Tratada frequentemente pela denominação genérica de Sufismo (conceito construído externamente e ocidentalizado a partir do termo tasawwuf), a espiritualidade islâmica guarda em si uma miríade de facetas, expressões e diferentes abordagens cujo estudo reserva problemas específicos que são pouco considerados pelos estudiosos do tema. A questão central deste trabalho é o estudo dos primeiros místicos de Al-Andalus (a Península Ibérica islamizada), chamados batinis, levantando possíveis influências xiitas, especialmente da corrente ismaili, através de textos e de missionários (da’i) que foram intencionalmente enviados a todas as partes do mundo islâmico. Estes missionários teriam vivido ocultos sob a proteção externa do ascetismo Sufi, especialmente a partir da queda do califado de Bagdá.
Palavras-chave: Ismailismo, Sufismo, Al-Andalus, Islam, da’wa.
Islamic spirituality, frequently referred to as Sufism (an externally constructed and Westernized concept based on the word tasawwuf), includes a myriad of facets, expressions, and different approaches, whose study raises specific issues which are rarely considered by Islamic scholars. The central question of this work is the study of the early mystics from Al-Andalus (the Islamized Iberian Peninsula). These mystics were refered to as batinis, indicating possible Shiite influences, particularly of the Ismaili sect, through texts and missionaries (da’i) which were intentionally sent to all parts of the Islamic world. These missionaries would have lived hidden under the external protection of Sufi ascetism, especially after the fall of the Caliphate of Baghdad.
Keywords: Ismailism, Sufism, Al-Andalus, Islam, da’wa.
A Mística[1] enquanto fenômeno ou categoria de experiência humana (bem como seus produtos e expressões, sejam eles apresentados como obras literárias ou não) já nos oferece suficientes problemas como objeto de estudo. Tais problemas decorrem das mais diferentes dificuldades, dentre as quais podemos citar: a própria definição do objeto de estudo ou sua delimitação frente a outras produções semelhantes, sua classificação, além da delimitação entre seu âmbito e o dos demais fenômenos e experiências humanas. A diversidade de fenômenos e produções aos quais podemos atribuir o qualificativo de místicos complica ainda mais o quadro. Por fim, o estranhamento que nos invade, ao entrarmos em contato com um tipo de material que não necessariamente segue as regras lógicas e a ordem com a qual estamos acostumados, completa o quadro de dificuldades. Isto faz com que o estabelecimento de uma ou mais disciplinas específicas para o estudo deste objeto seja uma tarefa extremamente difícil.
Ao tratarmos dos fenômenos e produções de cunho místico no seio do Cristianismo, pelo fato de estarmos mais acostumados à linguagem utilizada e mais familiarizados com o contexto no qual aquele tipo de pensamento se desenvolve, o estranhamento radical é, de certo modo, amortecido. Mas se, por um lado, a familiaridade facilita a compreensão da linguagem utilizada e da situação social envolvida, por outro, a tendência à interpretação dos fenômenos, relatos e textos em geral como meras produções religiosas – comuns e explicáveis pela chave teológica – pode fazer com que percamos aqueles elementos de originalidade propriamente mística (experiencial) e mistérica (iniciática) que sobrevivem abaixo da superfície da linguagem religiosa socialmente compartilhada. Na via inversa, ao passarmos ao estudo das expressões místicas de outras religiões que não são dominantes em nosso meio social, os elementos propriamente místicos saltam mais aos nossos olhos, reforçando o estranhamento. Entretanto, devido à dificuldade que se apresenta pela falta de familiaridade com o contexto da linguagem teológica das religiões não-cristãs, enfrentamos o risco de interpretar inadequadamente o significado social e cultural de imagens, ritos ou mensagens em geral. Isto pode condenar-nos a tomar equivocadamente por místicos elementos e imagens comuns àquela forma religiosa em geral.
O estudo da mística islâmica, especialmente no Ocidente, está longe de ser um tema esgotado, classificado e propriamente conhecido. Tratada frequentemente pela denominação genérica de Sufismo (conceito construído externamente e ocidentalizado a partir do termo tasawwuf), a espiritualidade mística islâmica guarda em si uma miríade de facetas, expressões e diferentes abordagens, cuja análise reserva problemas específicos que são, de modo geral, evitados pelos estudiosos do tema, ainda que encontremos exceções. Conforme Burkhardt, “Parece-nos legítimo denominar o sufismo ‘mística muçulmana’, sempre com a condição de utilizar o termo mística em seu sentido original e preciso[2]: o sufismo tem por objeto um conhecimento cuja natureza íntima é um ‘mistério’ que não pode ser plenamente comunicado pela palavra” (BURKHARDT, Introdução, In AL-YILI, 2001: 2). Segundo Poliakova, o estudo desse importante fenômeno apresenta dificuldades consideráveis, porque o Sufismo é caracterizado por um grande número de interpretações individuais (POLIAKOVA, 2003). Poliakova levanta ainda uma dificuldade adicional, posto que uma das grandes questões seria, a seu ver, a aparente discrepância entre a terminologia utilizada na poesia e nos tratados mais especulativos. Mas muito além dos problemas apontados pela autora, e antes mesmo de buscar pontes entre a literatura especulativa e a poesia ou de estabelecer as diferenças entre os autores individuais (como faríamos em qualquer corrente mística ou filosófica), cabe indagar se o termo genérico Sufismo é uma categoria justa, aplicável e adequada às diferentes expressões da mística islâmica. Cabe indagar se não seria esta, ao menos como é utilizada pelos “orientalistas” ocidentais, uma categoria vaga que se refere genericamente a toda e qualquer expressão mística nos moldes da tradição islâmica, aguardando por estudos mais detalhados que diferenciariam uma série de formas mais específicas a partir de novos critérios.
Diferentes correntes do sufismo são caracterizadas por uma extrema variedade e um único Sufismo jamais existiu. Esta é a razão pela qual, ao tentar distinguir os princípios que são mais ou menos comuns a todas as correntes, inevitavelmente chegamos a um (alto nível) de abstração que só aproximadamente reflete o real estado das coisas. (BERTELS apud POLIAKOVA, 2003: 1)
A nosso ver, a adequada compreensão da mística islâmica não pode ser atingida independentemente do estudo da construção e desenvolvimento do Islam enquanto tal. Com isto queremos dizer que não podemos olhar para as expressões da mística islâmica como uma sabedoria desprovida de um arcabouço teórico ao qual necessariamente se filia, bem como de expressões literárias e imagéticas já sedimentadas, sob pena de interpretarmos erroneamente a intenção daqueles autores. Consequentemente, esse arcabouço teórico está relacionado também às diferentes expressões regionais, às correntes de pensamento, às escolas de interpretação e aos movimentos teológicos, simultâneos ou que se sucederam, no processo de constituição do Islam enquanto religião estabelecida com pretensões universais.
