et Spes, 43).
[*] Benjamin Forcano é teólogo moralista e sacerdote. O artigo acima foi traduzido e publicado pela "Folha de São Paulo" em 30 de novembro de 2005.