A Igreja Católica ante a Homossexualidade: Ênfases e Deslocamentos de Posições

Edênio Valle []

Resumo

O objetivo principal do artigo é apresentar o pensamento ético que a Igreja Católica defende a respeito da homossexualidade, assim como a forma de apresentação deste pensamento nos documentos emanados da Santa Sé. Ao mesmo tempo, o autor faz uma breve resenha das posições de alguns moralistas contemporâneos, terminando por elencar, do ponto de vista da psicologia e da pedagogia, alguns pontos adquiridos que poderiam levar a um melhor manejo do problema da homossexualidade por parte da Igreja, levando-a a melhor compreender e ajudar as pessoas que apresentam essa tendência sexual.

Palavras-chave: homossexualidade; ética sexual católica, ajuda psicológica a homossexuais.

Abstract

The main objective of this article is to show what the Catholic Church teaches in some recent documents on the ethics of homosexuality and on the pastoral care of people with this sexual orientation. At the same time the author explains briefly what some moral theologians think to-day on this regard. Finally he shows some important psychological aspects of the problem regard seminarians and priests, finishing with a discussion on pedagogical aspects of the pastoral care of people with a homosexual orientation.

Key-words: Homosexuality and Ethics, Catholic Church, pastoral care of homosexuals

A. Contextualizando o tema

Existe entre os psicólogos que estudam a religião um desconhecimento bastante generalizado a respeito do que a Igreja Católica diz oficialmente sobre ética sexual e homossexualidade. O que se sabe e se repete são generalizações sobre pronunciamentos do Vaticano, interpretadas segundo a ótica editorial dos veículos de comunicação e com base normalmente em coisas do passado, quando religião, ciência, direito e costumes viam a homossexualidade como doença e/ou como “crimen pessimum”. Estudos antropológicos e históricos de valor realizados no Brasil (como os de Vainfas, 1997; Muraro, 1985; Leers e Trnsferetti, 2002, Matos, 2005; Comblin, 2005) acabaram reforçando a idéia de que nada se move quanto às posições da Igreja Católica, da Teologia e de outros especialistas católicos que se pronunciam sobre o assunto. Assume-se que a Igreja teria simplesmente parado nos tempos da Inquisição, o que não corresponde aos fatos. Em especial quando se toma em consideração a discussão especializada hoje em curso, seja entre moralistas[1], seja entre psicólogos[2] que estudam de maneira específica o tema da homossexualidade.

Retomo, aqui, alguns dos pontos levantados já em 1999 (Valle, 1999), ampliando-os e situando-os melhor na atual conjuntura. Meu objetivo no presente artigo é oferecer aos leitores de “REVER” uma informação básica a respeito do que diz atualmente o “magistério da Igreja”[3] sobre a homossexualidade e os homossexuais. E indicar, de maneira mais rápida, os deslocamentos, ênfases e reafirmações que estão ocorrendo em estudos especializados[4].

1. Não me aterei ao mérito teológico da argumentações. Minha perspectiva será a das ciências da religião, com ênfase na abordagem psicoantropológica, procurando evitar polêmicas do tipo “ou tudo ou nada”. Tenho como certo que as diretrizes das autoridades eclesiásticas no tocante à homossexualidade demonstram certa insegurança e ambivalência. Embora ao menos desde o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) tenha-se abandonado o rigorismo quase homofóbico de outras épocas históricas,[5] é como se as coisas não estivessem ainda suficientemente claras e discernidas, nem na teoria, nem na prática. A doutrina permanece rígida, mas no tocante à pastoral (isto é, ao acolhimento e acompanhamento das pessoas) os textos eclesiásticos (e mais ainda, os dos teólogos) demonstram uma atitude de maior compreensão da complexidade do fenômeno homossexual, em cada um de seus múltiplos e distintos aspectos neurobiológicos (Gafo, 1985 e Callahan, 2005), socio-antropológicos (Lasso, 1985a; Lasso, 1985b), psicológicos (Fernandez-Martos, 1985 e Crawford e Zamboni, 2005), históricos (Bailey, 1955; Boswell, 1985 e Ariés, 1982 ) e bíblico-teológicos ( Ruiz, 1985; DI Vito, 2005; Malina, 2005).

Para dar uma amostra desta atitude compreensiva, eis três citações tiradas de escritos dos Bispos norte-americanos aos católicos daquele país:

“as pessoas gay, como todas as pessoas, não devem ter prejudicados os seus direitos humanos básicos. Elas têm direito ao respeito, à amizade e à justiça. Devem ter um papel ativo na comunidade cristã”
“todos os cristãos e cidadãos de boa vontade (são conclamados) a enfrentar seus medos da homossexualidade e combater as piadas e a discriminação que ofendem pessoas homossexuais”.
“primeira e primordialmente, defendemos a prática e o ensino do respeito a toda pessoa humana, independentemente de sua orientação sexual”[6].

2. A nova percepção do problema está levando a uma reavaliação da postura ético-teológica a ser adotada em relação à homossexualidade e ante os homossexuais. O processo está longe de ter chegado a resultados conclusivos. Constatam-se aberturas ao lado de retornos a fechamentos. Valorizam-se conceitos antes não aplicados à discussão (por exemplo, o da pessoa humana em sua dignidade e direitos como cidadão e como cristão). O quadro de referência apresenta zonas de obscuridade que têm provocado conflitos entre alguns destacados teólogos moralistas (como B. Forcano e M. Vidal) e as autoridades romanas. Nos Estados Unidos, a polêmica e a dissensão são mais veementes devido à força política do movimento gay e, talvez, mais ainda em virtude da série de escândalos que surgiram no clero. Lá, hoje, o debate é escancaradamente público, quebrando inteiramente a maneira sigilosa com que, no passado, o assunto era debatido e as medidas tomadas. São circunstâncias que obrigaram o Vaticano a se expressar de maneira mais incisiva sobre essas questões.

Ao ler o conjunto dos pronunciamentos de maior peso, pode-se perceber que estão presentes na fala atual da Igreja diversas preocupações: a) ela quer estar atenta ao dizem as ciências; mas b) tem consciência de que a fonte última de seus posicionamentos está na experiência vivida pelos que se inspiram na fé cristã e na revelação de Deus. Ou seja, a Igreja não irá buscar nas ciências o critério decisivo sobre o que tem a dizer sobre a ética sexual; seus critérios e valores são evangélicos e se radicam na fé; c) ela demonstra a vontade de acolher as pessoas de orientação homossexual como filhas de Deus de pleno direito; d) ela quer permanecer fiel ao que julga ser a verdadeira tradição cristã; e) ela se preocupa em proteger os fiéis contra as idéias e os costumes vigentes que contradizem os valores cristãos; f) finalmente, quer defender e preservar a família e a educação da infância e da juventude que julga ameaçadas pela atual onda de permissividade sexual.

3. Não é nada fácil solucionar o impasse em que se encontra a Igreja quanto aos seus ensinamentos sobre a sexualidade humana. A razão última dessa dificuldade em dialogar com as propostas culturais de hoje no campo da sexualidade talvez resida no fato de o magistério eclesiástico continuar mantendo uma visão e um referencial unilateralmente heterossexuais, forjados por séculos de tradição patriarcal. Desde um tal prisma, apesar da boa vontade das autoridades em entender e em serem entendidas, resulta que só aqueles padrões de comportamento heterossexuais que se ajustam ao que “a natureza” - criada e desejada por Deus – propõe, podem ser considerados “naturais” e, por isto, aprovados pela Igreja. Dentro desta lógica, o espaço de legitimidade ética das sexualidades alternativas (Nolasco, 1995; Costa, 1999) de fato existentes (Green e Trindade, 2005) é mínimo e visto sempre desde um ângulo negativo. Ora, na realidade social de hoje - na qual a “ex-minoria” homossexual está deixando o “gueto” e colocando dois milhões de interessados em avenidas como a Paulista, sob a batuta de um rentável “mercado” (Simões e França, 2005) - não é de se estranhar que surjam conflitos e desentendimentos de princípio entre uma e outra posição. Quem faz parte desta “cultura identitária homossexual” (Castells, 1983) só pode se sentir incompreendido e rejeitado pela Igreja oficial. Não sem razão, aliás.

Resumindo: a Igreja (a grande comunidade de fé) e os pastores (os que são colocados à frente do povo de Deus) estão, sim, em busca de uma nova ética sexual, mas, ao mesmo tempo, se vêem presos a certas amarras que os impedem de lidar de forma mais desimpedida com a nova mentalidade existente a esse respeito. A busca de novos caminhos se mostra também em outros aspectos da vida sexual e encontra eco nas preocupações de renomados teólogos e moralistas. De maneira bem mais atenuada, essa preocupação aparece também nos textos normativos emanados do Vaticano nestes últimos trinta ou quarenta anos. A lógica destes textos, porém, não é e nem pode ser a lógica secularizada que preside hoje a sociedade, a cultura e a política. Seria ingênuo pensar que o Papa possa assumir sem mais o discurso de setores libertários, mesmo quando mediados pelo que dizem alguns teólogos.

