Os Significados da Homossexualidade no Discurso Moral-religioso da Igreja Católica em Condições Históricas e Contextuais Específicas

Marco Antônio Torres [UFMG]

Resumo

O presente texto se apóia em uma dissertação de mestrado na qual o autor discutiu a constituição de diferentes significados da homossexualidade no discurso oficial da Igreja Católica. Neste artigo ele estuda o desenvolvimento histórico que foi conduzindo o discurso moral-religioso da Igreja a posições diferenciadas. O autor, neste texto, está primariamente interessado em entender como a fala hierárquica age como instância mantenedora e articuladora da hegemonia doutrinal católica que se constituiu nos anos posteriores ao Concílio Vaticano II. Do ponto de vista teórico, a posição do autor se apóia na análise do discurso proposta por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Outra preocupação sua é de compreender como os padres de tendência homossexual lidam com sua tendência, negociando de forma nova com o discurso e as normas oficiais da Igreja.

Palavras-chave: Teoria do Discurso, Homossexualidade, Igreja Católica Romana, padres homossexuais.

Abstract

The different meanings of the homosexuality inside the Catholic Church: this is the main theme of this article. The author tries to study the ways the Catholic Church uses to conciliate a certain tolerance towards homosexuality with the affirmation of a new hegemony of its official discourse on this subject. The analysis is originated from a field research based on interviews with homosexual priests, Church documents, in situ observations, and some studies about homosexuality in the Catholic Church and among Christians. The author uses the concept of “discourse” as defined by Ernesto Laclau and Chantal Mouffe in their Theory of Discourse. For the author it is important to understand how the more tolerant discourse has allowed that homosexual priests to deal with their own homosexual orientation regard the doctrine of in the Catholic Church about homosexuality.

Key-words: Theory of Discourse; Roman Catholic Church; Homosexuality; Catholic Priests.

A constituição de posições diferenciais sobre a homossexualidade no discurso moral-religioso da Igreja Católica

Diante da complexidade dos processos sociais contemporâneos, o discurso da Igreja Católica sobre a sexualidade humana pode ser considerado com moral-religioso. Enquanto discurso moral, procura regular os usos e costumes nos terrenos da moral, da ética e do quotidiano; como discurso religioso, sua fundamentação ocorre a partir da doutrina elaborada através de um mito fundador, transcendente e sobrenatural. Verdades religiosas e eventos históricos se articulam através da memória religiosa cristã presente nas tradições, documentos, obras de arte, etc. Toda essa articulação moral do discurso religioso fica submetida às verdades religiosas da cosmogonia cristã. Uma particularidade nessa cosmogonia é o modo como a divindade é concebida, numa lógica que compreende a figura de Deus como a totalidade de tudo que existe, onipotente, onipresente e onisciente. Essa dimensão religiosa do discurso cristão influenciou o pensamento ocidental como um todo (LACLAU, 1995).

Numa análise do discurso místico cristão, esse princípio de totalidade é bem caracterizado por Laclau, que nos permite concluir que "del análisis previo que decir que Dios es algo distinto de cualquier atributo particular que podamos predicar de él, y decir que él se expresa a través de la totalidad de lo que existe, es decir exactamente lo mismo." (LACLAU, 2002, p. 108). Nessa lógica vai se constituindo um discurso que, além de moral, também constitui-se numa dimensão religiosa específica.

A homossexualidade, como toda a sexualidade humana, está diretamente relacionada ao universal constituído por esse discurso. As condições contextuais (crenças religiosas, modelos de Igreja, etc.) e históricas (lugar social da Igreja, complexo sociocultural, etc.) influenciaram a constituição desse discurso.

Nele, temos a formação de um universal que perpassa toda a Igreja Católica, a moral sexual católica, que se constitui como um referencial para sua análise da homossexualidade. Mas o sentimento de pertença dos membros da Igreja Católica também se daria a partir de outros universais, caso alterássemos o foco da análise. Acatamos a definição de universal como constituído a partir do particular, dentro da Teoria do Discurso. Caso definíssemos um universal como dado, ele perderia seu caráter contingencial. O universal é um significante vazio que não possui sentido a priori, dependendo de formações discursivas para se constituir na perspectiva teórica de nossa pesquisa. A moral sexual se coloca como um universal a partir da incorporação de elementos no discurso da Igreja Católica. O processo de hegemonização se dá quando um determinado elemento do discurso, através do processo de articulação, constitui um significado num determinado discurso - com isso, temos a constituição de uma hegemonia específica, como expomos na discussão metodológica.

