Obsessão, Culpa e Espiritualidade em um Religioso com Comportamento Pedofílico

Eliana Massih[*] []

Resumo

O artigo é de natureza psicoterapêutica Para mostrar a complexidade do comportamento de um sacerdote católico homossexual de tendência pedofílica, a autora descreve em minúcias a evolução e o subsolo reprimido que vai se revelando ao longo do processo terapêutico. A exposição do caso é acompanhada por reflexões teóricas nas quais a autora explicita seu conceito de sexualidade, homossexualidade e pedofilia.

Palavras-chave: pedofilia, psicoterapia, homossexualidade, padres católicos.

Abstract

The viewpoint of the article is psychotherapeutic. It deals with the complexity behind the sexual behavior of a Catholic priest whose sexuality is homosexual and pedophilic. The author describes the dreams of this patient in order to give to the reader an insight on what happened on the unconscious side of the patient. At the same time she presents her theoretical ideas on sexuality, homosexuality and pedophilia.

Key words: homosexuality, pedophilia, psychotherapy, catholic priests.

Apresento aqui o caso de um paciente homossexual pedófilo que acompanhei durante o processo psicoterapêutico. Trata-se de um religioso católico. Os complexos aspectos psicológicos que se revelaram ao longo do tratamento são uma clara comprovação da necessidade de sermos mais cuidadosos quando buscamos compreender psicologicamente os nexos entre sexualidade, religião e espiritualidade. Generalizações e explicações sumárias não cabem quando se trata de aprofundar o conhecimento do que se passa em um adulto que, na contramão de seus ideais religiosos, se comporta de facto como um abusador de crianças.

Divido a apresentação de meu texto em quatro partes. Uma é introdutória; contém observações de cunho geral que ajudam a enquadrar o problema; na segunda, estreitando os horizontes, faço uma aproximação mais direta em relação à questão da sexualidade e da pedofilia. A terceira, finalmente, traz o caso que serve de referência para mostrar minha compreensão e abordagem clínica do problema. Para concluir, faço algumas complementações.

Com este trabalho quero partilhar o que tenho aprendido ao longo de muitos anos de atendimento terapêutico a membros da Igreja Católica cujo comportamento mostra variados tipos de distúrbios afetivos com intrincadas ligações com a sexualidade.

1. Observações introdutórias

Para mim, como psicoterapeuta, o termo sexualidade, cunhado pelas ciências da modernidade, é genérico e impreciso, além de gerador de equívocos. Como dizia Marc Oraison[1], existe nos termos que a sexologia moderna criou para falar da sexualidade (e com maior razão ainda, da homossexualidade e das parafilias) uma verdadeira “armadilha de palavras”. A prática terapêutica me ensinou que é prudente desconfiar destes conceitos aparentemente claros e científicos em favor de uma leitura e compreensão diretas dos itinerários psicobiográficos específicos à vida de cada cliente. Não é aconselhável deduzir de teorias gerais, tidas a priori como seguras, a maneira como uma pessoa se vivencia e se comporta sexualmente. Aliás, em uma outra dimensão, penso algo bem semelhante a respeito do amadurecimento religioso. Também ele traz a marca registrada da individualidade, o que torna suspeito tomar como pertinentes generalizações tiradas de livros de psicologia, teologia ou espiritualidade. Não raro me vejo coagida a rever teorias de autores tidos como definitivos devido ao que constato quando “cuido” de clientes de carne e osso que me contam sua história de vida “desde dentro”[2]. Realmente, na prática a teoria costuma ser bem outra.

Não estou afirmando ou insinuando que os quadros teóricos criados pela psicologia e pela psicanálise modernas sejam destituídos de valor. Vejo-os como uma ferramenta a ser usada. Apenas acentuo que na prática clínica se percebe que a constituição da identidade sexual das pessoas é idiossincrática e não nomotética. Ou seja, a identidade e a personalidade são próprias a cada pessoa. Mesmo em tempos de massificação uniformizadora, como são os nossos - não só da sexualidade, mas da religiosidade, das concepções políticas, das ideologias e dos valores - é importante ter presente que cada um age e reage individualmente e não como uma "cópia xerox" de um modelo ou forma padrão.

Este princípio vale também (e mais ainda) para sacerdotes e religiosos que, com a maturidade que lhes era possível na juventude, dedicaram suas vidas a uma vocação religiosa e eclesiástica. Seja a motivação espiritual de sua escolha, seja o embasamento e encadeamento das vivências e motivações que os conduziram a essa opção de vida, estão imbricados em experiências pessoais com originalidade muito própria. Na psicoterapia há que se ter muito presente este modo único da evolução de cada um. Só assim se poderá entender como e porque pessoas bem intencionadas podem chegar a agir de modo tão contrário ao que elas se propunham no nível de seu eu-ideal. Por essa razão, descreverei meu caso com detalhes sutilmente idiossincráticos para esclarecer, não como “defino” a pedofilia em geral, e sim como “compreendo” a via pela qual um religioso concreto pode chegar a incidir em comportamentos sexuais abusivos condenados pela sociedade e incompatíveis com o que ele e a Igreja se propõem.

De passagem, lembro que, apesar da extrema permissividade hoje reinante no campo da sexualidade, a pedofilia constitui como que o último reduto do socialmente não permitido. Parece existir na relação da sociedade com este problema uma ambigüidade de fundo que se manifesta com veemência ainda maior quando o pedófilo é um sacerdote ou religioso da Igreja Católica, uma instituição que sabidamente se opõe a muito do que a cultura vigente propaga no campo da sexualidade. O próprio religioso que comete atos deste tipo suscita contra si formas variadas da “violência sagrada” da sociedade e de seus pares. Ele próprio tende a se perceber de maneira dolorosamente ambígua em que se mesclam culpa, confusão e cisões internas.

Uma das razões que me levam a tornar público o que fui aprendendo na clínica é a maneira superficial com que a pedofilia é geralmente apresentada e compreendida. Quem acompanha “desde dentro” a gênese e o efetivo desenvolvimento da tendência pedofílica tem uma visão bem mais matizada do que a propagandeada pelas grandes agências jornalísticas mundiais. Veja-se, por exemplo, uma reportagem recente da conhecida revista "Isto É"[3]. Estou consciente de que os fatos aí narrados são infelizmente verídicos. Dois deles são verdadeiros casos de polícia. Psicologicamente estamos diante de indivíduos sexualmente pervertidos. Os norte-americanos os chamam de “predadores” que precisam ser detectados e punidos. No entanto, a maneira superficial com que estes comportamentos aberrantes são mostrados e analisados não favorece uma compreensão verdadeira do que se passa no interior confuso destas pessoas.

Uma psicoterapeuta, como qualquer ser humano sensível, ao atender casos deste gênero, não pode deixar de se perguntar a respeito das patologias e distúrbios psicoafetivos de que sofrem estes religiosos. Surgem outras perguntas, como: qual a maneira mais indicada para ajudar tais pessoas a não incidir novamente em tais “perversidades”? E, mais ainda: como levá-las a compreender e superar os medos e fantasias que compulsivamente as impelem a buscar este tipo de satisfação de sua libido?

Na linha de uma recente Instrução do Vaticano[4] sobre a admissão ao sacerdócio de pessoas “que apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas”, há que perguntar como distinguir a postura doentia de padres que cometem crimes sexuais, como o sacerdote de Goiás citado na reportagem de "Isto É", da de alguém psicossexualmente imaturo e, por isto, incapaz de assumir os deveres e responsabilidades de seu estado e profissão. Sem entrar na discussão do mérito da Instrução, julgo que o que a Igreja quer, antes de tudo, é prevenir, ao invés de remediar aquilo que não tem remédio. De um ponto de vista propriamente religioso, ela tem objetivos que decorrem da fé cristã e do modo evangélico de viver. Sua intenção é a de evitar que pessoas com vocação religiosa psicologicamente inconsistente possam chegar ao sacerdócio. Freqüentemente é neste sentido preventivo que sou procurada por clérigos. Há, infelizmente, casos com desfechos negativos, trágicos até, para todos os envolvidos. Seja qual for o ponto de partida de meu trabalho, meu objetivo é o de favorecer a reintegração do cliente enquanto pessoa humana, mas sem esquecer que tenho, como psicoterapeuta, compromissos éticos relativos também à comunidade que pode ser prejudicada e, muito especialmente em relação às possíveis futuras vítimas de indivíduos “predadores”.