Conforme a crença, Maomé já previra as diversas facetas nas quais o Islam iria se desdobrar. As 73 seitas previstas pelo hadith relatado por Abdullah bin Amar tomam forma através do curso da história, oferecendo-nos a riqueza de interpretações que compõem o universo da espiritualidade islâmica. Do ponto de vista dos estudiosos do mundo ocidental cristão, poucas diferenças são levadas em consideração além das mais óbvias, apresentadas entre os ramos xiita e sunita. Mas apesar de compartilhar da mesma crença, dos mesmos compromissos básicos e obrigações, a Umma[3] apresenta uma série de variantes adicionais, devidas tanto ao estabelecimento do Islam sobre as mais diversas culturas preexistentes, quanto aos diferentes desenvolvimentos filosófico-teológico-jurídicos. Deste modo, o Islam do Maghreb não é o Islam da antiga Pérsia e não pode ser analisado com as mesmas categorias. Assim, a mística islâmica que se há de encontrar em um lugar não será de modo algum idêntica à que encontraremos em outro. Mesmo em termos de divisão política, há que lembrar que, durante certos períodos da Idade Média, chegamos a contar com as orientações concomitantes de três califados comandados por dinastias muito diferentes entre si: Bagdá (Abássida), Cairo (Fatímida) e Córdoba (Omíada). Apesar desse fato, temos sempre que considerar que as influências das diferentes escolas de pensamento atravessaram rapidamente terras e mares, durante o período medieval, nas bagagens de peregrinos, viajantes e comerciantes.
No caso particular deste trabalho, interessa-nos o chamado Islam Ocidental, e mais especificamente, Al-Andalus. Contando com no mínimo sete séculos de influência e poderio islâmico, ainda que concentrados num processo um pouco mais tardio, e apresentando, talvez, uma gama mais restrita de tendências, o universo de influências teóricas que podemos encontrar na Espanha Medieval não é de todo diferente do encontrado no restante do mundo islâmico medieval. Por esta razão, ao analisarmos a produção ibérica devemos considerar as mesmas tendências intelectuais que encontramos no Oriente, equivocando-se os estudiosos que desejam ver uma unidade artificial construída sobre a dispensa das diferenças que os grandes místicos ibero-muçulmanos ofereceram.
À exceção de Ibn Arabi (Al-Sheikh Al-Akhbar), o qual em si já representa uma síntese de seus antecessores, a espiritualidade andaluza é pouco explorada. Isto ocorre não somente no Ocidente, mas também no Oriente islâmico. Disso decorre que suas origens encontrem-se ainda mergulhadas em sombras que confundem nosso olhar mais analítico quanto às influências que, por ventura, veio a incorporar. Dentre estas influências, chama-nos a atenção a possibilidade de que o pensamento xiita Ismaili tenha sido muito mais expressivo do que a primeira vista podemos avaliar, seja através das obras que circulavam livremente na época e região, seja através da presença física dos da‘i – os missionários fatímidas:
Em meados do século 3/9, os Ismailis organizaram um movimento político-religioso secreto designado al-da’wa (a missão) ou, mais precisamente, al-da’wa al-hadiya. (...) A mensagem revolucionária da da’wa Ismaili foi propagada sistematicamente por uma rede de da’is, ou missionários político-religiosos em diferentes partes do mundo islâmico, da Transoxânia ao Yemen e Norte da África (DAFTARY, 1999: 29).
Estes missionários enviados a todas as regiões, bem como as obras que consigo levavam, podem ter deixado sua marca com fortes tintas no pensamento ibérico, ainda que a maioria dos estudiosos não tenha atentado para este fato, e esta corrente de pensamento se encontre historicamente mesclada com a imagem geral do Sufismo na península. Mas, uma vez que a atividade de propaganda fatímida foi tão influente no norte da África, é forçoso pensar que tenha também atravessado o estreito de Gibraltar. Conforme Alves,
Para além do clima de crise e dissolução política que reinava na península islâmica, o Gharb, como zona periférica mais distante do controle teológico do poder central Almorávida, fervilhava da influência das idéias sufis, em boa parte trazidas do Oriente, a que se adicionavam, não raro, contribuições tingidas de xiismo, principalmente ismaelita (ALVES, 2001: 78).
O próprio termo Sufismo apresenta diferentes significados conforme os autores que o utilizam. Entendido genericamente como mística islâmica organizada em ordens esotéricas, estruturadas segundo regras e hierarquias definidas em torno de um sheikh ou pir ao qual os discípulos devem obediência, a história mostra que nem sempre foi assim. Num primeiro momento, o termo se referia aos ascetas, na maior parte das vezes solitários e mendicantes. Denominados Ahl al-Sufa, numa fase inicial, era associado aos homens que aguardavam pela mensagem de Maomé e, mais tarde, esperavam nas mesquitas pela caridade alheia. Este breve período foi caracterizado por seu caráter ascético e eremítico, ainda que o Corão condene textualmente o afastamento da sociedade. Numa fase um pouco posterior, a mística islâmica passa a assumir uma feição mais intelectualizada que veio a nos legar pensadores profundos, ainda que a filosofia racional moderna não os reconheça enquanto filósofos. Tais ascetas e mesmo os grandes pensadores eram, na maior parte das vezes, homens também solitários que eventualmente se cercavam de um círculo restrito de discípulos. Podemos notar que a busca do “companheiro de jornada” é tema recorrente, tanto na literatura, quanto nas biografias dos grandes santos ou pensadores. Posteriormente, estes discípulos vieram a conformar ordens regulares a fim de eternizar o ensinamento ou o método dos grandes mestres, na maior parte das vezes, somente após suas mortes.
