O Quanto Somos Modernos?
As contradições culturais da modernidade da Índia[1]

Meera Nanda []

Resumo

Este ensaio examina as fontes intelectuais das contradições culturais da modernidade na Índia. Em vez de manter a religião sob os limites da razão científica, a Índia tem testemunhado uma constante cooptação da ciência pela cosmologia espiritual e a epistemologia dos “Vedas”. A história, a lógica e as conseqüências sociais deste contra-Iluminismo são examinados.

Palavras-chave: Ciência hindu, razão, iluminismo, cosmologia, epistemologia, os Vedas

Abstract

This essay examines the intellectual sources of the cultural contradictions of India’s modernity. Rather than bring religion under the limits of scientific reason, India has witnessed a steady co-option of science into the spirit-based cosmology and epistemology of “the Vedas.” The history, logic and social consequences of this counter-Enlightenment are examined.

Keywords: Indian science, reason, Enlightenment, cosmology, epistemology, the Vedas

1.

Berlim, 1783. Um clube de debates chamado Berliner Mittwocchgesellschaft (“O clube da quarta-feira de Berlim”) convidou seus membros a responder a esta questão: “O que é Iluminismo?” Um enérgico debate se seguiu. O filósofo Immanuel Kant participou da batalha com seu bem conhecido ensaio: “Resposta à questão: o que é Iluminismo?” Esta é a forma como Kant caracterizou o que era distintivo no fermento de idéias que varria a Europa do século XVIII: “Iluminismo é a libertação do homem da sua auto-atribuída menoridade [que é] sua inabilidade para fazer uso do seu entendimento sem direção de outro... Sapere aude! ‘Tenha coragem de usar a sua própria razão!’ Este é o lema do Iluminismo.”

2.

O leitor pode, muito justificavelmente, perguntar a si mesmo porque um ensaio sobre a Índia no século XXI deveria começar com o que escreveu Immanuel Kant no século XVIII. Quais possíveis relevâncias podem ter aqueles antigos debates europeus para a Índia atualmente?

Eu acredito que a transformação da razão trazida pela revolução científica que tanto impressionou Kant e outros pensadores iluministas era a chave para culminar o programa de desencantamento e secularização no mundo todo. O mote de Kant, “Sapere aude!”, foi simultaneamente uma invocação para um novo padrão da razão, o que significou um desafio a todas as verdades a priori que nós aceitamos pela fé, pelo condicionamento cultural ou pela doutrinação explícita. Uma vez que entendemos a transformação da razão que a revolução científica e o Iluminismo desencadearam, nós estaremos numa posição melhor para entender porque a modernidade da Índia tem este ar de incompletude, superficialidade e até esquizofrenia.

A Índia Moderna acolheu os produtos da revolução científica e do Iluminismo ocidental – a tecnologia moderna e uma estrutura liberal-secular de leis codificadas em sua Constituição. Mas fez isso sem, no entanto, questionar a autoridade cultural da cosmovisão sobrenatural e mística derivada das linhas idealistas do Hinduísmo. Se algo ocorreu, é que desde o seu começo, na chamada “Renascença de Bengala”, o projeto de modernidade da Índia se desenrola dentro de um estilo especificamente indiano de contra-Iluminismo. Por contra-Iluminismo eu entendo apenas isto: em contraste acentuado com o projeto do Iluminismo, de trazer a religião para dentro dos limites da razão científica, o contra-Iluminismo hindu tende a subsumir ou cooptar a razão científica no seio da cosmologia espiritual e a epistemologia dos Vedas.[2] Desde sua independência, a Índia criou uma expressiva força de trabalho de cientistas e engenheiros, muitos dos quais fazendo uma ciência bastante avançada que se iguala aos padrões de excelência dos melhores laboratórios no restante do mundo. Mas a ciência da Índia não se desenvolve a partir de um encontro crítico com a religiosidade do senso comum que ainda permeia a vida cultural externa – e mesmo no interior – dos laboratórios. As idéia modernas e as inovações estão sendo incorporadas numa cosmovisão Hindu tradicional, sem diminuir as suas tendências fortemente irracionais, ocultas e pseudo-científicas.

3.

Deixe-me ilustrar o que eu entendo por natureza superficial e esquizofrênica da modernidade hindu. Eu reproduzo aqui um trecho de um pequeno ensaio intitulado “A Índia é uma superpotência da ciência?”, que escrevi para The Frontline (10 de setembro de 2005):

O próximo século pertence à Índia, que começará a ser um poderoso pólo intelectual [...] capturando toda a glória que teve neste milênio que acabou,” declarou o Dr. Raghunath Mashelkar, o diretor geral do Conselho de Pesquisas Científicas e Industriais da Índia em “Science” no início deste ano. Thomas Friedman, colunista do the “New York Times” e autor do bestseller “The World Is Flat”, concorda que a Índia, com seu poder pensante talentoso, porém de baixo custo, está no caminho para se tornar o “centro de inovação” da economia global. Para não ficar para trás, o semanário britânico New Scientist tem designado a Índia como uma ”superpotência do conhecimento“ emergente [...].O que não faz sentido, entretanto, é a desconexão radical entre os sonhos de se tornar uma superpotência científica e a sombria realidade das superstições que paralisam a mentes e as pseudociências que ameaçam a vida e que estão prosperando em todos os níveis da sociedade indiana. Cientistas indianos podem muito bem ser os mais procurados trabalhadores na economia global, mas muitos agem como se o que eles fazem no interior de seus laboratórios não tivesse nada a ver com as “verdades” sobrenaturais ou espirituais que passam por explicações “científicas” dos fenômenos naturais para o resto da sociedade.

