Se compararmos a Matemática da Antigüidade com a do séc. XVII, encontraremos diferenças em muitos aspectos. Para os antigos, noções como infinito, acaso, espaço e movimento se realizavam fora da Matemática, enquanto que no séc. XVII apareceram novas teorias sobre esses conceitos. Acreditamos que essa mudança fundamental foi influenciada pela Teologia. Para os antigos, ontologia e epistemologia estavam unidas. Eles consideravam o mundo tal como este se apresenta: fenômenos como infinito ou acaso, que lhes pareciam ambíguos, eram assim considerados realmente. Para o ser humano moderno, ontologia e epistemologia diferem de modo fundamental. A existência do mundo é determinada por um Deus onisciente, por isso perfeito, enquanto que nosso conhecimento sobre o mundo é determinado pelas nossas capacidades finitas, e por isso é ambíguo. É essa distância entre epistemologia e ontologia que torna possível a matematização de conceitos, tais como infinito ou acaso, apesar da ambigüidade aparente.
Palavras-chave: história da matemática, teologia, infinito, acaso, ontologia, epistemologia
If we compare the mathematics of Antiquity with that of the 17-th century, we find differences in a whole range of aspects. For the Ancients notions like infinity, chance, space, or motion fell outside mathematics, while in the 17-th century new mathematical theories about these notions appeared. We believe that this fundamental change can be ascribed to the influence of theology. For the Ancients ontology and epistemology were in unity. They considered the world to be as it appeared to them; the phenomena as infinity or chance, which appeared to them as ambiguous, they held to be really so. For modern humanity, ontology and epistemology differ in a fundamental way. The being of the world is determined by the omniscient God, therefore it is perfect, while our knowledge of the world is determined by our finite capacities, and therefore it is ambiguous. It is this gap between epistemology and ontology, which makes the mathematicization of notions such as infinity or chance, despite their apparent ambiguity, possible.
Keywords: history of Mathematics, theology, infinite, chance, ontology, epistemology
Na História da Matemática encontramos muitos tópicos que revelam uma conexão direta entre a Matemática e a Teologia. Talvez o mais famoso entre eles seja a Teoria dos Conjuntos, conectada com a transição do conceito de “infinito potencial” ao de “infinito real”. Nos trabalhos de Bernard Bolzano e George Cantor, os pais da Teoria dos Conjuntos, encontramos influências teológicas, cuja análise desempenha um importante papel na compreensão da história desta teoria[2]. Outro assunto que revela o encontro da Matemática com a Teologia é a “Lógica Matemática”. Gottlob Frege e Bertrand Russell marcam o final de uma longa tradição focada na análise critica de várias provas sobre a existência de Deus, no curso da qual foram descobertos alguns dos princípios da Lógica Moderna[3]. Ilustra-se tal fato com a tese de Kant, de acordo com a qual existência não é um predicado real. Kant formulou sua tese em sua critica à prova ontológica de Anselmo sobre a existência de Deus (como existência não é um predicado real, partindo-se da premissa que todos os predicados positivos aplicam-se a Deus, Sua existência não se confirma). Na Lógica Matemática, a tese de Kant é um dos princípios da sintaxe do “cálculo predicado”. De acordo com esse princípio, a existência é formalizada pelo uso de quantificadores e não de predicados. No entanto, ao lado de tais conexões diretas entre Matemática e Teologia, também podemos encontrar uma oculta, porém, no nosso ponto de vista, bem mais importante influência da Teologia na Matemática. Essas influências ocultas são concernentes à fronteira, discriminando os fenômenos propícios daqueles desafiadores a uma descrição matemática.
