PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org.)
Busca do Conhecimento: Ensaios de Filosofia Medieval no Islã. São Paulo: Paulus, 2007, 288 p. ISBN 978-85-349-2680-5

por Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo []

Recém-lançado pela editora Paulus, nos meses finais de 2007, integrando a coleção Philosophica, coordenada pela professora. Rachel Gazolla, “Busca do Conhecimento – Ensaios de Filosofia Medieval no Islã” vem complementar a importante seqüência de artigos organizados também por Rosalie Helena de Souza Pereira no volume “O Islã Clássico”[1]. Mais modesto que o anterior em número de páginas, não fica aquém quanto à qualidade de seu conteúdo.

Esta obra foi organizada em ordem mais cronológica, à exceção do último artigo que, por tratar de Avicena poder-se-ia pensar que deveria ter sido localizado antes dos estudos sobre Averróis, mas justifica-se perfeitamente sua situação, dado que o enfoque conferido pelo autor prioriza a tradução da obra de Avicena e sua recepção no Ocidente Latino. Ainda que contemple temas variados da Filosofia Medieval Islâmica, conforme a organizadora, este livro não se pretende uma história da filosofia árabe-islâmica: “a intenção é introduzir o leitor num percurso filosófico que possa dar-lhe uma pequena idéia da filosofia que nasceu no Islã, esperando despertar-lhe o gosto por estudos mais aprofundados” (10).

O primeiro artigo, “Bayt al-Hikma e a transmissão do pensamento grego para o mundo islâmico” , é de autoria da própria Rosalie Pereira e visa apresentar ao leitor o clima de efervescência cultural que caracterizou a transmissão do pensamento grego para o Islã; uma época dedicada ao esforço sistemático de traduções, caracterizado fundamentalmente pela recepção das idéias de Platão, Aristóteles e Plotino, e pelo início do que se irá denominar propriamente filosofia islâmica, ou Falsafa. A autora destaca pontos importantes que caracterizam a recepção islâmica das idéias gregas:

As obras de Platão e Aristóteles representaram o paradigma da filosofia para os filósofos árabe-islâmicos. Todavia, no afã de harmonizar o pensamento da Academia e do peripato, os autores muçulmanos também buscaram nesses dois grandes filósofos gregos uma identidade de propósito e uma concordância básica, tal como já o haviam feito, por exemplo, Porfírio, Amonius e Simplício (19).

O segundo artigo, Conceitos de Filosofia no pensamento de Al-Kindi, de autoria do professor Rafael Ramon Guerrero, introduz o pensamento deste “primeiro filósofo islâmico, ou melhor, quem em sua época soube recolher tudo o que chegara da filosofia grega e quem assentou as bases para o desenvolvimento do pensamento filosófico no Islã” (63). Guerrero destaca o problema gerado pela recepção da filosofia grega no Islã, a saber, as discordâncias entre Religião e Filosofia, e as tentativas de compatibilização através da conexão entre o Logos grego e a Palavra de Deus, estando ambos em direção a uma única Verdade.

A estes dois, segue-se o artigo de Pierre Lory, “A alquimia islâmica: uma ciência do devir humano”, no qual questiona a idéia de que a alquimia islâmica tenha sido mais uma herança direta do pensamento grego. Neste artigo, o autor traça as conexões entre ciência, filosofia e religião islâmica através do estudo de textos alquímicos. Conforme o autor, “entre a massa de escritos alquímicos em língua árabe, atribuídos a autores gregos, a grande maioria não corresponde a nenhum texto original conhecido. É possível que boa parte desses escritos pseudo-epigráficos tenha sido redigida na época islâmica e diretamente em árabe” (86). A seu ver, “assiste-se então a um fenômeno singular: os autores muçulmanos, quando escrevem no segundo ou no terceiro século da Hégira, ou mesmo mais tarde, atribuem seus próprios tratados de alquimia a Hermes ou a Platão.” (87).