Para compreender mais especificamente os sentidos da homossexualidade na reflexão intramuros do Cristianismo, referimo-nos apenas a algumas obras (BOSWELL, 1987; LEERS e TRANSFERETTI, 2002; RANKE-HEINEMANN, 1988/1999; VAINFAS, 1997). Delass são tomadas algumas reflexões na tentativa de reconhecermos o caráter contingente do discurso católico sobre homossexualidade.

Boswell (1987) defendeu uma tese que se tornou clássica nos estudos sobre homossexualidade no Cristianismo. Ele discutiu a existência de uma maior tolerância aos relacionamentos homossexuais no Cristianismo dos primeiros séculos: santos, padres e nobres viviam seus amores com pessoas do mesmo sexo, como demonstrado por esse autor através de sua pesquisa na História. Existe uma crítica aos estudos de Boswell considerando que o Cristianismo nunca tolerou a homossexualidade. Richards comenta que aquele autor "perdeu-se no desejo de provar que a cristandade não é fundamentalmente hostil à homossexualidade" (RICHARDS, 1990/1993, p. 136) e formula seu parecer da questão:

Não há como polemizar realmente sobre a postura básica da cristandade. Visto que o sexo, segundo os ensinamentos cristãos, foi dado ao homem unicamente para os propósitos da reprodução e por nenhuma outra razão, qualquer outra forma de atividade que não levasse ou não pudesse levar à procriação era um pecado contra a natureza. (RICHARDS, 1990/1993, p. 136).

O significado do termo "natureza" é tão ou mais complexo do que o termo "homossexualidade", mas na moral cristã ele está dentro da cosmogonia do mito fundador, na qual a divindade criou homem e mulher para povoarem a terra. Parece-nos que a posição de Boswell (1987) possui uma coerência maior do que a crítica formulada aos seus estudos. Vainfas (1997) acata a tese da tolerância demonstrando que, mesmo não havendo uma incorporação da homossexualidade nos cânones da moral cristã, também não se verificava a existência de penas graves nas punições para os sodomitas, entre os quais estavam homens que praticavam sexo com homens (VAINFAS, 1997, p. 154-155). A tolerância na tese Boswell não indica aceitação ou inexistência de restrições e punições para os homens que se entregassem a esse "pecado" ou "vício", como era tratada a homossexualidade nos primeiros séculos (BOSWELL, 1997; LEERS e TRANSFERETTI, 2002). Mesmo diante dessas colocações, é importante considerarmos que o Cristianismo nasceu num contexto específico, com a presença de elementos culturais que, nos séculos XI e XII, permitiram que a tolerância desse lugar às hostilidades contra o "pecado nefando" (VAINFAS, 1997, p. 155-160).

Desde o seu nascimento, o Cristianismo traz elementos do Helenismo e Judaísmo, duas grandes influências daquele contexto. O Helenismo foi o berço da razão ocidental que fundamentou em parte a doutrina católica. Uma grande tendência grega que influenciou a Igreja, na área dos costumes, foi o Estoicismo. Por ele, firmava-se uma austeridade de vida em função dos deveres da humanidade, dos concidadãos e da família (FOUCAULT, 1984/2003[1]b, p. 127-163). Os estóicos, procurando a liberdade na pessoa, promovem os valores ditos espirituais em detrimento de valores ligados à corporeidade. São genitores dessa mentalidade os filósofos epicuristas e o próprio Sócrates, na narrativa platônica que irá colocar o corpo como prisão da alma, reservando a ela maior valor e dignidade do que ao corpo. Temos essa concepção bem expressa no Fédon, de Platão, em que são narrados os momentos finais de Sócrates. Não raro ainda valores ditos espirituais em depreciação a outros considerados materiais no discurso religioso católico.