Na primeira parte desse artigo apresentamos cinco exemplos da História da Matemática que ilustram as profundas mudanças que ocorreram nessa disciplina entre o fim da Antigüidade e o início da era moderna. Cada um desses exemplos, considerados separadamente, é bastante conhecido na História da Matemática, mas, colocando-os juntos, verificamos um padrão comum de mudança. Em cada um dos cinco casos um fenômeno considerado pelos antigos como refratário a uma descrição matemática foi matematizado. A proposta do artigo é que a Teologia monoteísta, com sua idéia de um Deus onisciente e onipotente, criador do mundo, influenciou de forma indireta o processo dessa matematização. Ao separar a ontologia da epistemologia, a Teologia monoteísta abriu a possibilidade de explicar todas as ambigüidades inerentes a esses fenômenos como resultado da finitude humana e, desse modo passou a considerar tais fenômenos como não ambíguos, e conseqüentemente acessíveis a uma descrição matemática.
Se quisermos analisar o modo implícito e indireto pelo qual a Teologia monoteísta influenciou o desenvolvimento da Matemática ocidental, parece-me apropriado comparar a Matemática na Antigüidade tardia com aquela do inicio dos séculos XVI e XVII. Nesse último período, a Matemática ocidental, após vários séculos de declínio e estagnação, finalmente alcançou um nível intelectual comparado ao da era helênica tardia, marcada pelo trabalho de Arquimedes e Apolônio. Comparando a Matemática nesses dois momentos, encontramos um fato surpreendente.
A Matemática dos séculos XVI e XVII não foi simplesmente um renascimento da tradição antiga. A Matemática na Antiguidade tardia difere da Matemática nos séculos XVI e XVII em vários aspectos, os quais, no nosso ponto de vista, podem ser atribuídos à influência da Teologia monoteísta na Matemática. Para uma melhor compreensão desses aspectos, nos concentraremos em cinco noções que foram submetidas a mudanças radicais: as noções de infinito, de acaso, de incógnito, de espaço e de movimento.
A noção de infinito foi entendido, na Antiguidade, como apeíron. Não obstante, comparado à noção moderna de infinito, a noção de apeiron possuía um significado bem mais amplo. Aplicava-se não somente ao que era infinito, mas também a tudo que não possuísse fronteira (ou seja, sem peras), que fosse indefinido, vago ou esmaecido. De acordo com os acadêmicos antigos, apeiron consistia em algo sem fronteiras, sem determinação e, por isso, incerto. O estudo matemático do apeiron era impossível por ser a Matemática a ciência do determinado, do definido e do conhecimento exato. O que não possuía peras não poderia ser estudado utilizando-se as noções claras e exatas da Matemática.
A Matemática moderna, em oposição à da Antiguidade, faz uma distinção entre infinito e indefinido. Considera-se o infinito, apesar do fato de não possuir fim (finis), como determinado e inequívoco, e por isso acessível à investigação matemática. Seja uma figura geométrica infinitamente estendida[4], uma quantidade infinitamente pequena[5] ou um conjunto infinito[6], os consideramos pertencentes à Matemática. A noção antiga de apeiron foi assim dividida em duas partes: a noção do infinito em sentido restrito, que se tornou uma parte da Matemática, e a noção de indefinido que, como previamente, não possui lugar na Matemática.
Outra diferença entre a Matemática antiga e a moderna aparece no entendimento do aleatório (tyché). A noção de tyché, semelhante à de apeiron, possuía um significado muito mais amplo do que a nossa noção atual de aleatoriedade; além de evento aleatório, ela designava também acaso, sorte e destino, em geral. Sendo assim, não era acessível à investigação matemática. Tyché pertencia mais à competência de um oráculo do que à Matemática. Para as pessoas comuns, seus destinos individuais permaneciam ocultos. A partir do século XVI, livros sobre jogos e apostas começaram a aparecer na literatura matemática e durante o século XVII a Teoria das Probabilidades moderna se desenvolveu dessa tradição[7]. Do ponto de vista dos acadêmicos antigos, uma teoria matemática do tyché era tão absurda quanto uma teoria matemática do apeiron. E no caso do tyché, o caminho em direção à Matemática moderna aconteceu de forma semelhante ao caso do apeiron: a noção antiga foi subdividida em duas partes. A primeira delas, o conceito de aleatoriedade, tornou-se objeto de estudo da Teoria das Probabilidades, enquanto que a segunda, a noção de destino, manteve-se além dos limites das ciências exatas.