Eu exagerei? Aqui está uma reportagem das seis semanas que passei no norte da Índia neste verão:

No começo de maio, nas partes rurais do norte da Índia, milhares de crianças, meros meninos e meninas, foram dados em casamento em Akshay Tritya, um dia considerado astrologicamente propício para casamentos e outros novos empreendimentos. Uma das poucas assistentes sociais que tentaram prevenir os casamentos infantis teve suas mãos cortadas por aqueles que continuaram a defender suas tradições antigas. Existe, é claro, muita razões sociais e econômicas complexas pelas quais os casamentos infantis ainda persistem na Índia em números significativos. Mas esses motivos seculares vêm cheios de bênçãos de nossos sacerdotes e astrólogos que têm declarado que os brilhos do sol e da lua no terceiro dia do mês de maio são propícios para novos empreendimentos, incluindo os casamentos infantis que supostamente trazem o bom karma aos pais de crianças noivas.
No meio tempo, a astrologia estava mudando a sua face para se tornar atraente às “modernas” classes médias urbanas, que foram bombardeadas com propagandas do Conselho Mundial de Ouro para celebrar o alinhamento favorável dos astros com a compra de algumas jóias de ouro a mais.
Se você acha que os cientistas, especialmente os cientistas espaciais, poderiam ter alguma crítica da lógica astrológica dessas tradições populares (velhas e novas), pense de novo. Enquanto o país estava se preparando para o Akshay Tritya, os melhores cientistas espaciais da Índia estavam ocupados procurando as bênçãos do Senhor Balaji no templo de Tirupati para um lançamento seguro do veículo de lançamento do satélite polar. Um modelo em miniatura do foguete foi colocado no santo dos santos do templo e os sacerdotes oraram por ele na presença de quinze cientistas liderados pelo chefe da agência espacial, Dr. G. Madhavan Nair. Já que os cientistas não largam o abrigo dos deuses, dificilmente vão questionar as ilusões confortáveis, mas falsas que os astrólogos vendem às pessoas comuns.
Enquanto isto, os muitos satélites que a agência espacial da Índia lançou no passado transmitiam programas de TV que vendiam os benefícios sem limites e não confirmados do Yoga e Ayurveda para a saúde, entregues com doses fortes do espiritualismo e do nacionalismo Hindu. O mais popular tele-yogi da Índia, Swami Ramdev, ficou rico vendendo seu Divya Yoga na TV. Quando entremeado com os chamados de Swami para despertar o “desh kaa svabhiman” (“auto-respeito nacional”) pelo ensino da “crore saal purana vigyan” (“a ciência de dez milhões de anos atrás”), pode-se notar afirmações não fundamentadas sobre o poder das posturas do Yoga, da respiração profunda e os seus remédios ayurvedicos podem curar todas as doenças humanas, incluindo o câncer, a doença do coração, a diabetes, a glaucoma, a obesidade...
O que é extraordinário é que todas estas tradições que desafiam a razão e as evidências vêm envelopadas rótulo atraente de “ciência”. Em minha visita a Chadigarh, minha cidade natal, eu ouvi um pregador da Arya Samaj exortando os devotos em um discurso ao ar livre, bem do lado de fora da minha casa (com caixas acústicas a toda potência,) para “ler os antigos Vedas para aprender todo o conhecimento científico da humanidade.” (O discurso tratava de como ter êxito no mundo moderno, com os seus empregos valorizados no ramo da alta tecnologia!) Astrologia, idéias yogis de prana e kundalini e ainda as idéias de reencarnação, karma e varna (i.e., a ordem de castas) são justificadas pela linguagem da física moderna e da biologia evolucionista. Todas estas antigas especulações metafísicas são proclamadas “ciências védicas” (i.e., empiricamente testáveis e lógicas em relação à metafísica dos Vedas). Supostamente, foram redescobertas tardiamente pela ciência moderna. O que nós temos aqui é pseudociência em sua mais pura forma: o dogma religioso, sem evidência científica rigorosa e sem plausibilidade, disfarçado de ciência...

Tudo que é védico é “científico” e toda “ciência” conhecida pelo ser humano apenas afirma as visões dos “Vedas”. De fato, as afirmações do temperamento científico “inato” dos “Vedas” ocupam um lugar privilegiado nas asserções da Hindutva [a ideologia do fundamentalismo Hindu] da superioridade do Hinduísmo sobre o Islamismo e o Cristianismo, já que estes são meramente “credos” baseados na fé. A ciência, vedicamente interpretada, sustenta o chauvinismo hindu.

4.

O fato de que “os Vedas” são identificados com a ciência como nós a conhecemos atualmente dificilmente será uma novidade para quem conhece alguma coisa sobre a Índia. Isto é rotineiro e tem acontecido desde a introdução da ciência e da tecnologia modernas na Índia, a partir do século XVIII (os racionalistas indianos, em comparação, nunca tiveram o mesmo grau da hegemonia cultural. A marginalização do racionalismo na política cultural da Índia é um tópico para outro dia e outro ensaio).