A teóloga Ranke-Heinemann analisa que tanto nas concepções estóicas do século I, quanto nas encíclicas sobre o controle de natalidade do século XX, os atos sexuais permanecem relacionados com a procriação. Pelo mesmo motivo, o sexo entre homens passa a ser condenado, ligado ao desregramento e à desordem, pois não gera filhos (1988/1999, p. 24).

Mas, entre os gregos, a prática do sexo entre homens era comum. Dava-se dentro de convenções culturais próprias. Os tutores dos jovens que se dedicavam à Filosofia tinham relações sexuais com estes. Os tutores eram aqueles que, na relação sexual, penetravam seus discípulos. Essa prática estava ligada à passagem do saber, da pedagogia do filósofo. Com isso, o sexo entre homens gregos difere do atual em nível de significação social, como Michel Foucault descreve no Uso dos Prazeres, pois não visa uma codificação de atos ou uma erótica, mas procura instaurar uma estilização da sexualidade para o exercício do poder e da liberdade do homem (FOUCAULT, 1984/2003b).

A compreensão dos gregos sobre relações sexuais entre homens não foi herdada pela religião nascente. Apenas a vertente estóica do Helenismo é incorporada pelo discurso cristão, e o sexo passa a ser compreendido apenas como forma de procriação, negando sua dimensão de prazer ou passagem de conhecimento como na filosofia grega. A Igreja nascente não irá reconhecer o sexo para o prazer, entre homem e mulher, ou entre dois homens, como adequado. Para o Estoicismo do primeiro século cristão, o sexo entre homens é rejeitado pelo mesmo motivo que a contracepção, pois nem as práticas homossexuais nem a contracepção se destinam à procriação, como declara Musônio, professor de filosofia estóica de muitos legisladores romanos (RANKE-HEINEMANN, 1988/1999, p. 24). Porém, ainda não se tem a noção de pecado e desvio a ser hegemonizada no discurso cristão com outros elementos discursivos a partir da Idade Média (VAINFAS, 1997, p.153-154), possuindo os cristãos dos primeiros séculos uma certa tolerância à homossexualidade (BOSWELL, 1987).

A Igreja imbuiu-se de valores gregos, porém suas raízes estavam plantadas na cultura judaica, locus do nascimento do Cristianismo. Dentro da tradição judaica primitiva, o nascimento, a morte e os impulsos sexuais estavam ligados a poderes misteriosos, fora do controle humano. O homem submetido a tais forças era impedido de entrar em sintonia com Deus. Assim, o contato com a menstruação e, de certa forma, com o sêmen, poderia tornar o homem impuro para cultuar a Deus (KOSNIK, 1977/1982, p. 25). A relação exclusiva homem e mulher para procriação é um imperativo de uma mentalidade judaica herdada pelo Cristianismo (LEERS e TRANSFERETTI, 2002, p. 18). Essa mentalidade fundamenta-se na cosmogonia cristã na qual Deus criou varão e fêmea para povoarem a terra (LEERS e TRANSFERETTI, 2002; MOSER, 2001).

Os elementos do Judaísmo darão um contorno discursivo de pecado e condenação aos atos sexuais entre homens, pois o Judaísmo supõe que tais atos tornem o homem impuro, por isso o sexo entre dois homens terá uma forte conotação de pecado a ser extirpado da comunidade judaica (LEERS e TRANSFERETTI, 2000, p. 24).