A terceira mudança deve-se ao nascimento da Álgebra, em particular devido à noção de incógnita, que desde Descartes é freqüentemente expressa pela letra x. A Álgebra foi criada pela civilização árabe, como indica o próprio nome desta disciplina matemática. A civilização árabe é monoteísta, tal como a civilização ocidental. Assim, seguindo nossa tese sobre a conexão implícita entre a Teologia monoteísta e a Matemática moderna, o nascimento da Álgebra pode ser colocado ao lado do nascimento da teoria das probabilidades e da teoria matemática do infinito.
Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar que os matemáticos antigos não conheciam a noção de incógnita na sua versão algébrica moderna. É claro que os matemáticos antigos lidavam com uma enorme variedade de problemas práticos, que requisitavam a descoberta de um número específico. Os matemáticos gregos costumavam nomeá-lo de "número incógnito" (arithmos). Entretanto, ao resolver tais problemas, eles procediam de forma sintética, utilizando somente os valores das grandezas conhecidas, fornecidas na formulação do problema. A grandeza incógnita, precisamente por ser desconhecida, não podia ser manipulada em operações aritméticas.
A idéia básica da Álgebra é representar a incógnita por uma letra e sujeitá-la às mesmas operações aritméticas dos números ordinários[8]. O objetivo do simbolismo algébrico é superar a barreira epistemológica, separando quantidades conhecidas daquelas que não conhecemos. Deste modo, na Álgebra trabalhamos tanto com o conhecido como com grandezas desconhecidas, já que elas são equivalentes. Do ponto de vista dos matemáticos antigos isso é algo absurdo, pois se não soubermos o valor de uma grandeza, não podemos determinar os resultados das operações aritméticas aplicadas a ela. De acordo com a compreensão antiga, o que era indeterminado não poderia se sujeitar às operações matemáticas.
O nascimento da Álgebra consistiu na criação de uma noção do desconhecido (incógnito), que, apesar de seu valor indeterminado, poderia ser utilizada como se fosse completamente determinada. Acreditamos que essa noção possa ser colocada ao lado das noções de infinito e aleatoriedade para representar o terceiro rompimento importante dos contornos do dado preciso que caracterizou o raciocínio antigo no mundo da Matemática.
Uma mudança análoga à que aconteceu com as noções de infinito, de probabilidade e de incógnito ocorreu na transição da Matemática antiga para a moderna também no entendimento de espaço. Próximo à noção moderna de espaço temos a noção antiga de vazio (kénon). Para os filósofos antigos, com exceção dos atomistas e dos epicureanos, a noção de vazio era problemática. O vazio está onde nada existe e, desse modo, não possui atributos que permitam seu estudo. Nem mesmo os atomistas, que aceitavam a existência do vazio, foram capazes de dizer algo mais sobre ele. Deste modo, o vazio certamente não é propício para tornar-se um assunto para a Matemática. O conhecimento matemático é caracterizado por noções claras e precisas, atributos que definitivamente não são compatíveis com a noção de vazio.
Não obstante, a ciência moderna recente é baseada na noção matemática de espaço. Newton, por exemplo, considerou o espaço absoluto como uma das categorias fundamentais do seu sistema, e ele se referiu explicitamente ao espaço “matemático”[9]. Assim, em completa analogia aos três casos anteriores, uma área adicional é matematizada – uma área que, do ponto de vista dos antigos, desafiava qualquer matematização. A nova noção matemática de espaço está estreitamente vinculada à noção original de kénon, assim como infinito está vinculado à noção de apeiron e probabilidade à noção de tyché. Afirmamos que o espaço tem três dimensões, é orientável e contínuo; é difícil atribuir qualquer um dessas características ao vazio.