A opção pelo celibato e pela castidade supõe um conhecimento de si e dos próprios limites. Certos autores costumam dizer que o celibato exigido dos padres exerce um atrativo neurótico sobre pessoas sexualmente inseguras. Suas motivações precisam ser trabalhadas ao longo dos cerca de oito anos que dura a formação do padre. Em geral, os que ingressam nos seminários não possuem nem podem ainda possuir plena consciência das motivações que se radicam em desejos inconscientes da psique. É necessário pôr à prova este desejo, de modo a renová-lo e sublimá-lo, não só nos anos da formação, como durante toda a vida. Psicologicamente falando, não é de se esperar que o dia da ordenação corresponda ao de uma adequada maturidade afetiva, religiosa e profissional. Alguns - uma minoria, felizmente – se vêem marcados por carências irreparáveis. São traumas antigos cujas conseqüências danosas se revelarão com clareza só em fases posteriores de sua vida e ministério. São pessoas que deveriam ter sido aconselhadas a não assumir este caminho de vida. Suas vocações estão calcadas em defesas e projeções neuróticas; baseiam-se em auto-imagens negativas que dificultam seu amadurecimento psicológico integral, mesmo quando são indivíduos bem intencionados. Em geral, quando se aprofunda a análise do ambiente psicossocial de origem de candidatos assim, constata-se serem eles provenientes de ambientes afetivamente pobres, expostos precocemente a uma religiosidade punitiva que lhes incutia medo e culpa ao invés de responsabilidade diante do outro.

Correm risco de desenvolver comportamentos afetivo-sexuais no mínimo tanatológicos. Revelam-se, cedo ou tarde, incapazes de viver o Eros, a Philia e o Agape[5], indispensáveis ao cristão adulto e constitutivos de uma vida psicossexual bem integrada. Apesar de portadores de sérias inconsistências no nível consciente e no comportamento externo, tais pessoas podem mostrar uma aparente maturidade erótica e religiosa, iludindo até a eles próprios. No fundo continuam sendo imaturas e infantis, tragicamente tiranizadas por pulsões sobre as quais não têm domínio. Não tiveram a oportunidade de corrigir os desvios auto-perceptivos e relacionais subjacentes aos seus desejos e projetos. Faltou-lhes, no momento oportuno, uma pedagogia reparadora. O ser humano só se integra e sublima seus impulsos narcisistas mais primitivos quando encontra uma ambiente acolhedor, uma “mãe suficientemente boa”[6]. Ninguém amadurece pela mera ação do tempo. Este apenas cristaliza em traumas as pedras de sal das experiências dolorosas vividas na mais tenra infância, no relacionamento com as figuras paternas. Na puberdade estas pedras aparecem com maior evidência, causando perturbações que podem ou não ser "trituradas" com um bom acompanhamento clínico e/ou pedagógico, coisa que nem sempre acontece.

Já na idade adulta, especialmente após a ordenação sacerdotal, os resultados irão depender de vários outros fatores, como a personalidade mais ou menos patológica da pessoa e a profundidade dos danos causados pelas frustrações e carências vividas no seio da família e das instituições de formação ou em virtude da ação incompetente de formadores. A possibilidade de cura ou reparação dos danos é, em princípio, algo sempre em aberto, embora nem sempre possível. Uma psicopedagogia preventiva certamente seria a base mais indicada para um amadurecimento psíquico, ético e religioso bem fundamentado. Sua ausência pode conduzir a situações irreparáveis[7], como a prática terapêutica, mais de uma vez, infelizmente, me tem demonstrado.

2. Sexualidade e pedofilia: uma aproximação

A sexualidade é um meio; não um fim em si mesmo. Tem duas funções básicas que se complementam em nossa espécie. De um lado, tem uma função procriadora, algo profundamente radicado em nossa corporeidade[8] e que tem seus momentos evolutivos condicionados às normas e valores de cada cultura e grupo social, mas que são ditados por leis que decorrem da evolução da espécie humana. Ë nesta evolução de dezenas de milhares de anos que a sexualidade humana tem sua base neurofisiológica, que possui implicações decisivas para a totalidade do corpo, com seus afetos, emoções e necessidades básicas.

De outro lado, a sexualidade humana tem uma função propiciadora de contato interpessoal entre os seres humanos, com decorrência para a auto-percepção sexual de cada um/uma. São processos vivenciados já pelo bebê em seu relacionamento simbiótico com a mãe e o pai, no primeiro ambiente familiar. Mais tarde, acrescem as influências do meio cultural, do qual faz parte integrante e decisiva a religião.

Este complexo conjunto de fatores vai moldando as atitudes da criança ante sua corporeidade e com relação a tudo o que diz respeito à sexualidade sua e alheia. O que hoje chamamos de identidade de gênero, algo distinto da identidade de sexo, tem a ver com todos e com cada um destes muitos fatores e experiências mais afetivas que cognitivas. A vivência da sexualidade e o próprio funcionamento dos órgãos sexuais precisam ser considerados dentro deste processo lento, global e holístico, abrangendo o todo biológico, social, cognitivo e axiológico de cada ser humano. A criança, ao crescer e tomar consciência de si e da realidade, vai se constituindo como pessoa e estabelecendo a identidade sexual como algo inerente à sua personalidade. Sexo não é algo que o ser humano tem, mas algo que ele é, de forma própria e irredutível.

Todo o nosso corpo é erógeno e também são erógenas e eróticas nossas escolhas de vida, sejam elas concretas ou abstratas. Vocação ou escolha do celibato como maneira de se realizar enquanto pessoa podem ser profundamente eróticos quando ligados à vida e ao fazer comprometidos com um sentido e uma busca. Contudo podem também ser também profundamente alienantes e levar a um processo necrófilo (expressão de Erich Fromm), principalmente quando visam ocultar razões profundas geradas por distúrbios na comunicação da criança em formação com seus pais ou adultos significativos.

Sendo a sexualidade um modo privilegiado de comunicação, sempre que rasurada, inibida ou desorientada na infância, será fonte de distúrbios nas fases posteriores da vida, incluindo uma má formação do caráter e condutas anti-sociais.

Quando evoluída de modo adequado e saudável, a sexualidade faz romper o narcisismo que caracteriza os primeiros vínculos que o bebê estabelece com seus pais. Ela nos abre, então, para o outro em seus desejos e manifestações, inaugurando uma ética relacional calcada no real e, por isto, capaz de escapar ao "círculo de ferro" das compulsões típicas do narcisismo. Sendo um potencial indispensável para qualquer projeto de realização humana, a sexualidade passa a alavancar a comunicação das pessoas com seus semelhantes de ambos os sexos e com as instituições da sociedade em geral.

Como sinal de nossos tempos, sexo e corpo têm duas outras ressonâncias que não devem ser esquecidas. Possuem, primeiro, um marcante valor econômico e, secundariamente, um crescente valor estético. Ambos se expressam em máximas como as seguintes: “aproveite enquanto você é novo/a e bonito/a” ou “faça render sua aparência física”. Isto vale tanto para as mulheres, agora mais liberadas, quanto para os homens, tornados inseguros pela desenvoltura maior com que as mulheres se mostram na sociedade em geral e no campo afetivo-sexual em especial.

E o que isso tem a ver com sexualidade e com a escolha da vida religiosa ou do sacerdócio? Muito, pois os padres e religiosos de hoje são filhos de pais gerados neste contexto sócio cultural que lhes inculca, desde cedo, padrões e exigências para os quais já os genitores estavam despreparados. Pais e mães que têm dificuldade em se constituir como pessoas totais[9], portadoras de identidades de gênero e sexo bem delineadas, não podem fornecer aos seus filhos modelos idôneos de ser e comportar-se no mundo tão complexo em que vivemos. E é deste mundo cultural e espiritualmente ambíguo que nos chegam os pacientes religiosos para a psicoterapia. Não há que olvidar que também nós, psicoterapeutas e os encarregados da formação nos seminários, estamos todos mergulhados neste mesmo mundo carregado de indefinições. Somos todos filhos de uma mesma modernidade em crise.

Ninguém dispõe ainda de uma explicação inteiramente adequada da homossexualidade humana, isto é, de uma teoria complexiva capaz de dar conta de seus fatores fisiológicos - genéticos, hormonais e neurológicos - e igualmente dos complexos elementos psicológicos, sociológicos e histórico-culturais que se escondem por trás de sua gênese. A homossexualidade, como a própria sexualidade, continua sendo uma “esfinge” também para as ciências[10]. O que a ciência contemporânea já tem como consenso é que não se pode tomar nem a tendência, nem o comportamento homossexual, como sendo algo sempre doentio. Sou pessoalmente de opinião que tampouco se justifica considerá-los como uma “variante” pura e simples da sexualidade humana. A clínica mostra que – talvez devido à socialização inadequada destas pessoas - indivíduos de tendência homo costumam demonstrar inconsistências de personalidade e traços comportamentais perturbados que quase sempre demandam de acompanhamento especializado. Evidentemente, quando se trata de sacerdotes e religiosos, tal acompanhamento se torna ainda mais imprescindível e os superiores eclesiásticos de tais religiosos bem o percebem.

