O artigo trata da infibulação - remoção parcial ou total do clitóris para evitar o intercurso sexual da mulher - na cultura bantu. É um costume africano, presente também no mundo árabe, que provoca a indignação de ocidentais, mas que se acha arraigado em práticas milenares. Mostra o lugar ocupado pela mulher naquelas sociedades e a visão que as mesmas têm da sexualidade feminina. O autor entende que a justificativa de tal prática tem um fundo mítico-religioso profundo. É um ritual sacrificial de iniciação de características machistas, uma vez que a sociedade negro-bantu é de caráter hiero-antropocêntrico. A esta hipótese, acrescenta a de que tal costume se destine a regular a relação conjugal homem-mulher no casamento.
Palavras-chave: infibulação; cultura bantu; sexualidade e religião, rituais de iniciação.
The article treats the african practice of infibulation (the partial closure of female genitals and removal of the clitoris to prevent sexual intercourse) in the Bantu culture. It exists also in the arabic cultures and is widely expanded in African-arabic regions. As an initiation ritual it shows the hiero-androcentric character of these societies. At the same time it has a) a sacrificial character b) serves to regulate the relations between men and women inside the marriage and c) points the role of women in the bantu community and society.
Key-words: infibulation; initiation rituals; sexualitity and religion; Bantu-culture
No decorrer da pesquisa de doutorado que realizo sobre a identidade negro-africana num contexto religioso de convivência intercultural, me vi às voltas com um fato curioso e assustador: a prática da circuncisão do homem e da excisão da mulher na sociedade negro-africana. No entanto, nota-se que, mais do que nunca, cresce a consciência de que a excisão da mulher se põe como um problema para a sua saúde física e psicológica. Desde os anos 80 do séc. XX essa prática foi denunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU), que estimava em 70 milhões as mulheres mutiladas. De lá para cá proliferam denúncias que chegam aos ouvidos da comunidade internacional praticamente de modo esporádico e tímido, sem organização de luta. No entanto, a excisão continua nos "bastiões tradicionais" que defendem o paradigma de “identidade imutável” e enclausurada no esquema do poder patriarcal que explora a mulher africana.
Defender a libertação da mulher africana e promover sua saúde é, certamente, um compromisso urgente e relevante. Mas nesta breve reflexão nossa curiosidade põe, como ato primeiro, o entendimento do sentido da prática de excisão desde o contexto onde ela ocorre, antes de formular qualquer juiz de ordem ética. Perguntamo-nos: o que explica a prática de excisão entre as mulheres negro-bantu?[1]
Suspeitamos de que haja uma marca religiosa que justifique prática tão cruel como a excisão, já que a sociedade negro-banto possui uma hermenêutica de tendência hiero-antropocêntrica. A esta hipótese de caráter religioso, acrescentamos a possibilidade de a prática ter função reguladora dentro da relação conjugal homem-mulher.
A pesquisa traz informações recolhidas junto dos filósofos e antropólogos no âmbito religioso - os negro-africanos Aléxis Kagame e John Mibiti - e de africanistas. É preciso fazer logo a observação de que nem todos os grupos bantu realizam estes ritos de iniciação; há grupos que os desconhecem e outros que os praticam parcialmente. Por isso, as nossas afirmações referem-se só aos grupos que exigem os ritos de iniciação. Para esta exposição elegemos alguns pontos, considerando que o nosso espaço é limitado.
No seu livro Cultura tradicional banto, Raul Altuna (1985:279) situa a prática da excisão entre os ritos de celebração da puberdade. Esta constituiria uma das fases da iniciação à vida comunitária. A excisão é cerimônia inaugural dos ritos de puberdade. Portanto, sua prática deve ser entendida como rito da fase de puberdade, como iniciação à vida de comunidade. Sem ela, a mulher não se vai "fazendo", completando, realizando. Só a excisão a situa no lugar religioso e social exato, torna-a apta para as suas responsabilidades e lhe permite movimentar-se com eficácia na pirâmide vital[2] interativa.