Como último exemplo para ilustrar as diferenças entre a Matemática antiga e moderna, analisaremos a noção de movimento. A noção grega de kinesisque designa movimento, tem um significado muito mais amplo do que a noção moderna de movimento. Além de mudança da posição no espaço, ela engloba o crescimento, envelhecimento e mudança de cor. De acordo com a compreensão antiga da Matemática, kinesis, tal como apeiron ou tyché, desafiava a matematização. Aristóteles explicou a razão da impossibilidade de descrever kinesis em termos matemáticos. Para um acadêmico antigo, uma teoria matemática do kinesis era tão absurda quanto uma teoria matemática do apeiron ou uma teoria matemática da tyché. A matematização do movimento introduzida por Galileu possuía muitos aspectos análogos aos casos precedentes de matematização descritos nesse artigo: a ampla e antiga noção do kinesis foi subdividida em duas partes. Uma delas, mais restrita, incluindo somente variações de posição (ou seja, movimento local), e a outra mais ampla, incluindo o repouso. Galileu desenvolveu uma ciência matemática somente para a noção restrita de movimento local[10].
Na seção anterior apresentamos alguns exemplos documentando que no inicio da era moderna emergiram novas disciplinas matemáticas (álgebra, teoria da probabilidade e cinemática) e que uma mudança radical ocorreu na nossa compreensão de infinito e espaço. Se compararmos essas cinco novas áreas matemáticas acadêmicas com a matemática antiga, notaremos que na época antiga todas essas áreas eram consideradas refratárias à descrição matemática. A matematização dessas áreas nos séculos XVI e XVII tem vários aspectos em comum.
O primeiro deles é que as antigas noções de apeiron, tyché, kenón, e kinesis eram muito mais amplas do que as noções modernas de infinito, aleatoriedade, espaço e movimento, que se tornaram as bases das novas disciplinas matemáticas. Atualmente distinguimos entre o infinito e o indeterminado, entre a aleatoriedade e o fato, entre o vazio e o espaço, entre o movimento e a mudança. Assim, a partir das antigas noções, amplas e ambíguas, foram separadas partes específicas e delimitadas, e somente as noções mais delimitadas foram matematizadas.
A segunda característica comum das mudanças discutidas acima é que as novas e restritas noções de infinito, probabilidade, espaço ou movimento ainda preservaram algum grau de ambigüidade. Entretanto, essa ambigüidade residual foi muito mais fraca do que a ambigüidade das noções antigas originais. Esse enfraquecimento da ambigüidade foi muito importante, pois foi precisamente a ambigüidade das noções de apeiron, tyché, kenón e kinesis que, de acordo com os matemáticos gregos, desafiavam uma investigação matemática. O sucesso da Matemática moderna consistiu precisamente em ter se encontrado um modo de suplantar a ambigüidade residual das restritas noções de infinito, espaço ou movimento.
Agora chegamos à terceira característica comum às mudanças mencionadas acima. Consideremos primeiramente o conceito de infinito. Enquanto que para os antigos apeiron possuía uma conotação negativa, associada ao obscuro e à desorientação, para os acadêmicos medievais o caminho para o infinito tornou-se o caminho em direção a Deus. Deus é um ser infinito, mas, apesar de Sua infinitude, Ele é absolutamente perfeito. Tão logo a noção de infinito foi aplicada a Deus, ela perdeu sua obscuridade e ambigüidade[11]. A Teologia tornou a noção de infinito positiva, luminosa e inequívoca[12]. Toda ambigüidade e obscuridade encontradas no conceito de infinito foram interpretadas somente como conseqüência da finitude e da imperfeição humanas. Infinito fora então interpretado como algo absolutamente claro e preciso e, portanto, tornou-se um candidato ideal à investigação matemática.
De maneira semelhante, no caso do conceito de aleatoriedade, a conseqüência da onisciência de Deus fora que a ambigüidade desse conceito perdera sua dimensão ontológica e fora reduzida a uma simples negação epistemológica. Deus conhece antecipadamente o resultado de qualquer jogo de dados, e é somente devido à finitude da mente humana que não temos acesso a esse conhecimento. Deste modo, um evento aleatório, pelo menos do ponto de vista de Deus, está precisamente determinado e disponível para descrição matemática. Agora compreendemos como a idéia de um Universo totalmente determinístico e a interpretação clássica de probabilidade originaram-se de uma mesma mente, a mente de Pierre Simon de Laplace. O determinismo e a aleatoriedade são dois aspectos de uma mesma realidade. Determinismo representa a face ontológica e a probabilidade, a face epistemológica de um mesmo mundo. De acordo com Laplace, o mundo é absolutamente determinístico, mas, para a mente humana, ele está acessível somente de maneira probabilística.
