Os conceitos “ciência e “religião” são, ambos, produtos da modernidade. “Religião” recebeu seu sentido presente no século XVII; “ciência”, durante o século XIX. Um entendimento dos processos históricos e sociais que levaram à formação das categorias duais de “ciência” e religião” é vital para qualquer avaliação de suas relações contemporâneas. Em cada caso, a formação da categoria surgiu através de um processo de reificação, que mudou o foco da atenção para fora do âmbito das atividades humanas relevantes, em direção a corpos abstratos de conhecimento ou conjuntos de proposições. Isso levou a um entendimento distorcido dos fenômenos que tais termos procuravam representar, uma distorção que é aumentada em discussões de suas supostas relações. A natureza construída da relação ciência-religião sugere uma revisão de algumas abordagens-padrão do tema da ciência e religião.
Palavras-chave: história da ciência, filosofia natural, reificação, pluralismo religioso, ciência e religião, construção social
The concepts ”science” and ”religion” are both products of modernity. ‘Religion’ took on its present meaning in the seventeenth century, ‘science’, during the nineteenth. An understanding of the social and historical processes which have led to the formation of the dual categories ‘science’ and ‘religion’ is vital for any assessment of their current relationship. In each instance, the formation of the category came about through a process of reification which shifted the focus of attention away from the relevant human activities to abstract bodies of knowledge or sets of propositions. This has led to a distorted understanding of the phenomena which these terms purport to represent, a distortion which is magnified in discussions of their putative relationship. The constructed nature of the science-religion relation suggests a revision of some standard approaches to the science and religion question.
Keywords: history of science, natural philosophy, reification, religious pluralism, science-and-religion, social construction
Ao longo da década passada, alguns historiadores da ciência expressaram fortes reservas sobre se seu assunto específico de interesse tem algo de uma história para contar. Segundo eles, a ciência, como a disciplina é correntemente entendida, emergiu somente durante o século XIX. Antes disto, estudantes da natureza se consideravam na busca de uma “filosofia da natureza” ou uma “história natural” – disciplinas com uma orientação um tanto diferente daquelas da ciência do século XXI. Tal afirmação tem ramificações óbvias para aqueles cuja preocupação reside no relacionamento passado entre ciência e religião, pois, se isso for verdade, esse relacionamento não pode ser anterior ao século XIX. Suscetibilidades históricas semelhantes são evidentes na esfera das Ciências da Religião, nas quais um número crescente de estudiosos sugere que a idéia de “religião”, assim como a de “ciência”, é um desenvolvimento moderno. Afirma-se que “religião” e o plural “religiões” não começaram a ter seus significados atuais até o século XVII. A noção de que existem “religiões”, distintas por conjuntos discretos de crenças e práticas e ligadas por uma “religião” comum e genérica, é de fato um produto do Iluminismo Europeu. Durante este período, a necessidade aguda de chegar a algum critério para julgar entre diferentes credos levou à construção de “religiões” como conjuntos de crenças propositadas que poderiam ser imparcialmente comparadas e julgadas.
Neste artigo, explorarei com algum detalhe as circunstâncias históricas da emergência das categorias duais “ciência” e “religião”, mostrando sua relevância direta para discussões contemporâneas da relação ciência-religião. Como veremos, num certo grau ambas as categorias distorcem o que afirmam representar, e tais distorções inevitavelmente persistem nas discussões de seu relacionamento. Considerações sobre a natureza historicamente condicionada da “ciência” e da “religião” trazem à tona um número de suposições implícitas em algumas das principais correntes de discussões sobre ciência-e-religião, e evidenciam a necessidade de uma revisão séria das abordagens comuns deste assunto.
Até recentemente, não era controverso reivindicar uma história respeitável para a disciplina da ciência. As histórias clássicas da ciência, por exemplo, costumeiramente começam seus relatos com a ciência dos gregos antigos. Realmente, o monumental “History of Science” de George Sarton (1970), um trabalho de nove volumes planejados, quase não avança além dos gregos, terminando prematuramente com o período helenístico no terceiro volume. A maioria dos relatos, deve-se dizer, apresenta um longo hiato durante a Idade Média no Ocidente, mas no século XVII, de acordo com a perspectiva padrão, a ciência encontra-se mais uma vez nos trilhos, com o nascimento da ciência “moderna”. Se os progenitores da disciplina moderna – tipicamente identificados como Galileu ou Newton – eram de safra muito mais recente, seus ancestrais espirituais eram, de qualquer forma, identificados como aqueles investigadores da natureza que foram pioneiros no empreendimento científico na Antigüidade.
No decorrer das décadas passadas, no entanto, muitos historiadores mostraram reservas sobre continuidades presumidas na história da ciência. Tais reservas foram demonstradas de modos variados, mas comum a todas é o apelo contra a suposição anacrônica de que o estudo da natureza nos períodos históricos anteriores prosseguia mais ou menos nas mesmas linhas que as adotadas pelos cientistas modernos. Margaret Osler, por exemplo, tem questionado a suposição indiscriminada de “que limites disciplinares têm permanecido estáticos durante toda a história” (OSLER, 1997: 91). Numa tendência similar, Paolo Rossi acusou os historiadores da ciência por terem se interessado por “um objeto imaginário”, argumentando que “ciência” é uma invenção completamente recente (ROSSI, 1984: vii). O filósofo da ciência David Hull reforça esse aspecto, observando que “ciência como uma entidade histórica não possui mais essência do que teorias científicas específicas ou programas de pesquisa. As espécies de atividades que são parte da ciência em qualquer tempo são extremamente heterogêneas e mudam no decorrer do tempo”. (HULL, 1988: 25). Andrew Cunningham, talvez o crítico mais eloqüente da visão tradicional, pergunta rispidamente se, quando estudamos ciência no passado, é ciência em qualquer sentido significativo (CUNNINGHAM, 1988: 365-89).
Esses pontos de vista atuais são apoiados por uma impressionante série de evidências, mas talvez a indicação mais clara da novidade relativa da disciplina possa ser vista nas conotações amplas do termo “ciência” anteriores ao século XIX. É freqüentemente assumido que a ciência começou com os gregos antigos, mas, como uma das autoridades principais no pensamento deste período apontou, “ciência é uma categoria moderna e não antiga: não há um termo que seja equivalente exatamente à nossa ‘ciência’ em grego” (LLOYD, 1970: iv). David Lindberg, em seu magistral levantamento sobre o estudo da natureza na Antigüidade e na Idade Média, similarmente apontou que mesmo que nós pudéssemos concordar sobre a definição de ciência moderna, para investigar somente aqueles aspectos de disciplinas clássicas e medievais, “à medida que aquelas práticas e crenças sejam semelhantes à ciência moderna”, daríamos origem a uma “imagem distorcida”. Devemos, portanto, evitar “olhar para o passado através de uma grade que não se encaixa exatamente” (LINDBERG, 1992: 2 e ss.). Assim sendo, ao mesmo tempo em que não é absurdo considerar Aristóteles, por exemplo, como tendo praticado “ciência”, deve-se lembrar que as atividades assim descritas mantêm apenas um vago relacionamento genealógico com o que agora consideraríamos ciência. O mesmo é verdade para a Idade Média, quando, em grande parte devido à influência das classificações aristotélicas, filósofos falavam de três “ciências especulativas” – metafísica (também conhecida como “ciência sagrada” ou Teologia), matemática, e filosofia natural[1]. Rigorosamente, falar da relação entre Teologia e ciência nesse período é ignorar as categorias com as quais os próprios agentes históricos operavam. Novamente, isso não é negar que possa haver exploração histórica frutífera da relação entre filosofia natural e Teologia durante este período. Mas o fato de que ambas as disciplinas sejam ciências especulativas faz uma diferença importante em nossa investigação.