Em maior ou menor grau, dependendo do momento histórico que o Islam como um todo ou alguma província determinada atravessava, os círculos místicos passaram a ser vistos pela hierarquia política e jurídica como ameaças. Isto fez com que, na tentativa de resguardar-se de acusações e perseguições, os Mestres do Caminho Místico se revelassem cada vez mais adeptos da ortodoxia. Sabemos que falar em ortodoxia no Islam não é fácil, uma vez que não há estrutura hierárquica estabelecida e as obrigações básicas já estão previstas no Corão. O conceito mesmo de ortodoxia foi sendo modificado, variando histórica e geograficamente, conforme o grupo que assumia o poder. Mas essa ortodoxia, em grande parte da história e em grande parte das regiões administradas pelo Islam, foi majoritariamente sunita. Este processo fez com que o tasawwuf ou Sufismo tenha sido entendido por muitos autores como “a espiritualidade inerente ao Islam sunita”, em contraposição à espiritualidade xiita, corrente que, pelo fato de carregar consigo desde seu início uma proposta de regra de vida mais dedicada à espiritualidade, considerava a si mesma “a autêntica depositária da espiritualidade islâmica” (SEGOVIA, 2005: 34). Vale ressaltar que, nos dias atuais, a maioria das ordens Sufis ainda em atividade reforça sua independência frente a sunitas e xiitas, advogando representarem uma vertente independente no Islam.
Os problemas principais que a busca mística apresentava para as autoridades estabelecidas partiam do fato de que aqueles círculos se dedicavam às atividades de interpretação do texto corânico de um modo mais livre dos preceitos e regras religiosas, tal como eram entendidas pelo vulgo e pelos teólogos. E mais: esta atividade tinha lugar, não raramente, em comunidades apartadas das grandes instituições religiosas coletivas, o que gerava, obviamente, uma maior desconfiança por parte das autoridades estabelecidas. Para além destas questões, um sério assunto teológico é provocado pela busca mística, precisamente um problema em torno da relação entre Revelação, Profecia e Santidade. Uma vez que Maomé é o Selo da Profecia[4], ninguém pode afirmar ter recebido orientação direta sem despertar suspeitas de heresia. Em um sem-número de casos esta questão teológica fundamental, supostamente desrespeitada pelos círculos místicos, gerou problemas em relação à ortodoxia dos fuqaha[5], e grande parte das acusações formuladas contra os místicos no Islam esteve relacionada a este ponto específico.
Como pensar o caminho místico sem mediações, ou o contato direto com a Luz divina, se a Profecia está encerrada com o Profeta Maomé? Muitos autores, tanto os místicos quanto os chamados teólogos racionais, dedicaram-se a tentar diferenciar profecia de santidade[6] e explicar os tipos de uma e de outra, com os mais diversos fins. Uns o fizeram para justificar-se perante a comunidade, como no caso dos místicos como Ibn Arabi, definindo a si próprio como selo da santidade; outros se dedicaram ao assunto a fim de que este dogma não fosse abalado por afirmações sugerindo deificação ou contato direto com Deus, como os teólogos frente à famosa frase “Ana Al-Haqq” ("Eu sou a verdade") de Hallaj, a qual terminou por valer-lhe a vida.
Por advogar a possibilidade de continuidade da Revelação profética, ainda que não com a mesma força que inspirou o profeta Maomé, o Islam xiita em geral e, em especial a corrente Ismaili, foi visto com reservas por aqueles que acreditavam que toda a verdade já estava revelada no Corão, que professavam a interpretação literal das escrituras e confiavam na retirada radical da inspiração profética do mundo humano após seu selo, Maomé.
A simples walaya (proximidade de Deus, traduzida normalmente por Santidade) advogada pelo Sufismo, dependendo da extensão que vem a assumir, pode já ser o bastante para configurar ameaça aos olhos dos juristas mais extremados. As ordens esotéricas, muitas delas já estabelecidas a partir do século XIII em torno de um mestre ou wali reconhecido pela comunidade ao qual deviam obediência, concorriam também, enquanto comunidades autônomas dotadas de regras de vida particulares, com a estrutura hierárquica jurídico-política estabelecida, gerando mais suspeitas. Porém, se comparamos as suspeitas que recaíam sobre as ordens sufis à declarada intenção de eliminação de algumas das correntes do Islam – situação pela qual passaram particularmente os ismailis – a situação dos sufis poderia parecer confortável. Isto se deveu especialmente à perseguição que se instalou em diversas regiões, especialmente após a queda do califado fatímida (909-1171) e da anexação do Egito por Saladino.
Vale observar que a dinastia fatímida foi fundada originariamente a partir da Ifriqya, na qual um dirigente, legitimando suas pretensões por sua descendência do Profeta através de sua filha Fátima e Ali ibn Abu Talib, declarou-se califa. A partir de seu estabelecimento em Kairouán, estendeu seu poder a todo o Maghreb (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia); os fatímidas entraram no Egito em 972, estabelecendo a capital em Al Qahira (Cairo) e seguiram conquistando localidades vizinhas chegando a governar da Tunísia à Síria, tendo aportado até mesmo à Sicília. Com a supressão do califado, muitos ismailis passaram a viver ocultos, desenvolvendo secretamente suas reais crenças religiosas sob muitos disfarces.
As relações entre os Ismailis e outras comunidades religiosas do mundo Islâmico foram frequentemente caracterizadas por longos períodos de conflito, uma vez que eles foram muitas vezes entendidos e perseguidos por outros como “hereges”. Sob tais circunstâncias adversas, os Ismailis foram obrigados através de grande parte de sua História a praticar taqiyya, ou dissimulação por precaução, ocultando suas verdadeiras crenças religiosas ou adotando diferentes aparências externas, incluindo Sufi, Sunita, xiita duodecimano ou mesmo Hindu, para sua própria proteção (DAFTARY, 2001, s.pp.):
No processo de repressão aos concorrentes levado a cabo pelos abássidas e frente à política de aniquilação de qualquer vestígio do poderio fatímida, o tasawwuf representou um excelente esconderijo para os místicos das mais diversas origens e diferentes crenças. No caso específico da Península Ibérica, o fato de que os primeiros místicos – consideramos aqui aqueles que precederam a Ibn Arabi – foram referidos sempre como batinis, reforça mais ainda nossa hipótese, uma vez que o termo que se aplica tanto aos ismailis, porque afirmavam que o Corão continha um sentido oculto (batin), como aos sufis, que acentuavam o aspecto interior (batin) da religião (STERN, 1983).
A teologia ismaili foi elaborada primeiramente sob a dinastia fatímida estabelecida no Egito. A partir daquele pólo, missionários propagandistas (dā‘ī) foram enviados a diversos lugares, ganhando a simpatia de diversos grupos descontentes (HALM, 1996: 91-93). O reinado de Al-Mutansir (1036-94) foi um tempo de particular prosperidade, pois, ainda que tivessem perdido o controle político das regiões do norte da África, conseguiram um número imenso de conversões. Estes primeiros ismailis também lançaram as bases das suas tradições intelectuais elaboradas posteriormente.