A relativa abertura hoje de fato existente em alguns documentos da Igreja se manifesta na disposição em discutir perguntas de fundo que antes sequer eram mencionadas. Como as seguintes: a) são as posições mais tradicionalistas corroboradas pelos conhecimentos que temos hoje da Bíblia e da história da Teologia Moral?; b) são os posicionamentos e concepções atualmente adotados compatíveis com os dados seguros das ciências que estudam a sexualidade humana?; c) são posições que respeitam a pessoa humana em seus direitos e dignidade?; d) haveria caminhos pastorais alternativos mais aptos para ajudar os católicos e a humanidade a viverem suas tendências sexuais - homo ou heterossexuais - na perspectiva dos valores cristãos?

4. Segundo opinião unânime, o motivo para os vários pronunciamentos da Santa Sé sobre a homossexualidade tem sido o de segurar a opinião liberalizante, surgida especialmente nos Estados Unidos, de que a homossexualidade (a tendência e o comportamento) teria direito à plena cidadania na sociedade e na Igreja, uma vez que representaria "uma" forma de viver a sexualidade humana tão natural quanto as demais formas. À essa visão permissiva somava-se a articulação de um vasto movimento político-cultural em torno da "causa" homossexual, que se radicava em três pilares: o direito da pessoa à auto-realização; o avanço do conhecimento científico; a nova teologia da sexualidade. Grupos de ponta, gays e lésbicos, reivindicavam - em geral, em conexão com a polêmica bandeira do aborto e outras causas libertárias - a total liberdade do indivíduo em gerir seu próprio corpo e em regular sua "prazeirosidade" segundo a livre decisão e vontade de cada um/uma. Àquela altura, o discurso homossexual se transformara em discurso ostensivamente militante e político (o grupo GLBT), dentro do quadro maior das lutas de outras minorias.

A "nova visibilidade”[7] adquirida pela causa gay começou a ter ressonância entre religiosos, tanto nas Igrejas evangélicas quanto no clero católico e nos seminários. Somava-se a isto, como mencionei acima, uma série de escândalos dados por eclesiásticos homossexuais[8]. Criou-se um caldo de cultura no qual o tema e a causa política do homossexualismo e, mais ainda, o ativismo homossexual, dividiam as opiniões. Havia os que - bispos, teólogos, moralistas, educadores e juristas - procuravam colocar em termos mais justos uma questão tradicionalmente negligenciada pela teologia e a moral. Outros se punham radicalmente contra as propostas destas vanguardas, vistas como absolutamente contrárias à moral cristã e deletérias para os costumes sociais. Essa é uma polêmica que está longe de ter chegado ao seu fim.

5. Até aqui (parte A) contextuei um pouco a questão das posições da Igreja oficial em relação à homossexualidade. Minha exposição segue com duas partes principais. Começarei (parte B) expondo a posição oficial da Igreja sobre a homossexualidade e fazendo rápida menção das posições adotadas hoje pela teologia no campo da ética sexual. Na parte final (parte C), tendo em vista a recente Instrução do Vaticano sobre a admissão ao sacerdócio e à vida religiosa de jovens que manifestam uma orientação de tipo homossexual (cf. CEC, 2005), tecerei algumas considerações de ordem psicológica, pensando no encaminhamento psicopedagógico de candidatos ao sacerdócio que se enquadram nos critérios tidos em conta pela Instrução.

B. A homossexualidade na fala do magistério

I. Documentos fundamentais

Baseio-me em alguns textos fundamentais[9] que, em minha avaliação, parecem guardar certa complementaridade. Eles marcam o surgimento de um nova direção na abordagem da homossexualidade por parte da Igreja e, no fundo, continuam sendo até hoje o principal ponto de referência. Um é de 1976 e, o outro, de 1985. O de 1976 leva o nome de "Declaração sobre alguns pontos da ética sexual". Vem da Congregação para a Doutrina da Fé, o que é sintomático. O outro foi publicado dez anos mais tarde, em 1986. Procede da mesma fonte, mas é redigido na forma de uma carta "Sobre o cuidado pastoral de pessoas homossexuais". Têm ambos como destinatários "os bispos da Igreja Católica", o que os caracteriza como textos essencialmente pastorais. É importante frisar essa origem e destinatários dos textos para não se buscar neles o que não pretendem oferecer.

O que os aludidos documentos objetivam é esclarecer alguns pontos de doutrina e de pastoral afetados pela discussão pública cada vez mais acesa em torno da homossexualidade. Há provavelmente por trás do documento de 1986 uma decisão pessoal do Papa João Paulo II, que, àquela época, imprimia às diretrizes da Cúria Romana uma orientação católico-conservadora, centrada na defesa do pensamento católico sobre a família, o aborto, as políticas de controle de natalidade, as reivindicações do feminismo e as legislações liberais quanto à homossexualidade que começavam a aparecer nos parlamentos dos países ocidentais. Aliás, essa tônica no aspecto "teológico-doutrinal" foi uma constante também em todos os demais pronunciamentos de seu pontificado. Sabe-se, além do mais, que nos dicastérios e secretariados mais diretamente responsáveis pelas tomadas de posição estavam alguns dos cardeais mais conservadores da Cúria Romana.

Apesar de os documentos apresentarem inegáveis “avanços”, eles - como era de se esperar - encontraram fortes críticas. Nos ambientes e na mídia comprometidos com a "causa” homossexual a repulsa foi quase total, o que, provavelmente, fez com que os comentaristas engajados[10] não valorizassem devidamente os avanços e pistas novas constantes dos textos. Naturalmente, havia também o outro lado, o partido dos conservadores, que criticava os escritos por terem cedido demasiado à pressão da opinião pública liberal.

1. O documento de 1976

O documento de 1976 (data da publicação da versão brasileira) parte de um posicionamento claro e marca um distanciamento do magistério em relação à opinião de teólogos católicos e protestantes mais abertos. Considera com extrema preocupação "a tendência a julgar com indulgência, e até mesmo a desculpar completamente, as relações homossexuais em determinadas pessoas". E argumenta afirmando que esse modo de pensar fere "o constante ensino do magistério... e o sentir moral do povo cristão".

1.1. Aventa em defesa de sua posição severa dois argumentos principais. Um é bíblico[11]. A Declaração afirma de modo categórico que, para a Bíblia, "os atos[12] de homossexualidade são intrinsecamente desordenados [...] não podem, em hipótese alguma, receber qualquer aprovação". No entanto, abre uma pequena brecha que evita uma leitura taxativamente condenatória dos textos do Antigo e do Novo Testamento ao sublinhar que a Bíblia "não permite [...] concluir que todos aqueles que sofrem de tal anomalia sejam por isso pessoalmente responsáveis".

O segundo argumento é tirado da ordem natural das coisas, um argumento de enorme peso na Teologia Medieval e mesmo já na Patrística. De acordo com essa interpretação, existe uma "ordem moral objetiva" segundo a qual "as relações homossexuais são atos destituídos da sua regra essencial e indispensável" que é a ditada pela natureza criada por Deus. Por trás desse modo de se referir, está uma velha distinção - de inspiração agostiniana e neo-platônica - que é retomada por Alberto Magno, Tomás de Aquino e Afonso de Ligório. É a distinção entre pecado "contra a natureza" e pecado "segundo a natureza"[13]. A homossexualidade é simplesmente "contra naturam". Por essa razão, não pode ser considerada como uma via moralmente aceitável para a realização sexual da pessoa humana.

1.2. Apesar desta avaliação moral “objetivista e extrínseca” (Aspitarte), a Declaração apresenta vários elementos que podem ajudar a contextuar de maneira diferente a homossexualidade. São conceitos que aparecem sobretudo no momento em que a declaração abandona a chave doutrinal e passa a tratar em sentido pastoral e pedagógico. Mas, mesmo esses parágrafos benévolos são precedidos por uma reprovação de todo e qualquer "método pastoral que reconheça uma justificação moral desses atos (homossexuais) por considerá-los conformes à condição dessas pessoas".

Em um outro momento, o Documento acentua que os que padecem de tal "anomalia" não são necessariamente responsáveis pela mesma, uma vez que não o são por escolha própria. Este é um ponto fundamental, no qual batem quase todos os moralistas contemporâneos. Azpitarte[14], por exemplo, diz que "o simples fato de apresentar tendências homossexuais, de sentir atração pelo próprio sexo, é um fato que não entra no campo da moralidade. Ninguém é bom nem mau por experimentar tendências e sentimentos que não pode afastar de si e que, inclusive, experimenta como um destino imposto à margem de sua vontade, algo assim como faz com que nasçamos homem ou mulher. Na medida em que a homofilia não se baseia em uma opção escolhida, não há lugar para culpa. O pecado tem outras categorias, que não radicam na existência pura e simples de um fenômeno psicológico, mas sim na aceitação livre e voluntária das práticas homossexuais".