Outros distinções precisam ser consideradas. Tanto heterossexuais quanto homossexuais podem ser pedófilos. A pedofilia parece ser mais freqüente entre homens, mas existe também em mulheres. Ela pode, além disto, ser ou exclusivamente voltada para crianças, ou alternada, isto é orientada ora para crianças, ora para adultos. A pornografia veiculada pela internet parece estar aumentando a incidência de uma terceira modalidade, a de indivíduos bissexuais que se interessam seja para por meninos, seja por meninas.

Evidentemente, quando se diz que um pedófilo é homossexual, se está afirmando que o objeto sexual que o atrai são meninos de seu mesmo sexo, afeminado ou não. Afinal, por definição, a homossexualidade, equivale à

“condição de um ser pessoal que, ao nível da sexualidade, se caracteriza pela peculiaridade de sentir-se constitutivamente posicionado na forma de expressão exclusiva na qual o parceiro é do mesmo sexo.”

Destrinçando esta definição de homossexualidade, que é de Marciano Vidal[11], devem ser distinguidos no fenômeno em questão alguns elementos de fundo. Trata-se, no caso pedofílico ou não pedofílico, do sentido global de um ser humano; não estamos apenas ante um fenômeno sexual ou, menos ainda, genital; estamos ante “um ser humano com uma condição e um destino perfeitamente humanizáveis e humanizantes”. A homossexualidade de uma pessoa deve ser encarada como uma manifestação de seu modo de ser multi-vetorial e plurivalente, de sua peculiaridade antropológica, seu modo de ser. A atração exclusiva por um partner do mesmo sexo faz parte integrante da condição humano-sexual dos que a Instrução do Vaticano chama de homossexualidade “profundamente radicada”. Logo, é este o homossexual stricto sensu, constitutivamente e não apenas comportamentalmente, homoerótico, homossexual e homogenital. Quando ele se orienta para crianças e não para adultos ele seguramente o faz levado por uma pulsão aliada quiçá à insegurança ou medo de relacionar-se com alguém adulto. Conseqüentemente,

“por homossexual não se entendem direta e exclusivamente os comportamentos homossexuais, e sim a condição sexual de um ser humano que, através de seus comportamentos, busca a realização pessoal” [....], portanto, “é preciso descartar como formas de definição da homossexualidade aquelas que, dentro da condição homossexual, são anômalas ou desviantes, como por exemplo, a ‘pederastia’, a ‘prostituição’, a ‘violação’, etc. Do mesmo modo que a heterossexualidade não é definida por suas situações desviantes, tampouco pode ser aplicado esse critério para expressar a noção de homossexualidade[12]

Para finalizar, duas observações mais. A primeira se refere à distinção que é útil de se fazer entre pedofilia e efebofilia. Ela é importante também devido ao seu peso jurídico e legal. Um pedófilo “é um adulto que tem pulsões sexuais recorrentes e intensas e/ou fantasias do mesmo tipo, envolvendo crianças antes da puberdade[13]” . De um modo um tanto arbitrário se fixou que a "criança" deve ter menos de 13 anos e o "adulto" ao menos cinco anos mais que esta mesma criança. Considera-se como efebofílico um adulto que sente os mesmos impulsos e fantasias que o anterior, só que orientados para adolescentes após a puberdade, isto é, para efebos entre os 14 e 17 anos. Após os 18 anos, estes adolescentes são considerados legalmente - não psicologicamente – como sendo "adultos".

Estudiosos de prestígio estabelecem um segundo tipo de distinção cuja relevância clínica me parece evidente e é confirmada pelo caso que apresentarei a seguir. Há dois tipos de homossexuais pedófilos segundo estes especialistas norte-americanos: o de regressão e o de fixação. Alguns seriam pedófilos devido a uma regressão psicológica. Em si são orientados primariamente para adultos (do mesmo sexo ou do sexo oposto). Sob a pressão de fatores estressantes insuportáveis, eles se veriam psicologicamente coagidos a recuar para fases mais primitivas de sua evolução afetivossexual, na qual uma criança (um menino, quando a orientação for claramente homo) surge, então, como um objeto sexual mais atrativo e mais gratificante.

Em outros, a orientação pedofílica seria produto de uma fixação, isto é, de uma espécie de parada no desenvolvimento. Tais pessoas, se homossexuais, raramente ou nunca se interessam por partners adultos como eles. Seu interesse se volta com exclusividade para crianças menores ou para púberes ainda com traços físicos e psicológicos infantis.

3. Relato clínico de um caso de pedofilia

Apresentação do caso

Trata-se de um indivíduo de mais de mais de 40 anos, que já na puberdade mostrava uma tendência homossexual, com inclinação por crianças e/ou em púberes. Desde os 20 anos de idade o paciente trabalha com êxito várias em várias escolas de prestígio, demonstrando inteligência e capacidade administrativa e pedagógica. Ultimamente surgiram problemas que levaram seus superiores a propor-lhe uma psicoterapia, o que ele aceitou de imediato, pois correspondia a um velho anseio seu. A descrição é clínica. Relata os fatos desde uma reflexão e tomada de consciência, minha e do cliente, que só surgiram aos poucos, já que a experiência da relação terapêutica se dá de modo espontâneo e paulatino, pouco compreensível para quem escuta a partir de fora. As elaborações do paciente e do analista são, portanto, fruto do próprio processo e só surgiram a posteriori.

Como já ficou dito, trata-se de um caso que envolve um membro ativo da Igreja Católica. A meta a que nos propusemos desde o início do acompanhamento foi a de tomar consciência do processo pessoal por ele vivido, de modo a poder prevenir os comportamentos abusivos que apareciam aqui e ali e, além do mais, o expunham a situações de risco, dado que o paciente exercia uma função de ajuda educacional. Estávamos, ele e eu, diante de fatos concretos que haviam provocado desconforto e levado a medidas por parte dos superiores, com os quais o paciente se abrira. Não houve um escândalo público, mas o comportamento ambíguo foi percebido e o paciente chamado às falas. Ele próprio, pessoa inteligente e culta, percebeu a inadequação de seu comportamento, tanto mais que, no plano consciente, preocupava-se com a dimensão propriamente religiosa de seus sentimentos e atos e não aceitava fazer mal aos adolescentes com quem se envolvia afetivamente.

Em casos que envolvem a pedofilia, o psicoterapeuta tem como tarefa trazer à luz o jogo que jaz no subsolo do inconsciente da pessoa e/ou do sub-grupo cultural específico ao qual ela pertence e que cobra dela uma determinada postura. Para lá das diferenças culturais, parece que a pedofilia toca de perto o inconsciente grupal. Em nossos dias, a opinião pública e os estados modernos vêem a pedofilia como um comportamento de todo inaceitável. O pedófilo encontra a condenação social unânime de sua conduta e ele próprio tende a interiorizar uma culpa veemente por sentir e fazer o que sente e faz. Ao olhar para dentro de si, experimenta esta divisão e contradição internas Também sua religiosidade se deixa influenciar por esta ambigüidade, provocando uma fissura entre sua afetividade e sua espiritualidade. Tem poucas condições de perceber que tudo isto está radicado em suas primeiras experiências infantis, quando a formação de seu “self” dependia inteiramente da figura de sua mãe. Hoje sabemos que, quando a mãe fornece à criança um ambiente satisfatório, propicia condições para construir uma identidade criativa e socializada e, concomitantemente, uma religiosidade sadia, na qual emerge uma imagem viva de Deus, como mostra Ana-Maria Rizzuto em seus estudos psicanalíticos[14]. Sustentado pela mãe que sabe acolhê-la de maneira suficientemente boa, a criança tem condições de escapar às fissuras; ela deixa o mundo ilusório de sua identificação simbiótica com sua mãe para interagir confiantemente com o mundo real, no qual as pessoas são sentidas e vistas como diferentes, mas merecedoras de confiança. É nessa linha que a criança aprende a se relacionar de maneira autônoma com as pessoas. É essa nova condição relacional de base que torna possível a dedicação responsável a algo maior, como o postulado pelas religiões, pela cultura, pela arte, pela sexualidade, em suma, por tudo aquilo que supõe a superação do narcisismo com o qual tem início nosso processo de amadurecimento.