Considerações similares se aplicam à era que é mais comumente associada com o nascimento da ciência moderna. Nicholas Jardine observou que “nenhuma categoria renascentista nem de forma mais remota corresponde às ‘ciências’ ou às ‘ciências naturais’ no nosso sentido dos termos” (JARDINE, 1991: 685)[2]. No início do período moderno, o estudo da natureza esteve presente em algumas disciplinas, das quais as mais importantes foram a “filosofia natural” e a “história natural” (CUNNINGHAM, 1988: 384)[3]. Era da filosofia natural, por exemplo, que Isaac Newton entendia incumbir-se, como o título de seu mais famoso trabalho dá testemunho: “Philosophiae naturalis principia mathematica” (“Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”, de 1687). Curiosamente, nessa época nem historia natural nem filosofia natural experimental eram pensadas suficientemente exatas para garantir o rótulo de “ciência”, a primeira porque era um empreendimento histórico, a última porque era pensada como conduzindo a conhecimento que era meramente provável e não demonstrável[4]. John Locke, um campeão da abordagem empírica ao conhecimento, observou que “a filosofia natural não pode ser transformada numa ciência” (LOCKE, 1959: 349)[5]. História natural e filosofia natural também não eram sinônimos do que chamamos agora de ciência natural. Antes, implicam num entendimento diferente de conhecimento da natureza: foram motivadas por preocupações diferentes e integradas a outras formas de conhecimento e crença de modo completamente estranho às ciências modernas. Os domínios desses empreendimentos não eram de extensão igual ao da “ciência” como era entendida então ou hoje.
Em lugar algum a diferença entre tais disciplinas e a ciência moderna é mais aparente do que naqueles elementos religiosos que integravam a prática do estudo da natureza no início da modernidade. História natural e filosofia natural eram freqüentemente buscadas por motivos religiosos, baseavam-se em pressupostos religiosos e, à medida que eram consideradas legítimas formas de conhecimento, tiravam suas sanções sociais da religião. Assim o era particularmente na Inglaterra, onde até a metade do século XIX a história natural era internamente ordenada de acordo com o princípio teológico de plano divino. As íntimas conexões entre o estudo da natureza e noções religiosas são aparentes na ubiqüidade das imagens modernas iniciais da natureza como livro de Deus. O médico Thomas Browne fornece-nos um típico enunciado desta abordagem: “Há dois livros de onde eu coleto minha divindade,” escreve ele, “além daquele escrito por Deus, outro de sua serva Natureza – este manuscrito público e universal que se estende aos olhos de todos” (BROWNE, 1982: 16). Em uma vertente similar, Johannes Kepler descreve astrônomos como “sacerdotes do mais alto Deus, com respeito ao livro da natureza” (KEPLER, 1937: 193)[6]. O naturalista John Johnston também fala do “livro da Natureza, onde nós podemos contemplar o poder supremo”. “Deus”, continua ele, “é compreendido sob o título de história natural” (JOHNSTON, 1657: sig. a3v). Mais conhecida de todos é a posição do virtuoso do século XVII Robert Boyle, que descreveu a filosofia natural como “o primeiro ato de religião, e igualmente prestativa em todas as religiões” (BOYLE, 1966: 62). Boyle considerava suas próprias atividades e as de seus pares como “veneração filosófica de Deus”. De acordo com um historiador, filosofia natural no início do período moderno era sobre “Realizações de Deus, intenções de Deus, propósitos de Deus, mensagens de Deus ao homem” (CUNNINGHAM, 1988: 384)[7]. A legitimidade, ou, como os médicos do século XVII gostariam de colocar, a “utilidade” da filosofia natural no contexto inglês derivou em grande medida desta orientação religiosa[8].
Tão inextricavelmente conectados eram os conceitos duais de Deus e natureza que é enganoso tentar identificar vários tipos de relacionamentos entre ciência e religião no século XVII e XVIII. “Ciência” e “religião” não eram entidades independentes que podiam sustentar alguma relação positiva ou negativa entre si, e tentar identificar tais conexões é projetar para o passado um conjunto de preocupações que são tipicamente de nossa própria época. O historiador Charles Webster assim o expressou:
conclusões sobre a independência da atividade científica no século XVII não são baseadas no exame imparcial e exaustivo de evidência, mas sim ditadas pelas exigências da ideologia vigente, e não descrevem a relação que na verdade existiu, mas a relação que se sente que deveria ter existido com base na opinião contemporânea sobre a metodologia da ciência (WEBSTER, 1975: 494)[9].
O nascimento da disciplina moderna, como é geralmente aceito agora, ocorreu durante o século XIX. De acordo com Simon Schaffer, foi o século XIX que testemunhou “o fim da filosofia natural e a invenção da ciência moderna” (SCHAFFER, 1986: 413). Andrew Cunningham (1988: 385) concorda que a “invenção da ciência” foi “um evento histórico do período entre 1780-1850”. O termo “cientista” foi cunhado por William Whewell em 1833, e, apesar de não ter sido amplamente adotado até o fim do século, é indicativo de uma importante nova aliança de disciplinas uma vez distintas. Nesse período também surgiram as primeiras corporações profissionais para cientistas (ROSS, 1962: 65-86)[10]. A British Association for the Advancement of Science (Associação Britânica para o Progresso da Ciência), por exemplo, foi estabelecida no início dos anos 1830. Com a fundação de tais associações veio um novo status para os praticantes da ciência e, acompanhando esse status, um novo conjunto de compromissos profissionais (TURNER, 1978: 356-76; BROOKE, 1991: 5-50).
A transformação da história natural na “biologia” científica foi uma parte vital desse processo. Uma vez que a história natural tinha sido tradicionalmente dominada pelo clero, as novas disciplinas científicas de biologia e geologia gradualmente alcançaram independência da influência clerical enquanto, ao mesmo tempo, legitimaram um novo conjunto de autoridades não eclesiásticas. (TURNER, 1978; BROOKE, 1991; ARMSTRONG, 2000; LIVINGSTONE, 1997). Essa foi, de fato, a missão explícita de personalidades como Thomas Huxley e seus colegas no “Clube-X”, que procuraram com fervor evangélico estabelecer um status científico para a história natural, livrar a disciplina das mulheres, amadores e padres, e assentar uma ciência secular no centro da vida cultural da Inglaterra vitoriana (BARTON, 1990; HEYCK, 1982). Ela serviu a propósitos políticos desta facção para colocar uma retórica de conflito entre Teologia e ciência, um conflito que supostamente não teria sido só do século XIX, mas haveria caracterizado a relação contínua destas duas entidades hipostasiadas. Em grande parte como conseqüência dos esforços daqueles que buscaram promover o destino político da “ciência”, ali emergiu a tese histórica de um conflito contínuo entre ciência-religião – um ponto de vista epitomizado nas histórias agora fora de moda de Andrew Dickson White (1896) e John Draper (1875). Uma boa percepção da direção geral desses trabalhos pode ser colhida de seus títulos, respectivamente, “Uma História do Conflito da Ciência com a Teologia na Cristandade” (WHITE, 1896) e “História do Conflito entre Religião e Ciência” (DRAPER, 1875). O legado duradouro deste grupo, no entanto, tem sido a perpetuação do mito de uma batalha perene entre ciência e religião.
Isso não equivale a afirmar que a nova disciplina do século XIX tinha limites incontestáveis. Alguns naturalistas vitorianos estavam inicialmente relutantes em identificar suas atividades como algo distinto da filosofia, ética e Teologia. Herbert Spencer, o evolucionista que cunhou a frase “a sobrevivência do mais apto” considerou artificial a classificação vitoriana das ciências, especialmente a separação de ciência e arte e de ciência e senso comum (SPENCER, 1854: 152-59; YEO, 1993: 49 e ss). Mas tais dúvidas não subsistiram. Antes do fim do século, havia um entendimento quase universal, talvez tácito, de que o termo “ciência” excluía a estética, a ética e a Teologia. Antes de 1922, Max Weber (1989) foi, assim, capaz de falar da vocação científica como aquela que era estreitamente especialista e na qual nenhum lugar podia ser encontrado para questões mais amplas de valor e significado[11]. Deste modo, enquanto persistem os desacordos no século XXI sobre que atividades precisamente poderiam ser incluídas sob a rubrica de “ciência,” há um consenso geral de que certas coisas devem ser excluídas.