O negro ou a negra guardam no maior sigilo o que viveram.; há referências mítico-místicas que desconhecemos, que utilizam linguagem e nomes cifrados, esotéricos, que nunca se revelam ao profano. Entre os segredos familiares, clânicos e étnicos que o banto guarda zelosamente, os referentes à iniciação ocupam lugar à parte. É nosso intento explicar o significado dos ritos de iniciação na puberdade da mulher bantu. A iniciação da menina para a vida comunitária, os chamados “ritos de iniciação na puberdade”, além de se apresentarem como os mais chamativos desta cultura, revestem-se dum claro significado e da mais vistosa exterioridade. Como situam as jovens no seu lugar dinâmico da vida cultural, social, política e religiosa do grupo, podemos considerá-los como o fundamento da comunidade, o suporte da religião e da garantia da continuidade da solidariedade. A consciência-experiência que a africana possui, de ser pessoa responsável no dinamismo humano-místico, é obtida por meio da iniciação. Por isso a mulher adulta não-iniciada, não gerada por esses ritos, é um indivíduo não-apreciado; carece do estatuto de gente; permanece excluído da sociedade. As mulheres rejeitam os homens não-iniciados e a sua condição de "associais" os equipara a um ser estranho à comunidade. Fica um ser incompleto. Não “passou”, por isso não “renasceu”. Não é homem perfeito, nem encontra lugar na sociedade por causa da sua ambigüidade. Não legalizou a virilidade nem está emancipado.
Os ritos de passagem e iniciação da menina púbere não têm quase relevo nas sociedades matrilineares. Ou desapareceram, ou ficaram reduzidos a insignificantes ritos simbólicos.
Em Angola, por exemplo, a iniciação é praticada por vários grupos: Ganguela, Tshokwe, Nhaneka-Humbe, Ambó. A menina deve ser iniciada quando lhe aparece a primeira menstruação. Em alguns grupos, iniciam-nas antes e, noutros, depois de passar dois anos ou mais; associam-na, ainda, ao contrato matrimonial.
Em alguns grupos, estes ritos duravam meses e até anos. Assim as instruíam e preparavam para as funções femininas. Noutros, normalmente duram poucos dias, apenas três ou quatro. Reduziram-se a uma cerimônia única são realizados nas aldeias e na casa paterna. A menina deve apresentar-se virgem nestes ritos, do contrário sofre vexações e paga uma indenização, além de atrair a vergonha para a sua mãe, responsável por sua educação. Antes, podiam ser mortas com uma lança.
Se aparecer grávida, a desonra assume a maior gravidade. Tais casos costumavam ser raros. Se uma menina Kuanhama dava à luz antes da efundula (os ritos iniciatórios), prenunciava a morte do soberano. O nascimento dum menino cuja mãe não passou por estes ritos é um indício muito funesto.
São menos conhecidos e menos espetaculares, elaborados e simbólicos que os ritos masculinos, visto que duram poucos dias e se realizam com a passagem. Isto é, a menina morre e ressuscita, renasce para uma condição nova, com a personalidade modificada. O isolamento-separação, embora muito breve, encerra o simbolismo de morte-marginalização.
A iniciação feminina conserva o mesmo significado profundo em todos os grupos.
“É este um rito de maturidade, uma dramatização da ruptura com a influência e incorporação na idade adulta, A separação é o símbolo da morte... e seu termo representa a ressurreição para uma vida nova e responsável”[3].
Descobre-se facilmente um elemento comum: uma experiência religiosa profunda, que está na base de todos estes ritos. O “acesso à sacralidade”, tal como se revela ao assumir a condição de mulher, constitui o ponto de mira tanto dos ritos iniciatórios de puberdade como das sociedades secretas femininas. Por isso, muitos grupos conservam gestos mágicos que devem proporcionar à neófita a desejada fecundidade.
Entre os Kuanhama (Angola), no segundo dia da “efundula” as meninas bebem uma cerveja especial, misturada com drogas, em que se inclui um pouco de esperma de um circuncidado de outro grupo, já que eles não praticam a circuncisão. No olufuko dos Kwamatwi (norte de Angola), a mestra anciã prepara uma cerveja com drogas da qual retira uma porção em uma taça; nela, um circunciso lava o seu membro viril três vezes. A menina, que desconhece estas práticas, bebe um gole. O resto a mãe vai derramando pelo baixo ventre da jovem até chegar a uma enxada que lhe colocaram abaixo dos membros inferiores[4].
