A coletânea Critical Terms for the Study of Buddhism é fruto dos esforços de um grupo de especialistas que contribuiu para o progresso dos estudos sobre o Budismo por elaborar as implicações ambíguas e os problemas heurísticos inerentes a quinze “termos críticos” usados na referente área de pesquisa.
Com a exceção de “Buda”, todos os verbetes são vocábulos ingleses. A palavra “Buda” destaca-se também por ser o primeiro tópico da lista dos termos críticos discutidos, desta maneira rompendo com o principio de organização alfabética da coletânea. O mesmo vale para a expressão “Modernidade”, discutido no último artigo, um privilégio justificado pelo argumento de que o presente livro inaugura uma série intitulada “Budismo e Modernidade” - o organizador achou adequado começar o volume com Buda e o terminar com Modernidade (p. 11).
No seu ensaio sobre Buda, Donald S. Lopez Jr. oferece uma síntese interessante com diversos detalhes surpreendentes sobre as confusas especulações que marcavam a fase inicial dos estudos budológicos. Entre as peculiaridades da discussão acadêmica no fim do século XVIII encontra-se a tentativa do orientalista inglês Sir William Jones de conciliar o conhecimento então estabelecido sobre o Buda histórico com a idéia hindu de que Buda era uma emanação (avatar) de Vishnu. Prejudicado pela falta de acesso a fontes budistas autênticas, Jones chegou à conclusão de que houve duas personalidades distintas posteriormente confundidas, ou seja, uma figura do século XI a.C. que acabou sendo venerado como avatar de Vishnu, e, mais recente, Siddharta Gautama, oponente dos brâmanes. Embora problemas desse tipo iluminem a precariedade dos primeiros passos da budologia ocidental, Lopez não está interessado em “tentar explicar quem foi o Buda e o que ele realmente ensinou”, mas em “considerar como o Buda parecia – em outras palavras – nas imagens de Buda” (p.7). A busca para respostas a essa pergunta tem se mostrado complexa e tem gerado disputas sobre uma série de assuntos, tais como a hipótese sobre a suposta origem africana de Buda, uma teoria inspirada pela fisionomia negróide expressada por determinadas estátuas de Shakyamuni. Embora essa hipótese tenha sido questionada logo depois da sua primeira articulação, ela continua a chamar a atenção de especialistas pelo menos até a metade do século XIX. O mesmo vale para a interpretação ambígua de outros traços iconográficos especialmente dos relacionados às 32 marcas psicofisiológicas que, conforme a tradição, distinguem o Buda de seres humanos comuns.
Segundo Marilyn Ivy, a relevância do tópico modernidade para os estudos sobre o Budismo já se prova pelo fato de que o termo “Budismo” tem sido usado por autores ocidentais apenas a partir da metade do século XIX. Portanto, a própria expressão Budismo, no sentido de uma categoria unificadora e heuristicamente válida, poderia ser abordada como um “termo crítico”. Não obstante, o artigo se concentra na pergunta sobre as possíveis perspectivas para o Budismo em relação ao “projeto” de modernidade. Uma delas apresenta uma visão de que o Budismo serve como um “superabundante repositório de virtudes e possibilidades não-modernas” (p.318), ou seja, como um contra-modelo ou no sentido de uma oposição nostálgica contra a mentalidade corrompida do Ocidente, ou no sentido de um tipo-ideal da busca para a verdade eterna que transcende fronteiras sócio-culturais e históricas, inclusive as limitações da modernidade como uma época distinta da história humana. Essa visão corresponde em parte à classificação de Max Weber da atitude do Budismo primitivo como “misticismo extra-mundano” e à formulação de um Zen universalista na tradição intelectual da escola de Kyoto. Para fazer justiça à relação multifacetada e ambígua entre Budismo e modernidade, porém, tem-se que levar em consideração, sob um ponto de vista histórico, a (dis-)funcionalidade programática política do Budismo sob distintas circunstâncias nacionais, não apenas no que diz respeito aos paises asiáticos, mas também a partir do tratamento “oficial” do Budismo em determinados contextos ocidentais exemplificados pela localização de nações budistas no terreno da Exposição Mundial de 1893 em Chicago, cujos pavilhões encontraram-se em uma seção intermediária entre a dos paises “civilizados”, no centro, e a periférica, reservada para paises considerados “primitivos”, especialmente os africanos.