Ranke-Heinemann (1988/1999), teóloga, afirma que Agostinho, ao converter-se ao Cristianismo, continuou maniqueu, rechaçando o corpo e o considerando apenas fonte de pecado. Para ela, Agostinho abandonou apenas a recusa à procriação, conservando ainda elementos do Maniqueísmo A mesma autora sustenta a tese de que, apesar dessa rejeição do catolicismo, a misoginia católica cultivou em suas fileiras o homossexualismo, porém, de uma forma não sexualizada (RANKE-HEINEMANN, 1988/1999, p. 342). A constituição dessa moral irá sedimentar o terreno para algumas modalidades de perseguições inquisitoriais da Idade Média. Contudo, tais afirmações não invalidam a contribuição de Agostinho para a doutrina cristã, apenas apontam alguns limites de sua doutrina. O rechaço do corpo no modelo racional e o sexo exclusivo para procriação fixaram os contornos do discurso para o modelo inquisitorial. Com a ascensão do Cristianismo como religião oficial do Império Romano, no século IV, a doutrina sobre sexualidade somente dentro do casamento heterossexual monogâmico, já em elaboração nos primeiros séculos do cristianismo, ganhou grande peso. Ainda segundo a teóloga, uma leitura pós-jesuânica, principalmente com Agostinho, entre outros pensadores cristãos do mesmo período, é que fortifica a perseguição aos homossexuais, já classificados neste período como "sodomitas". (RANKE-HEINEMANN, 1988/1999, p. 88-111).

A destruição de Sodoma e Gomorra, ou seja, o que foi compreendido como a ira de Deus contra essas duas cidades, passa a ser associada aos atos homossexuais, justamente no período posterior a Agostinho (BOSWELL, 1987, p. 96-97; KOSNIK, 1977/1982, p. 236). Com isso se estabelece uma relação contingente e sem predeterminação entre ira de Deus, concepções estóicas, pureza ritual do Judaísmo e condenação ao sexo entre homens. Já não seriam somente os atos homossexuais condenados, mas a própria pessoa em questão. Esse momento se dá com uma grande unificação do imaginário social que irá propor que existe um grupo, praticante da sodomia, que precisa ser eliminado. Aqui, se o alvo são os sodomitas, é a sexualidade como um todo que é atingida. Mesmo diante desse contexto de condenação a partir do século XI, o sexo entre homens continua presente entre os membros do clero.

Sodomia,"vício dos clérigos", assim a viu Pedro Damião, autor de importante livro de Gomorrah, no século XI, a espelhar a forte tendência de identificar-se o pecado nefando e a união sexual entre homens pelo "vaso posterior", como então se dizia. Os saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula anal, mas, prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior noção de homossexualidade (VAINFAS, 1997, p. 155).

Nesse período há uma forte regulamentação das condutas sexuais diversas; a condenação recai sobre o grupo, caracterizado pela vivência sexual fora dos códices da doutrina, por não estar ele provido de poder para se posicionar de outro modo. Vainfas (1997, p. 155), apoiando-se nos estudos de Boswell (1987), ainda considera que no plano social e popular os "nefandos", quando reconhecidos publicamente, eram passíveis de discriminação e algumas vezes de hostilidade. A tolerância variava dentro das diversas culturas européias e de acordo com a posição social do sodomita. Isso mostra que, apesar da predominância do discurso xenofóbico, não há uma fixidez discursiva plena sobre a sodomia. Entre os séculos XIII e XIV ainda havia uma certa tolerância que acabou dando lugar à hostilidade ao sexo entre homens (VAINFAS, 1997, p. 160). Evidentemente, esse período é mais complexo e amplo. Este processo de articulação no discurso cristão constituiu o momento de hostilidade aos sodomitas, algo que permaneceu por muitos séculos na hegemonia católica.

As posições diferenciais, na medida em que elas aparecem articuladas dentro do discurso, nós chamaremos de momentos. Por contraste, nós chamaremos elementos qualquer diferença que não seja discursivamente articulada. (LACLAU e MOUFFE,1985, p. 105, tradução nossa).

Em 1566, o Concílio de Trento vai sistematizar a doutrina, definindo as posições dos leigos e clero na Igreja Católica. Diante do surgimento da reforma luterana, consolida-se uma identidade católica. “Em grande parte, o feliz êxito do empreendimento tridentino, se deveu à conjugação de todos esses três fatores centrais: imaginário social religioso, enquadramento do clero e do leigo” (LIBANIO, 1984, p. 77). A partir de Trento, dentro de uma dimensão simbólica, essa identidade definirá os contornos possíveis entre o que é católico, um "nós", diante daqueles que são considerados ameaças à religião católica, os luteranos, sodomitas, pagãos, entre outros, um inimigo do qual se deve defender e mesmo atacar, como mostram os processos inquisitoriais católicos. Ao longo dos séculos, a hegemonia católica vai localizando em si pessoas e grupos a serem combatidos e excluídos, e estes muitas vezes se reconhecem como fiéis seguidores do mesmo mito fundador, o que podemos compreender pelo princípio de totalidade da divindade cristã (LACLAU, 2002).