A maior parte dos hindus faz uma pausa para pensar sobre esses traços de cientificismo no Hinduísmo moderno[3] quase tanto quanto os peixes param para refletir sobre a água onde vivem – que não é lá muita coisa. Tornou-se parte do senso comum dos hindus modernos, educados em ciência e que falam inglês, tratar os ensinamentos de gurus, yogis e swamis populares como vagamente “científicos”, e, portanto, modernos. Os cientistas indianos, na sua maior parte, não têm criticado os usos religiosos da ciência: eles tendem a conservar nitidamente separadas suas vidas de laboratório e suas vidas pessoais. Os intelectuais públicos e críticos sociais, por outro lado, têm se debruçado mais sobre o real e o imaginado cientificismo do Estado moderno indiano, do que sobre o cientificismo que impregna o Hinduísmo moderno.

Acredito que precisemos prestar mais atenção ao cientificismo hindu porque é um sintoma das profundas contradições culturais que afligem a modernidade da Índia. Temos orgulho de ser modernos, porém pisoteamos o primeiro princípio da modernidade, isto é, estabelecer distinções de princípio entre ciência e metafísica, quer dizer, entre conhecimento verificável de entidades materiais tangíveis ocupando espaço e tempo, e conhecimento intuitivo de coisas espirituais intangíveis – Deus, Brahma ou qualquer forma de energia espiritual “sutil”– que não seja acessível aos cinco sentidos que todos os humanos compartilham igualmente. O espírito de Sapere aude do qual Kant estava falando significava justamente isto: impedir metafísicos, teólogos e sacerdotes de fazerem asserções sobre a existência de poderes sobrenaturais e, inversamente, de utilizar as ciências naturais para afirmar poderes sobrenaturais ou espirituais. O central no projeto do Iluminismo não era destruir a religião, mas colocar limites, primeiro, sobre aquilo que ela poderia dizer sobre a natureza e, segundo, sobre o uso da autoridade da natureza para defender seus dogmas.

A modernidade na Índia carece do espírito de Sapere aude, entendido como o estabelecer limites sobre a autoridade da religião, como o separar os âmbitos da ciência e da religião na cultura geral. Se algo ocorreu, é que a Índia seguiu exatamente o caminho oposto, absorvendo mais e mais da ciência no tradicional ensinamento dos “Vedas”, Vedanta, “Yoga Sutras” e Ayurveda. De fato, como argumento depois, a Índia tem tomado um caminho unicamente “inclusivo” (leia-se cooptativo) para o fenômeno clássico do contra-Iluminismo ou modernismo reacionário.[4]

5.

Para entender o estilo único hindu de contra-Iluminismo, precisamos primeiro ter clareza sobre o que entendemos por Iluminismo. Sem enveredar nas várias nuances do Iluminismo europeu, nós podemos ter três proposições universais em mente.

Para começar, o Iluminismo se refere a um momento histórico que começou com a Revolução Inglesa em 1688 e culminou na Declaração Americana de Independência em 1776 e com a Revolução Francesa em 1789. Não existia um movimento unificado chamado “o Iluminismo” que emergiu em toda a Europa simultaneamente. Houve, ao invés, uma série de debates e críticas contra a autoridade herdada de tradições intelectuais e religiosas. Esses debates tomaram diferentes formas em diferentes contextos nacionais, afetando toda a Europa ocidental e a América do Norte em maior ou menor grau. Em todos os casos, esses movimentos foram sustentados pela emergente burguesia industrial. Na Inglaterra e na América protestantes, o Iluminismo aconteceu em grande medida em aliança com a Igreja; já na França majoritariamente católica, a Igreja foi relativamente menos hospitaleira às novas idéias. As idéias do Iluminismo encontraram uma audiência receptiva, difundidas por uma nova classe de intelectuais que ganharam a vida escrevendo para a imprensa popular (jornais, periódicos e novelas baratas) e proporcionando preleções e demonstrações das ciências da época nas cafeterias e pubs (OUTRAM, 1995).

Em segundo lugar, mesmo com todas as diferenças nacionais, os movimentos citados como parte do Iluminismo manifestavam

uma atitude cada vez mais crítica sobre a autoridade herdada, um sentimento de que a mente humana, armada com novos métodos e poderes, poderia reexaminar as pretensões sobre ela (...) incluindo as da religião. Esta não era uma rejeição da autoridade por si, mas da autoridade arbitrária cuja afirmação de poder sobre mente ou corpo baseava-se na resistência ao teste do tempo. (KORS, 2003: Prefácio)

Sapere aude - “tenha a coragem de saber” - foi a força motivadora do movimento inteiro, e foi usada pelos pensadores livres britânicos como grito de incentivo muito antes de Kant.[5]

Em terceiro lugar e finalmente, apesar de todos os ataques pós-modernistas, ainda é possível defender o Iluminismo como pré-condição para qualquer tipo de política progressista. Como escreve Stephen Bronner, quase todos os aspectos da vida moderna, especialmente “os ideais da autonomia pessoal, tolerância, secularismo e razão, têm como pano de fundo o protesto do Iluminismo contra o exercício do poder arbitrário a força do preconceito tradicional e arraigado [que] justificavam a miséria social.” (BRONNER, 2004: 7). Nesta leitura, foi o Iluminismo que criou de fato os ideais da modernidade que estavam apenas latentes na Renascença, na Reforma Protestante e na Revolução Científica. O Iluminismo, portanto, é considerado por muitos historiadores do intelecto como o verdadeiro começo da modernidade.

