Editorial - REVER número março, ano 7, 2007

Religião e Ciência - Tendências atuais (Parte I)

Estamos testemunhando em escala global um esforço de reconciliar crenças religiosas tradicionais com novas descobertas nas ciências naturais e, de modo mais geral, com a perspectiva científica moderna. Desde os anos sessenta do século passado, esse esforço tem crescido para se constituir em uma disciplina acadêmica madura, chamada usualmente de “Religião e Ciência” (ou “Ciência e Religião”), com seus periódicos, centros e sociedades acadêmicos e conferências internacionais. “Religião e Ciência” é um rótulo popular, ainda que algo enganoso, para o que também pode ser considerado como uma nova tendência na Ciência da Religião. É um título algo esquisito, ligando dois substantivos com um “e”. Entretanto, nós o utilizamos para evocar um senso de familiaridade no leitor, sem necessidade de empreender pesadas tarefas conceituais prévias. O termo pode significar pelo menos quatro coisas diferentes.

Primeiro, por conta de sua origem há cerca de quarenta anos, “Religião e Ciência” abrange esforços de promover diálogos entre religiosos e cientistas, assim como entre cientistas de diferentes concepções religiosas. Isso lembra esforços anteriores para ligar Fé e Razão, Ciência e Teologia, Fé e Ciência, e outros pares semelhantes. A expressão contém uma ambigüidade adicional, pois “Religião” e “Ciência” são dificilmente comparáveis - pertencem a ordens diferentes das coisas. Assim, seria até melhor falar de um diálogo entre a Ciência e a Teologia (e muitos autores assim o têm feito).

Segundo, o termo também evoca as tarefas ontológicas e epistemológicas de prover uma base comum entre, de um lado, os fatos, teorias e a visão de mundo da Ciência, e de outro, idéias, doutrinas e práticas religiosas. Apresenta-se mais como uma tarefa teórica, ao envolver conceitualização e a análise filosófica. “Religião e Ciência”, nesse caso, têm contido por vezes um interesse - o de promover o diálogo e a reaproximação entre os dois lados, ainda assumindo que o diálogo entre estas “duas culturas” tenha sido marcado por incompreensões.

Terceiro, o termo aponta para as reinterpretações de doutrinas religiosas tradicionais em termos do conhecimento científico contemporâneo. Dentro do âmbito do Cristianismo, por exemplo, doutrinas como a da criação, do ser humano e da salvação têm sido reavaliadas. Esta é tanto uma tarefa histórica quanto sistemática[1].

Quarto, e mais próximo do que usualmente é entendido como Ciência da Religião, o termo também abrange o uso de teorias e achados da ciência de modo a melhor entender a religião. Desenvolvimentos recentes incluem abordagens evolucionárias para se estudar as origens e funções desta última.

Ainda que este último sentido esteja mais próximo dos objetivos de REVER, os outros não devem ser deixados de lado por parecerem menos “científicos”. À luz de tal entendimento, decidimos incluir artigos exemplificando cada um destes quatro sentidos de “Religião e Ciência”, ainda que todos representem mais que um destes sentidos.

Assim, o propósito deste número de REVER (assim como do próximo) é apresentar alguns ensaios de destaque nesse campo para leitores que estejam menos afeitos a tais desenvolvimentos, especialmente na América Latina. Por conta disso, além do interesse propriamente científico, também nos propomos a fornecer aos leitores não familiarizados com a bibliografia anglo-saxônica traduções de alguns ensaios recentes de expoentes do campo. Em adição, vários ensaios originais, incluindo alguns de autores latino-americanos, também são publicados.

Uma das vantagens desse campo é que temas filosóficos, sujeitos a questões de ordem ontológica e epistemológica, são nele tratados de forma particularmente robusta: como campo novo, ele precisa assim se consolidar. Pedimos a leitores menos afeitos a estas sutilezas um pouco de paciência, pois este é um trabalho importante e árduo de estabelecer fundamentos e explorar novas possibilidades. Afinal de contas, tal tarefa em novas áreas da Ciência da Religião muitas vezes abre perspectivas diferenciadas para as áreas tradicionais dela.

Ao organizar um grupo bastante diverso de ensaios, decidimos partir dos mais gerais e históricos para aqueles que tratam de assuntos mais particulares e recentes.

Começamos com a tradução brasileira de um artigo do historiador Peter Harrison, com a preocupação de “’Ciência’ e ‘Religião’: construindo os limites”. Sua análise histórica levanta questões difíceis sobre a viabilidade de “Religião e Ciência” como uma área de comparação histórica e inter-cultural, baseado em uma cuidadosa contextualização histórica dos dois termos, “religião” e “ciência”.

A seguir são apresentados dois artigos do filósofo James A. Marcum, um em português (Explorando as fronteiras racionais entre as ciências naturais e a Teologia Cristã) o outro em inglês (Holistic Rationality and a Complement Model for Natural Sciences and Christian Theology Interaction) que, certo modo, dá continuidade ao primeiro ensaio.

Do renomado teólogo argentino Lucio Florio temos uma aproximação mais propriamente teológica, “Las ciencias en la teologia”, uma caminhada de fôlego pela história da Teologia.

Como a ciência não vive apenas das ciências naturais, incluímos também um ensaio de recorte histórico do matemático tcheco Ladislav Kvaz, intitulado “O elo Invisível entre a Matemática e a Teologia”, como surge em sua tradução brasileira.

Movendo-se mais para temas da contemporaneidade, como o criacionismo e o “design inteligente”, oferecemos a tradução em português “Da Hipótese do Design”, no qual o cientista Patrick Frank, de Stanford, oferece razões científicas para considerar estas duas abordagens como não se encontrando dentro do âmbito da ciência.

Evidentemente, “Religião e Ciência” não deve se resumir a um diálogo com muitos “tapinhas nas costas”. Para nos lembrar disto, a acadêmica indiana. Meera Nanda promove um julgamento severo sobre muitas manifestações mal-fundamentadas de diálogo, em seu ensaio “O quanto somos modernos? As contradições culturais da modernidade da Índia”. Um comentário curioso: Daniel Dennett, o conceituado filósofo da universidade de Tufts, intitulou seu último livro de “Quebrando o encanto” (Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2006) a partir de um ensaio escrito por Meera, indicando assim a relevância do argumento desta. Apesar do título do artigo agora publicado referir-se à Índia, pode-se facilmente reconhecer aí situações vividas por países ocidentais como o Brasil.

Finalmente, reapresentamos uma perspectiva recente no estudo da religião, as ciências cognitivas (cf. Luther H. Martin, “Towards a Cognitive History of Religions.” REVER, vol. 5, no 4 [2005], 7-18), com o ensaio do psicólogo da USP Geraldo Paiva, intitulado “Psicologia Cognitiva da Religião”.

Confiamos que este conjunto substantivo e variado de ensaios, ilustrando temas centrais em um importante sub-campo do estudo acadêmico da religião, inaugurará esta nova fase de REVER com continuada sensibilidade aos temas correntes da Ciência da Religião e compromisso com elevados padrões acadêmicos.


Eduardo R. Cruz e Steven Engler (PUC-SP), Editores Convidados

Notas

[1] Para uma abordagem influente no campo, ver Ted Peters e Gaymon Bennett, “Construindo Pontes entre Ciência e Religião”. São Paulo: Ed. Loyola, 2003.