Ainda no período fatímida,
Fizeram uma distinção fundamental entre os aspectos exotéricos (zahir) e esotéricos (batin) das sagradas escrituras e mandamentos religiosos, sustentando que todo significado literal implica uma realidade interna oculta (haqiqa). Essas verdades imutáveis, as verdades comuns e eternas das religiões reconhecidas no Qur’an foram efetivamente desenvolvidas, em termos de um sistema de pensamento gnóstico pelos primeiros Isma‘ilis. Este sistema representa um mundo esotérico de realidade espiritual, uma realidade comum às grandes religiões monoteístas da tradição Abrahâmica (DAFTARY, 1996: 2).
Em linhas gerais, certas particularidades da crença ismaili podem ter propiciado a facilidade de diálogo entre diferentes correntes e sistemas religiosos e filosóficos. Dentre elas, figuram certas idéias que representam verdadeiras pontes entre as correntes místicas das diferentes tradições. Neste sentido podemos citar:
Que a doutrina do Mahdi encontrou seu meio intelectual mais apropriado na cultura iraniana é agora compreensível. Iranianos que eram familiarizados com a idéia do retorno do salvador através do Zoroastrismo, quando convertidos ao xiismo e, então compartilhando ambos a escatologia xiita e suas condições de vida infelizes, foram mais receptivos à idéia do Mahdi. (AHMADI, 1995: p. 275)
Vale ressaltar que a questão da relação entre linguagem e significação é de fundamental importância para a visão de mundo e sistema de crenças da vertente ismaili, representando mesmo a espinha dorsal da compreensão deste ramo do Islam. O tratamento conferido à linguagem tornou-se praticamente um sinal distintivo assumido pelos próprios líderes dessa comunidade. Isto pode ser ilustrado através da importância conferida ao tema por Azim Nanji (diretor do Instituto de Estudos Ismailis, sediado em Londres), o qual dedica ao assunto quase um quarto de um verbete de enciclopédia destinado à apresentação das doutrinas dessa vertente islâmica:
Entre as ferramentas de interpretação das escrituras que estão associadas particularmente com a filosofia xiita e Ismaili está a do ta’wil. A aplicação deste termo corânico, que significa “retornando ao primeiro/ ao início” marca o esforço no pensamento Ismaili de criar um discurso filosófico e hermenêutico que estabelece a disciplina intelectual para a abordagem da revelação e criou uma ponte entre filosofia e religião. Deste modo, a filosofia, como é concebida no pensamento Ismaili, busca estender o significado da religião e revelação para identificar o visível e o aparente (zāhir) e também para penetrar nas raízes, reencontrar e revelar aquilo que é seu interior ou segredo (bātin). Em última instância, essa descoberta engaja o intelecto (‘aql) e o espírito (ruh), funcionando de maneira integral para iluminar e revelar verdades (haqa’iq). O modo apropriado de linguagem que melhor nos serve nessa tarefa é, de acordo com os filósofos Ismailis, a linguagem simbólica. Essa linguagem, que emprega analogia, metáfora e símbolos, permite-nos fazer distinções e estabelecer diferenças em direções em que uma leitura literal da linguagem não nos permite. Essa linguagem emprega um sistema especial de signos, o significado último daquilo que pode ser “desvelado” pela aplicação apropriada da hermenêutica (ta’wil). (Nanji, 2003: s.pp.)
Por outro lado, as idéias em relação à linguagem apresentadas pelos ismailis são amplamente compartilhadas e defendidas por correntes místicas das demais tradições abraâmicas, especialmente aquelas que seguem o modelo neoplatônico (modelo este que influenciou profundamente a espiritualidade Ismaili, principalmente a partir de Nasir Kusraw). As idéias gerais sobre a linguagem defendidas pela corrente ismaili possuem grande correspondência com as linhagens místicas judaico-helênicas influenciadas por Filon de Alexandria e, com as correntes cristãs descendentes da proposta do Pseudo-Dionísio Areopagita. Dentre as idéias que apresentam correspondência podemos ressaltar: a utilização necessária do ta’wil (interpretação esotérica das escrituras); a distinção entre zahir (sentido externo ou literal) e batin (sentido interno ou esotérico) aplicado à sua total compreensão do mundo, bem como aos textos sagrados; a abordagem negativa das qualidades de Deus. Muitos teóricos afirmam a defesa desta abordagem negativa, uma vez que Ele (Deus, Allah) não seria nem substância, nem matéria, nem forma, nem teria nomes ou atributos, ainda que todos aceitassem a utilização dessas expressões, desde que entendidas sempre numa chave simbólica ou alegórica. Outra característica comum também originária tanto das Escrituras como do platonismo/neoplatonismo é utilização do simbolismo da luz para a Criação, que ocorre por vontade livre de Deus:
Conforme um tratado sem título de Abū ’Īsā al-Mushid, nada existiu antes do espaço e antes do tempo a não ser somente Deus. Sua vontade chamou a ser a criação, e a criação emergiu da luz, a qual emana do próprio Deus. A essa luz Deus disse o comando criativo: “Kun! [Seja!] ou Torne-se!” (HEINZ, 1996: 78).
Esta abertura em direção às demais linhas da tradição abraâmica conferia aos adeptos da corrente ismaili uma grande vantagem em relação às linhas islâmicas mais radicais. Isto se traduziria numa maior capacidade de penetração em regiões cuja população não era predominantemente muçulmana, como era o caso da Espanha medieval, ocasionando inclusive a dispersão de certas idéias para além das comunidades muçulmanas. Por outro lado, a proximidade geográfica dos territórios já perdidos no norte da África pode, do mesmo modo, ter levado adeptos a atravessarem o estreito de Gibraltar em busca de um ambiente em que reinasse maior tolerância religiosa.
Uma influência que parece ter sido bastante importante em Al-Andalus – tanto no que diz respeito às idéias veiculadas quanto à proposta de formação de círculos heterogêneos de discussão filosófica – é a chamada “Enciclopédia dos Irmãos da Pureza” (“Rasa’il Ikhwan al-Safa”). Este texto anônimo gerou controvérsias entre os estudiosos a respeito de sua verdadeira autoria. Acredita-se nos dias de hoje que tenha sido composto, provavelmente, por um grupo de pensadores de Basra que formavam uma sociedade secreta. Consta que essa sociedade não era composta exclusivamente de indivíduos de confissão islâmica, o que, colabora também para a identificação deste material com as vertentes ismailis, uma vez que sempre primaram historicamente pela tolerância religiosa, inclusive no aspecto político, especialmente para com cristãos e judeus. “Os Ikhwan jamais hesitaram em apelar em seus Rasa’il a outras escrituras do monoteísmo abrahâmico, como a Torah ou os evangelhos canônicos cristãos” (EL-BIZRI, 2006: 118).