6.

Contra este pano de fundo, vamos voltar ao lema de Kant. Porque ele fez do sapere aude – “a coragem de usar a sua própria razão” – a marca distintiva de seu tempo? De fato, a época do Iluminismo não foi a primeira a aplicar o poder da razão para compreender a natureza e a sociedade. Seres humanos em todas as sociedades e em todas as épocas têm exercido os poderes da observação, lógica e experimentação junto com a imaginação, insight, mito e magia para entender e manipular materialmente a força da natureza. O que havia de tão especial sobre a razão na época do Iluminismo que justificou Kant a torná-la uma espécie de grito de liberdade?

Enquanto os filósofos do Iluminismo exortaram seus co-cidadãos a viver sob a luz da razão, eles foram simultaneamente redefinindo a razão, ao colocar limites no que pode ser conhecido legitimamente, dado o tipo de aparato sensorial e os poderes racionais com que seres humanos são dotados. Os filósofos e arquitetos da Era da Razão - de Locke e Hume na Inglaterra, a Voltaire, Diderot e Montesquieu na França; Kant, Lessing e mais tarde Marx na Alemanha; e Jefferson, Paine e Franklin nos Estados Unidos - ficaram impressionados pelo sucesso da revolução científica, especialmente o empirismo disciplinado de Newton. Suas famosas leis da força e da gravitação universal emergiram de uma paciente e cuidadosa observação de cometas, planetas, objetos em movimento e a transmissão de luz. Newton, em outras palavras, derivou seus primeiros princípios da investigação empírica dos fenômenos. Isto, para os filósofos do Iluminismo, foi um reconfortante contraste com o método dos teólogos e metafísicos que partiam de infalíveis revelações divinas e procediam a deduzir delas o conhecimento dos fenômenos físicos. Eles reconheceram bem que as próprias observações de Newton requeriam uma fundamentação metafísica, a crença em uma ordem criada por Deus. Mas o que eles acharam extraordinário foi que o fato de que Newton usou essa crença metafísica como um trampolim para o exame empírico, e não como uma verdade a priori para explicar os fenômenos materiais.

O método de Newton se tornou o paradigma da razão para a era do Iluminismo. Os filósofos negaram - energicamente - que fosse possível fazer alguma asserção factual sobre o mundo baseada apenas na “razão pura”, frase entendida por eles como intuição gnóstica, misticismo, “realização direta” ou revelação, quer dizer, qualquer modo de conhecimento que não pode ser validado pela experiência dos sentidos. Apenas aqueles objetos no “mundo fenomênico” (para usar o vocabulário de Kant) que correspondem às categorias humanas de espaço, tempo e causalidade podem se tornar objetos possíveis da nossa experiência, e o conhecimento humano pode se estender apenas a estes objetos. Não existe caminho possível para conhecer os objetos do “mundo numenal” (para usar o vocabulário de Kant de novo), as coisas-em-si que estão fora das nossas categorias mentais de espaço, tempo e causalidade. Isto significa que as entidades supra-sensíveis como Deus, Consciência Absoluta, alma, espírito vital etc., sem extensão espacial e temporal, ficam sempre fora das habilidades humanas para conhecê-las. Nós não podemos, portanto, fazer afirmações empíricas sobre esse mundo supra-sensível ou numenal, nem podemos usar nosso conhecimento sobre a realidade numenal para explicar o mundo fenomênico.[6] Não que esta cosmovisão negasse a existência de forças supranaturais ou realidades últimas, mas ela limitava essas forças ao mundo do númeno, totalmente além do alcance da experiência humana. Tais forças poderiam ser aceitas como alegorias, como poesia, até como ficções necessárias para defender nossas intuições morais sobre o bem e o mal, mas elas não podem fornecer fundamentos para o conhecimento do mundo natural.

Essa foi uma mudança monumental. Até aquele momento da história humana, a ciência ou filosofia natural existia dentro dos limites da religião. Daí por diante, a religião poderia existir somente dentro dos limites da razão científica. Este foi o âmago filosófico do Iluminismo, o slogan utilizado pelos “modernos” contra os “antigos”.

Tal transformação teve conseqüências de longo alcance, não somente para a condução da ciência, mas para a evolução de uma esfera pública secular e democrática. Como a nova historiografia inspirada pelo trabalho inovador de Jürgen Habermas estabelece (HABERMAS, 1984), a revolução empirista na concepção da razão foi enormemente importante na criação de novos ideais de espaço público, aberto em princípio (no entanto, não na prática) a todos, no qual toda autoridade estava aberta ao escrutínio crítico com base em evidências acessíveis a faculdades humanas ordinárias de percepção sensorial e lógica elementar. Gradualmente, os velhos tabus que tiravam suas forças da lei natural, e que supostamente expressavam a vontade divina, perderam os seus poderes de persuasão. Dependendo do balanço histórico de forças entre a igreja e o trono, e da aliança e da força da burguesia que tirava a sua riqueza da indústria e comércio, diferentes graus de secularização aconteceram em diferentes sociedades, um processo que ainda está em progresso.