Com o benefício do retrospecto, nós podemos agora ver que sobre o curso do passado de 150 anos, uma reversão notável teve lugar. Ao passo que outrora a investigação da natureza obteve status a partir de suas íntimas conexões com as mais elevadas disciplinas de ética e Teologia, de modo crescente durante o século XX estas últimas têm humildemente procurado associações com a ciência, a fim de compartilhar algo de sua reputação – por isso bioética e ciência-e-religião. O século XIX viu o bastão de autoridade passar daqueles que possuíam vocação religiosa para a nova geração de cientistas. Como o historiador A. W. Benn (1906: 198) observou em primeira-mão, “uma grande parte da reverência uma vez dada aos padres e às suas histórias de um universo não visível, foi transferida ao astrônomo, ao geólogo, ao físico, ao engenheiro”. Ao mesmo tempo, as “maravilhas da natureza” de modo crescente passaram a ser consideradas como “maravilhas da ciência”. A junção da nova aliança de disciplinas sob a chancela “ciência” tornou possível pela primeira vez uma relação entre “ciência“ e “religião”.
Foi quase inevitável que em um cômputo histórico das atividades humanas relevantes, vários aspectos da nova relação do século XIX terminariam por ser projetados sobre o passado. Como já temos indicado, esta abordagem é resumida nos escritos de Draper e White. Outro desenvolvimento histórico foi também alimentar o mito de um conflito perene entre ciência e religião. A emergência da profissão científica combina de modo ordenado com as concepções progressistas de história como aquelas do positivista Augusto Comte, que acreditava que seu próprio período era testemunho da transição humana do “estágio metafísico” para o mais alto nível de desenvolvimento científico ou “positivo”. A. D. White forneceu um exemplo clássico desta visão de história, fazendo referência a “um conflito entre duas épocas na evolução do pensamento humano – o teológico e o científico” (WHITE, 1896: 1: ix). De mais a mais, com o crescimento em popularidade da teoria “dos grandes homens” da história, apareceu uma tendência a identificar figuras heróicas no passado, creditar a elas grandes realizações e contrapô-las a instituições inflexíveis e a tradições dogmáticas. O legado da filosofia natural e a emergência da ciência, escreve Simon Schaffer (1986: 413), “foi marcado pela reificação de descobertas heróicas e técnicas valorizadas”. “Galileo contra a Inquisição” é o exemplo mais comum aqui. Tal modo de apresentar a história da ciência é ainda hoje um dos que mais trazem à tona o imaginário popular e, de fato, nem todos os historiadores acadêmicos são imunes a estas atrações (BROOKE, 1999).
A partir dessa história podemos chegar a algumas conclusões provisórias sobre a relação “ciência-religião”. Talvez a lição mais óbvia a ser aprendida desta análise é que a noção de que poderia haver uma relação entre ciência e religião antes do século XIX conduz ao risco de anacronismo. Até certo ponto, há o reconhecimento desse fato entre os historiadores mais perspicazes. John Brooke (1996: 23) alertou que “a tentativa de compreensão da ciência e da Teologia de gerações passadas, sob o ponto de vista de como se relacionavam, pode levar a resultados artificiais”[12]. Claude Welch também menciona que os trabalhos de Draper e White representam uma “hipostatização de ciência e religião” (WELCH, 1996: 29). Entretanto, algumas vezes as críticas ao trabalho de Draper e White parecem sugerir que seu único erro reside em caracterizar a relação passada entre ciência e religião como negativa, quando na verdade essa relação era positiva ou “complexa”. Na verdade, o erro fundamental reside na suposição de que ciência e religião são categorias que podem ser aplicadas de forma significativa em todos os períodos da história ocidental e até mesmo para o desenvolvimento histórico de culturas não-ocidentais.
Não são apenas historiadores que devem se acautelar com as lições de suas próprias disciplinas. De certa forma, o risco de “resultados artificiais”, contra os quais Brooke adverte, é muito grande para aqueles engajados em relacionar ciência e religião, pois falar de “ciência” como uma entidade genérica implica em demasiado reducionismo. A história do termo mostra que “ciência” é uma construção ou reificação humana. Isso não implica necessariamente em dizer que o conhecimento cientifico é socialmente construído: mais propriamente é a categoria “ciência” (uma maneira de identificar certas formas de conhecimento e excluir outros) que é construída. Essas alegações históricas acerca da origem da disciplina são, assim, bastante independentes de quaisquer alegações que possam ser feitas em favor das atividades que ela descreve. Entretanto, uma conseqüência inevitável da construção da categoria é que a ciência terá um conteúdo disputado e fronteiras contestadas (GALISON, STUMP,1996; DOLBY, 1996: pt. 2; MARGOLIS, 1987; JASONOFF, 1987; TAYLOR, 1996).[13] A persistência de questões sobre a unidade da ciência, as quais surgem ou de uma consciência das histórias das ciências, ou de análises recentes dos objetivos e métodos de várias ciências, sugere que não pode haver uma relação normativa ciência-religião, pois as ciências são plurais e distintas. Fraser Watts (1997: 125-39) apontou que “existem diferentes ciências e cada qual possui sua própria história, métodos e hipóteses. Cada uma tem também um diferente relacionamento com a religião”.
Um curso de ação preferível parece ser a discussão de distintas ciências em relação à religião, mas isso também apresenta dificuldades. Aparentes afinidades entre ciência e religião ocorrem até certo ponto em função de onde as fronteiras relevantes são traçadas. Ao falar dos tipos de disciplinas que foram incluídas nas ciências, o filósofo de ciência David Hull (1988: 512) utiliza uma metáfora biológica familiar na qual ressalta que “geralmente, existem mais variações dentro de uma mesma espécie do que entre as espécies intimamente relacionadas”. Em outras palavras, pode haver maiores diferenças entre as próprias ciências do que entre uma determinada ciência e alguma outra disciplina não científica (por exemplo, a Teologia). Atualmente, o fato de que teólogos podem tirar vantagem da cosmologia e da Física quântica diz menos sobre alguma relação geral entre ciência e religião e mais sobre a proximidade dessas ciências da fronteira com a Teologia. De fato, em nenhum outro momento a afirmação de Paul Feyerabend (1975: 295) de que “a ciência está muito mais próxima do mito do que uma filosofia científica está preparada para admitir” pareceria ser mais verdadeira do que no caso da cosmologia quântica. Desta forma, chamar a atenção para essas afinidades é apresentar um ponto de vista sobre as fronteiras das respectivas disciplinas, ao invés de declarar algo sobre uma genuína e significativa relação entre entidades independentes. Há ainda um ponto importante aqui; precisamos, porém, estar bem cientes sobre a que se refere.
Recapitulando a discussão até esse momento, enquanto o estudo da natureza no Ocidente tem uma longa descendência, a “ciência” como nós recentemente a compreendemos é uma categoria que assumiu sua forma característica durante o século XIX. Falar de um relacionamento entre ciência e religião antes dessa data requer uma série de cuidadosas considerações. Adicionalmente, o que “ciência” inclui ou exclui é atribuível até certo ponto aos acidentes da história. Dessa forma, qualquer relação que “ciência” tenha com outras instituições humanas está condicionada pelas circunstâncias de sua origem. Como nós brevemente veremos, este é particularmente o caso quando a outra parte da relação, neste exemplo a “religião”, pode ser também considerada como uma construção intelectual.
Enquanto alguns historiadores da ciência estão conscientes das condições que geraram a noção moderna de “ciência”, poucos notaram de que alguns historiadores da religião afirmaram que a idéia moderna de “religião” surgiu apenas há 150 anos. Se “ciência” foi inventada no século XIX, pode-se dizer que “religião” foi inventada durante o curso do Iluminismo europeu, no despertar da fragmentação pós-Reforma. Wilfred Cantwell Smith (1978: 51), o primeiro a chamar a atenção para a natureza artificial da categoria “religião”, escreveu que foi então que
o conceito “religião” se desenvolveu no Ocidente. Sua evolução incluiu um vasto desenvolvimento que pode ser denominado processo de reificação: transformar mentalmente a religião em um objeto e gradualmente concebê-la como uma entidade sistemática objetiva.