A relação do termo “pureza” ou “sinceridade” como é por vezes traduzido Safa com o termo Sufi já foi amplamente apontada. Suzanne Diwald, tradutora do texto ao alemão, parece crer que a “Enciclopédia” é de origem exclusivamente sufi e não ismaili e seu conteúdo é simplesmente místico (DIWALD, 1975: 27). Na via inversa, diversos autores defendem a orientação ismaili do texto, posição que é corroborada pela alta aceitação do texto entre os teóricos dessa corrente e pelo fato de que essa obra é reconhecida atualmente pelos filósofos ismailis como material próprio (NASR, 1993: 27). Em verdade, a dificuldade em estabelecer com certeza e exatidão que alguma produção seja um material de origem ismaili é imensa, a menos que alguma obra tenha sido publicamente assumida por algum dos autores que foram notoriamente da’is. Esta extrema dificuldade decorre de várias razões, das quais podemos sublinhar duas como as mais importantes: a primeira delas é o fato de que o trabalho de recuperação dos materiais procedentes desta corrente ainda está em fase inicial, ao contrário das demais vertentes filosóficas e místicas do Islam.
A descoberta dos estudos Ismailis teve que esperar a recuperação e estudo de textos genuínos Ismailis em larga escala – fontes manuscritas que foram secretamente preservadas em numerosas coleções privadas. (...) Paul Casanova (1861-1926), que produziu importantes estudos sobre moedas Fatímidas e Nizari, foi o primeiro orientalista europeu a reconhecer a origem Ismaili dos Rasā’il Ikwan al-Safa’... (DAFTARY, 2002: 11).
A segunda razão é a prática constante da adoção de disfarces, não somente na vida pessoal dos autores, mas também na linguagem utilizada para a exposição de suas idéias e nas posições defendidas veladamente em muitos textos. Em diversas obras, a linguagem foi intencionalmente atenuada, em virtude da perseguição à qual estavam sujeitas aquelas idéias, a fim de provocar menores reações.
O conjunto de textos que ficou conhecido como “Enciclopédia dos Irmãos da Pureza”, ainda que não o tenha sido do modo como compreendemos o termo atualmente, conta com 52 epístolas curtas abordando disciplinas diversas como astronomia, medicina, metafísica, angeologia, entre outras. Estes textos, ou Epístolas (Rasa’il-plural; Risalat-singular) como são chamados normalmente, apresentam nítidos propósitos educacionais, ou seja, de “trazer à perfeição as faculdades latentes do homem para que ele possa alcançar a salvação e a liberdade espiritual” (NASR, 1993: 30). Vale ressaltar que, em termos de organização social, a Irmandade (Ikwan Al-Safa) provavelmente era composta, conforme seus próprios escritos, não somente de indivíduos oriundos das diversas tradições religiosas e regiões geográficas, mas de seus círculos participaram também homens das mais diversas formações profissionais e origens sociais. Acredita-se que, dentre eles, alguns chegavam a atravessar centenas de quilômetros para encontrá-los.
A introdução dessas idéias no medievo espanhol deveu-se inicialmente a um resumo das Epístolas que circulava em Al-Andalus, supostamente trazido (ou mesmo composto) por Abu-l Qasim Maslama b. Ahmad, Al-Majriti, conhecido matemático e astrônomo. Parece ter sido ele o primeiro em Al-Andalus a conhecer profundamente o Almagesto de Ptolomeu e “o mais sábio na ciência das esferas celestes e dos movimentos das estrelas” (SAID, 2000: 146). Entre os discípulos que formou, figurava Abu-l Hakam ‘Amr b. ‘Abd al-Rahman b. Ahmad b. ‘Ali al-Kirmani, figura notável por seu conhecimento em aritmética e geometria. Tendo viajado este último ao Oriente, consta que chegou até Harran, onde aprofundou seus conhecimentos de medicina e geometria. Ainda conforme Sa’id, a partir do comentário de um discípulo seu, apesar de não ter ficado famoso por estas ciências, Abu-l Hakam al-Kirmani dominava a fundo as disciplinas teóricas como a lógica e a astronomia. Retornando a Zaragoza, Al-Kirmani trouxe consigo, pela primeira vez a Al-Andalus, o texto completo das Epístolas dos Irmãos da Pureza (SAID, 2000).
O conceito de filosofia utilizado por estes autores é bastante distinto daquele que veio a ser o objetivo perseguido posteriormente por Ibn Rushd (Averrois) ou pelos filósofos puramente peripatéticos (masha’iyun). Para eles, a filosofia era equivalente à Hikhma (Sabedoria) e não seria admissível adquirir conhecimento independentemente da busca da perfeição das qualidades espirituais e da proximidade do homem com Deus:
Ao invés disso, eles identificavam filosofia com Hikmah, (Rasa’il, III, 324) contrariamente a um grande número dos primeiros escritores muçulmanos que usaram a filosofia como sendo sempre sinônimo da sabedoria puramente humana e Hikmah como uma sabedoria que tem sua fonte última na revelação trazida pelos antigos profetas. Filosofia, para os Ikhwan, é a “similitude maior possível do homem com Deus”. São “os meios pelos quais mais uma vez a elite dos homens ou os anjos na terra aproximam-se do Criador Altíssimo” (Rasa’il, I, 221). Seu uso é a “aquisição da virtude específica da raça humana, aquela de trazer à atualização todas as ciências que o homem possui potencialmente... Pela filosofia, o homem realiza as características virtuais de sua raça. Ele alcança a forma da humanidade e progride na hierarquia dos seres até atravessar o caminho reto (ponte) e a via correta, ele se torna um anjo...” (Risalat al-Jami’a, I,101) Pode ser facilmente visto que há uma conexão mais íntima entre essa concepção e o objetivo Pitagórico-Socrático de purificação da alma humana do que com a lógica peripatética. (NASR, 1993: 34)
Por esta concepção de filosofia como sabedoria em todos os sentidos e, especialmente, como gnose, os Ikhwan foram associados aos pensadores de Harran, entendidos como defensores de um certo “pitagorismo Oriental” e propagadores do Hermetismo no mundo islâmico. Os números desempenham um papel fundamental em suas teorias e na linguagem utilizada nas epístolas como um todo, sendo compreendidos enquanto a forma de expressão do “Livro da Natureza”, da qual derivaram os valores numéricos das letras, que seriam capazes de desvelar os segredos também do “Livro da Revelação” (NASR, 1993). Assim, os Irmãos da Pureza, bem como os antigos pitagóricos e hindus, desenvolveram um simbolismo das letras (ilm al-jafr) similar ao utilizado pelos cabalistas judeus medievais, que veio a desempenhar importante papel na interpretação simbólica (ta’wil) do Corão entre as escolas iniciáticas xiitas posteriores.