Haverá sempre um "elemento de fora constitutivo", um exterior para a comunidade, o qual é a verdadeira condição da sua existência. É vital reconhecer que, para a construção de um "nós", é necessário distingui-lo de um "eles" e que todas as formas de consenso se baseiam em atos de exclusão, a condição da possibilidade de uma comunidade política é, ao mesmo tempo, a condição de impossibilidade de sua inteira realização. (MOUFFE, 1995, p. 36, tradução nossa).

Do século XV ao XIX está articulada, tanto na Igreja Católica como no mundo por ela influenciado, uma moral na qual o sexo é visto apenas como função procriadora. Neste período os pecados sexuais eram concebidos de duas maneiras: os de acordo com a natureza (fornicação, adultério, incesto, estupro e rapto) e aqueles contrários à natureza (masturbação, sodomia, homossexualidade e bestialidade). O segundo grupo, aqueles contra a natureza, se tornava mais grave por ferir o critério de procriação, constituindo um abuso mais radical da sexualidade humana no discurso sedimentado historicamente (KOSNIK, 1977/1982, p. 62-63). Criou-se, assim, um imaginário sobre a figura dos homossexuais, entre outros que tinham práticas sexuais heterodoxas. Aqui a Ética hegemônica é a Natural, baseada na inspiração divina e formulada principalmente por Tomás de Aquino (KOSNIK, 1977/1982, p. 238-240). Foram as formulações tomistas as que mais influenciaram teólogos protestantes e católicos da época moderna (VAINFAS, 1997, p. 154).

Segundo Comblin (1985), teólogo, uma forte concepção dualista corpo-alma, na razão grega, emaranhada com concepções judaicas sobre o corpo, alimentou a Ética Natural. Nessa articulação é criada a figura do sodomita a ser eliminado. A teologia clássica, inspirada na cultura helênica, principalmente em Aristóteles, não conseguirá valorizar o corpo, nem uni-lo de fato à alma. Assim, os teólogos puderam justificar todo tipo de atrocidade cometida contra a pessoa humana, pois o corpo, de certo modo, era exterior a pessoa, um mero instrumento desta (COMBLIN, 1985, p. 80-82). Esse conflito dualista está presente também dentro da Igreja Católica contemporânea. Esta, mesmo reconhecendo que cada cristão pode manifestar sua vocação comunicada por inspiração divina, acaba privilegiando um certo modelo de comunidade como sendo cristão por excelência.

Os mosteiros cristãos, afirmando fortes esquemas ideológicos na época, mais influenciados por religiões orientais, dualistas e espiritualistas, do que pelo Evangelho, condenaram o sexo feminino e produziam uma “... abundante literatura de condenação da sexualidade, de culpabilização e de rejeição do corpo” (COMBLIN, 1985, p. 104). Há uma influência dos mosteiros numa doutrina ascética que ajuda a sustentar o modelo do casamento monogâmico. Porém, a vida campesina e a vida monástica não podem ser consideradas intimamente ligadas. (COMBLIN, 1985, p. 105). No entanto, "o fato de a maior parte do pensamento teológico florescer nos mosteiros resultou na exaltação da virgindade às custas do matrimônio." (KOSNIK, 1977/1982, p. 60).

Mesmo reconhecendo que alguns autores insinuaram abordagens mais espirituais do matrimônio, o rigorismo de Santo Agostinho já tinha lançado as sementes que frutificaram na "convicção de que o prazer do sexo estava associado a concupiscência de modo que, mesmo no matrimônio, era rara a ausência de pecado" (KOSNIK, 1977/1982, p. 61). Essa constatação corrobora a análise feita por Vainfas, como podemos ver em seguida.

De meados do século XVI em diante, a quase totalidade dos moralistas espanhóis e portugueses dedicar-se-ia a defender o casamento, reforçar a autoridade patriarcal e arquitetar a sujeição das esposas - sempre suspeitas de trair, desonrar e arruinar os maridos. (VAINFAS, 1997, p. 121).