Todos os ritos femininos “estão sempre relacionados com o mistério do nascimento e da fertilidade. O mistério do parto, isto é, a descoberta da mulher como criadora de vida, constitui uma experiência religiosa que não se pode traduzir em termos masculinos. É por isso que o parto originou rituais secretos femininos que por vezes constituem verdadeiros mistérios”[5].
A menina fica apta para o casamento e para a sua missão fundamental: ser mãe. Os ritos de puberdade definem oficial e publicamente a sua capacidade, valor e estima como procriadora-vivificadora. Porque se transformou, também ontologicamente, recebe o estatuto social, jurídico e religioso de mulher adulta em e para a comunidade. Se a circuncisão prova a ruptura com a idade infantil, em muitos grupos a jovem é deflorada. A ruptura do hímen é prova da feminilidade adulta. Pode-se chamar “ritos de nubilidade” visto que procuram sobretudo a preparação e disponibilidade imediata para o casamento. Durante os ritos, o ventre e a região púbica são tatuados. Atribuem à tatuagem um poder fecundante e, sobretudo, afrodisíaco. Por isso muitas mulheres, onde esta iniciação não existe, também são tatuadas. A menina “aprende durante a sua iniciação que ela é antes de mais um 'campo vaginal' destinado a ser fecundado pelo homem”[6].
A iniciação feminina não descobre os mitos, nem a história, as cosmogonias ou segredos, nem prepara primordialmente para a responsabilidade econômica, política, social ou religiosa. Talvez porque é quase exclusiva das sociedades particulares, em que a supremacia masculina é predominante.
Normalmente, as mutilações sexuais são realizadas por mulheres, na intimidade da iniciação em família. Muitos povos negro-africanos praticam a excisão ou clitoritomia, por influência, sobretudo, dos países árabes ou islamizados: Egito, Sudão, Djibuti, Emirados Árabes Unidos, Oman. Na África Negra são praticadas na Nigéria, Mali, Guiné, Costa do Marfim e em outras áreas da parte oriental do continente. Aparece como exceção entre alguns grupos bantu. Os Kikuyu, povo banto do Kénia, parece que são os únicos que exigem inexoravelmente a excisão de todas as mulheres. A clitoritomia é uma iniciação pela qual a jovem alcança o estatuto social de mulher. Nenhum Kikuyu se casará com uma mulher não iniciada e, inclusive, é "magicamente perigoso" relacionar-se sexualmente com quem não sofreu a excisão.
Em uma operação dolorosa e cruel, extirpam o clitóris com uma faca candente, com pedaços de vidro, com uma lâmina de barbear, com uma faca de sílex ou com um tição incandescente. Muitas vezes também cortam os pequenos e grandes lábios da vulva. A operação é feita por mulheres especializadas, que, em alguns lugares, aplicam urtigas como dolorosa anestesia. Costumam fazê-la quando a jovem chega a puberdade e, em alguns grupos, aos oito ou nove anos.
Alguns povos pensam que, desta forma, se propicia a fertilidade e se favorece o relacionamento sexual. Entre os Nandi (norte da República Democrática do Congo), “a crença geral é se as jovens não são iniciadas, o seu clitóris se alongará e ramificará, e que os seus filhos serão anormais. Nestas condições, é fácil de compreender a importância psicológica da iniciação. Se uma mulher não passa por ela, não chega a ser 'pessoa', fica incompleta e permanece 'criança'”.[7]
“A iniciação feminina nandi tem o mesmo significado profundo que a dos outros povos. É um rito de maturidade, uma dramatização da ruptura com a infância e o ingresso na condição de adulto. O órgão sexual é o símbolo da vida: cortá-lo é como que abrir as comportas para a vida, para que o seu caudal possa ter livre curso”[8]. Em outros lugares, como na Etiópia, pensam que é uma medida higiênica com conseqüências morais positivas que garante a feminilidade. Na Costa do Marfim, convencem-nas de que, de outra forma, não terão filhos.
À infibulação, precedida ou não da clitoritomia, sujeitam-se as mulheres dos países islamizados do nordeste africano, Sudão, Etiópia, Somália, Djibuti, Tchade. Quase exclusiva dos maometanos, parece que esta prática não é conhecida na área bantu. Abusiva e desumana, tenta garantir a virgindade da jovem e a fidelidade da esposa quando o marido se ausenta durante longas temporadas.