O caso clínico de José (nome fictício) mostra algo do que acontece quando uma criança não é respeitada em seu despertar próprio e, ao contrário, é invadida por um mundo adulto mal resolvido em sua identidade humana de base, incluídas a sexual e a de gênero. O adulto com esta história pessoal de não-acolhimento torna-se alguém despreparado para vida real, fechado em fantasias solipsistas e motivado por culpas inconscientes que o fazem comprometer-se com atos que mantém sua organização psíquica defensiva. Este modo de ser deve ser analisado para poder dar continuidade ao processo de amadurecimento psicossexual, truncado lá no início remoto de uma existência ainda indefinida. A abertura a essas vivências antigas é que pode gerar novas possibilidades de uso da sua afetividade e sexualidade, no sentido de canalizar sua energia vital para um fim ética e moralmente desejável e satisfatório.

O acompanhamento terapêutico de José se iniciou trinta anos após a entrada do paciente em um seminário menor. Ele tinha dezessete anos quando se sentiu chamado a fazer parte de uma congregação voltada à educação em escolas e em obras sociais. Por sua capacidade pedagógica e por sua irresistível tendência para cuidar de pessoas carentes, foi logo se ocupando de tarefas pelas quais a maioria dos outros jovens nem sempre mostra tendência ou sente atração. Assim, em seus primeiros anos de trabalho, era comum que José passasse noites e noites com menores adoecidos com crises epiléticas, bronquite, infecções e traumatismos vários causados por abandono e maus tratos dos pais. Jovem e idealista, ele entendia que sua vocação o ajudaria a superar o que considerava seu pior problema: a tendência ao homossexualismo.

Suas primeiras experiências sexuais foram sempre povoadas do medo do castigo e da ridicularização por parte dos demais. Além disso, a formação religiosa recebida de seus pais incutiu-lhe desde cedo uma visão da sexualidade marcada pela noção de pecado e maldade, roubando-lhe a possibilidade de se ver como alguém em um processo de amadurecimento. Estranhando-se e rejeitando a si próprio, sobrecarregava-se de tarefas e exercícios físicos extenuantes para cair na cama em sono pesado e esquecer que possuía um corpo em formação que denunciava forte pulsão sexual. Pulsão esta que se potencializava em função do repúdio com que a encarava.

Foi uma criança fortemente erotizada pela própria mãe que cobrava dele ser o "homem da casa", já que seu pai alcoólatra não fornecia a mínima sustentação econômica e afetiva à família e a José, que sentia este distanciamento ambíguo com relação à figura de seu pai. No dia-a-dia da casa era ele quem, já aos seis anos, preparava o café da manhã da família, embora possuísse um irmão treze meses mais velho e que era sempre poupado por ter perdido o colo muito cedo. Era chamado pelo pai e familiares de "xereta" por ter chegado em "hora errada", quando ainda sua mãe amamentava o filho mais velho e encarado como mais bonito. Até por sua aparência física, José se sentia cobrado, já que seu irmão era bem mais claro, de olhos verdes, tendo semelhança maior com o pai. Paradoxalmente, José, quando criança, era muito querido por ser prestativo, alegre, e também por gostar de contatos humanos, ao contrário do irmão, mais fechado e taciturno.

José idolatrava a mãe e sonhava com seu carinho e cuidados. Sabia de suas dificuldades para manter a casa funcionando devido ao pai alcoólatra e ausente. Este não se apresentava como alguém violento do ponto de vista físico, mas era imprevisível em suas reações, o que deixava José sempre na espera ansiosa de uma aprovação paterna que raramente obtinha. Estas vivências o colocavam numa situação de fato confusa. Fundia-se com a identidade da mãe no sentido em que ela também esperava a benevolência e o carinho do marido. Mas separava-se dela no sentido de ter a clareza de que seu pai era incapaz de fornecer algo consistente à família em virtude de suas próprias limitações. Assim, precocemente consciente das falhas de alguém que deveria exercer papel de modelo para a constituição de si mesmo, José passou a construir uma identidade falsa[15]. Falsa não no sentido moral do termo e sim porque servia como substituta daquela idealizada da figura de um pai que protege, fornece limites e amplia as possibilidades vivenciais de um menino sensível e rico de potenciais truncados que não tinham como se revelar. Eis como Orestes f. Neto[16] descreve o falso self, na visão winnicottiana:

“as perturbações deste desenvolvimento produzem sensação de falta de fronteiras no corpo, ameaças de despersonalização, angústias impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento, de cair para sempre, e falta de coesão psicossomática. O referencial do sujeito, outra vez, deixa de ser o pessoa, e ele elabora um falso self defensivo e submisso, cujo referencial é o de outra pessoa...”

Daí para a transferência de seus sonhos para figuras de santos o passo foi curto. Bem cedo já tinha seus santos de devoção, muitos deles copiados das orações que escutava a mãe fazer em momentos de medo e desespero. Ora queria ser a mãe, ora não o queria por constatar sua suscetibilidade. Ora queria ser seu pai, ora não o queria pelas mesmas razões. Presenciava também a impossibilidade de sua mãe viver plenamente os direitos e os prazeres ligados à maternidade. Logo em seguida sentia a falta de cuidados a que era submetido e a conseqüente insatisfação dela decorrente. Foi assim construindo uma imagem vocacional de cuidador de crianças, a partir da experiência de não ter sido cuidado. Sabia da necessidade que as crianças têm de ser amadas e protegidas e, num jogo auto-defensivo de projeção temporal, passou a ver-se como alguém dedicado a cuidar de crianças, dando a elas o que de seu pai não havia podido receber. Sua mãe o via como um salvador, ou melhor, como um de seus poucos alentos na vida, erotizando-o precocemente.

Ao longo de seu trabalho já como religioso e educador, José foi perdendo a espontaneidade na medida em que percebia melhor seu conflito interno. Quando inadvertidamente se portava com naturalidade e brincava com crianças menores, imediatamente era interrompido por desejos erótico-genitais que passavam a comandar seus gestos e o traziam de volta à condição de ansiedade e conflito aprendidos na infância, mais propriamente na fase da puberdade, ocasião em que a invasão hormonal advinda de seu crescimento fisiológico foi vivida com medo e estranheza. Instala-se aqui o que hoje em dia o paciente denomina inclinação. E mais, inclinação homossexual por pré-púberes. Em muitas ocasiões conquistou o carinho e a amizade destes pré-púberes, pois eram grandes sua dedicação e o desejo que sentia de cuidar dos mesmos.

De forma alguma, quando adolescente, foi ajudado a compreender as mudanças em seu corpo. No contato com ambientes religiosos intensos, já no seminário, a idéia de pecado e culpa não foi posta em questão. Ensinaram-lhe a lidar com o problema através de penitências e de rituais de auto-flagelação. Ao sentir que tudo isso era insuficiente para amainar a força de suas pulsões, José se sentia o pior dos piores, o que tornava mais intenso seu compromisso defensivo com rituais obsessivos. Estes incluíam decorar salmos inteiros, manter o rosário nas mãos e rezar (seria aquilo rezar?) a seqüência repetidas vezes. Utilizava também frases bíblicas para expulsar as tentações e os impulsos eróticos direcionados ao objeto de desejo: meninos pré-púberes, especialmente aqueles de tez clara, não por acaso semelhante à de seu irmão.

Fora destes momentos era um trabalhador cheio de conquistas que beneficiavam a todos na instituição religiosa a que se afiliara. Ancorado em sua grande produtividade, consolava-se da culpa que sentia. Resistiu por muito tempo ainda aos termos homossexualismo e pedofilia, que foram sendo introduzidos em nossas conversas terapêuticas. Digo conversas porque o processo transferencial da psicoterapia propriamente dita custou a iniciar-se, tendo eu optado por respeitar seu tempo de tomada de consciência e ir inserindo aos poucos uma espécie de formação sobre o assunto.

O paciente havia lido muita coisa a respeito dos problemas que o afligiam, mas não chegava ao crucial: captar sua responsabilidade pelo mal que fazia às crianças. Sua constituição afetiva .imatura o impedia, levando-o a racionalizações. Como gostava das crianças e queria o melhor para elas, ele se defendia de uma percepção dos danos psíquicos que lhes causava através de recursos defensivos dos quais não tinha plena consciência. Não aflorava à sua consciência o ódio angustiado e reprimido que estava embutido nas ações defensivas de seu ego temeroso de se desvelar e de confrontar-se com a dor de ter sido mal amado e invadido por um ambiente familiar insuficiente, constituído de um pai alcoólatra, uma mãe insatisfeita, um irmão mimado, com muita carência econômica e novos irmãos chegando.