Tensão semelhante entre o definido ontológico (necessário na aplicação das operações aritméticas) e o indefinido epistemológico é encontrada no conceito de incógnita em álgebra. O incógnito é desconhecido para nós, seres finitos. Para Deus não existe o incógnito, o desconhecido. Tão logo Ele observa a formulação de um problema algébrico, imediatamente sabe o valor da incógnita. Ele não precisa resolver as equações, pois, devido à Sua onisciência, imediatamente conhece as soluções. Deste modo, semelhante ao caso da teoria de probabilidade, também na álgebra a ambigüidade ontológica, que impedia os gregos de matematizar essa área, foi transformada em uma ambigüidade epistemológica, com suas raízes na finitude humana e assim irrelevante com respeito à matematização.
O caso da cinemática é parecido. Ao nível ontológico, o movimento é perfeito e absolutamente determinado. O fato dele nos parecer como algo ambíguo (por exemplo, não somos capazes de decidir se a queda livre é ou não acelerada) é somente uma conseqüência de nossa imperfeição. O conceito de espaço é ainda mais claro. No seu Scholium generale, Newton caracterizou o espaço absoluto como Sensorium Dei. Deste modo, a possibilidade de sua matematização se origina na perfeição de Deus. Para os humanos, somente o espaço relativo, empírico está acessível.
Resumindo: para os antigos, ontologia e epistemologia estavam unidas. Eles consideravam o mundo assim como este se apresentava a eles; o fenômeno, que eles consideravam ambíguo e obscuro, era parte integrante dessa realidade. Para a humanidade moderna, ontologia e epistemologia diferem de modo fundamental. O mundo é determinado por Deus, e por isso é inequívoco e perfeito. Por outro lado, nosso conhecimento do mundo é determinado pelas capacidades finitas da mente humana e, por isso, é ambíguo e obscuro. Precisamente essa lacuna entre epistemologia e ontologia é que torna possível a matematização de regiões que são acessíveis ao nosso entendimento somente de forma ambígua. Se toda ambigüidade percebida for atribuída apenas à finitude humana, ou seja, se ela for interpretada como epistemológica, a matematização ao nível ontológico torna-se possível.
Isso mostra que a Teologia monoteísta provavelmente desempenhou um papel mais importante na origem das ciências matemáticas modernas do que se admite normalmente. A Teologia monoteísta trouxe à tona uma mudança fundamental na base epistemológica geral, onde se distinguiu a ontologia da epistemologia. Essa separação levou finalmente ao nascimento da Matemática moderna com seus conceitos de infinito, probabilidade, incógnito, espaço, e movimento. As diferenças fundamentais entre a Matemática do inicio da era moderna e a Matemática no período helênico pode ser caracterizada talvez pela ruptura das fronteiras do inequivocamente dado e conhecido no mundo da Matemática para o fenômeno considerado ambíguo, tal como infinito, aleatoriedade, ou movimento. Essa é uma mudança fundamental, talvez a mais importante desde a descoberta da prova e da idéia de um sistema axiomático. E essa mudança fundamental, essa ruptura radical preparando-nos para a modernidade, está intimamente ligada à Teologia monoteísta.
Claro que as evidências fornecidas pela História da Matemática estão longe de ser conclusivas. Nosso objetivo não é estabelecer de vez o papel da Teologia no desenvolvimento da ciência e da Matemática, mas propor um método indireto para estudá-lo. De modo semelhante à influencia da ética protestante no desenvolvimento do capitalismo moderno analisado por Max Weber, é possível analisar o papel da Teologia monoteísta no desenvolvimento da ciência moderna. A Teologia monoteísta, assim como a ética protestante, não influenciou esse desenvolvimento de forma direta. No entanto, ela ajudou a criar condições nas quais o desenvolvimento da ciência moderna tornou-se possível.