É mais difundida a defloração da menina durante os ritos de puberdade. Muitos grupos bantu realizam-na, embora muitos outros apreciam a virgindade até ao casamento. A ruptura do hímen, mecânica, é feita por uma mulher idosa com os dedos ou utilizando um pequeno instrumento. “Na costa ocidental da África, as jovens são defloradas com a ajuda de um bambu, que conservam dependurado da vagina por cerca de três meses. À volta da vulva colocam formigas que devoram as ninfas e o clitóris”.[9]
Ao que parece, pensam que assim se previne qualquer oclusão vaginal na menstruação. Alguns etnólogos veêm nesta prática um presságio de fecundidade, posto que este rito, na iniciação, significaria a penetração do sol na terra para a fertilizar. Também é certo que alguns povos pensam que o marido pode sofrer conseqüências nefastas se for ele a deflorar sua mulher. Esta deve estar livre de lhe acarretar este perigo.
Alguns etnólogos viram na excisão (como na circuncisão do homem) um significado religioso sacrificial. O resgate e a propiciação exigem sangue. Por isso, o indivíduo imola parte do seu ser, oferece um sacrifício parcial em vez de se oferecer como vítima. A imolação de vidas humanas, praticada antes na África Negra, reduziu-se a um sacrifício parcial. Os homens selam um pacto com os habitantes do mundo invisível oferecendo-lhes o sangue da sua virilidade e, as mulheres, sua fecundidade. A circuncisão, como a excisão, estariam relacionadas com a nova vida, como renascimento para uma vida superior mais dinâmica e poderosa. O sangue derramado substituiria os sacrifícios humanos aplicativos e propiciatórios.
Outros vêem no sangue derramado uma aliança com a terra.
“Opinamos que o rito da circuncisão ou da excisão oferece a ocasião de deixar correr um pouco de sangue sobre a terra que, segundo a maioria das sociedades africanas, origina tempo a vida da criança. Como a terra é também residência de mortos (...). Os pais animam ao/à jovem a restituir uma parte da própria vida à fonte da qual deriva (...)O/a jovem estabelece assim uma aliança”.[10]
Na realidade, explica-se muitas coisas sobre a circuncisão dos meninos do sobre excisão das meninas por se tratar sociedades de predominância patriarcal. Isso nos permite afirmar algo sobre a circuncisão para ter uma idéia geral do significado sacrificial das mutilações sexuais.
A. J. Reinach sugere a hipótese de que os varões são obrigados a pactuar com a “divindade” do clã oferecendo-lhe o sangue da sua virilidade. Câmara Laye, quando descreve estes ritos na África Ocidental, insiste em que recordam com nitidez um sacrifício que, através do sangue, garante o estado de homem.
O sangue derramado e o corte do prepúcio substituiriam os sacrifícios humanos aplicativos e propiciatórios. O homem, sacrificando só uma parte de si próprio, adquiriria do mundo invisível e asseguraria o poder reprodutor.[11]
Atualmente, o sentido sacrificial na excisão da mulher e na circuncisão do homem não é claro. Esta última é realizada por um homem normal, ainda que especializado, e não pelo adivinho; não é acompanhada de palavras, símbolos nem gestos mágicos - vale observar que, sem eles, não se realiza na África Negra nenhum rito religioso. Além disso, não há inconveniente em que sejam circuncidados por uma pessoa estranha ao grupo, um enfermeiro, por exemplo, e até realizam-na separada dos ritos da puberdade. Nunca o fariam se ainda conservasse um acentuado simbolismo religioso ou interferências mágicas.
Na realidade, a circuncisão motiva o começo da iniciação. Intenta – é sua óbvia finalidade – preparar os homens para as funções fisiológicas da paternidade, determina a especificidade sexual do jovem e mantém uma relação direta com o casamento. Como prelúdio do exercício sexual, a sua finalidade é prática. Tanto a circuncisão como os ritos de puberdade fazem com que o rapaz ou a menina se tornem definitivamente aptos fisiológica e ritualmente para o casamento e para as funções sociais do adulto no grupo. Muitos grupos bantu os exigem como condição indispensável para o matrimônio.