O trabalho pioneiro de Smith demonstrou que a ênfase religiosa do Ocidente medieval era a fé ou a piedade (uma dinâmica interna do coração). Nas controvérsias modernas sobre a religião, entretanto, a atenção era focada sobre os aspectos externos e objetivos da vida dos fiéis, pois se tornou um assunto urgente identificar aquelas diferenças cruciais sobre as quais a salvação eterna dependeria. Como conseqüência, crenças e práticas rituais específicas tornaram-se a essência da nova “religião” idealizada. A verdadeira religião, agora, tinha menos a ver com a sinceridade de compromisso do que com a validade das proposições para as quais era dada aquiescência. Alinhado com o desenvolvimento do espírito iluminista, a razão passou sou a ser o árbitro fundamental da verdadeira religião, assim confirmando a orientação racionalista e objetiva da nova entidade. Desde o surgimento de tal tese, alguns historiadores desenvolveram mais suas implicações mais importantes (DESPLAND, 1979; FEIL, 1986; FEIL, 1992; HARRISON, 1990; BOSSY, 1982; McCUTCHEON, 1995; LASH, 1996).
Se a invenção da ciência no século XIX tornou possível pela primeira vez um relacionamento entre ciência e religião, o nascimento da “religião” e “das religiões” durante o Iluminismo tornou possível um exercício comparativo de natureza diferente – a comparação de uma “religião” com outra. Uma vez mais, a razão seria utilizada na comparação “imparcial” das religiões e teoricamente permitiria a adjudicação dos méritos relativos dos credos e cultos sob comparação. A ciência comparativa das religiões, portanto, emergiu da objetivação das crenças religiosas do início da modernidade e o processo foi, em seu devido tempo, estendido do Cristianismo para as outras três “religiões” – “Maometanismo”, “Religião Judaica” e “Paganismo” (as demais manifestações) – cada uma das quais elaborada, em diversos graus, como uma versão inferior do paradigma original cristão. Em cada caso, as crenças e formas de vida de todos os povos tendiam a se reduzir ao conjunto de dogmas, e a característica principal de uma religião tornava-se aquilo em que seus seguidores acreditavam. Assim sendo, a “religião” tornou-se a grade conceitual através da qual o conhecimento de povos exóticos era filtrado na imaginação ocidental.
Na era da colonização que se seguiu às viagens de descobrimento, mais dados empíricos foram reunidos das terras distantes, os quais conduziram ao surgimento de tipos particulares de “paganismo”. Com o decorrer do tempo, “as religiões orientais” foram classificadas como inferiores e incompletas versões do Cristianismo, com suas divindades imperfeitas, escrituras errôneas, milagres fraudulentos e cultos supersticiosos. Essas entidades tiveram seu nascimento na imaginação dos pensadores ocidentais, para os quais as localidades longínquas e exóticas vieram a constituir o cenário no qual os interesses confessionais paroquianos da Europa poderiam ser projetados.[14]
Crucialmente, assim como se presumia que as múltiplas formas do Cristianismo eram mutuamente exclusivas, também o eram aquelas outras “religiões”. As religiões mundiais, em resumo, foram criadas através da projeção da desunião cristã no mundo. Sua criação na imaginação ocidental é registrada na data que indica seu nascimento: o “Budismo” faz sua primeira aparição em 1821, o “Hinduismo” e o “Taoísmo” em 1829 e, o “Confucionismo” em 1862 (SMITH, 1978: 61).[15]
Finalmente, o século XIX não apenas presenciou a criação das religiões orientais como entidades reificadas, como também representa um novo estágio no desenvolvimento de “religião”. Pois se esse é o período durante o qual a “ciência” finalmente emergiu como uma disciplina livre dos interesses religiosos e teológicos, logicamente a “religião” era também compreendida como um empreendimento que excluía o científico. O nascimento da “ciência” é parte do progresso de concepção da “religião”.
As conseqüências desses processos históricos pouco felizes são as seguintes. Primeiro, existem alguns pontos de ruptura que ressaltam a fragilidade das duas categorias “religião” e “as religiões”. Notoriamente, a maioria dos estudiosos apresenta uma dificuldade considerável em prover uma definição exata de religião (LAWSON, MCCAULEY, 1990; PREUSS, 1987; GUTHRIE, 1993; GUTHRIE, 1996; SMITH, 1987). A falha para se chegar a um consenso do que “religião” realmente é ou o que conta como “uma religião” pode ser assumida como evidência de uma natureza problemática da categoria. Além disso, podemos recorrer a categorias que perpassam as várias tradições e, ainda assim, mantêm alguma integridade. O “misticismo”, por exemplo, descreve adeptos de uma variedade de crenças e pode-se afirmar que alguns místicos cristãos, judeus, islâmicos e budistas têm mais aspectos em comum entre si do que com outros adeptos da mesma “religião”.[16] A categoria “fundamentalista”, do mesmo modo, aparenta identificar algumas atitudes mais relevantes que, porém, não respeita as esmeradas fronteiras “das religiões”. De fato, o termo “fundamentalista” pode ser aplicado com alguma justiça para os mais extremados proponentes do naturalismo científico.
Segundo, o problema filosófico do pluralismo religioso – as religiões mundiais fazem asserções de verdade que competem entre si e, desta maneira, não podem ser todas verdadeiras – é em parte uma criatura da categoria “religião”. As asserções de verdade conflitantes das religiões mundiais não surgem da maneira como indivíduos religiosos praticam sua fé, mas sim da classificação que os mesmos fazem como prática de uma “religião”. Os conflitos são gerados ao classificar crenças como doutrinas e impor-lhes o tipo de status que elas poderiam ter dentro do Cristianismo pós-iluminista. As conseqüências desse processo são mais visíveis nas assim chamadas “religiões orientais”. A suposição ocidental comum de que há três religiões na China – Confucionismo, Taoísmo e Budismo – impõe às categorias chinesas o que eles mesmos não reconheceriam. Muitos chineses combinam aspectos dessas três tradições sem nenhuma confusão da consciência. Isso faz com que a noção de que Confucionismo, Taoísmo e Budismo são “religiões” distintas e mutuamente exclusivas seja absurda. Essa confusão se deve à categoria “religião”. Como Smith (1978: 69) aponta com respeito a uma dessas tradições: a dúvida sobre se o Confucionismo é uma religião é uma questão que o Ocidente não foi capaz de responder e os chineses nunca foram capazes de perguntar.
Terceiro, e partindo do ponto anterior, as categorias são freqüentemente rejeitadas por aqueles a quem elas pretendem caracterizar. O Cristianismo não é uma religião, insistiu o teólogo neo-protestante Karl Barth (BARTH,1936: 69, I/2, 288). Dietrich Bonhoeffer (1962) defendia um “Cristianismo menos religioso” (BONHOEFFER, 1962: 161-69; 194-200; 226). Reduzir o Judaísmo a uma religião “é uma traição à sua verdadeira natureza”, declara Milton Steinberg. Adeptos de outras assim chamadas religiões são igualmente inflexíveis: “O Budismo não é uma religião”; “O Islã não é uma mera religião”; “É difícil afirmar se o Hinduismo é uma religião ou não”[17]. Embora se deva admitir que os conceitos “religião” e “as religiões” possuem considerável aceitação nos seus locais de origem, o Ocidente, pode-se afirmar que esta aceitação, em particular por aqueles que se identificam como religiosos, tem conduzido a um empobrecimento da vida religiosa.