7.

Tão certo quanto o dia é seguido pela noite, o Iluminismo foi seguido pelo contra-Iluminismo. A proclamação da autonomia e da autoridade do conhecimento sensorial, testável, contra as revelações, as intuições místicas, os milagres e todas as formas de conhecimento extra-sensorial, encontrou resistência dos defensores da fé em todo lugar.[7]

O contra-Iluminismo tomou duas rotas básicas pela história: a menos percorrida rota da rejeição completa, apoiada pelas comunidades observantes ortodoxas; e a mais popular e politicamente correta da cooptação através da indigenização ou relativização das normas de razão, apoiada pelos nacionalistas religiosos/culturais, de um lado, e pelos pós-modernistas e multiculturalistas, do outro.[8]

A grande rejeição pode ser vista nos enclaves do tradicionalismo e ortodoxia em algumas comunidades judaicas ortodoxas em Israel e nos Estados Unidos, entre os amish e nas seitas separatistas de cristãos evangélicos nos Estados Unidos. No entanto, esta opção de “simplesmente dizer não” para a cultura secular majoritária está se tornando mais rara e difícil de se manter em um mundo crescentemente permeado pelas tecnologias modernas e novas idéias.[9]

O relativismo cultural – isto é, não uma rejeição completa, mas uma reinterpretação das normas da ciência empírica dentro de uma determinada cultura nacional ou civilizacional – tem sido o modo preferido da maioria dos movimentos antiliberais e contra-Iluministas, em particular os movimentos fascistas na Alemanha e no Japão no século XX, até os fundamentalismos religiosos do século XXI. Fascistas diversos, fundamentalistas cristãos e islâmicos e os nossos próprios nacionalistas hindus não podem ser categorizados como antimodernistas fora-de-moda que querem levar suas sociedades de volta a alguma era primitiva, pré-moderna, e pré-científica, caracterizada pela fé e/ou magia, e isolada dos desenvolvimentos globais na ciência e tecnologia. Eles são mais propriamente descritos como “modernistas reacionários”, um termo cunhado por Jeffery Herf na sua história intelectual da Alemanha Nazista e Weimar. Os modernistas reacionários, em contraste aos pastoralistas da era de ouro olhando para trás, dizem “sim” à tecnologia moderna, mas “não” às normas Iluministas da razão científica. Eles conseguem “misturar” uma modernidade robusta e uma postura afirmativa do progresso, com os sonhos do passado: um romantismo altamente tecnológico (HERF, 1984). Os modernistas reacionários, em outras palavras, acolhem com grande entusiasmo a modernização tecnológica, junto com uma aversão profunda ao racionalismo, secularismo e individualismo que vêm com a modernização. Eles querem os frutos da modernização sem a dor – e as alegrias – dos deslocamentos culturais que a modernidade traz.

A questão diante de todos os modernistas reacionários é: como usar os produtos tecnológicos da ciência moderna, enquanto rejeitam a sua visão de mundo e as suas normas de razão? A solução tem sido remover a razão científica da visão do mundo do Iluminismo - uma cosmovisão da razão, intelecto, internacionalismo, e materialismo - e redefini-la no jargão de autenticidade, comunidade e herança. As reivindicações da ciência e da modernidade não são rejeitadas de imediato, mas “somente” traduzidas em um vocabulário étnico-científico. O universalismo da ciência não é negado em favor de um relativismo que aceita tudo igualmente, mas a ciência moderna é vista como somente um de muito modos de conhecimento que são igualmente universalizáveis. A importância sujeitar as crenças à experiência e à evidência não é negada, mas o que constitui a evidência e a experiência se torna relativa às categorias metafísicas do resto da cultura. Enquanto alguma coisa chamada “ciência” é celebrada, invariavelmente termina reafirmando – e legitimando – o senso comum tradicional da cultura, derivada largamente da tradição religiosa dominante.

8.

Uma característica do contra-Iluminismo neo-hindu tem sido a tradução das tradições empiricistas da ciência moderna dentro do jargão de misticismo oriundo dos “Yoga Sutras” de Patanjali e das linhagens monísticas do Vedanta. Declarar que os “Vedas” foram baseados na “realização direta” de “realidades mais altas” e, portanto, que são “um outro nome para a ciência”, foi o trabalho dos pensadores da Renascença Hindu, notavelmente entre eles os teosofistas de Adyar, Swami Vivekananda, Sri Aurobindo e Servapalli Radhakrishnan. Os descendentes contemporâneos destes pensadores dos “Vedas-como-ciência” do século XIX e XX incluem os muitos monges das Missões Ramakrishna ao redor do mundo, “criacionistas védicos” da Consciência de Krishna e personalidades bem conhecidas como o Maharishi Mahesh Yogi, Deepak Chopra e os seus muitos clones e/ou admiradores no Ocidente, bem como na Índia. O açafroamento da história, incluindo a história da ciência, que nós experimentamos sob o reino de Sangh Pavinar, foi uma expressão política desta confusão dos “Vedas” com a ciência moderna.