Seja como for, não pomos de parte hipótese de que um substrato religioso, isto é, que o sangue derramado redima a criança de sua vida pregressa e lhe proporcione uma nova existência, um novo modo de ser. Pode-se admitir este simbolismo: a criança abandona, juntamente com o prepúcio, a meninice, para assumir nos ritos seguintes uma personalidade nova. A circuncisão pode ser geratriz de sangue sacrificial.
Outros opinam que o corte simboliza a ruptura definitiva com a mãe e com o estado infantil. O jovem assim mutilado prova definitiva e visivelmente a sua transformação radical em adulto, sexualmente diferenciado, apto para procriar. “Pelo mistério do sangue, tem acesso à sexualidade”.[12] Daqui, a repulsa da mulher por contatos sexuais com os homens incircuncisos do seu grupo.
Apontamos também algumas explicações que alguns psicanalistas têm dado para as mutilações sexuais masculinas. B. J. F. Laubsher, depois de analisar os grupos Fingu e Tembu (sudeste do Cabo - África do Sul), afirma que “mutilação cirúrgica ou circuncisão deve ser considerada não só como uma prova de aptidão para o estado adulto e como uma iniciação a este estado, mas também como uma forma de sacrifício”.[13]
Aduz esta explicação: “Trata-se de um sacrifício ou explicação que refere simultaneamente ao passado e ao futuro. O jovem não cede uma parte do próprio órgão sexual como expiação de atos proibidos já cometidos, mas porque se sente culpado do próprio carinho à mãe e o sacrifício é, assim um meio para conseguir um compromisso com a própria consciência. O horror, o profundo desgosto que os pagãos sentem pelos contactos sexuais entre uma mulher casada e um jovem incircunciso, deixam transparecer o significado incestuoso atribuído a tal ato. Com efeito, a expressão “mulher casada” indica a classe das mães. [...] As mutilações genitais, praticadas em todas as idades e nos dois sexos, e ao assumirem em muitas circunstâncias o caráter de um ataque voraz, anal e uretral contra os órgãos genitais afetados, não parecem reduzir-se a rituais de iniciação púbere... senão que parecem surgir de uma tendência mais universal dos pais da espécie humana para atacar e espoliar a genitalidade dos filhos, em todos os estádios do seu desenvolvimento psicossexual”.[14] E, analisando o masoquismo primário e os impulsos parricidas dos filhos originados pela inveja primária da genitalidade potente e fecunda dos pais, conclui que “ao estruturar-se o seu complexo de Édipo, o que era inveja se converte em ciúmes, na evolução natural os ataques filicidas e as mutilações genitais devidas à inveja primária transformaram-se nos ciúmes e rivalidades edípicos que se dramatizam através dos rituais de iniciação”.[15]
A força impulsionadora, porém, é a inveja primária.
“Ao nível das relações de geração, os pais, ao projetarem a sua própria agressão, tornaram-se temerosos da hostilidade e capacidade agressiva dos filhos adolescentes, mas, ao criar a disciplina sangrenta dos rituais da iniciação, puseram em evidência as suas tendências tanatofílicas mais reprimidas, as que foram dirigidas seletivamente contra a genitalidade da geração filial”.[16]
Para Freud, a circuncisão substitui a castração. Supõe que, nas origens da família humana, um pai cruel e ciumento castrou os adolescentes; a circuncisão é um vestígio claro dessa crueldade e um substituto da castração, “expressão da submissão ao pai”, pela qual o jovem se compromete a respeitar o tabu do incesto. Tenhamos em conta que para Freud a proibição do incesto é fundamento das estruturas sociais organizadas.
“A iniciação parece-se em muitos aspectos com um 'sacramento' que põe em contacto como transcendente, quer porque lhe revela parte do sagrado (o iniciado conhece os mistérios), quer porque sacraliza o homem”.[17]
O iniciado deixa definitivamente uma existência profana para passar a outra medularmente sacralizada; de natural passa a consagrado, já que é assumido pelos antepassados, responsabiliza-se pela solidariedade, e mover-se-á para sempre dentro do circuito místico da participação vital. Nenhum dos seus gestos será estranho aos mundos visível e invisível.