Vale ressaltar também, conforme afirma Nasr, ao discorrer acerca da utilização dos números pelos Ikwan al-Safa que,
Os números pitagóricos, sendo entidades qualitativas muito mais do que quantitativas, não podem ser identificados simplesmente com a divisão e multiplicidade como os números modernos. Eles não são idênticos à quantidade, ou seja, sua natureza não é esgotada por seu aspecto quantitativo somente. Pelo contrário, porque eles são uma “projeção da unidade” que jamais é separada de sua fonte, os números pitagóricos, quando identificados com uma certa entidade existente no mundo da multiplicidade, integra essa entidade à Unidade, ou Puro Ser, que é a fonte de toda existência. Identificar um ser com um determinado número é relacioná-lo com a sua fonte através do vínculo interno que conecta todos os números à Unidade (NASR, 1993: 48).
Para além da influência geral que o texto das epístolas possa ter exercido em Al-Andalus, sabe-se que o primeiro grande místico hispano-muçulmano, Ibn Masarra de Córdoba, esteve no Oriente, tendo entrado em contato com os círculos de estudo dos irmãos da Pureza.
Considera-se que o primeiro importante místico muçulmano na península ibérica foi Mohammed Ibn Masarra. Conforme Asín Palacios,
é bem significativo o fato de que antes de Ibn Masarra não se mencionassem tais escolas ou sociedades místicas na Espanha muçulmana, ao passo que, depois de sua morte e ao lado daquela que ele fundou, aparecem duas similares em Sevilha e em Córdoba que se perpetuam até finais do século VI/XII (ASIN PALACIOS, 1992: 142).
Mas a escola que será considerada como herdeira do pensamento masarri será a chamada Escola de Almeria. A Ibn Masarra e seus discípulos seguiram-se, portanto, Ibn al Arif de Almeria e aqueles que disseminaram suas idéias por outras cidades e suas regiões de origem, especialmente: Abu Bakr em Granada, Ibn Barrajan em Sevilha e Ibn Qasí em Algarves (hoje Portugal).
Ibn Masarra foi considerado herege desde cedo. No início, as mensagens divulgadas por seu pensamento filosófico confundiam-se aos ouvidos da população em geral com os ecos do bispo cristão Prisciliano de Ávila, cujo movimento herético e provavelmente unitarista teve enorme aceitação na Espanha pré-islâmica. “Por sua amplitude, não podemos avaliar a grande repercussão que teve o fenômeno priscilianista, o qual pode ser abordado a partir de muitas perspectivas: desvios doutrinais, conflito social, relação entre o poder civil e eclesiástico, monaquismo e ascetismo, etc.” (MARTINEZ; BELTRÁN; GONZÁLES, 1999: 71). Conforme Asín Palacios, os seguidores de Ibn Masarra poderiam ser entendidos como continuadores da gnose de Prisciliano (ASIN PALACIOS, 1992)[7]. Ainda que esses ecos não tenham sido satisfatoriamente demonstrados em termos de filiação filosófica, é inegável que em termos de repercussão e aceitação popular o movimento iniciado por Ibn Masarra manteve semelhanças com o ascetismo cristão de Prisciliano. Ambos representaram uma reação frente à mundanização e politização das respectivas religiões de origem, significando o movimento priscilianista, conforme considera Blázquez, um protesto radical (BLÁZQUEZ, 1982). Mas apesar do núcleo central do pensamento desses dois místicos ser comum, essa visão pode parecer demasiadamente cristianizante, se analisarmos a vida de Ibn Masarra e o conjunto de influências às quais esteve sujeito.
Ibn Masarra já trazia de família o gosto pelas discussões teológicas especulativas. Seu pai ‘Abd Allah – o qual, curiosamente, não era de origem árabe – era um freqüentador de círculos sufis e mutazilitas e interessou-se por transmitir muito cedo ao filho esses interesses. Quando de sua morte, durante peregrinação à Meca em 889, o filho contava ainda com dezesseis anos, mas já se encontrava rodeado de discípulos. Ibn Masarra retirou-se com seus discípulos a uma ermida na serra de Córdoba. Sua fama cresceu atraindo a atenção dos líderes religiosos e, muito cedo, recaiu sobre sua escola a acusação de ateísmo. Após as primeiras suspeitas de impiedade levantadas pelos fuqaha, Ibn Masarra partiu para Meca, sob pretexto de peregrinação. Durante esta viagem encontrou-se com as doutrinas do filósofo persa Al-Razi (Rhazes, morto em 932), adversário declarado do aristotelismo e revivificador dos pré-socráticos, especialmente de Pitágoras e Empédocles. De sua amizade com Khalil Al-Ghafla, que advogava a interpretação simbólica do Corão decorre o acirramento das desconfianças dos fuqaha. A situação torna-se mais grave devido à sua ligação com os círculos de estudo dos Irmãos da Pureza, desenvolvida também durante estas viagens. Conforme Garaudy, Os Irmãos da Pureza estiveram obrigados à clandestinidade desde o começo de sua sociedade e ainda antes mesmo da publicação de seus trabalhos. Para este autor esta é a razão pela qual formaram uma sociedade secreta. Ibn Masarra teria mantido contato em Basra com aqueles ambientes nos quais novas correntes iriam nascer, e nos quais o Islam – ou algumas de suas vertentes – dá provas de sua abertura e de seu universalismo (GARAUDY, 1987). No Oriente, Ibn Masarra conhece também os ensinamentos do asceta egípcio Dhu’l Nun, para quem Deus é a pura Luz, e o verdadeiro conhecimento é a iluminação direta do coração pelo próprio Deus.