1.3. De um tal raciocínio decorrem sérias conseqüências para a consideração do comportamento relativo à pessoa do homossexual. Ao lado do rigor quanto às questões de princípio, surge na moral católica e nos textos da autoridade eclesiástica um evidente interesse em favorecer uma atitude de maior acolhida na ajuda às pessoas de tendência homossexual. Isto é expresso claramente em frases da Declaração como a seguinte:

"Indubitavelmente essas pessoas homossexuais devem ser acolhidas, na ação pastoral, com compreensão e devem ser apoiadas na esperança de superar suas dificuldades pessoais e sua inadaptação social. Também sua culpabilidade deve ser julgada com prudência"

1.4. Nessa mesma linha mitigada, a Declaração admite outras distinções que significam um progresso na medida em que permitem discriminar de modo mais fino cada caso. Duas dessas distinções merecem especial atenção do moralista e do educador. A que se faz entre "estrutura" e "exercício" homossexuais e a que distingue entre homossexuais "transitórios" ("não incuráveis"), de um lado, e os "inatos" (ou "de constituição patológica"; em latim: "vitiata constitutio"[15]), de outro:

"Entre os homossexuais cuja tendência, provindo de uma educação falsa, de falta de evolução sexual normal, de hábito contraído, de maus exemplos e de outras causas análogas, é transitória ou ao menos não incurável, e aqueles outros homossexuais que são irremediavelmente como tal por uma espécie de instinto inato ou de constituição patológica que se tem por incurável "

De nossa breve apresentação do documento de 1976, ressalto que existe uma concomitância entre uma "linha dura" no encarar a homossexualidade e outra, mais branda, no acolher a pessoa homossexual. João Paulo II, em um discurso aos Bispos norte-americanos, reafirmou essa posição, assinando em primeira pessoa o que a Santa Sé e também alguns episcopados já haviam afirmado sobre o mesmo assunto[16]. Esse discurso do Papa antecipava, de alguma maneira, um texto mais denso, publicado pouco depois pela Congregação da Doutrina da Fé, em 1986. Dada a tumultuada recepção[17] da Declaração pela opinião pública mundial, parece que era dupla intenção do Papa com esse discurso pronunciado no país onde a polêmica se fazia de modo mais agressivo: a de manter o rigor doutrinário, mas, simultaneamente, a de ressaltar melhor a dignidade fundamental e os direitos do homossexual como pessoa. De alguma forma, João Paulo II pretendia, assim, afastar da Igreja a pecha de hostil à sexualidade e de preconceituosa quanto aos homossexuais e suas reivindicações políticas e sociais.

2. Carta sobre o atendimento das pessoas homossexuais (1986)

2.1. A Carta se apresenta de maneira modesta ao afirmar que não quer nem pode ser "um tratado exaustivo", admitindo assim que também a Igreja sabe que está diante de um problema de grande complexidade. Nesse sentido, a Carta procura se fundamentar "nos resultados seguros das ciências humanas". Mas, para lá do que as ciências ajudam a trazer à luz, a Igreja se estriba em seu horizonte próprio, que é o da fé, sabendo que esse ângulo, muito especialmente em questões de moral sexual, não pode prescindir de um "estudo atento, (de um) empenho concreto e (e de uma) reflexão honesta, teologicamente equilibrada" sobre o fenômeno homossexual.

O texto, porém, causa a impressão de ser doutrinariamente ainda mais restritivo que o anterior. Já em seu terceiro parágrafo, ele volta à questão dos atos homossexuais enquanto atos "privados de sua finalidade essencial e indispensável" e expressa taxativamente:

a particular inclinação da pessoa homossexual, apesar de não ser em si mesma um pecado, constitui um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada.”

Esse discurso direto permeia quase toda a carta e se faz notar, especialmente, nos seguintes itens: na caracterização dos atos homossexuais; na interpretação teológica dos textos bíblicos[18]; na reação às contestações, críticas e manipulações políticas recebidas pelo documento de 1976 e na condenação de algumas "interpretações excessivamente benévolas" que certos teólogos quiseram dar à condição homossexual, etc.

Nos Estados Unidos, a afirmação que causou mais polêmica na imprensa e na militância gay foi a que reiterava a noção de "desordem objetiva" como inerente à homossexualidade, indiretamente, ao menos, ao homossexual. A intenção da Carta não era a de diminuir os homossexuais, mas foi assim que ela foi lida - como uma tentativa de brecar a luta por seus direitos. Em vários passos, guardando um tom pastoral, o documento afirma o valor e a dignidade dos mesmos. Os chamados homossexuais são descritos como pessoas "freqüentemente generosas e que se doam" (no.7), como possuindo uma "natureza transcendente" e uma "vocação sobrenatural" (no.8); como investidos de "uma dignidade natural... (que)... deve ser sempre respeitada em palavras, em ações e nas leis" (no.10), como detentores de uma "liberdade fundamental que caracteriza toda pessoa humana e lhe confere dignidade" (no.11) e como tendo especial "direito" ao cuidado pastoral da Igreja (no.13-17).

2.2. Do lado católico, destacou-se o bispo norte-americano Mons. John R. Quinn. Em um artigo influente[19] ele encarou o controvertido ponto da homossexualidade referida como "desordem e doença" presente na Carta. Quinn se coloca na linha da Associação Americana de Psiquiatria que, em seu famoso "Diagnostic and Statistical Manual", havia abandonado a classificação da homossexualidade como enfermidade ou desordem psicológica, passando a considerá-la como uma modalidade normal de comportamento. Os textos de Roma, porém, insistem em usar a expressão "desordem intrínseca", dando quase a entender que à homossexualidade se associa necessariamente algo doentio. Na opinião de Quinn, o texto da Doutrina da Fé não tinha nem poderia ter a intenção de dirimir um problema que é de natureza psiquiátrica. O magistério não está em condições de abordar tecnicamente esse problema que é do âmbito da ciência médica e psicológica. Enquanto tal, a questão é da alçada exclusiva dessa área científica e não pode ser objeto de uma tomada de posição doutrinal. O que a Declaração de 1976 queria sublinhar, segundo Quinn, era outra coisa: ensinar que a posição moral da Igreja tem sua base em "princípios imutáveis relacionados com elementos constitutivos e relações essenciais da pessoa... que transcendem a contingência histórica" (no.3).

E que princípios imutáveis são esses? Os da ordenação da atividade sexual humana ao matrimônio e à geração da vida, além de sua fundação no amor mútuo entre marido e mulher. Para a Igreja, esse é o ensinamento a ser guardado, porque baseado na revelação bíblica, na tradição e na lei natural. Interessante notar[20] que o Cardeal Ratzinger escreveu uma carta pessoal a Mons. Quinn, agradecendo por sua "cuidadosa análise" e pelas "pertinentes orientações... que mostravam claridade e sensibilidade pastorais".

2.3. No tocante à discriminação, menosprezo e violência de que os homossexuais costumam ser vítimas, a Carta se expressa sem meias palavras:

"é de se deplorar firmemente que as pessoas homossexuais tenham sido e sejam ainda hoje objeto de expressões malévolas e de ações violentas. Semelhantes comportamentos merecem a condenação dos pastores da igreja, onde quer que aconteçam. Eles revelam uma falta de respeito pelos outros que fere os princípios elementares sobre os quais se alicerça uma sadia convivência civil".

O que acontece é que, mesmo quem não está envolvido pessoalmente com a causa homossexual, ao ler enunciados como o acima transcrito, se pergunta sobre a possibilidade de se coadunar tais expressões de apreço pela pessoa do homossexual com julgamentos tão taxativos quanto à "desordem objetiva" à qual o homossexualismo estaria sempre e necessariamente associado.

2.4. Preparando a parte mais inovadora e positiva - a relativa ao acolhimento das pessoas - a Carta retoma alguns aspectos que já apareciam na Declaração de 1976. Podemos enumerar os seguintes[21]: a referência ao dever dos pastores de procurar uma melhor compreensão da condição homossexual; a necessidade de julgar com prudência sua possível culpabilidade moral; a distinção entre "a condição ou tendência", de um lado, e os "atos homossexuais", de outro. Em sua parte conclusiva, a Carta se estende sobre a verdade, a libertação, o amor e a misericórdia, considerados como dimensões integrais do acolhimento pastoral devido a todos os cristãos sem discriminação alguma.

A Carta, dando um passo que não era suficientemente preciso no documento de 1976, reconhece a capacidade do homossexual de ser sujeito de suas decisões. Quando cristão, essa dignidade, que lhe vem de sua capacidade de optar e se auto-gerir, abre-lhe a possibilidade e o dever de viver o que a fé cristã exige de qualquer batizado em termos de santidade, vivência do amor e observância dos mandamentos. Nesse particular um homossexual não difere, portanto, de um heterossexual. Todos, para lá das orientações que sua sexualidade pode experimentar, são chamados ao mesmo caminho de crescimento humano e plenitude espiritual em Cristo.

3. O Catecismo da Igreja Católica[22] (1992)

3.1. Como se sabe, esse Catecismo foi redigido para compendiar o que a Igreja ensina e precisa ser guardado por todos os fiéis, como um ponto básico de referência. O Catecismo não diz tudo sobre os temas que aborda, mas quer resumir o essencial. No caso da homossexualidade, ele não entra em questões ainda em fase de esclarecimento. Apenas repisa os pontos de doutrina.

Ele inicia com uma espécie de definição da homossexualidade. A simples leitura dessa definição já demonstra que os redatores do verbete estavam atentos ao que hoje se discute na medicina, na psicologia e nas ciências sociais sobre a homossexualidade. Esta, afirma o Catecismo, implica "relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo". Esse fenômeno fundamente humano, prossegue o texto, tem uma origem psicológica ainda sem explicações satisfatórias. Além disto, se revestiu das mais variadas formas ao longo dos séculos, de acordo com as distintas culturas. A cultura de hoje lhe conferiu algumas características próprias de nosso tempo.