Da mesma forma que outros modernistas reacionários antes deles, os filósofos neo-hindus parecem aceitar o desafio do Iluminismo. Eles aceitam que, com o sucesso da revolução científica, como Radhakrishnan colocou em sua “Visão Hindu da Vida”, “o centro da gravidade na religião foi transferido da autoridade para a razão”. Mas – e aqui está o problema – eles definem a experiência não-sensorial, intuitiva ou mística, a chamada “razão pura”, para estar, de fato, como efetivamente se referindo a entidades reais, causais e/ou a energias que podem ser diretamente “vistas” ou “ouvidas” pela alteração da sua consciência por intermédio do Yoga: a intuição mística é interpretada como uma experiência empírica de ordem natural. Eles argumentam que aquilo que os yogis experimentaram “aqui de dentro” nas suas mentes corresponde, de fato, às realidades “lá fora”, e por experimentarem em seu próprio interior, os adeptos védicos podem vir a conhecer e a controlar a realidade externa. De fato, os escritos neo-hinduístas e a Hindutva estão repletos com referências aos “Vedas” como fontes de descrições de fatos empíricos e leis da natureza, que eram “vistas” ou “ouvidas” pelos autores míticos dos “Vedas” através apenas do processo de meditação yogi.[10]

Em outras palavras: ainda que os filósofos neo-hindus aceitassem a ênfase kantiana no uso de “sua própria razão” e não a autoridade de sacerdotes e livros sagrados, eles rejeitaram o limite que os empiristas tinham imposto aos poderes da razão. A tradição empirista que floresceu durante o Iluminismo tinha negado com firmeza que se pudesse fazer qualquer afirmação substantiva sobre a realidade baseada somente na razão “pura” ou não-sensorial. Os filósofos neo-hindus insistiam que dentro da visão de mundo holística do Vedanta, na qual a consciência permeia toda a matéria, em que o conhecimento meditativo não-sensorial do interior da própria pessoa dá intuições sobre a realidade última do mundo material. Enquanto o Iluminismo traçou uma linha entre a percepção sensorial e não-sensorial, os neo-hindus rejeitaram esta linha e insistiam que a experiência mística constituía uma experiência empírica válida.

De que forma esta interpretação de misticismo como fornecendo um conhecimento empírico válido era defendida? Aqui nós encontramos surpreendentes similaridades com as teorias pós-modernas de que todo conhecimento – incluindo a ciência moderna -, sendo relativo a um paradigma, é uma construção de certas premissas metafísicas que servem aos interesses de poder sobre a natureza e a sociedade. Os pensadores neo-hindus afirmaram que a restrição kantiana ao conhecimento sensorial como a única fonte legítima de conhecimento é uma construção da cosmovisão dualista das religiões abraâmicas ou “monoteísmos semíticos”, nas quais Deus/consciência divina é separado da matéria bruta. Em razão da tradição hindu não separar matéria do espírito, mas considerar toda a matéria – viva e não-viva – como a encarnação de “energia vital” (prana) ou consciência (Brahma), é considerado perfeitamente legítimo dentro da tradição Hindu tratar a “realização” mística do espírito no nosso próprio íntimo como correlato ao espírito, ou essência, do resto do universo. E os apologistas da ciência védica continuam a insistir que, em razão do empirismo materialista “reducionista” ser uma aberração da fé abraâmica, qualquer um que aceite a sua validade sofre de “colonização mental” e tenta semitizar o dharma hindu.[11] Esta defesa de empirismo místico, infelizmente, ganhou um grande empurrão das interpretações idealistas da mecânica quântica popularizadas em anos recentes por Fritjof Capra, Mahesh Yogi, Deepak Chopra e Amit Goswami.

Então, quão modernos somos realmente? Se a modernidade significa uma diferenciação e separação entre a ciência e a religião, entre a experiência sensorial e a experiência mística de “realidades” metafísicas, nós na Índia temos um caminho longo a percorrer. Melhor do que desafiar a autoridade de experiências místicas privadas de nossos homens e mulheres “sagrados”, com a evidência e a lógica disponíveis para homens e mulheres ordinários na jornada diária da vida, nós temos prestigiado a mistagogia com o nome de “ciência holística”. Nós jogamos com palavras, racionalizando e fingindo que nós sabemos de tudo, enquanto, de fato, não sabemos.

9.

No entanto, alguém pode simpatizar com tudo o que eu disse acima e ainda perguntar: E daí? O que está tão terrivelmente errado com o cientificismo dos gurus, intelectuais e crentes neo-hindus? Por apresentarem a antiga sabedoria em termos científicos, eles não estariam encorajando os indianos a estudarem ciência e desenvolverem um temperamento científico? Por recusarem separar a consciência da matéria, eles não evitariam o materialismo estéril do Ocidente? Afinal de contas, por que esta cruzada contra as superstições? Não é verdade que a irracionalidade pode coexistir com a boa ciência como, por exemplo, na América, sem dúvida o líder do mundo na ciência? Outros aconselham que, enquanto se tem instituições e leis seculares estabelecidas, não valeria a pena se preocupar com as superstições populares. Ainda outros insistem que melhor do que lutar com “meras” idéias na cabeça das pessoas, nós deveríamos lutar por uma sociedade justa: a secularização, dizem, seguir-se-ia naturalmente às reformas econômicas e políticas.