Se tomarmos a história do Cristianismo como exemplo, podemos ter uma idéia do que a tradição perdeu na recente transformação moderna da “fé cristã” para “religião cristã”. A primeira expressão se referia à fé que era semelhante à de Cristo; a segunda denota a religião – um conjunto de crenças – supostamente pregada por Cristo. A vida cristã, nessa nova concepção, trata menos de um sentimento de imitar Cristo e mais de dar aprovação intelectual para as doutrinas que ele tinha pregado. O conceito da revelação passou por uma transformação paralela. Enquanto no início se pensou que Deus revelou a si próprio em Cristo, agora ele revelava doutrinas (HARRISON, 1990: 19-23). Sintetizando essas mudanças, Nathaniel Crouch (1683: 27 e ss), um religioso do século XVII, declara que “o Cristianismo é a Doutrina da Salvação, a qual fora entregue ao homem por Jesus Cristo”. Desta forma, as controvérsias confessionais proto-modernas, no calor das quais a religião cristã foi forjada, não focavam o melhor caminho para uma vida como a de Cristo, mas o identificar aquelas doutrinas específicas que Cristo e seus herdeiros legítimos supostamente haviam promulgado. Este é o ponto de vista no qual o Cristianismo é uma religião e, de fato, a religião paradigmática que proveu os moldes para a construção das “outras religiões”.
Embora muitos cristãos contemporâneos tenham em mente que são adeptos de uma “religião” no sentido moderno, e certamente é desta forma que os cristãos são vistos por pessoas de fora, protestos têm ocorrido contra a categorização. As reservas de Barth e Bonhoeffer quanto à “religião” já foram indicadas. Raimondo Panikkar (1973: 2-3) fez comentários semelhantes, evidenciando uma nostalgia pela piedade pré-moderna: “A fé cristã deve se separar da religião cristã”. Panikkar aponta as principais diferenças entre a Cristandade (uma civilização), o Cristianismo (uma religião) e a “Cristianeidade”[18] (uma religiosidade pessoal). Para ser um cristão, argumenta, não é necessário vincular-se à “religião cristã”. Por esta razão:
Ser um cristão pode ser também compreendido como manifestar uma fé pessoal, adotando uma postura como a de Cristo, visto que Cristo representa o símbolo central da vida de alguém. Chamo isso “Cristianeidade”. Esta diferencia-se do Cristianismo assim como o Cristianismo se liberta da Cristandade. (Panikkar, 1988: 104-5).
Embora tenhamos nos concentrado principalmente nas súbitas transformações da auto-compreensão cristã ocorrida pela emergência do conceito “religião”, há evidências suficientes para suspeitar de distorções similares nas outras tradições. A “religião”, assim como a “ciência”, tem uma história, e essa história sofre influência decisiva das alegações feitas sobre o relacionamento da “religião” com outras atividades humanas e outras formas de conhecimento. Não é sugerido nessa análise histórica que o comprometimento doutrinário não desempenhe um papel legítimo na vida religiosa, ou que as crenças religiosas devam ser consideradas como não-cognitivas. Ao contrário, o conceito de “religião” conduz a uma elevação da importância de declarações proposicionais, e a subseqüente comparação das “religiões” ou da “religião” e da “ciência” promove de modo similar a idéia de que essas iniciativas possuem essência que deva ser identificada unicamente por seu conteúdo cognitivo.
Uma análise compreensiva do que ocorreu nas outras tradições deve necessariamente ser objeto de outros estudos, mas um breve comentário pode ser feito sobre alguns trabalhos recentes sobre Budismo e ciência. O caso do Budismo é particularmente pertinente à discussão apresentada neste artigo porque a interpretação ocidental de um Budismo de texto ideal no período vitoriano coincide com a invenção da ciência moderna[19]. Talvez não seja surpreendente que um determinado número de influentes apologistas ocidentais do Budismo tenha apresentado esta “recém-descoberta” religião como compatível com a ciência ocidental. Em face das polêmicas geradas pela teoria evolucionária, foi afirmado que o Budismo estava em maior consonância com os recentes desenvolvimentos científicos do que o Cristianismo. Helena Blavatsky, líder do Movimento Teosófico, declarou de forma decidida que o Budismo era científica e filosoficamente muito mais puro do que qualquer outra alternativa religiosa. Paul Carus (1897: 114), o advogado americano do “Budismo científico”, também salientou as credenciais científicas do Budismo, afirmando que o Budismo é “a religião que não reconhece outra revelação a não ser a verdade que pode ser provada pela ciência”. Essas declarações combinavam com as declarações de alguns budistas asiáticos, principalmente de Anagarika Dharmapala, o qual alinhou as noções de evolução, leis da natureza e o princípio de causa e efeito com os ensinamentos básicos do Budismo. Em certo sentido, Dharmapala estava evocando um tipo de orientalismo inverso ou, para usar as palavras de James Ketelaar, um “ocidentalismo estratégico”. Como David McMahan (2004: 908, 924 e ss.) sugeriu, cada lado – tanto apropriadores ocidentais quanto apologistas nativos – “traçou o Budismo em termos científico-racionalistas em resposta a crises isoladas em seus vários contextos culturais”. De um lado, essa era uma crise de fé Vitoriana e, de outro, uma crise produzida pelo Colonialismo (KETELAAR, 1991). Todavia, mesmo essas tentativas de promover um Budismo que fosse particularmente condizente com a ciência moderna (e, por conta disso, fruidor de vantagens sobre o Cristianismo), acabaram impondo ao Budismo as mais profundas estruturas da religião protestante, que tiveram papel significativo na criação do conceito “religião” (PROTHERO, 1996: 7-9).[20] O que é interessante no caso do Budismo é que sua reconstrução de uma maneira científica não era meramente uma imposição exterior, pois a idéia fora apropriada como uma estratégia apologética por alguns de seus adeptos. Sobre essa última referência, há uma curiosa similaridade entre “Budismo científico” e “Cristianismo científico”, pois ambos tornaram-se categorias auto-infligidas.
A história da construção cultural de cada categoria na união “ciência e religião” é de profunda importância para qualquer tentativa presente de discernir relações entre elas. Enquanto, como vimos, alguns comentaristas foram direcionados para a natureza reificada de um dos termos na relação – “ciência” – mais freqüentemente se assumiu que o outro termo na relação é relativamente não-problemático. Estamos agora em posição de perceber que este não é o caso. Uma resposta possível para a história da “religião” seria concentrar a atenção na relação das tradições religiosas individuais com a ciência (ou, mais apropriadamente, com as ciências individuais). Isto daria conta, em certa medida, da visão enganadora de que haja algo genérico – “religião” – compartilhado por todas aquelas tradições que rotulamos como “religiões”. Até certo ponto essa opção já está em jogo, já que a vasta maioria dos trabalhos que tem como objetivo se dirigir à relação entre ciência e religião realmente lida com ciência e Teologia cristã. Dada a natureza da categoria “religião”, isso pode parecer um desenvolvimento promissor. No entanto, pode servir apenas para perpetuar as distorções da categoria mais geral, pois é freqüentemente assumido tanto que a “religião cristã” consegue ser identificada de modo não problemático com a Teologia cristã, quanto que uma apreciação de Teologia cristã e da ciência lançará luz na questão mais ampla de ciência e religião.
Por exemplo, em uma descrição influente da relação entre ciência e Teologia, Arthur Peacocke (1993: 3) afirmou que a relação do Cristianismo com a ciência “tem um significado especial para todas as formas de experiência religiosa e culturas”. Em sua justificativa desta afirmação, Peacocke alude à história única do Cristianismo:
A segunda razão pela qual a religião cristã merece atenção especial enquanto um caso paradigma de uma religião operando num novo clima cultural, associado com o crescimento da ciência, é que a religião cristã teve que recolher a luva jogada pelo que é frouxamente chamado de “Iluminismo”. Ela, quase sozinha entre todas as maiores religiões mundiais, tem estado sujeita dentro de sua própria cultura a análises crítica, histórica, lingüística e literária de sua literatura sagrada e suas origens; teve suas crenças expostas para a crítica filosófica cética; suas atitudes ao exame psicológico e suas estruturas à investigação sociológica (PEACOCKE, 1993: 4 e ss).