3.2. Do ponto de vista da moral, o Catecismo assume basicamente o que os dois textos já comentados nos afirmaram. Vê a prática de atos homossexuais como inadmissíveis do ponto de vista da moral cristã, pois é uma desordem. Contraria a lei natural porque é fechada ao dom da vida e desprovida daquela complementaridade à qual a sexualidade integral está endereçada. Reconhece que o número de pessoas com orientação homossexual "não é negligenciável" e que essa tendência pode estar fundamente ancorada no organismo (seria "inata").

Diz, também, que ela pode representar uma "provação" para a pessoa, acentuando que "toda pessoa, homem ou mulher, deve reconhecer e aceitar sua própria identidade sexual" e que a pessoa humana “não pode ser adequadamente descrita por uma referência reducionista ao seu ou à sua orientação sexual" (no.16). Estas duas observações são de suma relevância, pois supõem uma originalidade de cada pessoa. Em uma cultura que massifica a sexualidade e a reduz a um objeto, a defesa da diferenciação e originalidade da pessoa em sua dimensão sexual é essencial.

Uma pessoa de orientação homossexual não o é por opção; deve ser aceita com respeito, sensibilidade e compaixão, pois também elas "são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição".

II. Outros documentos posteriores

Vou me ater aqui a apenas três outros textos, deixando de lado uma consideração mais cuidadosa da recente encíclica de Bento XVI[23].

1. Em um deles, a respeito do reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais (cf. CDF, 2003), a tomada de posição é formalmente contrária às modificações que estão sendo introduzidas em vários países no sentido de favorecer a união civil entre casais homossexuais de ambos os sexos. No contexto, estão em discussão a ética e as normas para a adoção de crianças por parte destes casais.

É uma discussão polêmica, presente também no Brasil (cf. Martin, 1995). A intervenção da Santa Sé provoca especial repulsa por parte de seus críticos por ser interpretada como uma intervenção descabida da Igreja em um tema que é laico e civil. Não cabe a uma Igreja dizer se essa mudança na legislação seria ou não uma exigência da justiça e da ética. Em uma sociedade plural, o injusto e antiético seria tentar impor a opinião de um grupo sobre os demais. O texto, em si, repisa os mesmos conceitos e princípios que a Igreja tem proposto em vários outros de seus posicionamentos, como, por exemplo: “as relações homossexuais estão em contraste com a lei moral natural [ ...] pois fecham o ato sexual ao dom da vida”. Mas há afirmações que são mais taxativas e de tom mais duro, como, por exemplo: “por seu caráter imoral [...] ela é nociva a um reto progresso da sociedade humana.”

2. O outro texto vem do Secretariado para a Família, organismo da Santa Sé chefiado por prelados reconhecidamente conservadores. Foi publicado quase concomitantemente ao pronunciamento sobre a união civil de casais homossexuais. Trata-se de um “Lexicon” sobre a sexualidade e a família. No verbete sobre a homossexualidade emite-se um juízo crasso, que João Silvério Trevisan (Trevisan, 2004) denuncia como sendo

“de velhos preconceitos, num raciocínio capcioso que chega à arrogância. Contrapondo-se à Organização Mundial da saúde, define a prática homossexual como ‘um conflito psíquico não resolvido, que ‘favorece um desvio, o que a torna ‘contrária ao vínculo social e aos fundamentos antropológicos’. Assim desautoriza casais homoafetivos a constituírem família, sob pretexto de se tratar de ‘atormentados’ que sofrem de ‘impotência ansiogênica’. Numa inversão perversa que torna a sociedade vítima de militantes homossexuais, o documento acusa-os de conspirar para ganhar poder na ONU e no Parlamento Europeu. E demoniza homossexuais como vilões que minam a moral familiar. Há cinismo, ao esconder que a própria Igreja partilha da responsabilidade de criar atormentados/as. Bastaria um mínimo de sensatez para compreender como o seu poder espiritual afeta gravemente a vida de milhões de pessoas, por minar a auto-estima e estimular o ódio social aos homossexuais. Ao contrário de sua propalada vocação pastoral, a igreja não se dá conta sequer do sofrimento psíquico que impõe a milhares de homossexuais católico/as e à numerosa parcela homossexual do clero”.

3. O terceiro texto, que retoma e sintetiza muito do que a Igreja oficial afirmou nos textos até aqui citados, é o que este número de “REVER” trata no dossiê do presente número, a Instrução sobre a admissão de seminaristas de orientação homossexual ao sacerdócio e à vida religiosa.

Dois tópicos da Instrução chamam a atenção do cientista da religião, especialmente do psicólogo. Logo no início, após citar suas fontes (cf. nota 2 da Instrução) é tratado o tema da maturidade afetiva e paternidade espiritual do presbítero católico. A linguagem é propositadamente a da “tradição constante da Igreja” e não a acadêmica e científica ou dos jornais. Saliento nesta parte três afirmações da Instrução, uma que “define” o que é a homossexualidade para os autores do texto; outra que a baliza do ponto de vista teológico-pedagógico e uma terceira que dá os critérios a serem usados pela autoridade eclesiástica responsável pela formação:

No que respeita às tendências homossexuais profundamente radicadas, que um certo número de homens e mulheres apresenta, também elas são objetivamente desordenadas e constituem freqüentemente, mesmo para tais pessoas, uma provação. Estas devem ser acolhidas com respeito e delicadeza: evitar-se, em relação a elas, qualquer marca de discriminação injusta. Essas pessoas são chamadas a realizar em sua vida a vontade de Deus e a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que encontrar”. (no.4)
Há dois aspectos indissociáveis na vocação sacerdotal: o dom gratuito de Deus e a liberdade responsável do homem. A vocação é um dom da graça divina, recebido através as Igreja, na Igreja e para o serviço da Igreja. Ao responder ao chamamento de Deus o homem oferece-se livremente a Ele por amor. O simples desejo de ser sacerdote não é suficiente, e não existe um direito de receber a sagrada Ordenação. Compete à Igreja, na sua responsabilidade de definir os requisitos necessários para a recepção dos Sacramentos instituídos por Cristo, discernir a idoneidade daquele que quer entrar no Seminário, acompanhá-lo nos anos da formação e chamá-los às Ordens sacras, se for julgado possuidor das qualidades requeridas”.(no.5)
A Igreja não pode admitir ao Seminário e às Ordens sacras aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente arraigadas ou apóiam a chamada ’cultura gay’. Estas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que obstaculiza gravemente um correto relacionamento com homens e mulheres. De modo algum, se hão de transcurar as conseqüências negativas que podem derivar da Ordenação de pessoas como tendência homossexual profundamente radicadas. Diversamente, no caso de se tratar de tendências homossexuais que sejam apenas expressão de um problema transitório como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completa, elas devem ser claramente superadas, pelo menos três anos antes da Ordenação diaconal” .

As três citações mostram o essencial do que se quer dizer e normatizar através da Instrução. No terceiro trecho citado existe uma abertura que não se deve menosprezar. É a parte na qual se considera a homossexualidade como um problema evolutivo e que é superável. O que causa estranheza ao psicólogo é que a Instrução julgue que as autoridades eclesiásticas mencionadas no número 6 como responsáveis (Bispo, Reitor, formadores, diretor espiritual e confessor) tenham condições para fazer um discernimento que é eminentemente psicológico. Poderão estas autoridades discernir entre o que poderia eventualmente ser uma tendência “transitória” e outra, "profundamente radicada”?

Não deixa de ser inquietante este silêncio da Instrução quando tudo indica que é cada vez mais indispensável colaboração dos especialistas da área psi e da pedagogia para se fazer uma distinção válida e para encaminhar o tratamento psicoterapêutico que muitas vezes se torna necessário. Auto-suficiência eclesiástica?

4. A presente discussão moral-teológica

4.1. Na teologia católica os ensinamentos do magistério têm enorme peso. Suas aberturas ou fechamentos repercutem na reflexão dos teólogos que podem se sentir ou estimulados ou coibidos em sua atividade. As posições hoje existentes na Teologia Moral sobre a homossexualidade refletem bem esta situação. Os teólogos de outras igrejas cristãs [24] gozam de maior liberdade, uma vez que não têm de se preocupar com balizas tão precisas e delimitadas quanto as existentes na Igreja Católica. No entanto, também entre os católicos existem posições diferenciadas a respeito da homossexualidade. Para não prolongar demasiado o texto, remeto o leitor interessado a fontes especializadas para avaliar as várias tendências hoje existentes na Igreja, às vezes sub-repticiamente. Em outra ocasião (VALLE, 1999) eu mesmo distingui três correntes teológicas: uma mais tradicional, que até chega a criticar o Vaticano como insuficientemente condescendente neste campo; outra, seguramente majoritária hoje em dia, que tenta aprofundar as brechas que os pronunciamentos oficiais oferecem; e uma terceira, que vê como inadequado e insuficiente o tratamento que as autoridades maiores da Igreja Católica dão à sexualidade em geral e, conseqüentemente, à homossexualidade e aos homossexuais.

Pioneiro na discussão psico-pastoral da homossexualidade foi o médico, psicanalista e sacerdote Marc Oraison[25]. Para ele, ser homossexual podia ser considerado como um "mal". O fato em si, de alguém ser homossexual, "não comporta nenhuma maldade moral[26]". Oraison vai além do ensinamento oficial, sobre o qual teve possivelmente influência, na medida em propõe como critério ético do comportamento homossexual o grau de "humanização" que ele traz ou não consigo.