Eu não nego que existam elementos de verdade na maioria desses alertas. Não se pode criar uma sociedade justa e secular pelo simples ato de imaginá-la; o temperamento científico em si vai somente até certo ponto. Uma ofensiva racionalista contra a superstição e as pseudociências pode ser significativa apenas se fizer parte de um movimento político maior, que possa atender as aspirações das pessoas por segurança existencial e justiça nesta vida, não em algum futuro nascimento ou sata-yuga. Não é que as pessoas precisam ser mais racionais, e sim que o sistema social que frustra a racionalidade e a criatividade precisa ser mudado.

Eu até admito que, pelo menos inicialmente, sob o colonialismo, o cientificismo hindu foi útil: ele nos deu a tão necessária confiança para confrontar os estereótipos coloniais da Índia irracional e mística, e ele tornou o cultivo da ciência em algo não-ameaçador. Mas, com o passar do tempo, o cientificismo hindu se transformou em uma maiúscula pseudociência com nuances nacionalistas. Os aspectos meio Nova Era do holismo corpo-e-mente, que se tornam cada vez mais populares entre os hindus urbanos sofisticados, são relativamente inofensivos: um pouco de Yoga aqui, algum vastu lá, com poções ayurvedicas para completar o quadro. No entanto, essa é a mesma cosmovisão que justifica a lógica tradicional da hierarquia e da pureza cármica inata, e que legitima os poderes “espirituais” paranormais dos homens-divinos e dos adivinhos. Eu concordo que alguns tipos de pensamento supersticioso estarão sempre conosco: isso é talvez uma conseqüência inevitável do imperativo humano de buscar explicações, sejam certas ou erradas. É claro, também, que não há necessidade de lutar contra cada idéia que não vá de encontro aos padrões de justificação científica, porque os seres humanos não vivem somente pela razão. Porém, enquanto as superstições e as pseudociências gozarem do tipo de hegemonia cultural, patronato e laços com o nacionalismo, como ocorre na Índia contemporânea, elas permanecerão uma força política potente. Dada a sua onipresente influência social, não podem ser vistas somente como tema de crenças pessoais.

Argumenta-se algumas vezes que a racionalização e a secularização das cosmovisões seguirão, por elas mesmas, na esteira da modernização econômica e tecnológica e, portanto, sem especial necessidade de interferir com o conteúdo de crenças das pessoas. De fato, até os secularistas bem-intencionados evitam críticas às crenças religiosas, como elitistas e desrespeitosas de pessoas comuns. No entanto, não há evidência de que a modernização da infra-estrutura e das relações econômicas possam, sozinhas, trazer uma secularização de crenças. As crenças, especialmente aquelas que respondem às nossas questões existenciais sobre a morte e o nascimento, o infortúnio e a boa sorte, o certo e o errado, têm uma vida própria. As crenças simplesmente não morrem quando muda o contexto social; ao invés disso, elas se transformam e se adaptam ao novo contexto social. A configuração planetária de Akshay Tritya, do exemplo acima, não deixou de ser auspiciosa para os indianos modernos, muitos dos quais que enriqueceram em empregos nos ramos da alta tecnologia e da pesquisa científica. Ao contrário, ela está se modificando – passando de um dia que era considerado auspicioso para os casamentos entre crianças para um dia auspicioso para o consumo conspícuo de jóias de ouro. Entretanto, permanece intacta a idéia básica que as estrelas podem ser auspiciosas para as ações humanas. Na Índia de hoje existe um ressurgimento de muitas superstições e rituais antigos – elaborados em linguagem pseudocientífica para atrair as sensibilidades modernas. A modernização econômica e científica, portanto, não garante uma cultura secular. A criação de uma cultura secular requer uma interação ativa com o senso comum religioso das pessoas.

É também verdade, como alguns cientistas amigos sugerem, que a boa ciência pode existir e até prosperar em sociedades que são, de outra maneira, supersticiosas. É verdade que a ciência moderna se tornou relativamente autônoma do resto da cultura. Ela desenvolveu sua própria metafísica naturalista e metodologia empiricista que existe freqüentemente em tensão com as interpretações da natureza que predominam no resto da cultura. É possível para cientistas treinados na cultura de suas arcanas especializações fazerem ciência de ponta sem ter que jamais interagir com as interpretações religiosas da natureza que prevalecem do lado de fora das paredes do laboratório. As duas culturas simplesmente parecem não falar a mesma linguagem, mesmo que elas, na realidade, freqüentemente ofereçam explicações que competem entre si para os mesmos fenômenos (por exemplo, a evolução pela seleção natural de Darwin e a “evolução espiritual” propagada pelo “Yoga integral” de Sri Aurobindo e seus seguidores, ou o “criacionismo védico" através da ação do karma e do renascimento, como proposto pelos seguidores da Consciência de Krishna).