O mundo religioso em que José se movia era igualmente tenso. Seu modo de pensar e sentir Deus era rígido. Sempre havia uma luta entre o bem e o mal nos desenhos que eu ocasionalmente pedia que ele fizesse. Neles havia heróis que portavam tridentes e mostravam expressão dura. Eram posicionados de lado como se fosse muito difícil olhar-se de frente, confrontar-se, conversar consigo mesmo, entregar-se. O tórax destes heróis era exageradamente dimensionado – como de fato convém a quem deve estar sempre a postos – mas as suas mãos destoavam mostrando delicadeza e leveza. Comentei com ele o fato e soube que sabia pregar botões, bordar em ponto cruz e os pontos básicos do tricô, habilidades aprendidas com sua mãe. Eram os únicos momentos, juntamente com os do terço, em que via um semblante sereno na mãe. Como sabemos, a religiosidade se instaura na convivência familiar. É no convívio, especialmente com a mãe, que desabrocha este modo próprio do humano de tornar “sagrado” o que para a criança se associa à confiança que deposita na figura materna e no ambiente que a circunda de modo acolhedor ou não.

Os sonhos de José: análise e concatenação

Quanto aos sonhos, foram tantos e tão significativos que seria demasiado longo me ater seqüência temporal total deles. Vou mostrar mais o seu encadeamento no tempo pessoal que o paciente foi criando a partir do vínculo que estabeleceu comigo. Com alegria e motivação aceitou meu convite para transitar livremente em vários assuntos ao longo da sessão. Inicialmente, fazia quase que um relatório. Eu mostrava interesse por sua organização e relato. Mas lhe pedia, sutilmente, que deixasse a espontaneidade aflorar. Prometi que isso o faria sair da sessão mais relaxado. Era o que ele mais queria: livrar-se da ansiedade e agitação que o acompanhavam desde menino. Neste clima de bate-papo e achando que se tratava de um sonho esquisito, fez-me o seguinte relato:

“Sonhei que estava na horta de casa. Havia uma mandioca enorme já crescida sobre a terra e não enterrada, como é o comum”.

O que você acha de uma mandioca crescida fora da terra? E tão grande a ponto de parecer esquisita, perguntei-lhe. Ele disse não saber o que significava[17], mas contou que foi criado próximo à terra, sabia plantar e colher. Adorava plantas, principalmente orquídeas, sua grande paixão. Disse-lhe que orquídeas crescem tão lindas em lugares às vezes tão esquisitos. E das orquídeas voltamos às mandiocas crescidas fora da terra. Isto é possível?

“Bem, acho que eu mesmo cresci assim. Mal nasci já estava muito esperto, vivo, meio xereta”.

José cresceu forte, mas fora da terra como convém às mandiocas que se nutrem da terra até que as descobrimos e cortamos sua casca grossa e aí então é que vemos como podem ser boas. Mas algumas podem ser venenosas. Era como se sentia diante de suas inclinações. Era muito boa pessoa, com boas intenções, mas havia algo que poderia envenenar quem – inadvertidamente – se alimentasse de seus cuidados. Acho que começava a compreender que era capaz de ferir. E igualmente de ser ferido, pois mandioca gosta mesmo é de ficar na terra enquanto não está prontinha. Não foi o que lhe aconteceu. Cresceu fora do ventre da mãe, muito ocupada com a vida difícil que levava.

Em outro momento, contou-me outro sonho que falava de abelhas e seu mel. E igualmente de sua picada dolorida e até mortal para o zangão. O sonho era este:

“Vi uma fileira de árvores que sobem e logo em seguida caem. Começam a sair abelhas. Fujo de medo e me escondo no armário.”

Era comum que José usasse algumas gírias ligadas ao homossexualismo.“Sair do armário” era uma delas. Neste sonho, ele se escondia no armário, com medo. A ambigüidade[18] surge: medo da mulher que, nas associações, ao referir-se as abelhas diz: Produzem mel, mas picam. Medo do feminino, de ser mulher, de gostar de mulher, afinal as dúvidas saíam do armário no ato de esconder-se nele. E ainda, começa a emergir na fala consciente de José sua agressividade reprimida. As picadas sofridas e não revidadas.

José me conta que, além de orquídeas, gosta de pedras e seus formatos tão inesperados. Gosta da natureza bruta que vira beleza. Beleza pura. Pura como os púberes que o encantam. Está andando na rua e fica caçando as imagens das crianças que vê, para congelá-las dentro de si. Ou encontrar espelho para seu menino puro, desde muitos anos congelado dentro de si. Este menino aparece na alegria com que José faz festas, organiza encontros, propicia bem-estar aos outros. Aí então obtém raros momentos de tranqüilidade interior: servindo a quem gosta.

Novas lembranças e imagens se impõem em nossas conversas. Uma delas foi a do “bife de sola!” que, certa ocasião, ele vira seu pai jogar ao chão, de modo humilhante, juntamente com uma travessa de bifes que sua mãe havia preparado para a família. José sentiu-se ameaçado e desvalido por ocasião deste episódio remoto que havia recalcado em sua memória. Discorrendo sobre a alimentação em sua casa, ele conta que até hoje adora legumes, pois sua mãe sabia como deixá-los saborosos, mesmo diante do susto e do medo do marido que, ao chegar bêbado, atira pela escada abaixo os bifes preparados pela mãe dedicada e submissa. As lágrimas emergem dos olhos de José em choro contido que me contagia: Que raiva!

“Sabe que eu não tenho raiva de meu pai? Ele era bom. Era bom quando íamos pescar juntos. Ele trazia os peixes com a maior alegria”.

Novo sonho, no qual o pai aparece nesta vertente positiva, me é contado por José:

“Fomos pescar, meu pai, eu e mais dois. Os outros já tinham pescado, eu ainda não havia nem montado o equipamento. Estranho”.

Eu, terapeuta não estranho. Sua divisão agora se expressa em três partes. O falso self se estruturou bem forte, o menino ainda não instrumentado ficou para trás e agora está sendo revelado. Não sei quantas sessões se passaram e novo sonho surge em um contexto de solto brinquedo infantil:

“Estou andando de patinetes. Nunca andei de patinetes. Era muito bom”.

É muito bom, de fato, poder caminhar solto e com equilíbrio, com leves e reorganizadoras inclinações para um lado e para outro. E ter um guidão para dar o norte e o suporte. José fica feliz. Novamente chora. Eu, de novo, me emociono.

A essa altura do tratamento, sentindo que a relação de transferência já se havia estabelecido, decidi ler umas anotações, uma espécie de diário, que José queria que eu lesse logo no início da terapia. Evitei ler aquelas notas porque não queria ser contaminada e desviada logo no início pelo falso self racionalizado que se achava naquela tentativa de se olhar em um espelho que ele ainda não possuía. Ele vinha pedindo que eu lesse também seus comentários sobre um retiro espiritual de uma semana que fez assim que iniciou a terapia e que havia sido marcado anteriormente ao início de nossos contatos. Concordamos ambos que poderia ser um instrumento para eu conhecer melhor sua espiritualidade.

Para lá de suas atuações pedofílicas, esporádicas, vividas no limite de seus esforços, José mantinha permanentemente um modo ansioso de viver. Foi pessoa de muita ação durante toda a vida. Tendo iniciado seu caminho pessoal a partir da ajuda que prestava à mãe, construiu um caráter firme e decidido: se havia algo para fazer, imediatamente José tomava a frente e fazia. Mesmo quando assumiu cargos de liderança no âmbito de sua organização religiosa, quase nunca delegou outros as tarefas operacionais que eram de sua alçada. Chegou a somar seis cargos e não sabia fazer diferente senão estando presente e ativo em todos. O seu corpo acostumou-se aos excessos e cedo desenvolveu problemas de saúde (colesterol elevado, problemas digestivos, etc). Mantinha-se sempre magro e praticava exercícios diariamente, de modo exaustivo e automático. Igualmente, suas orações eram exaustivas e automáticas, mas rigorosamente cumpridas. Só se apercebeu do fato quando se afastou de sua congregação para dar início ao processo terapêutico, ocasião em que voltou a morar, por muitos meses, com sua mãe e uma irmã.

Antes disso, encheu-se de leituras de auto-ajuda e mesmo de psicologia. Acreditava que poderia curar-se sozinho. Em certo momento da terapia disse-lhe que a cura só se processa no outro e com o outro. Estranhou muito minha colocação, mas a incorporou de tal modo que nunca mais me explicou racionalmente suas falas. Pude ver lances de espontaneidade em seu contato comigo e uma presença agradável durante as sessões. Ele parecia ter desmontado a estrutura rígida de sua personalidade e relatava que a pulsão sexual andava esquecida.