Sobre os homossexuais, ele afirma expressamente: "o prazer intercambiado e compartilhado pode ser uma expressão de amor, na medida justamente em que se o viva em uma relação intersubjetiva alcançada ... O prazer erótico não é forçosamente a expressão do amor, ou seja, de uma relação verdadeiramente intersubjetiva. Pode ser 'solitário', pode ser buscado também com um companheiro ao qual se situa sobretudo como objeto, como instrumento de excitação e distensão orgástica. Mas pode ser verdadeiramente relacional. Um sujeito homossexual não pode sentir-se atraído por este prazer se não com um sujeito de seu mesmo sexo. Representa, como vimos, um inacabamento da evolução afetiva, uma imperfeição quanto ao acesso à diferenciação (sexual). Mas o homossexual não pode mudar nada em semelhante situação, que está sofrendo com pesar. Não é, portanto, impossível que, nesta situação que é a sua, chegue a viver uma relação erótica com um companheiro igualmente homossexual que seja, ao nível do que lhes é acessível, a expressão de uma verdadeira relação intersubjetiva. Pode-se falar em tal caso de um 'pecado'?"

4.2. Na seqüela de reflexões como a de Oraison, vale a pena chamar a atenção para o esforço de moralistas católicos para uma correta compreensão e avaliação ética do "comportamento" homossexual. Nesse comportamento, eles procuram distinguir os comportamentos "desintegradores" (aberrações, promiscuidade, prostituição, pedofilia, abusos e atos não-vinculativos, etc.) dos comportamentos que propiciam e manifestam uma evolução em curso no nível psíquico, humano e cristão. O que diz J. McNeill (apud Vidal (1985, p.117) resume bem a posição de fundo que hoje se torna dominante: “as mesmas regras morais que se aplicam às atividades e condutas heterossexuais[27] se aplicam igualmente às pessoas de tendência homossexual. Um ponto em que reina certo acordo é o da aplicação do princípio do "mal menor". Mas, não seria essa "solução" uma maneira de fugir pela tangente, evitando as árduas controvérsias teológicas e éticas trazidas pela homossexualidade?

4.3. Os pastores também devem aprender a adotar uma "atitude de provisoriedade" (Vidal,1985, p.110) relativamente ao que é divulgado como resultados (biológicos, genéticos, neurológicos, psicológicos e antropológicos) definitivos e seguros, venham eles de setores "progressistas", venham de arraiais "conservadores". Os dados científicos de que dispomos não podem ser vistos dessa forma simplista. Logo, tampouco o juízo ético e a atitude pedagógica ou pastoral devem ser categóricos e definitivos, mesmo quando se observam os princípios teológico-pastorais nos quais a Igreja insiste.

Por essa razão, a avaliação moral e pedagógica da homossexualidade "deverá ser formulada em uma chave de busca e de abertura" (Vidal, ibidem). A finalidade última que o moralista, o educador e o pastor devem ter em mente deveria ser a de libertar-se e de libertar as pessoas e o meio em que atuam

"de falsas compreensões e das injustas normas sóciojurídicas em que a mentalidade dominante ( acrítica e/ou ideológica ) a encarcerou". É função da educação e da ética "ser uma força mais interna... (na) emancipação humana neste âmbito da condição homossexual".[28]

Portanto, o padre e o educador cristão devem saber integrar a avaliação e a ajuda formativa aos indivíduos de tendência homossexual dentro de um projeto ético mais amplo e mais articulado com toda a sexualidade humana e com cada ser humano em sua unicidade e na totalidade de seu ser-assim.

C. Balanço crítico e aspectos prospectivos

1. Algumas insuficiências a serem consideradas

1.1. Na medida em que o conhecimento sobre a homossexualidade foi avançando, a Igreja sentiu a necessidade de rever posições injustas, sem se afastar, contudo, da experiência humana e cristã de quem funda seu comportamento no Evangelho e nos valores do Reino. Entre os pontos revisto podem ser listados os seguintes:

1.2. A história da moral cristã - seja a católica, seja a protestante (cf. Maspoli, 2006) - mostra especial dificuldade em situar o lugar antropológico e ético do prazer sexual [32]. São maneiras de ver a sexualidade eivadas de elementos antropológicos e filosóficos estranhos à fé cristã. Inspiram-se no dualismo maniqueu e na tendência neoplatônica, popularizada por Agostinho, de negar qualquer espaço e valor ao prazer sexual.

A interpretação tradicional das passagens bíblicas relacionadas à homossexualidade está sendo questionada e superada pelos conhecimentos da exegese contemporânea; representa uma visão minimalista dos dados bíblicos, assim como esses aparecem nas Escrituras e, mais ainda, nas atitudes de Jesus.

A própria teologia da sexualidade e do matrimônio, bem como a nova visão da pessoa, estão levando ao questionamento de conceitos e práticas havidas durante séculos como as únicas compatíveis com a fé e a santidade cristãs.

Concluindo: os pronunciamentos oficiais da Igreja representam não um ponto final das discussões e, sim, um alerta e um referencial que balizam o debate no presente momento. Deixam sem resposta um sem número de quesitos.

2. Perspectivas e considerações psicopedagógicas

2.1. Ante um quadro assim complexo é necessário ter consciência de que o problema não pode ser abordado amadoristicamente. É simplista e amador, por exemplo, enquadrar as pessoas em dois grupos polarizados: os homossexuais e os heterossexuais. Não se trata de um "ou preto ou branco". Há toda uma gama de sensibilidades entre esses dois extremos. Cada caso, como se diz, é um caso. Em indivíduos de orientação heterossexual pode existir uma latente possibilidade de atração homossexual. O machismo repressivo da cultura dominante escondia essa latência. A atual permissividade e a badalação referente ao lado feminino do homem começa a liberar e mostrar com maior nitidez essa dimensão recalcada.

Mas, existe o outro lado do quadro. Não se pode nivelar tudo, minimizando e diluindo toda e qualquer consideração em torno do que define o masculino e o feminino. Esse nivelamento é injustificado e não responde à realidade dos fatos. Confunde e até inviabiliza a conquista de uma identidade sexual personalizada e consistente.

2.2. A confusão poderá diminuir se esclarecermos algumas idéias errôneas que circulam a respeito da homossexualidade. Algumas delas têm um quê de verdade, na medida em que valem para alguns homossexuais. Outras não passam de "mitos" populares sem fundamento. Eis os mais difundidos:

2.3. Qual o objetivo da formação de indivíduos de orientação homofílica propriamente dita, quando admitidos ao processo formativo da vida religiosa? Uma congregação masculina de forte matiz norte-americano, após anos de debate interno, formulou assim o objetivo psicopedagógico de sua formação:

"O objetivo de nossa formação, tanto para candidatos heterossexuais quanto homossexuais, é o estilo de vida celibatário. Esse supõe a capacidade de renunciar a atividade sexual genital e busca uma consistente maturidade psicossexual expresso em um desenvolvimento global da pessoa".

Nesta maneira de abordar revela-se um estado mais avançado da discussão ética e psicopedagógica do que o existente entre nós no Brasil. É uma concepção que dá por certa a possibilidade de uma pessoa de orientação homossexual ser encaminhada à vida religiosa, não havendo razão, em princípio, para discriminações. Critérios de admissão e medidas de acompanhamento devem ser as mesmas usadas para os heterossexuais. Mas o parágrafo enuncia dois requisitos de fundo para o estilo de vida celibatário que a vida religiosa propõe: a maturidade afetiva e sexual e o equilíbrio relacional global da personalidade. São os mesmos para todos os candidatos. Essa proposta pedagógica me parece psicologicamente plausível com as ressalvas que farei no item 2 .

2.5. Há uma outra condição: a de se saber que o objetivo da formação à vida religiosa não é o celibato. Esse é apenas um meio e uma expressão de algo mais profundo: o amor a Deus e aos irmãos "por causa do Reino". O que está no centro da formação é a pessoa em seu ser e agir, na rica trama de relacionamentos e de potencialidades do existir humano.

O celibato, não se pode olvidar, é um dom de Deus; tem natureza essencialmente carismática. Nós, com muita freqüência, o esquecemos. Desde essa perspectiva, que é teológica, não se pode propriamente falar em "educar para o celibato". O que se pode favorecer é a integração e a estabilidade emocionais que permitem viver esse dom, com liberdade interior, fecundidade para os outros e senso de realização pessoal.

3. Meus posicionamentos pessoais

3.1. Hesito em apresentar uma opinião para a qual não disponho de dados diretamente colhidos a partir da pesquisa científica, mas corresponde à minha sensibilidade clínica e experiência pastoral, em anos de observação e acompanhamento psicológico e espiritual de muitas pessoas.

Conheço seminaristas, religiosos e sacerdotes de tendência homossexual que chegaram a uma razoável integração psicossexual e afetiva. Um ou outro dentre eles teve uma vida feliz e pôde dar um testemunho de vida, serviço e fidelidade ao ideal proposto pela Igreja na vida consagrada e/ou no sacerdócio. Mas, conheço também casos opostos, alguns dramáticos. Falo da homogenitalidade, propriamente dita, sem excluir o homoerotismo. Os atos, os hábitos e os ambientes voltados unilateralmente para práticas genitais diretas são os que precisam ser melhor entendidos e questionados. Eles geram com facilidade vidas truncadas e sofridas e carregadas de tensões. No caso de ambientes religiosos são, quase que por necessidade, obrigados a um ocultamento angustiado e ambíguo, que de modo algum pode favorecer a expansão da vocação à vida consagrada.