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Recebido: 06/12/2006
Aceite final: 12/03/2007
[1] Inicialmente publicado como “The invisible link between mathematics and theology”, em Perspectives on Science and Christian Faith. 56/2 (June 2004), 111-116. Tradução de Patrícia Rebello Teles, Departamento de Física Matemática, IF-USP. Versão em português autorizada pelos editores.
[*] Eu gostaria de agradecer a Botond Gaal, Donald Gillies, Eberhard Knobloch e Pavol Zlatos pela crítica a versão anterior deste artigo. Gostaria de expressar minha gratidão a Alexander von Humboldt Foundation pelo suporte financeiro à Technical University em Berlim, que tornou possível a elaboração deste artigo.
[**] Nascido em Bratislava em 1962. Graduado em 1986 em Matemática na Comenius University em Bratislava. Em 1995 defendeu a tese "Classification of Scientific Revolutions" e recebeu o titulo de doutor em Filosofia. Desde 1986 leciona cursos em História da Matemática na Faculdade de Matemática e Física da Comenius University. Em 1999 tornou-se “reader”. Suas principais áreas de interesse estão na História e Filosofia das Ciências Exatas. Ele busca conectar essa área a um contexto cultural mais amplo. Endereço: Department of humanities, FMFI-UK, Mlynská dolina, 84248, Bratislava.
[2] Para uma discussão do papel das idéias teológicas no trabalho de George Cantor (1845-1918), consultar capítulo 6 em Dauben (1979), Hallet (1984), e capítulo VIII em Ferreirós (1999). A base teológica dos trabalhos de Bernard Bolzano (1781-1848) em Teoria dos Conjuntos é discutida em Zlatos (1995).
[3] Ver Zlatos (1995), Hajek (1996), e Zlatos (2002).
[4] Uma das primeiras figuras geométricas infinitamente estendida foi estudada por Evangelista Torricelli (1608-1647) em 1646 (ver STRUIK,1969: 227-232).
[5] Quantidades infinitamente pequenas foram utilizadas por Johannes Kepler (1571-1630) em seu “Nova stereometria doliorum vinariorum”, publicado em Linz no ano de 1615, e por Galileu Galilei (1564-1642) em seu “Discorsi e dimonstrazioni matematiche, intorno a due nuove scienze; attenenti alla mecanica i movimenti locali”, publicado em Leiden 1638 (STRUIK, 1969: 192-209).
[6] A noção de conjunto infinito foi introduzida por Bolzano em seu “Paradoxien des Unendlichen” em 1851 (ver BOLZANO, 1975).
[7] Um dos primeiros livros sobre apostas foi “Liber de Ludo Aleae” (“Livro sobre jogos de azar”) escrito por Gerolamo Cardano (1501-1576) antes de 1565 (ver ORE, 1953). A Teoria das Probabilidades surgiu dos trabalhos de matemáticos como Pierre de Fermat (1601-1665), Blaise Pascal (1623-1662), Christian Huygens (1629-1695), Johann Bernoulli (1667-1748), Abraham de Moivre (1667-1754) e muito outros (ver DAVID, 1962).
[8] Al Khwarizmi introduziu, em torno do ano 820, três operações utilizando o incógnito: al gabr, al muquabala e al radd. Da primeira delas se originou o nome Álgebra (ver WAERDEN, 1985).
[9] A noção de espaço absoluto foi introduzida por Isaac Newton (1643-1727) no “Scholium” no início do primeiro livro do “Philosophia Naturalis Principia Mathematica”, publicado em 1687.
[10] Galileu apresenta os fundamentos da Cinemática no “Discorsi e dimonstrazioni matematiche, intorno a due nuove scienze; attenenti alla mecanica i movimenti locali”, publicado em 1638.
[11] A mudança de atitude direcionada à noção de infinito pode ser encontrada em Nicolau de Cusa (1401-1464) (ver KNOBLOCH, 2002).
[12] Uma discussão da base teológica da ciência moderna pode ser encontrada em Funkenstein (1986) ou em Gaal (2002).