Na análise que Michel Foucault fez da repressão a partir do século XVII, ele descreve um aumento acelerado da preocupação com a sexualidade a partir do século XIX (1988/2003a, p. 98-108). Este autor nomeia dois dispositivos do discurso: "dispositivo de aliança", através do matrimônio, as definições de parentesco e a transmissão de bens; e o "dispositivo de sexualidade", mais adequado aos processos econômicos e de estrutura política do século XVIII, que se justapõe ao anterior, em ambos articulando parceiros sexuais e constituição de famílias (1988/2003a, p. 100-101).

Os pais, os cônjuges, tornam-se, na família, os principais agentes de um dispositivo de sexualidade que no exterior se apóia nos médicos e pedagogos, mais tarde nos psiquiatras, e que, no interior, vem duplicar e logo "psicologizar" ou "psiquiatrizar" as relações de aliança. (FOUCAULT, 1988/2003, p. 104).

Esses séculos que são parte do período de nossa colonização devem ser compreendidos com as peculiaridades das condições da época. No século XVIII há um declínio da onda persecutória contra os homossexuais em parte por determinada "dessacralização" do nefando na "era das Luzes"" (VAINFAS, 1997, p. 290). Ocorre uma intensificação da vigilância e punição da bigamia, pelos comissários e autoridades eclesiásticas em relação a outras questões, "caso dos padres que, esquecendo-se do voto de castidade e da pureza da confissão, requestavam ad turpia moças e rapazes no confessionário" (VAINFAS, 1997, p. 291). Diante do privilégio do termo família na legislação eclesiástica, considera-se que a fortificação do combate à bigamia estará justamente protegendo a família das ameaças ao que era considerado seu bom funcionamento no processo social.

Com isso, temos consolidado um ponto nodal no discurso da Igreja Católica, a família heterossexual monogâmica. Ao redor desse ponto nodal articula-se uma moral sexual católica que, através da formação hegemônica, irá neutralizar elementos que se mostrem ameaçadores para a aparente unidade do discurso.

Esta formação hegemônica constitui um conjunto de formas relativamente estáveis, a materialização de uma articulação social na qual diferentes relações sociais interagem para oferecer, umas às outras, mútuas condições de existência, ou pelo menos para neutralizar efeitos potencialmente destrutivos de certas relações sociais na reprodução de outras relações sociais. (MOUFFE, 1988, p. 90, tradução nossa).

Na construção dos dados, a noção de família foi uma constante nos documentos que definiam a moral sexual católica. A homossexualidade era um dos elementos que orbitava ao redor das articulações feitas através da noção de família, como um ponto nodal da moral sexual católica. Este é um assunto para um outro artigo mais específico.

Bibliografia

BOSWELL, John. Christianity, Social Tolerance, and Homossexuality. Gay People in Westren Europe form the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century, Chicago, Fenix Edition, 1981.

COMBLIN, José. Antropologia cristã. Petrópolis, Vozes, 1985.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber, Rio de Janeiro, Graal, 1998/2003.

KOSNIK, Anthony (Org.). A sexualidade humana. Novos rumos do pensamento católico americano. Petrópolis, Vozes, 1977/1982.

LACLAU, Ernesto. Universalism, Particularism and the Question of Identity. In: RAJCHMAN, John (Ed.). The Identity in question. New York- London, Routledge, 1995.

_______________.Misticismo, retórica y política. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, 2002.

_______________ e MOUFFE, Chantal. Hegemony and Society Strategy. Towards a Radical Democraticx Politics, London, Verso, 1985.

LEERS, Bernardino e TRANSFERETTI, José. Homossexuais e a Ética Cristã, Campinas, Editora Átomo, 2002.

MOSER, Antônio. O enigma da esfinge. A sexualidade. Petrópolis, Vozes, 2001.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus. São Paulo, Rosa dos Tempos, 1988/1999.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, sexualidade e inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

Notas

[1] No caso de duas datas separadas, a primeira indica o primeiro ano de publicação da obra e, a segunda, o ano da edição usada na dissertação.