É radical a ruptura com o mundo infantil, natural, irresponsável, assexuado e desconhecedor da cultura, dos mitos e do misticismo vital. “É preciso considerar a iniciação no Continente Negro mais como uma transformação lenta do indivíduo, como um trânsito progressivo da exterioridade à interioridade.”[18] A descoberta que o iniciado faz da sua realidade humano-comunitária e dos fundamentos mítico-religiosos da sua cultura obriga a uma introversão na qual descobre o dinamismo interior da sua vida participada com variadíssimas potencialidades. A iniciação consegue uma metanoia, conseqüência da mutação ontológica, da mudança substancial de personalidade que operou no jovem.
“O homem da sociedade primitiva não se considera 'acabado', tal como se encontra 'dado' ao nível natural da existência: para chegar a ser homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural.”[19]
Em outras palavras, o primitivo põe o seu ideal de humanidade num plano sobre-humano. No seu entender: 1º - não se chega à condição de "homem completo" senão depois de superada, e em certo modo abolida, a humanidade “natural”; 2º - os ritos iniciatórios que comportam provas, a morte e ressurreição simbólicas, foram fundados pelos deuses, pelos heróis civilizadores ou pelos antepassados míticos: estes ritos têm, pois, uma origem sobre-humana e, ao cumpri-los, o neófito imita um comportamento sobre-humano, divino... o homem religioso “quer ser outro”, diferente daquilo que é a nível “natural”, e esforça-se por se “fazer” segundo a imagem ideal que foi revelada pelos mitos. O homem primitivo esforça-se por alcançar um “ideal religioso de humanidade”.
"Nos contextos iniciáticos, a morte significa a superação da condição profana, não-santificada, a condição do “homem natural”, ignorante do sagrado, cego de espírito. O mistério da iniciação vai revelando pouco a pouco ao neófito as verdadeiras dimensões da existência: ao introduzi-lo no sagrado, a iniciação o obriga a assumir a responsabilidade de homem...; o acesso à espiritualidade traduz-se para as sociedades arcais, num simbolismo de Morte e de novo nascimento”.[20]
Estes ritos são religiosos porque põem o neófito em ligação com potências propícias do mundo invisível e, sobretudo, porque se gestam dentro da essência religiosa banto, tocam o fundamental e o absorvem. O culto à vida, essência da religião tradicional, talvez consiga nestes ritos o seu maior esplendor, simbolismo e realização. A iniciação na vida sagrada, possuída em plenitude depois dos ritos de ressurreição-renascimento, incorpora na corrente vital, fundamenta a vida religiosa individual e comunitária, reatualiza o ancestralismo fundante e dinâmico, assegura a solidariedade, a paz e a harmonia, já que os novos membros se alimentam da ortodoxia tradicional e da seiva pura duma vida nova.
“Pela iniciação dos rapazes e das raparigas a existência coletiva da nação é vivificada e a sua vitalidade se renova... Esta cerimônia tem um caráter profundamente sagrado porque sobre ela repousa a continuidade da nação. É a dramatização solene e religiosa da conquista do homem sobre a morte e o aniquilamento”[21]
Em meios rurais retirados, a iniciação à puberdade costuma fixar os neófitos na tradição, e os prepara para guardá-la e defendê-la contra qualquer investida inovadora. Sobre os infratores pesa a ameaça de severas sanções, inclusive a morte.
A iniciação está a serviço do conservadorismo familiar e étnico e do poder dos homens, sobretudo dos chefes e da gerontocracia. A identidade traduz o etnocentrismo, que inculca a todo custo e que pode impedir a normal conveniência da diversidade, além de fechar a capacidade de abertura a outros valores e outros estilos de vida, visto que os próprios do grupo foram postos como salvadores, sacralizados também pelos antepassados e pelos ritos religioso mais solenes.
O elemento mágico-feiticista que a enquadra pode marcar para sempre a criança impressionada. Torna-se difícil renunciar ou romper com conceitos, expressões, ritos que acompanharam o seu novo nascimento. É indubitável que o homem e/ou a mulher, durante toda a vida, referir-se-á, ainda que seja só em termos do subconsciente, a estes ritos que lhe deram personalidade sócio-religiosa.
O autoritarismo dos mestres e mestras consegue modelar a vontade dos/das jovens, que costumam ficar submissos e dóceis aos poderes políticos, sociais e mágicos para o resto da vida.
A atividade sexual é, muitas vezes, conseqüência da aptidão que a iniciação outorgou para o seu exercício. O jovem costuma começar então as suas experiências sexuais, e não é raro que apareçam mulheres a desejar conquistar sua liberdade sexual.