Mas, enquanto a ciência pode prosperar em sociedades de outra forma irracionais, há um preço imenso a pagar pela lacuna. Não é uma coincidência, em minha opinião, que a maioria dos norte-americanos que acreditam na criação divina, negando a evolução darwiniana, também tenha acreditado no caso completamente falsificado da administração Bush ligando o Iraque com o terrorismo. Em ambos os casos, o raciocínio baseia-se na fé e não nas evidências. Em ambas as sociedades, há uma necessidade dos cientistas tomarem o partido do raciocínio crítico e da evidência sólida, tanto fora como dentro do laboratório. A necessidade de defender e advogar claramente a visão científica é muito maior na Índia, onde as superstições e as pseudociências têm um domínio mais profundo na psique popular e onde elas freqüentemente fazem uma diferença entre a vida e a morte, entre a dignidade e a indignidade das castas e de outras hierarquias.

Para concluir: a modernidade indiana permanecerá incompleta e esquizofrênica até o momento em que seja animada pelo espírito do raciocínio crítico. O lema de Kant: “Sapere aude!” (“Tenha a coragem de usar a sua própria razão!”) permanece tão vital para a Índia atual como o foi no seu próprio tempo. A especial insistência na espiritualização da natureza e da ciência em nome do holismo védico pode nos fazer sentir superior frente a outras fés e culturas, mas não nos ajudará a nos livrarmos de nossos próprios preconceitos e superstições.

Bibliografia

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Recebido: 09/12/2006
Aceite final: 29/03/2007

Notas

[1] Esta é uma versão significativamente revisada de um ensaio que apareceu na “Eastern Quarterly”, 3, 2 (2005): 75-85. Direitos para a língua portuguesa gentilmente cedidos pela autora. Tradução de Eduardo R. Cruz e Steven Engler, com a colaboração de Cíntia Ribeiro Hoffmann e Michael Gonçalves da Silva.

[2] No Hinduísmo moderno, “os Vedas” vieram a significar uma categoria solta e diversa de textos que se referem não só aos quatro “Vedas” canônicos em sânscrito, mas a toda uma série de textos pós-védicos, extra-védicos, e até anti-védicos. Os gurus e os intelectuais neo-hindus alimentaram a tradição de afirmar a origem védica, ou pelo menos paralelos védicos, de qualquer idéia que eles achem útil na perpetuação de uma cosmologia essencialmente espiritual e hierárquica dos “Vedas” e Vedanta. Para um exemplo risível (mas enganoso e perigoso), ver o bestseller de D. Chopra, “A Cura Quântica”, onde ele usa a física quântica para interpretar desenvolvimentos nas neurociências, como se eles simplesmente resumissem as verdades espirituais conhecidas pelos rishis védicos.

[3] Por cientificismo, como aparece na apologética religiosa, entendo a crença positivista segundo a qual, para a religião se tornar respeitável e significativa, ela deve ser "científica". Quer dizer, a sua metafísica e a epistemologia devem fazer face aos padrões da verificação empírica que se aplicam à ciência moderna. Isto reapresenta a metafísica tradicional em forma de teorias que soam com como científicas. Em vez de usar a metodologia empírica da ciência moderna para desafiar a metafísica, criando uma base não-metafísica, não-sobrenatural da religiosidade – como foi a intenção dos positivistas lógicos e empíricistas -, o cientificismo, nas mãos dos apologistas religiosos, converte a ciência moderna em um veículo da metafísica tradicional. Os hindus não estão sozinhos: o protestantismo americano também tem fortes correntes de cientificismo. Para uma comparação, ver Nanda (2005).

[4] Aqui, eu continuo o diálogo que comecei ao considerar o lugar da ciência na cultura indiana em meu trabalho anterior, em particular Nanda (2003) e em minha mais recente “Resposta aos meus críticos” (NANDA, 2005, 147-191).

[5] Para um fascinante estudo sobre o Iluminismo na Inglaterra, veja Porter (2000).

[6] Quando Kant forneceu uma defesa do empiricismo de encontro ao ceticismo radical de Hume, também limitou o conhecimento empírico apenas ao mundo fenomênico e negou a possibilidade de nós sabermos sempre se o conhecimento empírico dos fenômenos corresponde às estruturas do mundo real, o mundo-em-si. Como Kant mesmo admitiu, ele ajustou limites para a ciência a fim de ambientar a fé. O clássico de Ernst Cassirer (CASSIRER, 1992) é ainda uma das melhores explorações das implicações da filosofia kantiana para o Iluminismo.

[7] Os escritos de Isaiah Berlin possuem o melhor ponto de partida para a compreensão da oposição ao Iluminismo. Veja Berlin (1973).

[8] Tenho indicado a sobreposição entre o nacionalista hindu e as perspectivas pós-coloniais na ciência em meus escritos anteriores. Ver nota 3.

[9] Veja Marty e Appleby (1992) para uma boa descrição dos enclaves da ortodoxia.

[10] Para uma clássica afirmação do Yoga como fonte de conhecimento e controle do mundo natural, ver a exposição, por Vivekananda, dos “Yoga Sutras” de Patanjali, nas suas conhecidas palestras sobre Raja Yoga. Reflexões críticas sobre esta espécie de “empirismo espiritual” são poucas e muito espaçadas. Ver, porém, Willhelm Halbfass, “O conceito de Experiência”, em Halbfass (1988) e Rambachan (1994). Para uma crítica ferrenha ao tratamento de experiências místicas como tendo referências ontológicas, veja Bharati (1982).

[11] Eu tenho sido alvo deste tipo de insulto dos partidários da Hindutva.