Tenho conhecimento, também, de alguns casos de escândalo público e até de condenações judiciais, aliás, mais do que justas, pois de crimes se tratava. Note-se que não me refiro apenas aos casos que aparecem nos jornais. Falo da homogenitalidade, sem excluir o homoerotismo. Embora as práticas homogenitais são o que mais chama a atenção, elas nem sempre são o problema mais fundamental, psicologicamente falando. De maneira alguma quero insinuar que isto seja algo restrito apenas aos portadores de tendência homossexual. Existem escândalos semelhantes também entre religiosos e/ou sacerdotes heterossexuais. Não se pode generalizar a afirmação que segue, mas minha experiência me leva a dizer que, em termos gerais, pessoas com características estruturais de tipo homossexual são mais facilmente infensas a esse tipo de situação, talvez devido às circunstâncias repressivas impostas pela sociedade e a cultura vigentes e, no caso dos religiosos, devido também à situação psico-grupal existente dentro das comunidades religiosas assim como essas são de fato.

Não me refiro, tampouco, aos casos patológicos, que naturalmente existem. Esses mereceriam uma discussão à parte. Penso aqui em outros traços e dinâmicas que vejo serem bastante freqüentes entre os de inclinação homossexual definida. A vivência psíquica dessas pessoas é quase sempre complicada em sua gênese e dinâmica internas, bem como em seus relacionamentos externos. Envolvem outros fatores e dimensões que não os referentes à atração e aos relacionamentos sexuais diretos entre membros do mesmo sexo. É o "sistema-pessoa" em seu todo que vejo como afetado por valores e normas culturais que penetraram fundo no psiquismo do indivíduo cuja sexualidade foi modelada por repressões, projeções e outros mecanismos defensivos do ego, numa linha tipo homo.

3.2. Mesmo tendo consciência de que existem muitas ressalvas a serem feitas, constato uma notável incidência, em homossexuais por constituição, de tendências, atitudes e comportamentos que denotam labilidades de vários tipos. Algumas delas contra-indicam à vida religiosa e ao ministério. São, entre outras: posturas narcisistas primárias; ciúmes doentios ou dependências afetivas em relação às pessoas, amigas ou não; expressões exageradas de respeito e vassalagem para com superiores (ou o oposto); exasperação do espírito de posse e exclusividade; apego a coisas, pessoas, cargos e até espaços; oscilações emocionais nos relacionamentos e no exercício de funções de poder; tendência a refluir para um grupo de pertença fechado; atitude de fuga aversiva de mulheres (ou, ao contrário, busca "pegajosa" às mesmas); superficialidade e inconstância nos contatos que supõem a superação de níveis de gratificação afetiva imediata; apaixonamentos[34] que levam a cumplicidades restritivas; descontrole emocional, verbal e comportamental, etc.

3.3. Relendo o elenco acima, acrescento duas observações. Recordo, primeiro, que os próprios documentos da Santa Sé abordam - com ênfase, até - de qualidades positivas, humanas e cristãs, que os indivíduos homossexuais podem também ter e que, muitas vezes, possuem. Na seleção e no acompanhamento vocacional é preciso valorizar tais aspectos e possibilidades. Em princípio, os formadores devem propor a todos - sem distinção da orientação sexual da pessoa - as mesmas virtudes cristãs e humanas exigidas pelo celibato e pela vida comunitária, que supõe necessariamente disponibilidade ao outro/a, riqueza nos relacionamentos, equilíbrio anímico e, naturalmente, abertura a Deus e à caridade pastoral para com todos, sem acepção de pessoas. É uma meta ideal árdua para qualquer ser humano. Ela pede, por isto, uma correspondente maturidade psicossexual que só pode tornar-se real em quem tiver superado os estágios egocêntricos da primeira evolução psicoinfantil. O mínimo que se deveria dizer é que essas pessoas, para se equilibrarem psíquica, emocional e socialmente, necessitariam um acompanhamento mais especializado. O mesmo vale relativamente à maturação espiritual e à inserção na comunidade e na atividade pastoral.

Relembro, ainda, um segundo ponto de importância quando se considera a admissão à vida religiosa ou a continuidade na mesma. Para um bom convívio dentro de uma congregação devem ser tomados em conta os dois lados do compromisso que se estabelece entre o candidato que entra e a comunidade religiosa que o aceita. A congregação assume a responsabilidade de acompanhar o candidato em direção ao ideal proposto; o candidato, por sua vez, se compromete a um esforço de crescimento pessoal nessa mesma direção. Na avaliação, seja na inicial, seja na que vai se desenrolando pela vida a fora, esse compromisso precisa ser considerado em toda a sua seriedade pelas duas partes.

Os formadores/as dos candidatos/as à vida religiosa (ou ao sacerdócio) não podem esquecer de levar a sério os indicadores que mostram a dificuldade de pessoas estruturalmente orientadas à homossexualidade e ao homoerotismo em conviver construtivamente dentro das comunidades religiosas que de fato possuímos e de atuar nos trabalhos que lhes serão solicitados quando assumirem funções pastorais e religiosas de maior responsabilidade.

4. À guisa de amarração do que foi dito

O aprofundamento dos aspectos ético-morais da questão da homossexualidade nos mostrou que estamos ainda em meio a um processo de progressivo esclarecimento. Eticamente, o formador que trabalha na educação à vida religiosa se vê ante sérios questionamentos e, a exemplo de todos os educadores, está em busca de critérios e de procedimentos que façam justiça às pessoas de tendência homo, garantindo, ao mesmo tempo, o que é essencial na formação personalizada ao ideal de vida religioso.

Na "amarração" das considerações aqui expostas não há como apresentar "conclusões", no sentido estrito do termo. Prefiro terminar com observações bem genéricas, lembrando que em 1981 a CRB Nacional discutiu, apontando algumas orientações bem práticas para os formadores/as[35].

1. A pesada marginalização e desprezo a que a homossexualidade foi submetida por séculos e séculos era um fenômeno cultural mais vasto que a Igreja. Esta, no entanto, esteve diretamente envolvida na milenar opressão coletiva exercida sobre o grupo homossexual. Nos espaços mais restritos da vida religiosa, observou-se, ao longo dos séculos, o mesmo fenômeno da repressão homossexual, reforçado pelo absoluto monosexismo dos claustros. Hoje quebrou-se esse isolamento conventual. Religiosos e religiosas jovens já convivem com maior naturalidade nos espaços extra-coventuais. Com isto, acentuou-se a exposição aos estímulos de uma cultura hiperssexualizada, na qual a homossexualidade tornou-se uma bandeira libertária. Por essa razão é preciso criar nos lugares de formação um saudável clima em relação à sexualidade e ao comportamento inter-sexual. Essa é uma pré-condição para que as casas de formação possam ser de auxílio aos que possuem traços homossexuais.

2. Como não podia deixar de ser, essa visão teve repercussão direta no comportamento também dos candidatos/as à vida religiosa. Eles/elas são filhos/as desta época neoliberal, pluralista, permissiva e de consumo imediato. Os formadores/as estão ante a tarefa de rever costumes e normas que vinham de séculos e que não foram ainda seriamente questionadas e traduzidas em novas práticas pedagógicas. No passado, os formadores eram afetados por uma ignorância invencível das reais condições do problema ("ignoratio invencibilis elenchi"). Hoje eles não têm mais o direito de invocar essa justificativa histórico-cultural para seus erros e omissões pedagógicas. Os candidatos de orientação homossexual que batem às portas dos noviciados e juniorados têm o direito de esperar compreensão e acompanhamento psico-espiritual mais adequados da parte das comunidades que os recebem.

3. O acolhimento pedagógico de um candidato com orientação homossexual nada tem a ver com posições de facilitação e relativismo moral ou religioso. Talvez seja até o contrário. Compreender melhor o fenômeno homossexual em todas as suas dimensões pede um trabalho mais consciencioso nos relacionamentos e procedimentos formativos. Pode-se agir com respeito às pessoas de tendência homossexual sem ferir o que Igreja pede ao dizer que "nenhum método pastoral (ou pedagógico, ou psicológico) pode ser empregado que, pelo fato de esses atos serem julgados conformes com a condição de tais pessoas, lhes venha a conceder uma justificação moral" (Declaração no.8).

Uma proposta pedagógica que dê frutos de vida para o vocacionado e para toda a Igreja parte de um honesto confronto entre a realidade humana do candidato/a - com suas potencialidades e limites pessoais - e o que é irrenunciável no seguimento de Jesus. Mais: ela não pode ser dissociada do estilo de vida e objetivos da comunidade concreta que acolhe a pessoa. O carisma e a finalidade desta é testemunhar o evangelho em comunidades de serviço, na linha das bem-aventuranças e da caridade pastoral.