Retornando à península, faz no Ocidente a síntese desse pensamento, sempre assentado na leitura alegórica das escrituras, seguindo a tradição comum às escolas batinis, à seita ismaili no Islam, a Filon de Alexandria e posteriormente a kabbalah no Judaísmo e a Prisciliano no Cristianismo ibérico. Infelizmente, mesmo os mais importantes textos de Ibn Masarra não nos são hoje acessíveis[8]. Isto é compreensível por uma série de circunstâncias que cercaram sua vida e seus ensinamentos: “é compreensível que o véu sob o qual se ocultava sua doutrina, o número restrito de seus discípulos, a imputação de heresia e impiedade que se uniu a seu nome sejam outras tantas circunstâncias que explicam a escassez de meios com que hoje contamos para reconstruir seu sistema” (CORBIN, 2000: 204).
Quanto às doutrinas que lhe são atribuídas, destacam-se principalmente a preeminência e esoterismo da filosofia e da psicologia; a absoluta simplicidade, inefabilidade e móvel imobilidade do ser primeiro; a teoria das emanações estruturada sobre as cinco substâncias, na qual entende as almas individuais como emanações da alma do mundo; a preexistência da alma e sua redenção. Mas o ponto que mais chamará a atenção e que prosseguirá seu caminho pela história da mística e filosofia andaluzas, transcendendo os domínios do Islam e vindo inclusive a assumir sua forma filosófica mais perfeita no pensador judeu Ibn Gabirol, é a questão da matéria como primeira hipóstase e a conseqüente composição universal de tudo o que existe (sensível e inteligível) por matéria e forma.
Ainda que representasse ameaça à ortodoxia estabelecida, a escola masarrí floresceu em Córdoba com relativa tranqüilidade durante os reinados de Abd al Rahman III (912 a 961) e Al-Hakam II (961 a 976). Com o fim do período de Al-Hakam II e a subida de Al-Mansur ao poder, começa a chamada “inquisição” dos fuqaha e a escola Masarrí é definitivamente condenada à clandestinidade. Organizada sob o modelo do imamato, durante o período do último Imam da escola, Ismail Ibn ‘Abdullah Al-Ro’ayni, produz-se um cisma a partir do qual os rastros da escola se perdem, ainda que os elementos de sua linha mística tenham deixado marcas profundas nos pensadores posteriores. Após a morte daquele Imam, no início do século XI, Abu-l Abbas Ibn Al Arif fundou em Almeria uma nova tariqa (via espiritual) apoiada nos ensinamentos de Ibn Masarra.
Nesse início do século XI, Almeria passa a ser a capital espiritual de Al-Andalus; para aquela cidade acorrem diversos personagens ibéricos em busca de ensinamento. No intervalo entre o desaparecimento oficial da escola masarri e o surgimento daquela organizada por Ibn Al Arif, um asceta muito popular pregava a união da alma com Deus num sentido claramente panteísta: Muhammad ibn Isa. Esse ambiente religioso formou o espírito de Ibn Al-Arif, ainda que este autor ou seus biógrafos não tenham nos deixado os nomes de seus professores (ASIN PALACIOS, 1992). Sabe-se apenas que organizou uma nova tariqa e restou-nos sua obra principal, “Mahasin al Majalis” (conhecida como “Conferências” ou “Sessões”, também traduzida por Asín Palacios), obra esta que foi amplamente citada por Ibn Arabi. Vale aqui ressaltar que o termo majalis (plural de majlis) é justamente o termo utilizado para as sessões de ensinamento que consistiam o núcleo da atividade de divulgação intelectual dos ismailis.
Dos da’is (missionários) eram exigidas fortes qualificações intelectuais, uma vez que a da’wa era originariamente destinada à educação religiosa dos convertidos e sua instrução na doutrina religiosa esotérica ismaili (hikhma). Este fato, associado à estima que nutriam os dirigentes fatímidas pelo conhecimento, gerou uma série de tradições e instituições de ensino. Neste sentido, eram organizadas “sessões de ensinamento” (majalis) direcionadas às mais diferentes audiências. Estas sessões foram formalizadas na época do califa Imam al-Hakim (DAFTARY, 1999).
De outros livros de sua autoria não nos sobraram maiores notícias. Sua insistência recorrente na necessidade da leitura alegórica e na utilização de palavras acerca de Deus somente enquanto metáforas é extremamente acentuada:
O conhecimento de Deus transcende a percepção da inteligência e da alma sensitiva, exceto no que Deus é um ente real. Toda expressão verbal (que tente explicar o que Deus é) mediante semelhanças com as coisas criadas ou imaginá-lo (por analogia) com os seres compostos e simples é completamente diferente, aos olhos de um entendimento são, daquilo que Deus, por sua grandeza, é. Racionalmente, nem essa concepção imaginativa de Deus é lícita nem a Ele é aplicável aquela expressão verbal, de modo que uma e outra são próprias das criaturas. Se, pois, por acaso, alguma vez se empregam, será tão somente de modo aproximativo, que facilite a inteligência do ouvinte a percepção da existência de Deus, mas não a compreensão de sua essência (BEN ALARIF, 1987: p. 41-42).
Pouco sabemos acerca do funcionamento de sua escola. Mas o medo que este novo personagem e sua escola geraram mais uma vez nos fuqaha e que terminou por valer-lhe o exílio em Marrocos junto a alguns discípulos, bem como a adoração demonstrada quando de sua morte, indicam que Corbin deva estar correto ao afirmar que mais uma vez essa escola também esteve desde seu início organizada em torno de um Imam. A propósito da tariqa de Ibn Al-Arif, Corbin é extremamente claro quando afirma que “tanto sua doutrina teosófica como sua organização apresentam significativos traços em comum com o Ismailismo” (CORBIN, 2000: 207).