Pode ser afirmado que “a religião cristã” é realmente um “caso paradigma”, de modo tal que uma explicação de sua relação com a ciência valha uma “atenção especial”. Ainda assim, estamos agora em posição de ver porque e em que sentido isto é verdade. O Cristianismo é a religião paradigmática porque as “outras religiões” foram construídas à sua imagem. Além do mais, a sujeição da fé cristã às várias formas de investigação racional descritas por Peacocke não representa a história da religião cristã na sua relação com uma cultura crítica. Mais propriamente este processo é, na verdade, o nascimento da “religião cristã” concebida como um conjunto de verdades proposicionais que podem ser submetidas aos princípios da investigação racional. “A religião cristã” é assim constituída por essas interações, mais do que ser uma das correspondentes em uma relação. Foi precisamente o desenvolvimento iluminista da supremacia da autoridade racional que produziu a idéia de religião e seu arquétipo, “a religião cristã”[21].
O problema da relação do Cristianismo com a ciência é, assim, gerado em grande medida pelas categorias em questão. Quase da mesma maneira que as tendências objetivadoras e logocêntricas do Iluminismo produziram as “outras religiões”, criando ao mesmo tempo a questão embaraçosa da relação delas entre si, também a “ciência e religião” é uma relação que surgiu somente por causa de uma fragmentação que distorce os conjuntos de atividades humanas. Com a produção de cada categoria, veio uma inútil abstração da realidade. O historiador Andrew Cunningham argumentou em torno disso com respeito à ciência: “O foco costumeiro de nossa atenção enquanto historiadores da ciência não tem sido primariamente nas pessoas que praticam esta atividade humana, ‘ciência’, mas em uma ou outra abstração de um tipo diferente – abstraída, isto é, da atividade humana que a constitui” (CUNNINGHAM, 1988: 372). Não só esta observação é verdadeira para a categoria “religião”, bem como suas conseqüências para as atividades que supostamente representa são ainda mais danosas do que no caso de “ciência”. O uso não refletido de “religião”, assim, serve para perpetuar um ideal iluminista da “religião cristã” como uma operação primariamente intelectual e (enquanto esta conseqüência é menos óbvia) serve também para preservar uma posição privilegiada para o Cristianismo entre as religiões mundiais. Ambas as tendências são numa larga medida inconscientes e talvez ainda conseqüências indesejadas do uso não-crítico das categorias.
Consideremos novamente “Theology for a Scientific Age”, de Arthur Peacocke[22]. Aqui encontramos a antiga negação de que suas conclusões de modo algum “pretendem implicar que outras religiões não-cristãs não possam ser um caminho para aquela realidade que é, como devo argumentar, Deus” (PEACOCKE, 1993: 3). Todavia, esta afirmação não se encaixa com um número de tópicos discutidos no livro: “Interação de Deus com o mundo”; “Comunicação de Deus com a humanidade”; “A longa procura e Jesus de Nazaré”; “Ser divino e tornar-se humano.” Se a ciência contemporânea mostra-se compatível com a existência de uma divindade pessoal que interage com o mundo, comunica-se com a humanidade e encarnou na pessoa de Cristo, quais as implicações para as verdades do Budismo ateísta, o Hinduísmo politeísta e o austero monoteísmo do Judaísmo e do Islã? Malgrado o que diz Peacocke, quanto mais próximas as afinidades estabelecidas entre ciência e crenças cristãs, mais alguém se sente engajado ao exclusivismo cristão – a posição segundo a qual as asserções de verdade do Cristianismo são verdadeiras, enquanto aquelas de outras religiões são falsas. Assim, uma das implicações imprevistas desta abordagem comum é que, se a ciência pode validar certas convicções religiosas, necessariamente descartará outras.
Não estou assumindo aqui que o exclusivismo cristão esteja necessariamente errado. Não está claro que haja qualquer impropriedade moral ou filosófica no exclusivismo religioso, apesar de alguns terem estabelecido casos neste sentido. No entanto, pode ser que o desejo de procurar uma aproximação entre Cristianismo e ciência venha a reduzir as esperanças de um diálogo significativo entre Cristianismo e outras crenças. O argumento de uma combinação justa entre ciência moderna e a religião cristã perpetua o ideal iluminista de um Cristianismo racional como a religião mais apta a resistir aos ataques da razão e da filosofia natural. O apelo à razão, deve-se recordar, não foi primariamente para defender as crenças cristãs contra os ataques do ateísmo ou da filosofia natural, mas para estabelecer a verdade do Cristianismo, ou uma de suas formas confessionais, contra formas de religiosidade rivais. Possivelmente, estas vitórias passadas para o Cristianismo foram alcançadas apenas com o custo de distorcer tanto a fé cristã quanto as vidas religiosas daqueles que estavam arrolados, sem assim o querer, nas outras “religiões”.
O dilema enfrentado por aqueles que forneceriam uma consideração racional e imparcial de ciência e crença cristã equivale quase exatamente àquele enfrentado por aqueles que, durante o Iluminismo, buscaram comparar “as religiões” objetivamente, apenas para concluir, quase invariavelmente, que o Cristianismo era superior. Como sugeri, as categorias em questão são largamente responsáveis por esta situação, mas elas, por sua vez, representam lealdades conflitantes – por um lado, com a verdade de uma única tradição; por outro, com um conjunto de procedimentos críticos, racionais, que permitirão uma comparação desinteressada das alternativas. Sem o elemento da neutralidade, a comparação é sem sentido. Mas tal objetividade neutra é compatível com convicção religiosa? O Iluminismo argumentou que sim, uma posição que, como vimos, resultou na transformação da fé cristã em “religião cristã” – um conjunto de doutrinas que podia sustentar a crítica racional – e, na sua trilha, a construção de “outras religiões”, similarmente concebidas, apesar de menos aptas do que a original para resistir aos ataques da razão.
A dificuldade com tal visão de religião é que efetivamente fica à margem dos compromissos pessoais e afetivos que podem de modo razoável ser debatidos como importantes para comunidades de fé. Reduz-se fé à Teologia: transforma piedade/devoção em “uma religião”. Mesmo enquanto essas transformações se efetivavam, tal marginalização de fé e piedade não ocorreu sem protestos. Testemunhe-se o crescimento do evangelismo no início do século XVIII e mesmo antes da famosa distinção de Blaise Pascal entre o Deus “de Abraão, Isaac e Jacó” e “o Deus dos Filósofos” – um habitando o reino da fé, o outro o da razão e “religião.” (PASCAL, 1976: 309)[23]. Desconfio que seja o Deus dos filósofos que figura em muitas discussões da relação ciência-religião – o Deus que é causa necessária para a existência do universo, que sustenta a ordem criada e suas leis matemáticas, que trabalha, se necessário, entre incertezas quânticas. Resumindo, o Deus em quem a razão induz à crença. Esse Deus é também o Deus da “religião” e, portanto, da “ciência e religião”: se ele é compatível com o Deus da, isso fé permanece uma questão em aberto.
Em última instância, o historiador não pode fornecer respostas normativas para questões desse tipo. É razoável conceber-se que os tipos de transformações conceituais esboçadas neste artigo possam ser bem-vindos por alguns dos fiéis. Um Cristianismo orientado cientificamente pode também ser visto como um desenvolvimento positivo por aqueles cujos engajamentos não estejam em dúvida. Também não pode ser ignorado que alguns defensores de um “Budismo científico”, por exemplo, têm credenciais budistas impecáveis – afinal, o Dalai Lama abraçou entusiasticamente a justificativa científica dos aspectos da prática budista. O que os historiadores podem fazer, no entanto, é fornecer dados que aqueles com engajamentos religiosos possam achar úteis para avaliar certas transições históricas e seu impacto. É importante, pelo menos, estar consciente de que tais transições ocorreram. A questão subseqüente de quão bem esses desenvolvimentos - especificamente a emergência das idéias modernas de “ciência” e “religião” – é coerente com a longa história das tradições, deveria ser uma questão de importância considerável para aqueles que se identificam com elas.