4. Da reflexão deontológica aqui feita ficam uma certeza e um desafio: a problemática afetivo-sexual que se mostra em candidatos/as de tendência homossexual supõe mais estudo e melhor treinamento para atender a essas pessoas no discernimento do que Deus lhes pede como caminho de vida. Dessa maneira, no encaminhamento delas, o que importa é colaborar para que elas possam discernir seu caminho de vida segundo as exigências teológicas e pastorais da vocação que pretendem abraçar como sua. Esse é um caminho de progressiva libertação pessoal e espiritual no qual é preciso estabelecer uma parceria entre o esforço de auto-conhecimento psicológico e religioso do candidato/a e a presença pedagógica dos formadores e da comunidade.

A própria Santa Sé parece estar convencida de que não se pode mais adiar uma discussão pedagógica mais séria sobre o assunto. O problema da homossexualidade entre seminaristas, religiosos/as e sacerdotes não pode ser ocultado. Há indícios de que está aumentando. Em um documento recente da Santa Sé, nascido de um congresso europeu sobre as vocações, esse problema foi o único expressamente mencionado ao se abordar a educação sexual. O texto usa explicitamente a palavra "caminho" ao tratar do discernimento vocacional de tais vocações. Fala-se de um caminho em direção a uma progressiva liberdade. Esse é um modo de falar mais dinâmico, que substitui com vantagem o expresso com a palavra "domínio". Para G. Pasquale, psicólogo presente no citado congresso vocacional, pode-se dizer que se começou a abandonar o antigo esquema "força da virtude" para se construir um novo paradigma, o da "liberdade do Evangelho". E prova a validade de sua leitura dessa mudança de paradigmas com duas características do texto conclusivo do Congresso. Nele se apresenta como modelo para o acompanhamento a Jesus ressuscitado que caminha com os dois discípulos de Emaús, partilhando com eles inquietações e perguntas (Lc. 24, 1-35). Em segundo lugar, evita-se no texto atribuir à palavra homossexualidade o qualificativo de "problema", preferindo defini-la mais como "debilidade".

Como em Emaus, o caminho[36] que se delineia é nada fácil. Penso que os formadores/as e psicólogos/as não deveriam esperar passivamente que as instruções cheguem de cima para indicar qual a prática a ser seguida. Com prudência pastoral, mas com determinação, eles/elas devem ajudar a Igreja a encontrar formas concretas para um modelo formativo novo e mais correspondente ao que a moral e a ética cristãs exigem hoje da Igreja e da vida religiosa.

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B. WILLIAMS., Homosexuality: the New Vatican Statement. In: Theological Studies, vol. 48, 1987, p. 259-277.

Notas

[1] Veja na bibliografia os livros de AZPITARTE, 1997; LEERS e TRANSFERETTI, 2002; MOSER, 2001; FORCANO, 1996; VIDAL, 1985; VAN DEN AARDWEG, 2000; FAUS, 1998; KOSNIK, A. 1977; SNOECK, 1981; CALLAHAN, 2005.

[2] Veja na bibliografia os livros e Artigos de ROSSETTI, 1994; TORRES, 2005; MORANO, 2005; COZZENS, 2000; MARTINEZ, 2000, NASINI, 2001, FABRI, 2005; COMBLIN, 2005, etc.

[3] Com o termo “magistério eclesiástico” se entende falar do que os Papas e os organismos que com ele cooperam no Vaticano ensinam a respeito de matérias ligadas à fé e aos costumes católicos. Nestes ensinamentos há uma hierarquia. Por exemplo: a abordagem da homossexualidade pela autoridade romana, além de recente, não se encontra em textos oficiais (encíclicas) dos Papas propriamente ditos. Está disseminado de maneira assistemática em escritos de ocasião redigidos pelos discatérios ou Congregações romanas. Têm um aval indireto do Papa, mas não representam de maneira definitiva as doutrinas e normas da Igreja (não são escritos “ex cathedra”). Em geral, estes textos refletem muito do que pensa o Cardeal que se acha à frente do respectivo Dicastério e os teólogos aos quais ele recorre para redigir o documento. A Igreja Católica toda, quando fala desde Roma, tem o costume de sempre se referir aos documentos anteriormente publicados, o que garante uma continuidade que dificulta inovar. É através de alusões e pequenos passos que as novidades vão tomando corpo. O Vaticano II mudou um pouco o modo de falar até dos Papas, mas, no fundo, a linguagem continua sendo eminentemente “conservadora”.

[4] Neste mesmo número de “REVER” outros artigos exemplificam as novas posições: MORANO, 2006; MASSIH, 2006, TORRES, 2006. Cf. o número de REVER, 2005, No.3, onde se encontram vários artigos escritos na perspectiva de gênero.

[5] Veja na bibliografia os livros de. REMKE-HEINEMANN, 1995; BOSWELL (1985); BAILEY, 1955; GAFO, 1985; VAINFAS, 1997; FOUCAULT, 1988, etc. Cf o número de REVER, 2005, No. 3, onde se encontram vários artigos escritos na perspectiva de gênero. Em especial GUDORF, Christine E. Corpo, self e identidade sexual: reflexões baseadas nas evidências atuais. In: REVER, Ano 5, No.3, Texto PDF p. 118-155.

[6] As citações são de textos dos Bispos norte-americanos, apud. JUNG e CORAY, 2005, p. 12.

[7] Cf .Thévenot (1999) e McRae (2005, p. 291 ss).

[8] Tenha-se presente que os escândalos não vinham só de padres de orientação homossexual, mas eles tinham participação na maioria dos escândalos. Por essa e várias outras razões e preconceitos a atenção recaiu mais sobre eles do que sobre padres que praticavam abusos heterossexuais.

[9] Não são muitas as alusões diretas do magistério à questão homossexual. Os pronunciamentos de peso do Vaticano são as mais das vezes indiretos ou, então, feitos em falas catequéticas de ocasião, de importância secundária (por exemplo, em audiências públicas de quartas-feiras). Entre os documentos que mereceriam uma análise mais aprofundada estão: A “Gaudium et Spes” (1965) e a “Dignitatis Humanae” (1965), ambos do Vaticano II; a “Humanae Vitae” de Paulo VI (1968) ; “Orientações educativas sobre o amor humano. Linhas gerais para uma educação sexual” (1983); Orientações sobre a formação nos institutos religiosos (1990); “Negativa à ordenação de homossexuais ao sacerdócio” (2002). Uma fonte importante para o conhecimento do pensamento oficial sobre a sexualidade se encontra nas encíclicas sobre a família e sobre a mulher (cf. TRAINA, 2005 e HUNT, 2005).

[10] O Pe. Bruce Williams, dominicano, chama a atenção para esse dado importante. Ele próprio escreve que "teve reações ambíguas" ao ler a carta de 1986, que para ele "é construtiva em muitos aspectos e negativamente desapontadora em outros". Cf. WILLIAMS (1987).

[11] Para uma informação rápida a respeito da interpretação hoje dada a esses textos, cf. Ruiz (1981) e toda a parte II de JUNG e CORAY (2005, p. 109-230).

[12] Saliento, desde já, que o texto fala aqui de "atos" e não da "tendência" homossexual. Na Escritura, segundo a Declaração, a condenação da homossexualidade como "grave depravação" se circunscreve aos atos, salvaguardando de alguma maneira a orientação erótico-afetiva e anímica da pessoa chamada homossexual. Voltaremos a esse ponto mais adiante, uma vez que tem importantes conseqüências morais, práticas e teóricas.

[13] Para uma explicação melhor desse ponto cf. Gafo (1981, p. 100-103).

[14] Essa é a posição de quase todos os moralistas contemporâneos. Por exemplo, veja-se o que diz AZPITARTE (1991, p.78): "o simples fato de apresentar tendências homossexuais, de sentir atração pelo próprio sexo, é um fato que não entra no campo da moralidade. Ninguém é bom nem mau por experimentar tendências e sentimentos que não pode afastar de si e que, inclusive, experimenta como um destino imposto à margem de sua vontade, algo assim como faz com que nasçamos homem ou mulher. Na medida em que a homofilia não se baseia em uma opção escolhida, não há lugar para culpa. O pecado tem outras categorias, que não radicam na existência pura e simples de um fenômeno psicológico, mas sim na aceitação livre e voluntária das práticas homossexuais".

[15] A crítica vinda de psicólogos e médicos recaiu principalmente sobre este modo de falar, rejeitado pelas mais importantes associações nacionais de cientistas da medicina, da psicologia e da psiquiatria do mundo inteiro, que desde os anos 80 já não aceitam que a homossexualidade seja classificada como uma doença.

[16] Cf João Paulo II, “Discurso a los Obispos de EEUU” (5/10/1979). In: Ecclesia, 39, 1979, p. 1314.

[17] As críticas foram muitas. Denunciava-se no documento uma postura biologística e medicalizante e uma tentativa de defender concepções pré-modernas que não podem ser hoje sustentadas. Nu fundo, mantinha-se o conceito de um caráter universal de doença, presente necessariamente na homossexualidade. Além disto, a visão de sexualidade, nos meios católicos, mantinha o ponto de vista "procriativo" como sendo o único definidor da validade moral da sexualidade humana, esquecendo de sua dimensão interativa e de reciprocidade, que é mais ampla que o aspecto genitalizante ao qual o documento estaria limitado.