O mesmo se deve dizer a respeito de seu discípulo Ibn Qasí em Portugal que, organizando uma confraria armada, resistiu em Silves à investida berbere. Passando para a história de Portugal como líder da revolta dos muridin, Ibn Qasí é personagem extremamente controvertido, ao qual figuras como Ibn Arabi, por exemplo, recusam-se a dedicar qualquer palavra benévola. Conforme Alves, diversos aspectos da militância dos muridin de Ibn Qasí em Portugal correspondem ao pensamento ismaili e este autor traça inclusive algumas pontes com a doutrina dos Assassinos, escola lendária que funcionou sob a direção do Velho da Montanha (Shaikh al-Jabal), Hasan Sabbah:
A propósito do ensinamento de Ibn Qasí, afloraremos alguns aspectos da mensagem ismailita, bastando-nos por agora, reter que, para esta, a incognoscibilidade de Allah não obsta a que a humanidade d’Ele se aproxime, pois que a Razão Universal, em cadeia sucessiva, produz a Ciência, a alma universal (a Vida), a Matéria Universal, o espaço e o Tempo. As criaturas, incluindo o homem, são animadas por um impulso para a alma Universal. No final dos tempos, Alma, Matéria e Razão são impelidas para Allah, ingressando em Seu seio. A via para essa ascensão é o saber transmitido por sete profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Muhammad Ibn Ismail. A cada Profeta corresponde o seu Imam, ou guia espiritual que ministra os sete graus de Sabedoria Iniciática. (ALVES, 2001: 49)
Se confiarmos que os primeiros dois desses três mestres espirituais, Ibn Masarra e Ibn Al-Arif, os quais também foram líderes em suas comunidades, compartilhavam das mesmas idéias e que Ibn Qasí de Silves prosseguiu essa mesma linhagem, nossa hipótese parece ainda mais plausível, posto que é reforçada pela militância armada mahdiísta (messiânica) dos muridin em Portugal. Ainda que ambos os líderes dessas escolas (Córdoba e Almeria) tenham sido altamente cultos, letrados e versados em filosofia, a insistência na limitação da linguagem, associada ao modelo de organização adotado, justifica nossa suspeita de que, longe de terem sido ascetas comuns recolhidos em suas ermidas, foram profundamente influenciados pelas idéias fatímidas, se não foram, eles próprios, missionários.
Infelizmente, a organização e o funcionamento da da’wa Ismaili encontram-se até os dias atuais entre os aspectos mais secretamente guardados do Ismailismo Fatímida (DAFTARY, 1999). Portanto, não é de surpreender que a literatura ismaili recuperada modernamente seja tão pobre no que se refere a tais informações, especialmente quanto aos missionários enviados a locais que jamais chegaram a formar parte do califado do Cairo.
A influência direta das concepções Ismailis na Península Ibérica é um tema que ainda está para ser bem explorado. Mas a partir da grande repercussão da “Enciclopédia dos Irmãos da Pureza” e da nítida expressão ismaili que passa a apresentar a herança do pensamento masarri – desde a escola de Ibn Al-Arif de Almeria até a revolta dos muridin em Portugal com Ibn Qasí – não nos restam dúvidas quanto à força de penetração que essas idéias deveriam dispor nesse momento. Conforme Schlomo Pines, “nada há de impossível sobre o fato de certas concepções Ismailis terem circulado nos ambientes intelectuais da Espanha, muito acolhidas pelos filósofos e as ciências do Oriente” (PINES, 1996: 20).
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[*] Doutora em Ciências da Religião – PUC-SP
[1] Explico a preferência pela utilização do termo Mística, em razão de sua origem grega e apropriação latina, ainda que não exista nas línguas semitas (ao menos no árabe e no hebraico) palavra que corresponda exatamente a este significado. Ao consultarmos um dicionário comum verificamos que o termo Mística apresenta as seguintes definições: “estudo das coisas divinas e espirituais; vida religiosa e contemplativa; misticismo; crença ou sentimento arraigado de devotamento a uma idéia; essência doutrinária” (BUARQUE DE HOLLANDA, A. verbete Mística), o que indica que os termos Mística e Misticismo poderiam, grosso modo, ser utilizados como sinônimos. Porém, ao nos deslocarmos em direção a obras de referência mais especializadas, notamos que o termo Mística mantém suas relações com sua origem grega e utilização latina, implicando necessariamente no conceito de segredo ou mistério, o qual está intimamente relacionado ao sentido que lhe foi conferido inicialmente por Platão: “Até nossos dias, o significado religioso da palavra tem sido mais ou menos o derivado da maneira que Platão utilizou. Segundo este, a divindade é transcendente a nossa inteligência, entretanto, esta pode alcançar certo conhecimento daquela o qual, ainda que seja obscuro, é real e permite que os privilegiados adentrem a esfera divina”. (DE SUTTER, 1987: 619; verbete Mística). No âmbito das religiões monoteístas, o termo Mística foi utilizado e consagrado pelo pensador neoplatônico Pseudo-Dionísio Areopagita, em sua obra Teologia Mística (vertido para o latim como De Mystica Theologia), tendo sido largamente debatido e citado por todos os pensadores cristãos medievais. Por outro lado, o termo misticismo adquiriu em nosso idioma e em grande parte das línguas latinas um sentido pejorativo, associado a práticas mágicas e estados alterados de consciência. “Autores católicos costumam denominar estes processos independentes da especulação sistemática em busca de Deus de misticismo” (DE SUTTER, 1987: 629; verbete Misticismo), a fim de estabelecer a diferenciação. Ainda em relação à sua utilização no contexto islâmico, esta discussão é abordada por Titus Burkhardt e apresentada longamente em seu estudo Du Soufisme, p. 10 et seq. Aqui apresentamos a sua posição resumida: “O termo ‘Mística’ perdeu sua precisão por efeito do individualismo religioso, produto do Renascimento e, sem dúvida, também por um certo choque de rejeição ao Racionalismo. Entretanto, seu sentido original nunca se perdeu, ainda que lhe tenham atribuído com freqüência significações abusivas. Em todo caso, se Evágrio Pontico, Gregório do Sinai, Máximo Confessor e Mestre Eckhart – para não citar mais do que alguns exemplos – são ‘místicos’, os sufis também o são. O termo ‘misticismo’ aplica-se exclusivamente a uma variante muito especial e relativamente tardia da espiritualidade cristã” (BURKHARDT, In AL_YILI, 2001: 100, nota 1).
[2] Explicado acima na nota 1.
[3] Umma: Comunidade islâmica.
[4] O Último entre os Profetas.
[5] Fuqaha – juristas; plural de faqih.
[6] Este tema é discutido também em meu artigo anterior “Profecia e Santidade em Heschel e Ibn 'Arabi”. Último Andar, São Paulo, n.10, p. 59-77, 2004.
[7] Miguel Asín Palacios tem uma trajetória intelectual curiosa. Iniciando seus estudos convencido de que em Al-Andalus encontraria um processo de ‘cristianização’ do Islam, parece ter modificado sua idéia nos escritos mais tardios. Este processo é verificado de modo bastante claro pelos estudos de Luce López Baralt em diversas passagens de suas obras.
[8] Joseph Kenny traduziu ao inglês uma epístola de Ibn Masarra, um dos dois únicos textos a ele atribuídos que sobreviveram aos séculos. Ver KENNY, J. 2002 Ibn-Masarra: His Risâla al-i`tibâr. Orita: Ibadan Journal of Religious Studies, Nigeria, n. 34: 1-26.