À luz de todas estas considerações, o que pode ser dito sobre as perspectivas futuras das discussões ciência-religião? Em conclusão, deixe-me arriscar algumas propostas breves. Primeiro, deve ser reconhecido que abstrações de vários tipos são uma condição necessária para o conhecimento. Assim, também, para “ciência” e “religião”. Estas categorias, como muitas outras, têm a tendência de assumir vida própria e obscurecer as realidades que pretendem representar; contudo, ocupam uma posição tão segura no léxico da atualidade que seria fútil tentar dispensá-las completamente. O que deveria estar evidente agora, no entanto, é que aqueles que confiam nesses termos precisam dispô-los com uma sensibilidade renovada às limitações e distorções inerentes que eles inevitavelmente levantam. Dogmas religiosos não constituem a totalidade da vida religiosa; nem as teorias científicas incorporam tudo o que existe para o empreendimento científico. Também deveria estar claro que uma vez que a natureza construída das categorias seja levada em consideração, as supostas relações entre ciência e religião podem vir a se tornar artefatos das próprias categorias. Se ciência e a religião estão em conflito, se são entidades independentes, se estão em diálogo ou se são empreendimentos essencialmente integrados, isto será determinado da mesma forma que a adotada por alguém que define as fronteiras dentro dos largos limites dados pelos construtos[24]. Aliás, o fato de que, a esta altura da história, cada uma dessas instâncias possa atrair partidários, é sugestivo da natureza artificial dos termos na relação.
Segundo, e decorrente diretamente do primeiro ponto: é importante prestar atenção às dimensões políticas das categorias e suas relações. Como John Bowker colocou sucintamente, a questão entre ciência e religião tem menos a ver com proposições do que com poder (BOWKER, 1998). Visto por este prisma, algumas tentativas bem intencionadas de promover o diálogo entre ciência e religião, ou a integração de Teologia e ciência, podem tacitamente reforçar a autoridade cultural das ciências, distorcer tradições cristãs e de outras fés e perpetuar as características problemáticas da categoria “religião”. Algumas vezes o que passa por interação entre religião e ciência vem a ser, na realidade, um apelo disfarçado ao prestígio das ciências, com o perigo concomitante de uma perda do que distingue as tradições religiosas. É sintomática desta tendência uma torrente recente de estudos sobre crenças e práticas cristãs que dão a entender que o perdão é bom para a saúde, que freqüentar a igreja aumenta a longevidade ou que a prece petitória demonstrou ser eficaz em termos médicos. Tais estudos não são nocivos em certo nível, mas a simples assunção, embora não mencionada, de que esta pesquisa empírica tenha implicações religiosas significativas vem de uma confusão profunda. A promoção de tais programas por motivos religiosos é indicativa da extensão com que as prioridades atuais ao progresso material e à saúde física vieram a substituir valores religiosos tradicionais. O Budismo também sofreu tendências ocasionais de render sua autonomia epistêmica para cientistas. Uma das áreas de crescimento de estudos empíricos no Budismo tem sido a de estudos de estados meditativos usando aparelhos de ressonância magnética. Os resultados de tais estudos – que reportam, por exemplo, a ativação dos “centros de prazer” dos cérebros dos monges em meditação – são freqüentemente apresentados como justificativas dos ensinamentos budistas, como se as práticas e crenças religiosas permanecessem condicionais até receberem o selo da verificação empírica[25].
Um exemplo relacionado a um conluio indevido entre ciência e religião diz respeito à sanção moral e religiosa dos “avanços” biotecnológicos. A bioética, em sua versão teológica ou secular tem sido, assim, freqüentemente (apesar de não invariavelmente) uma fonte de legitimação para a medicina contemporânea, contribuindo para a perpetuação de modelos questionáveis de medicina científica e para a medicalização da sociedade ocidental em nome do progresso científico (HAUERWAS, 1996). A lição disso é a necessidade de uma distância crítica a ser mantida entre Teologia e ciência. Isto não é uma defesa do tipo de modelo de independência, que coloca esferas discretas nas quais Teologia e ciência conseguem operar sem medo de interferência mútua. Menos ainda é uma crítica àqueles muitos indivíduos que buscam fornecer indicadores morais e religiosos num terreno no qual tais conselhos são possivelmente mais necessários do que jamais foram. A sugestão é mais de que será impossível para a Teologia exercer uma crítica ou, em termos religiosos, papel “profético” numa sociedade, a não ser que mantenha uma distância apropriada das forças culturais dominantes. Essa é uma independência da Teologia em relação à ciência que deixa espaço para um conflito legítimo.
Terceiro, deveria estar claro que as discussões sobre a relação de ciência e religião não podem ser consideradas isoladas da questão do pluralismo religioso. A presunção comum do século XIX, de que todas as religiões compartilham alguma essência comum ou representam várias manifestações de algumas verdades centrais, tem se tornado cada vez mais difícil de sustentar em nossos tempos. O diálogo ciência-religião não pode ser conduzido com a presunção de que o pólo “religião” da discussão é um tipo de religião natural genérico, que seja essencialmente neutro com respeito aos conteúdos mais específicos das várias crenças. Asserções feitas sobre a compatibilidade das afirmações científicas com os dogmas religiosos de uma tradição na certa terão implicações para as asserções de verdade em outras tradições. Aqueles engajados nas discussões da relação entre ciência e religião não podem ignorar essa dimensão. É tentador pensar que a solução para o dilema reside na exploração das relações de cada tradição com as ciências. Todavia, as considerações históricas dispostas neste artigo sugerem que “ciência e religião” é primariamente um problema ocidental, pois é aqui que essas categorias emergiram e são mais poderosas. As questões ciência-religião afetam, por exemplo, “as religiões orientais” apenas na medida em que aqueles no Oriente considerarem-se afiliados a “uma religião”. Há algo a ser aprendido da relativa indiferença daqueles em outras tradições de fé com relação à questão ciência e religião – e me refiro aqui àqueles que permaneceram imunes ao conceito ocidental “religião” e à autoridade cultural da ciência. Talvez fosse melhor simplesmente emular esta indiferença do que exportar um conjunto de problemas, que são em larga medida criaturas das categorias do conhecimento ocidental. Quanto ao crescente perfilhar de temas relacionados à ciência em tradições tais como o Islã e o Budismo, estes seriam casos-teste interessantes para a tese delineada neste artigo.
Quarto, as dimensões pessoais tanto das atividades científicas como religiosas deveriam ser levadas mais a sério. Há um sentido no qual precisamos ler discussões abstratas de Teologia e ciência mais como declarações pessoais do que como afirmações sobre a relação entre dois sistemas de pensamento independentes. Considerações teóricas sobre ciência e Teologia são talvez melhor compreendidas como declarações autobiográficas: como indivíduos que levam crenças religiosas a sério aceitam pessoalmente uma visão do mundo natural poderosa e dominadora, que eles próprios se acham incapazes de ignorar. Em certo grau, tal leitura é meramente uma extensão, no debate contemporâneo, da abordagem histórica de “estudo de caso” e, presumindo que este seja um caminho frutífero para se chegar a um entendimento do passado, não há razão pela qual não deva ser assim também para o presente. Esse reenquadramento sugerido não pretende desvalorizar ou denegrir trabalhos que procuram enfocar temas relevantes. Afinal, há no Ocidente uma longa tradição de biografias e autobiografias religiosas, apesar de evidentemente essa prática ter sofrido um prejuízo com a invenção iluminista da “religião” proposicional. Talvez precisemos também pensar na crítica “científica” à religião numa luz similar, autobiográfica. O historiador Owen Chadwick (1970: vol. 2, 3), referindo-se ao suposto conflito entre ciência e religião no período vitoriano, distinguiu “entre a ciência quando era contra a religião e os cientistas quando eram contra a religião”. Tal caracterização continua bastante atual. Ainda há aqueles no início do século XXI que, com um terno arcaísmo, ainda dão suporte ao “modelo beligerante” de relacionamento entre ciência e religião. Em um forte sentido, tais convicções traem mais o que tais indivíduos concebem pessoalmente o significado de “religião” e “ciência”, do que o fazem a respeito das duas visões de mundo supostamente conflitantes. O poder da retórica deles, além do mais, freqüentemente tem menos a ver com a coerência de suas visões do que com sua autoridade cultural enquanto cientistas.