[18] Interessante notar que um especialista em teologia moral bíblica, após estudo exaustivo das interpretações que os textos bíblicos referentes direta ou indiretamente à homossexualismo têm, hoje, na exegese protestante e católica, chega à conclusão de que a leitura bíblica feita na Carta representa um avanço em relação ao que se dizia anteriormente. Isto porque a Carta (no. 6) baseia na teologia da criação, encontrada no Gênesis - e não em textos isolados - a sua argumentação quanto à compreensão da discussão da homossexualidade, inserindo essa discussão em outra maior, a da própria sexualidade humana na visão bíblica. Cf. BRUCE, artigo citado, p. 260-261. Com uma argumentação ainda mais cerrada, vários dos colaboradores de JUNG e CORAY (2005) mostram ser outro o direcionamento da hermenêutica atual.

[19] Secretariado para a Família. O artigo de Mons. Quinn foi publicado na mesma revista no dia 2 de julho de 1988.

[20] Em documento sigiloso dirigido aos Bispos da Áustria, o Cardeal Ratzinger já se mostra bem mais severo e restritivo a respeito de algumas posições endossadas pelo episcopado austríaco por ocasião da Assembléia de Católicos realizada em Salzburgo (1998). Sobre o homossexualismo é dito que as afirmações constantes do documento da Assembléia são ambíguas e poderiam ser interpretadas em um sentido oposto ao do magistério. O Prefeito da Congregação da Doutrina reafirma, em seguida, que qualquer prática contra a castidade é pecado grave e que a tendência homossexual deve ser vista como "objetivamente desordenada". Cf. Il Regno, XLIV, 1999, No. 835, aprile, p.230.

[21] Martin lamenta, com razão, que a Carta não aproveite a importante distinção entre a homossexualidade enquanto "tendência transitória" e enquanto "condição definitiva". Cf .MARTIN, L.M, artigo citado, p. 6.

[22] Cf. Catecismo da Igreja Católica, lugar citado, No. 2357-2359. Veja-se também o que é dito no verbete sobre a Sexualidade (cf. no. 2331 - 2333 ), pois um verbete complementa o outro.

[23]Deus Caritas est” mereceria uma análise acurada. Os conceitos da primeira parte da recém-publicada Encíclica (eros, philia e ágape), lida na ótica de nosso tema, poderiam servir de base teológica para novas reflexões. Em princípio, os conceitos não contradizem o que Joseph Ratzinger assinava quando Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, mas sou de opinião que se dá um passo teórico à frente. Não entrarei na discussão neste momento.

[24] Veja-se, por exemplo, a bem fundamentada posição do Conselho da Igreja evangélica Luterana da Alemanha em seu documento oficial: Mit Spannungen leben, Hannover, EKD, 1996. Uma versão italiana deste texto pode ser encontrada em "Il Regno. Qindicinale di Documenti e attualità", XLI, 1996, No. 17, p. 557 - 571, sob o título de "Viver em estado de tensão". Cf. ainda o Relatório da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos: Sexuality and Human Community: Study Document. In: Blue Book, 1970.

[25] No Brasil tivemos o médico e sacerdote João Mohana que inovou a visão católica e a pastoral no campo da sexualidade.

[26] Cf. Vidal, Marciano, obra citada, p. 117. Também a citação mais longa de Oraison é tirada de Vidal, p.118.

[27] MCNEILL, J.J., The Church and the Homosexual, New York, 1978, p. 459. Apud Vidal (1985, p. 117).

[28] Todas as frases em itálico são de Vidal, Marciano, livro citado, p. 125.

[29] A este respeito, o médico Gianfrancesco Zuanazzi escreveu no "Osservatore Romano" de 23 de abril de 1997: "De minha experiência clínica vejo que o desenvolvimento de um seguro impulso heterossexual é muito raro no caso da homossexualidade verdadeira, mas ocorre mais freqüentemente em suas formas mais débeis ou nas neuróticas"

[30] A teóloga feminista Uta Ranke-Heinemann aponta essa conexão entre o desprezo ou "medo à mulher" e o rechaço psicológico à homossexualidade e ao homossexual. Para mostrar o estilo supressivo em relação à pregnância feminina no mundo eclesiástico, ela cita um passo do Diário Espiritual do papa João XXIII, escrito em 1948: "Sobre as pessoas no Vaticano, do Santo Padre para baixo, nunca houve uma expressão que não fosse respeitosa, não, nunca. Quanto à mulheres, ou à sua forma, ou ao que lhes dissesse respeito, nenhuma palavra era dita. Era como se não existissem mulheres no mundo. Esse silêncio absoluto, essa absoluta falta de familiaridade com relação ao sexo oposto, foi uma das mais poderosas e profundas lições em minha juventude como padre, e ainda hoje preservo, grato, a excelente e benéfica lembrança daquele homem (refere-se a Mons Radini Tadeschi, seu bispo em Bérgamo) que me educou nessa disciplina". Ao ler essa confissão do papa da abertura, não posso deixar de dar razão ao que escreve Ranke-Heinemann: "conforme vimos, os dois grandes pilares do cristianismo católico, Agostinho e Tomás de Aquino, deixaram claro que a mulher tinha de unir-se ao homem como "ajudante", "companheira", mas só para a procriação, enquanto que para o conforto no isolamento, "um homem é de melhor auxílio para outro homem". Segundo esse pessimismo sexual, dentro de suas próprias fileiras, o catolicismo dessexualizou o homossexualismo e então passou a cultivá-lo como uma sociedade masculina misógina". É fácil perceber que Eugen Drewermann vai nessa mesma direção. Cf. Ranke-Heinemann, Uta, Eunucos pelo Reino de Deus. Mulheres, sexualidade e a Igreja católica, São Paulo, Editora Rosa dos Tempos, 1996, 2ª ed., p.342.

[31] A homossexualidade nos conventos é um tema antigo. Na Espanha visigótica há notícia da castração de clérigos como castigo pela sodomia. G.R.Taylor admoesta que não de deve exagerar nesse ponto, pois é pequeno o número de cânones que falam da homossexualidade entre monges e sacerdotes, sendo muito mais freqüentes os que se referem à violação das normas do celibato. Apud Gafo, Javier, texto citado, p. 97. O livro de Taylor é citado por Gafo: Taylor, G.R., Sex in history, Londres, 1953.

[32] Jerônimo Noldin, jesuíta falecido em 1922, formulou assim uma posição que parece encontrar guarida até hoje no ensino oficial da Igreja, embora João Paulo II o tenha alargado na "Familiaris consortio". Escreve Noldin (em 1911): "O Criador colocou o prazer e o anseio por ele na natureza, a fim de atrair o homem a algo que é em si impuro, sujo e problemático em suas conseqüências". Apud Ranke-Heinemann, Uta, Eunucos pelo Reino de Deus, São Paulo, Editora Rosa dos Ventos, 1996, p. 295.

[33] Nos documentos aqui comentados se pode observar que não é essa a posição da Igreja. Um interessante documento da Diocese de Michigan (de 1973) lembra que a sexualidade, também a de tendência homossexual, pode e deve implicar a responsabilidade, a disposição ao sacrifício, a fidelidade, a amizade, etc. Cf. Kosnik, A., obra citada, p. 246. Um recente texto dos bispos norte-americanos a pais de filhos/as homossexuais assume a mesma postura positiva, na tentativa de animar positivamente os pais na ajuda a seus filhos/as.

[34] O apaixonamento não é restrito ao mundo dos homossexuais. Os milhares de sacerdotes que deixaram o ministério nos últimos decênios são uma prova de que os casos de apaixonamento heterossexual entre clérigos e religiosos são muito freqüentes. Esse assunto tabu é bem tratado, para os heterossexuais, por Van Heeswik, Jaime, La experiencia del enamoramiento y como enfrentarla, em: Testimonio (Chile), 1989, no. 114, p. 13 - 31. Mas há algo que está chamando a atenção ultimamente: padres de orientação homossexual parecem estar tendendo a se associarem entre si e com outros, estabelecendo laços grupais e emocionais fortes. No caso dos padres heterossexuais esse fenômeno associativo já não se verifica. Razão porque a crise afetiva séria no sacerdote orientado heterossexualmente o enamoramento se dá em termos diferentes.

[35] As interessantes conclusões, redigidas por quase duzentos participantes, segundo a metodologia do ver-julgar-agir, foram publicadas só em cópias mimeografadas. Na revista Convergência há uma breve nota sobre o seminário que foi conduzido por Edênio Valle e Antonio Moser, com a assessoria do psiquiatra Dr. João Moura e da psicanalista paulista Dra. Elsa Oliveira Dias. Cf Convergência, 1982, p. 18 -20.

[36] Em 1998, o Pontifício Ateneu Antonianum de Roma realizou um seminário sobre o "Discernimento e acompanhamento vocacional de pessoas homossexuais". No mesmo ano, publicou-se um opúsculo sobre "Novas vocações na Europa", dando à luz as conclusões de um Congresso organizado pela Santa Sé (Congresso sulle vocazioni al sacerdozio e alla vita consacrata in Europa, Roma, 5-10 maio, de 1997 ). Esse texto tem a chancela da Congregação para a Educação Católica e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, além da Congregação para as Igrejas Orientais. Ele interpreta e amplia o sentido do número 39 da "Potissimum Institutioni". Sobre os dois eventos, veja-se Pasquale, Gianluigi, Accompagnamento vocazionale per la persona omossesuale, em: Vita Cosecrata, ano 35, 1999, No. 1, p. 66 - 72.