A ansiedade, porém, continuava presente; revelava-se agora em seus escritos e desenhos. Anotava detalhadamente suas experiências e pretendia que eu as lesse. Estranhou mas aceitou com disciplina que eu não leria enquanto não sentisse que o conhecia de modo presencial e compartilhado. Queria mesmo era conhecer o menino que morava nele. No sonho da situação de pesca, parte de sua ansiedade foi elaborada ao perceber que ainda nem havia preparado o instrumento para que, pacientemente, pudesse aguardar que o peixe mordesse a isca, coisa eu aparentemente os outros dois pescadores já haviam feito sem maiores dificuldades. José associou estes dois outros pescadores com partes de si que vão à frente e apresentam resultados sem respeitar o próprio tempo. Brincando de matemática, dois terços de si permaneciam ansiosos, mas um terço já acolhia a espera paciente do pescador, como uma possibilidade de seu ego em erupção. Se seus pais – e também seu instituto – exerceram pressão sobre ele, agora ele poderia mudar o quadro. Antes, não teria sabido como fazê-lo.

Mais abaixo da ansiedade havia um incômodo mais profundo: quem sabe a raiva ou ainda, palavra insuportável para ele, o ódio. Quando lhe perguntei sobre isso, disse ter muita dificuldade em sentir raiva, embora tivesse lido bastante a respeito. Mudou de assunto e passou a contar sobre sua irmã, dizendo que falaria com ela sobre o comportamento da mesma em relação à mãe. Contou-me que estava vivendo um namoro com aquela encantadora mulher (sua mãe) que nunca perdia a esportiva e tocava a vida em frente com alegria. “Estou descobrindo minha mãe”, dizia com graça e espontaneidade, ao contrário de sua irmã caçula e solteira que, segundo ele, não sabia a jóia que tinha em casa.

Perguntei-lhe: “Você está com ciúmes ou raiva de sua irmã ”. Disse-me que nenhum dos dois, mas que iria conversar com ela e alertá-la do fato de andar explorando a mãe, fazendo as refeições em casa e deixando de contribuir no orçamento. Ela estava queimada com os outros irmãos e ele queria ajudá-la.

Continuei perguntando: “Alguém já queimou você?” A pergunta o afetou claramente, como se me perguntasse onde eu queria chegar. Talvez até tenha pincelado certa raiva de mim, que o punha contra a parede. Ficou em silêncio, arregalou os olhos e falou de seu último trabalho. Sim, o superior era traíra (de novo o peixe). Era louco por crianças e o invejava pelo contato fácil e jovial que mantinha com as mesmas na escola. O superior nem o advertiu de que estava exagerando nas manifestações de afeto num tempo em que a mídia alerta os pais sobre a pedofilia na Igreja. O superior, zeloso pela ética e o bom nome do instituto, o transferiu de local, sugerindo seu afastamento temporário do Instituto... e ali estava ele diante de mim, nova figura ambígua em sua vida. Gostava de mim, queria me agradar, mostrar seu lado melhor a esta nova mãe. E eu o fazia sentir a raiva que estava escondida em suas orações de perdão e em seus mantras apaziguadores

A teologia de José apresentava igualmente muitos pontos de tensão. Era viva e cuidadora na teoria, porém áspera e repressora na prática. Sua concepção de Deus estava obstruída por não dispor de mediações psicoafetivas e instrumental psíquico em condições de realizar de maneira pessoal sua experiência do sagrado[19]. Há algum tempo que José usava a expressão descolado na sessão. Nossos encontros se pareciam com a feitura de uma polenta que ia se descolando da panela e tomando corpo e sabor. O principal é a polenta, mas o que fica grudado é também parte dela. Provavelmente vai para o ralo da pia, mas é polenta, sim. Uma analogia saudável diante de muita coisa a ser jogada fora. José é um otimista e isto se deve a sua fé inabalável. Mantém sua disciplina de orações, mas amplia a cada dia a compreensão das mesmas. Agora reza e descola, como se revela no sonho que se segue:

Estou indo a uma festa. Estou de terno e gravata. Era uma grande festa e o salão tinha piso de madeira bem clarinho. Vou indo com tanta alegria que me pergunto: será que estou finalmente mostrando a criança que há dentro de mim? Rezo e des-colo.

Este sonho ou imagem se deu quando estava quase dormindo. O terno e a gravata falam de um homem comum, que vai a uma festa e leva consigo a criança. Talvez neste dia tenha deixado o padre em casa e pôde se ver melhor. Assim, realimentou o padre deixando-o repousar. A formação e os anos de trabalho pareciam tijolões, estruturas rígidas sem as quais inclinaria. No entanto, o que necessitava era repouso e um equilíbrio próximo ao de um menino no patinete.

Rezar e descolar é possível? Rezar e cozinhar gerando vida e cuidado ao invés de medo e culpa. Rezar para receber o bem e não só para espantar o mal e o pecado. Rezar e ser. Pensa que deveria me contar este sonho, embora ache meio piegas. Na dúvida, anota e faz suas orações de praxe. Já na rua, vê um lindo menino andando de bicicleta:

“Vai e descola! Vai ser feliz!”

Até se assusta, mas saiu tão espontâneo! Lágrimas de alegria. Chega à sessão e me conta. Não é piegas! Desejar tomar para si o que lhe parecia belo tinha a ver com a não posse de si mesmo. Buscava fora o que estava encruado dentro de si: polenta mal-cozida. Mandioca crescida fora da terra. Pescador sem molinete. A repetição dos mantras, o rosário repetido em nada se assemelhavam à alegria que sentiu liberando o menino.

Agora é tocar a vida em frente com confiança. Terapeuta e paciente, ficamos ambos à espreita de uma recaída. Ele expressava verbalmente seu medo e eu me escondia em uma expressão de paisagem.

Outros temas foram se incluindo na análise, tendo falado das propostas de sua congregação para novas obras. Ligou para seu provincial dizendo que haviam esquecido de citar seu aniversário no informativo. Como vão rezar por mim, se não me incluíram na lista? Achei importante este ato assertivo, cobrando o interesse por sua pessoa ao invés de, narcisicamente[20] fazer-se notar com gestos vindos de esferas escuras de si mesmo. Os encontros amornaram um pouco e, subitamente, na leitura bíblica do dia surge algo muito forte.

A passagem de Lucas fala de uma mulher encurvada a quem Jesus diz que se levante e ande. Um choro compulsivo toma conta dele e, ao me contar, revive a catarse. O peixe foi fisgado. Esta identificação com a mãe, para ele, uma mulher curvada, agora se mostra como o início de nova etapa do trabalho clínico: conhecer–se, desenrolar–se para ser visto como de fato é, compreender mais sua amplitude de identificações. Um caminhante. Uma orquídea crescida como inquilina, já que orquídeas não parasitam árvores e sim habitam nelas enfeitando-as - a modo de pagamento - quando desabrocham.

4. Complementações clínicas e pedagógicas

Cura e gratidão

Um sonho tira José do armário que guarda muito mais que suas escolhas ou inclinações sexuais. Pois já percebeu que sua identidade sexual, se é hetero ou homo, se sua inclinação é estrutural ou defensiva, não esgota a sua identidade de pessoa total integrada – inclusive - com sua espiritualidade. Agora busca conhecer-se não sem medo, mas com muita liberdade.

“Estou na quermesse da paróquia e devo pagar um louquinho que vendeu tudo o que havia na barraca. Aliás, parecia um cercado. Dou R$ 30,00 e não R$ 5,00, como alguém havia me ordenado que fizesse. Não sei quem deu esta ordem, mas acho que ele merecia e que estava precisando de mais dinheiro. Retirei do montante que ele me entregou, paguei e não me arrependi”.

Finalmente um tributo à louca da casa, expressão comum em nossas sessões terapêuticas. O sonho também se refere à retribuição que espera de sua congregação por tantos anos de trabalho. E ainda, de outro lado, a gratidão por terem lhe dado um tempo para curar–se , para cuidar de si, complementar sua formação humana.