Finalmente, e em certo sentido relacionado a todos os pontos anteriores, a análise histórica tem um papel central nas discussões “ciência-religião” contemporâneas. É a história que oferece a compreensão das dimensões de poder das atividades humanas, digam respeito elas à fé religiosa ou ao estudo do mundo natural, e é por meio dos estudos históricos que o elemento humano que é fundamental tanto para as atividades científicas quanto para as religiosas, pode se tornar mais visível. John Brooke (1996a)[26], entre outros, já propôs mais estudos de caso na história da ciência, para captar melhor as nuances e complexidades da variedade de relações, e isto parece inteiramente apropriado. Ainda que considerações históricas sejam freqüentemente tomadas como marginais aos argumentos sobre o status contemporâneo da relação ciência-religião, os historiadores podem fazer contribuições significativas para a discussão existente ao chamar a atenção para as condições históricas que ocasionaram as categorias presentemente em jogo. Além do mais, é a história que mostra os cenários nos quais os atores humanos atuam e que pode prover perspectivas inéditassobre as maneiras nas quais os vários aspectos de suas vidas – incluindo o “científico” e “religioso” – estão relacionados.
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Recebido: 12/12/2006
Aceite final: 12/03/2007
[*] Traduzido de Peter Harrison, "Science" and "Religion": Constructing the Boundaries. Journal of Religion, 86 (2006), 81-106. Tradução gentilmente autorizada pelo autor e pelos editores.
[**] Universidade de Oxford, Harris Manchester College.
[1] Ver Boécio, “De Trinitate 2”; Tomás de Aquino, “Expositio supra librum Boethii De Trinitate” (trad. para o inglês como “The Division and Methods of the Sciences”, trad. Armand Maurer, 4ª ed.,Toronto, 1986), Q. 5, A. I. Comparar com Aristóteles, “Metafísica” 1025b-1026a; Platão República, 509a-511d. Para o entendimento da “filosofia natural” do medievo e da Renascença, ver Wallace (1988: 201-35).
[2] Ver também Jardine (1991), e Wagner (2002), Intro.
[3] Ver também Cunningham (1991: 381), e Lüthy (2000).
[4] Ver, Francis Bacon (1875, vol. 3: 267, 405), e Sergeant (1696). Ver também McMullin (1990).
[5] Ver também Locke (1959: IV.iii.26; IV.iii.29) e Locke (1989: 244).
[6] Sobre esta metáfora e como os primeiros naturalistas diferem dos cientistas modernos, ver Harrison (2005a: 55-80).
[7] Sobre a natureza essencialmente religiosa da disciplina, ver também Harrison (1998: 169-76), Brooke (1991: 192-225) e Osler (1993).
[8] Ver Boyle (1966), Sprat (1667, pt. 3) e Glanvill (1676). Não há espaço aqui para debater o quanto a história natural e a filosofia natural foram intrinsecamente religiosas. Essas atividades podiam ter sido “sobre Deus”, mas não eram somente sobre Deus. Para discussões recentes da visão de Cunningham, ver Dear (2001), Cunningham (2001) e Harrison (2005b).
[9] Para observações similares sobre outros períodos, ver van den Daele (1977: 39), Young (1985: 167) e Funkenstein (1986: 3).
[10] Compare com Le Robert (1992), Wagner (2002, esp. Introd. e cap. 6), e Holzhey (1998: 13 e ss).
[11] O ponto alto deste trabalho foi o impacto da concepção de Weber do “cientista”. Ver também Durbin (1999).
[12] Cf. Brooke (1991: 6-11). Ver também Wilson (1996).
[13] Para uma vigorosa discussão contra a noção de que há uniformidade metodológica em ciência, ver Feyerabend (1975).
[14] Assim Edward Said escreveu sobre o processo de “Orientalismo”: “O exame imaginativo das coisas orientais era baseado em maior ou menor grau exclusivamente em uma consciência ocidental soberana, de cuja centralidade não desafiada um mundo oriental emergiu. Primeiro de acordo com as idéias gerais sobre quem ou o quê era um oriental, depois de acordo com uma lógica detalhada, governada não simplesmente por uma realidade empírica, mas também por uma série de desejos, repressões, investimentos e projeções” (SAID, 1978: 8). Ver também Asad (1996) e King (1999).
[15] Para maiores detalhes sobre a invenção dessas tradições, ver Almond (1988), Marshall (1970) e Masuzawa (2005).
[16] Sobre a história da categoria “misticismo”, veja Schmidt (2003).
[17] Exemplos citados por Smith (1978: 125 e ss).
[18] Traduzido do inglês “Christianness”; pode também ser traduzido por “senso cristão” ou “maneira cristã de ser e viver” (NT).
[19] Sobre a descoberta, ou elaboração, do Budismo moderno veja Almond (1988, esp. 24-28). Eu estou em dívida, neste parágrafo, tanto com o livro de Almond como a um artigo de David L McMahan (MCMAHAN, 2004).
[20] Ver também: McMahan (2004: 924 e ss), e Lopez Jr. (2002: Intro).
[21] Variações neste movimento não são incomuns na literatura “ciência e religião”. John Polkinghorne (1998) abre a discussão colocando que comunidades religiosas diferentes têm respostas diferentes para a questão do que significa acreditar em Deus. Assim, de início as religiões politeístas e ateístas parecem estar excluídas. O capítulo “Ciência e religião comparadas”, com sua discussão sobre cristologia, inexoravelmente se move para uma discussão sobre “ciência e Teologia (cristã)” (Idem: 45-47). Philip Clayton declara que a relação Deus-mundo “é uma questão compartilhada por numerosas tradições religiosas, cada uma das quais se volta para um diferente conjunto de escrituras para sua resposta,” novamente implicando na natureza paradigmática das monoteístas “religiões do livro” (CLAYTON, 1997). Admitidamente, em outros lugares Clayton parece mais sensível às dificuldades geradas pelo pluralismo religioso (ver, por exemplo, Idem: x, 58, 66 n. 12, 155), mas estas dificuldades são, com efeito, colocadas de lado. Keith Ward também está sintonizado com o problema do pluralismo religioso, mas seu tratamento simpático às “outras religiões” não está realmente integrado na sua consideração da relação do Cristianismo com a ciência. Ver Ward (1997: 10 e ss; 152-171).
[22] Retorno ao trabalho de Peacocke não porque o considere especialmente vulnerável à crítica. Pelo contrário, acredito que seja um dos melhores exemplos do gênero. Apesar de tudo, são as pressuposições deste gênero que desejo investigar.
[23] Soren Kierkegaard aludiu a um dilema similar enfrentado pela defesa de uma religião objetiva e racional: “O sujeito que investiga deve estar em uma ou outra das duas situações. Ou ele está convencido na fé da verdade do Cristianismo, e na fé segura de seu próprio relacionamento com o mesmo; caso no qual não pode estar infinitamente interessado em todo o resto, já que a fé em si é o interesse infinito dentro do Cristianismo, e desde que todos os outros interesses possam prontamente vir a constituir uma tentação. Ou o investigador está, por outro lado, não em uma atitude de fé, mas objetivamente em uma atitude de contemplação, e consequentemente não infinitamente interessado na determinação da questão.” Kierkegaard (1968: 23).
[24] Apoiei-me aqui na tipologia familiar de Ian Barbour para categorização das relações ciência-religião: conflito, independência, diálogo e integração (BARBOUR, 1997), cap. 4.
[25] Ver, por exemplo, Davidson e Harrington (2001), Barbour (2001), Goleman (2003) e McMahan (2004: 927 e ss).
[26] Ver também Durbin (1999), Cantor (1991), Brooke e Cantor (1998: 247-81). Cf. Shortland e Yeo (1996).