Não há nenhuma obrigação em começar a leitura do livro com o artigo sobre “Buda” e a terminar com o ensaio sobre a “Modernidade”. Em vez disso, o leitor está livre para seguir seus interesses pessoais em determinados segmentos do estudo do Budismo e sua avaliação sobre um determinado artigo será não apenas influenciada pelo conteúdo do texto, mas também pela capacidade retórica e pelo estilo do referente autor.
Quem, por exemplo, valoriza a densidade de citações das escrituras tradicionais budistas, concordará com a afirmação de que o ensaio de Janet Gyatso sobre “sexualidade” é altamente recomendável. Não pelo fato de que trata de um tópico sempre atual, mas pelos esforços da autora em discutir o tema o mais detalhadamente possível a partir de um número impressionante de fontes relevantes em um espaço formalmente limitado. Leitores que apreciam o talento de um autor em resumir um discurso teórico complexo de maneira didática devem desfrutar o (não apenas nesse sentido) excelente artigo de Robert H. Sharf sobre “ritual”.
Em alguns momentos, a leitura de um determinado artigo inspirará o leitor a consultar outro ensaio a fim de receber informações complementares sobre certo assunto. Isso vale, por exemplo, para partes do tópico “Buda”, que apontam para a reflexão de Charles Lachmann sobre “arte” mediante a qual o autor expande o raciocínio de Donald S. Lopez Jr. sobre as estátuas de Buda ao discutir as várias funções que tais imagens cumprem em diferentes contextos budistas. Além disso, Lachmann problematiza a “leitura” estereotipada de artefatos como expressões imediatamente religiosas, especialmente em caso de pinturas chinesas e suas mensagens inerentes supostamente revelando o espírito Ch’an.
Uma inter-relação sistemática também existe entre os artigos sobre “economia” e “dádiva”.
Em seu ensaio estimulante sobre “economia”, Gustavo Benavides demonstra como constelações sócio-históricas na época de Buda, tais como urbanização e monetarização, contribuíram para aspectos como a comunicação abstrata, o intercâmbio racional e a atitude ascética, assim promovendo elementos constitutivos para a formação e o sucesso do Budismo. Especificamente por elaborar, entre outros aspectos, as implicações da “economia de salvação” budista, Benavides cria uma ponte para as reflexões de Reiko Ohnuma sobre a dádiva. Baseado em um resumo do ensaio “Essai sur le don” (de 1928), de Marcel Mauss, Ohimsa discute a noção polissêmica budista de dana, particularmente a categoria de dádiva não-recíproca e suas implicações soteriológicas.
Os artigos sobre “palavra” e sobre “prática” também estão abertos para uma leitura complementar. Segundo Ryūchi Abé, “palavra” é um termo crítico uma vez que o ensinamento verbal desempenha um papel crucial para a soteriologia budista. Sem palavras não haveria nenhuma doutrina budista (dharma). Ao mesmo tempo, o dharma articulado mediante palavras sofre limitações sérias. Se Siddhartha Gautama tivesse ficado silencioso depois da sua Iluminação, ele seria um Buda privado (pratyekabuddha), mas não um Buda público que se direcionou a um determinado público, assim iniciando uma tradição oral que no decorrer dos tempos se cristalizou em uma volumosa biblioteca polifônica de textos escritos. Porém, as restrições inerentes de palavras restringem a sua capacidade de transmitir um insight completo na verdade suprema. Além disso, tem-se que levar em consideração finalidades específicas de palavras em diferentes contextos budistas, por exemplo as oriundas de especulações sobre o status ontológico de determinados sutras e sobre o efeito psico-psicológico da sua recitação, bem como referente ao uso de mantras e à caligrafia. Nesse ponto, o artigo de Carl Bielefeldt sobre os quarto diferentes significados do termo “prática” chama a atenção, especialmente as partes em que o autor discute a “prática” como aspecto complementar à teoria, como um conjunto de atividades na busca de realização de objetivos espirituais e como um caminho para ganhar maestria em um determinado campo de excelência no âmbito do Budismo.
Não há nenhuma indicação de que inter-relações do tipo acima mencionado foram propositalmente planejadas pelo organizador da coletânea. Pelo contrário, parece que os especialistas convidados não sofreram muitas restrições quanto à construção dos seus artigos. Isso já se torna visível na heterogeneidade formal dos artigos. Enquanto alguns ensaios não trazem nenhuma subdivisão, outros revelam sua lógica interna mediante separações conforme subtítulos, números romanos ou asteriscos. O mesmo vale para as preferências teóricas e empíricas de cada um dos autores.