A iniciação feminina - como a masculina – é uma situação que, por estar carregada de emoção, mistério, dramaticidade, religiosidade (e alegria!), origina uma vivência psíquica que marca e determina para toda a vida a mulher negro-bantu. As meninas são mutiladas com pequenas lâminas de pedra, pedaços de vidros, com faca de sílex ou com um tição incandescente. Muitas costumam ficar defeituosas (física e psicologicamente) e a ausência de assepsia acarreta graves infecções que causam, por vezes, a morte. Alguns etnólogos viram nessa prática um significado sacrificial. O resgate e a propiciação exigem sangue. Por isso, o indivíduo imola parte do seu ser, oferece um sacrifício parcial em vez de oferecer como vítima.
Hoje, em um mundo mais aberto, consciente da valorização do ser humano e de seus direitos, pergunta-se pela coerência das práticas religiosas. Assim, nos perguntamos: como pensar práticas religiosas nas quais a relação com o transcendente (sagrado, divindade) não sacrifique a saúde e a vida humana? Os antigos não diziam que “a glória de Deus é homem vivo”? (Santo Ireneu)
A dignidade e a igualdade no gênero humano que o mundo pós-moderno prega descarta toda a possibilidade de a prática de excisão da mulher possuir caráter regulador dentro da relação conjugal homem-mulher.
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[1] No plano étnico, a África Negra (ou Subsaariana) é geralmente dividida pelos etnólogos e duas macroetnias: o grupo Sudanês (etnias da região ocidental mais o Chade e o Sudão) e o Bantu (etnias da região centro-este e austral).
[2] A vida do munto (pessoa) é concebida como uma participação na relação marcada pela hierarquia entre o mundo invisível (Deus, força suprema de vida; espíritos - gênios; antepassados qualificados: chefes, guerreiros...; antepassados da comunidade) e mundo visível (chefes: de família, de clã; anciãos; a comunidade; a pessoa: centro da pirâmide; animais; vegetais; mundo inorgânico; fenômenos naturais ...). Cf. Aléxis KAGAME , La philosophie bantu-rwandese de l´Etre , New York: Jonson Reprint Corporation, 1956; La philosophie Bantu camparée. In: Presence africaine (1976).
[3] MBITI, J., Religions et philosiphie africaines. Yaundé-Camrões: Cle, 1972, p. 140.
[4] ESTERMAN, C. Etnografia do Sudeste de Angola. Lisboa: Junta de Inv. 1960, vol. 1, pp.100,104.
[5] ELIADE, M., Le sacré et le profane. Paris: Payot, 1976, pp. 122-123.
[6] KHAYAT, J., Rites et mutilations sexuelles. Paris: G.Authier, 1977, p. 166.
[7] MBITI,J., Religions et Philosophie Africaine. Yaundé: Cle, 1972, p. 140.
[8] Ibid..
[9] KHAYAT, J., Rites et mutilations..., op.cit., p.133.
[10] SAWYEER, H., Il sacrifício, In Encontro dei teologi, Ibadan- Nigéria, 1978, pp. 75-76.
[11] KHAYAT, J., Rites et mutilations..., op. cit., p. 77.
[12] KHAYAT, J., Rites et mutilationst..., op. cit., p. 80.
[13] B.J.F. LAUBSHER (1969) apud ALISTER, Hardy. The biology of God. Londres: Jonathan Cape, 1975, p. 33.
[14] RUIZ DE ASÚA ALTUMA, Raul. Cultura tradicional banto. Luanda-Angola: SAP, 1985, p. 282.
[15] TRACTENBERG, M., La circuncisión. Buenos Aires: Paidós, 1972, p. 71.
[16] Ibid., p. 71- 72.
[17] THOMAS, L.; & LUNEAU, R., La terre africaine ses religions. ... p. 225.
[18] ZAHAN, D., Religión, spiritualité et pensée africaine..., op. cit., p. 89.
[19] ELIADE, M. Il sacro e il profano. Torino-Itália: Baringhieri, 1976, p. 118.
[20] ELIADE, M., Le sacré e le profane, op. cit., p.121.
[21] MBITI, J., Religions et philosophie ..., op. cit., p. 139-140.