Da expressão da raiva que sentia por seu pedido de afastamento do Instituto – mesmo se aceito no nível consciente – ele chegou à gratidão por seus melhores anos, aqueles vividos em meio a seus confrades e ao idealismo de cada nova missão. Nesta con-fusão de loucura/sanidade pudemos constatar sua vocação para o amor ao outro e tivemos que concordar que a raiva não-manifesta desde cedo se transformou em trabalho e, neste veículo, ficou diluída. O que gerava repentinos atos pecaminosos era a erupção, na consciência, de um passado em que sua inocência foi expropriada. Vingava-se e punia-se ao mesmo tempo. Queria agora ser perdoado e recomeçar. Pecado e inocência se misturavam, gerando con-fusão em toda a constituição de si mesmo

Categorização clínica

A temática dos desvios sexuais vem preocupando os profissionais de saúde ligados à Igreja Católica. Contamos hoje com inúmeras publicações a respeito do assunto[21] e acompanhamos com interesse a obra de Stephen Rossetti. Para discussão do presente caso, e a modo de sistematização, utilizamos a classificação de Len Sperry[22] com a clareza de não desejarmos enquadrar o paciente em questão numa tipologia engessante. Acreditamos que o amadurecimento se dá de modo contínuo e depende das novas relações que o paciente estabelecerá com a comunidade que o recebe de volta após o afastamento. Além, é claro, das mudanças instauradas em seu modo de relacionar-se com o mundo que o circunda.

A categorização diagnóstica dos distúrbios da personalidade do manual da American Psychiatric Association (o DSM-IV) era bastante insatisfatória por implicar que a dificuldade deste tipo de paciente partia de um defeito da personalidade, manifestava-se nos sintomas e era refratária à terapia[23]. Implicava que o paciente não tinha sintomas subjetivos, quando de fato os tinha. Não incluía, ainda, a idéia de evolução do defeito de personalidade para melhor ou pior, dependendo do ambiente no qual o paciente vive. No DSM – IV contamos com uma distinção em termos de conduta e uma linha contínua que vai da sanidade ao distúrbio, estabelecendo nuances e prognósticos

José teve dificuldades no estabelecimento da separação da mãe em função das falhas da mesma. Teria se ligado ao inconsciente da mãe para preservar a fantasia de que era amado e bem cuidado, bem como para evitar a ameaça de abandono. Segue em frente sendo incapaz de perceber que a mãe lhe negava a satisfação de seus apetites. E mais, não estabeleceu condições de sentir raiva talvez devido ao ensino moralizante precoce.

A separação bem-sucedida da figura da mãe é pré-requisito para toda relação interpessoal posterior, tanto íntima quanto social. É a capacidade de relacionar-se com os outros como pessoa totais: boas e más, gratificantes e frustrantes, e não com partes do outro experimentadas como objeto de satisfação de nossas necessidades. Quando não evoluímos a ponto de nos tornarmos pessoas totais fica impossível estabelecer uma ética que cuida e se responsabiliza pelo efeito de nossos atos sobre a constituição do outro. As questões do abuso sexual em todas as suas formas passam por este crivo.

A ansiedade como mecanismo de defesa

A ansiedade de José nos aponta para uma discrepância entre suas reais capacidades e o modo como as vê a partir de dentro. Sempre em dúvida sobre sua aceitação pelo Instituto, esmera-se em fazer cada vez mais e melhor, desrespeitando os limites de seu corpo e projetando na via espiritual a cura de todos os seus males.

A espiritualidade fica seqüestrada e o impede de lançar-se para o transcendente. A realidade perde o contorno e ele se mistura com a criança que teria sido para as projeções de sua mãe: bonito, amado, cuidado e, igual e tragicamente, provedor de suas necessidades afetivas. Esta posição é, para um Freud maduro, a raiz da condição homossexual[24]. É ele a mulher encurvada, imagem ativada pela citação bíblica, que põe no colo as crianças das quais abusou da ingenuidade. Tinha e não tinha consciência do mal que lhes fazia.

Nunca se utilizou da força, como expresso no tipo narcisista reativo descrito por Len Sperry, aquele que se acha com direito a tudo e não tem limites para obter o que deseja. Tampouco culpava os demais, algo comum nos casos de narcisismo reativo, e sim a si próprio, a quem punia de modo severo. José se aproxima do que Sperry chama de narcisista ilusório, aquela pessoa que, quando criança, teriam sido precocemente estimuladas e sobrecarregadas por seus pais ou cuidadores.

Mas, provavelmente, a formação religiosa que recebeu lhe foi útil para instituir um modo reparador que ativou seu potencial animador, fazendo-o caminhar na direção do que Sperry chama de narcisismo construtivo. Estas pessoas poucas vezes atuam com ressentimento e desenvolvem modos humanitários de relação. O que os "pega" é a carência afetiva, fazendo com que deslizem ou inclinem. José vacilava, mas permanecia de pé à custa de um esforço permanente de ego.

Utilizava-se das orações no modo de um treinamento que o fizesse esquecer ou ocultar as raízes da falta que sentia. Além disso, havia o fato concreto de uma erupção sexual mal-resolvida e moralizada pela formação para a vida religiosa. Sua auto-imagem pendia de um lado a outro: ora era o eficiente membro do Instituto, ora era o pedófilo amoral, aquele da mídia que explora e julga os membros da Igreja por toda a representação de sagrado que os permeia. Nenhuma das duas imagens falava dele enquanto pessoa real e afetada pelas emoções e necessidades que o invadiam e das quais sequer tinha consciência.

Sua formação religiosa atuou de forma positiva na parte pedagógica, mas mostrou seus limites no que se refere à religiosidade, que se tornou compulsiva. Uma de suas tarefas hoje é a elaboração de uma espiritualidade que inclua estas descobertas a respeito de si mesmo. Agora, com a clareza do forte liame entre corporeidade (corpo e seus afetos) e as experiências religiosas que vão se agregando à personalidade total, poderá reorganizar sua espiritualidade[25].

Mal saído da barra da saia da mãe, entrou na instituição que pedagogicamente moldou sua personalidade aberta, motivada pela vocação e incentivada pelo carisma da mesma. Faltou-lhe tempo para elaborar sua história de vida e seus vínculos com as figuras parentais. Passa então a idealizar as figuras de autoridade e o fundador, absorvendo como que por osmose seus valores. Algo ficou para trás e parece-nos que é para trás que voltava quando, compulsivamente, buscava e era atraído por essas crianças com as quais se fundia. A sexualidade genital, reprimida, retornava de modo autônomo, gerando num momento posterior o medo da punição por parte das autoridades e, em outro patamar, no modo da punição vinda de uma imagem de Deus tirânico, que poria constantemente à prova suas inconsistências e limites[26].

5. Ponderações psicopedagógicas

Após o acompanhamento de um bom número de pacientes vindos de instituições religiosas, tive a oportunidade de conhecer e compreender a base afetiva de boa parte dos males que os afligem. Pude observar também a boa vontade dos membros que exercem papéis de autoridade. Pude, então, perceber que os religiosos/as da Igreja Católica têm buscado se adaptar melhor à realidade de seu mundo afetivossexual.

Acompanhando os formadores de vários seminários e noviciados, pude partilhar de seus esforços para fornecer cuidado e amparo aos candidatos em fase de discernimento, portadores de inconsistências mais ou menos sérias. O caso de José demonstra que as instituições religiosas, em especial as encarregadas da formação, vêm aprendendo a realizar um tipo de acompanhamento que exclui o excesso de poder que pode facilmente sufocar as pessoas. Buscam, para tanto, o apoio de especialistas em psiquiatria e psicoterapia, que, por sua vez, precisam entender melhor o mundo rico, mas ambíguo, no qual se inserem estas pessoas, em geral na fase evolutiva juvenil. Há muito mais a ser feito para se propiciar a elas uma ajuda adequada. A interação entre os especialistas na área psi e os formadores/as se torna cada vez mais necessária. Em vários países essa interação conta com muitos anos de experiência. No Brasil, ela apenas está começando. Representa um campo riquíssimo do interesse das Ciências da religião, especialmente da Psicologia Clínica, em suas muitas variantes. É um campo rico também para a Psicologia da Religião.

Infelizmente, nem todos os casos referentes ao tema do abuso sexual têm um resultado tão esperançoso quanto no de José. A ajuda especializada chega muito tarde ou, então, é inadequada por ausência de compreensão do que se passa em tais pessoas. No caso em pauta, do ponto de vista pedagógico, pareceu válido primeiro que José se afastasse de sua comunidade e, segundo, que deixasse de exercer funções que o colocavam em situação de proximidade com o foco de seu problema. Recomendou-se, ainda, que ele não perdesse o vínculo com sua comunidade de pertença e que evitasse trabalhar em projetos solitários que poderiam aumentar seu já elevado grau de stress profissional e pessoal. Observamos também que seu convívio com pessoas de idades e sexo diferentes foram um significativo auxílio para seu amadurecimento humano que ficara detido durante décadas. São todos aspectos mais pedagógicos do que propriamente psicoterapêuticos. Deste ponto de vista, a perspectiva de quem está encerrada entre as quatro paredes do consultório no face-a-face com o cliente carece de uma complementação quando se trata de pacientes religiosos compromissados com congregações religiosas e ou dioceses. Falo dos ministros católicos, mas o mesmo, penso, pode ser dito quanto aos pastores/as de outras Igrejas cristãs.