Timothy Barrett, por exemplo, questiona a legitimidade da redução da “História” a uma reconstrução cronológica a fim de análise unilateral de eventos do passado. Embora autores ocidentais compartilhem o conceito da “História” como um empreendimento intelectual que reflete a “experiência comum” de um povo, não há um equivalente do termo “História” nas línguas indianas. Ao mesmo tempo, não se deve esquecer o entendimento budista da história não como algo imediatamente relacionado ao “tempo calendário” [sic!], mas como um fenômeno enraizado no “tempo cosmológico”. Essa e outras idéias da história chamam a atenção para a variação e relatividade de padrões de interpretações de acordo com as quais atividades humanas são avaliadas. Os contos sobre as vidas passadas do Shakyamuni (“Jatakas”), por exemplo, não representam narrativas históricas no sentido estrito. Não obstante, do ponto de vista budista, eles não são textos a-históricos, mas expressões de uma História baseada em “imaginação comum”.
As reflexões de Eve Kosofsky Sedwick sobre “pedagogia” não abordam os meios típicos e as instituições especializadas dedicadas à transmissão de tradições budistas genuínas, tais como o método de debate cultivado em mosteiros tibetanos, mas concentra-se na questão sobre como o Budismo norte-americano, inclusive suas primeiras expressões no meio do Transcendentalismo, tem internalizado uma religião originalmente “alheia”.
A inclusão da palavra “instituição” na lista de termos críticos aponta para uma reorganização da hierarquia da relevância para os estudos do Budismo. Devido à relativização da imagem tradicional do Budismo como uma religião “a-social, a-política e ‘extra-mundana’” predominantemente preocupada com a “última verdade”, tópicos de pesquisa referentes ao lado não-filosófico do Budismo não são mais desvalorizados como categorias de “segunda ordem”. Algo semelhante pode-se dizer sobre o tema “morte”, discutido por Jaqueline Stone, uma vez que, apesar de estudos “filosóficos” desse fenômeno baseados em textos clássicos não terem perdido sua relevância, há um número crescente de pesquisas, por exemplo, sobre os aspectos sociológicos de funerais budistas e as modificações dos últimos devido ao impacto da modernidade.
No que diz respeito à composição da coletânea, fica aberta a questão sobre os critérios que fizeram com que os quinze tópicos tenham sido escolhidos, um problema reconhecido por Donald S. Lopez Jr. ao admitindo que “há, naturalmente, muitos outros termos que poderíamos ter escolhido” (p.5). A opção por “morte” em vez de “vida” faz sentido com relação a uma religião que enfatiza o princípio da impermanência como aspecto essencial da existência, mas, por que, por exemplo, encontra-se um artigo sobre “História” mas nenhum sobre “Geografia”, e o que justifica o título “História” em desfavor de um artigo sobre “tempo” que teria exigido a inclusão de um ensaio complementar sobre “espaço”.
A questão mais importante, porém, é: o que exatamente qualifica um verbete como termo crítico? “Crítico” quer dizer “chave”, “discutido”, ou “aberto para leituras alternativas”? “Crítico” para quem? Para budistas ou para pesquisadores sobre o Budismo? Na verdade, diferentes autores deram respostas diferentes à última pergunta. Jacqueline Stone, por exemplo, refere-se a uma discussão intra-budista afirmando que “nem todos os budistas tem aceito de maneira a-crítica [...] as estratégias de controle sobre a morte” (p.72). Para Timothy Barrett, o termo “História” tem implicações críticas devido à discrepância entre o ponto de vista acadêmico e a visão budista, uma vez que o tratamento científico da categoria “não é sancionado pela tradição religiosa estuda” (p.126). Craig J. Reynolds, finalmente, esforça-se para demonstrar que o tópico “prática” ganha uma conotação crítica tanto para budistas quanto do ponto de vista de estudos sobre o Budismo. (p.229).
Independentemente dos comentários acima e abstraindo das variações no que diz respeito à abrangência e à profundidade com as quais os diferentes tópicos foram abordados, a coletânea “Critical Terms for the Study of Buddhism” é altamente estimulante, cuja leitura é obrigatória para qualquer estudante da Ciência da Religião interessado na situação atual e tendências futuras de pesquisa do Budismo.