Para trazer a terapia mais para dentro do cotidiano real, institutos como o Saint Luke (USA) e o South Down (Canadá) usam intensamente terapias grupais nas quais fazem conviver no mesmo grupo abusados e abusadores, no intuito de promover uma experiência concreta do efeito de seus comportamentos e da possibilidade de perdoar e ser perdoado – e não desculpabilizado – melhorando a qualidade de vida das vítimas e corrigindo com firmeza, porém de modo não-autoritário, os abusadores/as.

Estas são formas novas de evitar a repetição inconsciente da experiência vivida de modo traumático no período infantil. Abusado que se torna abusador é fato já constatado em vários casos que acompanhamos e que poderiam ser relatados em artigos futuros. Há, ainda, aquelas situações que exigem uma conduta mais rigorosa, que foge das instâncias da Igreja por se tratar de crimes praticados com frieza e intenção.

O que precisamos é ter clareza e instrumentos adequados para distinguir uns dos outros. Neste sentido, torna-se indispensável um diálogo entre os vários profissionais que interferem na ajuda a portadores de distúrbios e taras sexuais sérias.

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Notas

[*] A autora é mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, atuando em consultório particular há 30 anos. É terapeuta membro do Instituto Acolher ITA. Leciona Psicologia da Religião no ITESP.

[1] ORAISON, M. El problema homosexual. Madrid:Taurus, 1976, p. 20.

[2] MASSIH, E. O agir terapêutico. Um modo possível de cuidar. São Paulo: EDUC, 2000.

[3] Isto É. 16 de Novembro, No. 1883, 2005, p. 32-38.

[4] CEC, Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 10.

[5] Bento XVI, surpreendentemente, usa estas três expressões para chegar a falar da caridade de Deus e do cristão. Cf. BENTO XVI. Carta Encíclica Deus Caritas est, São Paulo, Paulinas, 2006, no. 3 ss.

[6] Este termo, cunhado por D.W. Allport, é bem explicado por NETO, Orestes F., Constituição do si-mesmo e transicionalidade. In: Viver-Mente e Cérebro. Coleção Memória da Psicanálise, 2005, No. 5, p. 16-21.a

[7] Ao falar em irrepabilidade ou possibilidade de nova orientação estou me referindo à consciência que um paciente pode adquirir a respeito de si e do que quer e deve ser e fazer. No caso da homossexualidade, não estou falando de uma reversão ou eliminação da tendência em si e sim de uma capacidade maior de percebê-la, aceitá-la e orientá-la para fins socialmente válidos, fins que, para um padre, estão intimamente unidos aos propostos pela teologia e a espiritualidade cristãs.

[8] Cf. MORI, Geraldo L. de. Provocações para pensar uma teologia da corporeidade. In: Convergência, 2005, No. 386, p. 470-490 e PINTO, Ênio B. Orientação sexual na escola. São Paulo: Edições Gente, 1999.

[9] O conceito de pessoa total aparece e é desenvolvido pela Psicanálise inglesa. Refere-se a integração da personalidade e a delimitação de fronteiras entre o eu e o outro, favorecendo o estabelecimento da ética que não se apropria do outro como mero objeto para suas necessidades ou desvios.

[10] Cf. MOSER, A . O enigma da esfinge. Petrópolis: Vozes, 2001.

[11] A definição e as citações em itálico que seguem nos comentários são todas de VIDAL, Marciano. Avaliação moral da homossexualidade. In: VIDAL, Marciano (org.). Homossexualidade e consciência. São Paulo: Loyola, 1985, p. 109-112.

[12] VIDAL, Marciano. Op.cit. p. 110.

[13] Cf. LOTHSTEIN, L.M. Psychological Theories of Pedophilia and Efebophilia. In: ROSSETTI, Stephen J. Slayer of tehe Soul. Childs Sexual Abuse and the Catholic Church. Connecticut: Twenty-Third Publications, 1994, p. 21.

[14] Cf RIZZUTO, Ana Maria. The Birth of the Living God. A Psychoanalitic Study. Chicago: Illinois: University of Chicago Press, 1979. A Editora Sinodal, de São Leopoldo-RS, acaba de traduzir ao português e tem no prelo este interessante estudo.

[15] A noção de falso self é importante. Trata-se de uma construção psíquica cuja função é a de proteger a criança das invasões ao seu movimento natural de crescimento. O falso self é um produto ilusório e mental construído antes do desenvolvimento da afetividade. Ele bloqueia o desenvolvimento integrado da personalidade, dada sua artificialidade e caráter imaginário.

[16] NETO, Orestes F. op.cit. p. 16.

[17] Um terapeuta amigo a quem narrei este e outros sonhos de José me chamou a atenção para o significado que a palavra “mandioca” tem na linguagem popular mais grosseira. Significa o pênis. E lembrou também que a orquídea é um símbolo do órgão sexual feminino. Esta leitura vai na linha de Freud. É bom tê-la presente, embora eu não a tenha forçado na conversa com José.

[18] O mesmo terapeuta citado na nota anterior me lembrou que as árvores enfileiradas (seus troncos) poderiam estar representando o pênis. Assim, no mesmo sonho teríamos um símbolo da indecisão de José entre o masculino e o feminino.

[19] Gilberto Safra nos fala desta condição utilizando–se do modelo de psicanálise apresentada por Bion, que inclui as experiências religiosas como modo próprio de ser do homem. SAFRA, G. Religiosidade e representação na clínica do self. In: PAIVA, Geraldo J. e ZANGARI, Wellington ( Orgs. ). Op. cit. 2004, p. 76.

[20] Len Spery, psiquiatra norte-americano, vê o narcisismo como uma forma específica de resposta ao outro sem tomá-lo como sujeito. Não considera, contudo, que este egocentrismo seja necessariamente patológico. Torna-se patológico quando avança sobre os limites do outro, que passa a ser visto como espelho que comprova o quanto o narcisista é belo e tem poder a ponto de ab-usar. Cf. SPERRY, L. Sexo, sacerdócio e Iglesia. Santander: Sal Terrae, 2003.

[21] Em ROSSETTI, Stephen J. op. cit., 1994, pode ser encontrada uma extensa bibliografia referente ao abuso sexual por parte de integrantes do clero. Outras fontes podem ser encontradas no site do St. Luke Institute-USA, do qual Rossetti é diretor. Cf também, para o Brasil, o livro de NASINI, Gino. Um espinho na carne. Má conduta por parte de clérigos da Igreja Católica no Brasil. Aparecida: Editora Santuário, 2001.

[22] Sperry descreve três tipos de narcisismo para tentar englobar os comportamentos de abuso de poder na vida religiosa e os relaciona com os distúrbios da sexualidade. São eles: narcisismo reativo, narcisismo ilusório e narcisismo construtivo. Utiliza como referência o DSM–IV, da American Psychiatric Association, do ano 2000. Faz ainda um confronto das atitudes narcisistas com os modos de religiosidade apresentados por seus pacientes.

[23] J.F. Masterson aprofunda esta compreensão em excelente livro referido na bibliografia, apresentando uma série de casos clínicos de adolescentes fronteiriços. Trata-se de um livro escrito no início da década de 90 e não se refere à vida religiosa em particular.

[24] Para Freud a homossexualidade masculina sobrevém depois da puberdade, nos casos em que se instaurou na infância um vínculo intenso entre o filho e a mãe. Em vez de renunciar a esta, o filho se identifica com ela, transforma-se nela e procura objetos capazes de substituir seu eu aos quais ele possa amar como foi amado pela mãe. Ver, a este respeito, a clara exposição de ROUDINESCO, E. e PLON, M. (Eds.). Homossexualidade. In: Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 350 s.

[25] Em AMATUZZI, M. (Org.). Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulus, 2005, encontramos os textos de falas de quinze especialistas brasileiros que oferecem o que há de mais recente sobre a relação entre espiritualidade e psicologia.

[26] É bom lembrar que o DSM-IV, em suas edições mais recentes, já inclui a categoria "problema religioso ou espiritual", definindo-o como “experiências estressantes que envolvem perda ou questionamento da fé, problemas associados a conversão para uma nova fé, questionamento dos valores espirituais, relacionado ou não a uma igreja organizada ou instituição religiosa”.