Massimo Campanini contribui com este volume através de um artigo no qual discute as noções de Estado no Islã. O pensamento político islâmico medieval nos é praticamente desconhecido no Brasil e seu texto “A dialética utopia – antiutopia no pensamento político islâmico medieval” esclarecerá a construção histórica das relações entre Islã religioso e as estruturas jurídico-políticas, através das discussões medievais sobre o assunto. Por um lado, apresenta dois juristas na defesa da construção de um estado islâmico, baseado nos preceitos religiosos: Al-Mawardi e Ibn Taymiyya; no outro pólo, representando a proposta de estado utópico, Al-Farabi e Averróis, baseados na herança das lições do pensamento político-filosófico grego, em especial, na “República” de Platão.

O relato alegórico das aventuras do filósofo autodidata Hayy Ibn Yaqzán, composto por Ibn Tufayl, é brilhante expressão de um estilo peculiar de literatura filosófica, e aqui é-nos apresentado pelo professor Josep Puig Montada em Ibn Tufayl, a aventura da humanidade. Passando pela aquisição do conhecimento filosófico, o herói da aventura passa à contemplação, seguindo a linha atribuída às indicações visionárias de Avicena, por quem nutria imensa admiração. Mas o relato não se detém na contemplação absorta de Hayy ibn Yaqzán:

O leitor saberá se deve ou não acreditar em Ibn Tufayl, se deve ou não aceitar a sua sinceridade, contanto que possa admitir uma forma de conhecimento que rompe as regras da lógica. De qualquer modo, o estado ao qual Hayy chegara mediante seu esforço pessoal parece ser o ponto culminante da história. Todavia, Ibn Tufayl surpreende o leitor com uma segunda parte. (161)

Nesta surgirão outros personagens na vida de nosso sábio solitário, Salaman e Absal.

O último bloco do livro conta com dois artigos sobre Ibn Rushd (Averróis), sem dúvida o mais famoso e um dos mais importantes filósofos muçulmanos do Medievo. Expoente máximo da Filosofia em Al-Andalus (Península Ibérica), é apresentado de modos diferentes por Charles E. Butterworth e Tazeu Mazzola Verza. No primeiro artigo, “Averróis e as opiniões comuns a todas as investigações filosóficas ou o que ninguém pode ignorar”, Butterworth destaca questões referentes às palavras que compõem o título de sua obra mais célebre, o “Fasl al-Maqal”, ou “Livro do Tratado decisivo e da determinação da Conexão entre a Lei e a Sabedoria”. Concentrando-se nos termos decisivo, determinação e conexão, Butterworth desenvolve a idéia de que

a tarefa que Averróis se propõe neste trabalho é mostrar porque a conexão (ittisal) entre a sabedoria (ou filosofia) e a Lei deve ser uma compreensão, um reconhecimento ou conhecimento de Deus. Tal compreensão ou conhecimento é realizado por quem utiliza o mais apurado tipo de raciocínio intelectual silogístico, a saber, a demonstração (185-186).

Já Tadeu Verza discorre sobre a questão da pré-eternidade do mundo tal como apresentada por Averróis. Esta questão figura em sua obra “Tahafut al-Tahafut” (“Incoerência da Incoerência”) célebre escrito dedicado à refutação à crítica aos filósofos redigida por Al-Ghazali em sua conhecida obra “Tahafut al-Falasifa” (“A Incoerência dos Filósofos”).

O último texto, intitulado “A divisão das ciências segundo Avicena: texto e notas”, dedica-se a apresentar alguns apontamentos sobre a questão na obra de Avicena (Ibn Sina), tal como é exposto por seu tradutor latino do século XII, Domominicus Gundissalinus. O autor, Alfredo Stork, brinda o leitor ainda com a tradução de um fragmento da “Lógica” de Avicena, tal como preservado no texto de Gundissalinus. A importância de Avicena para o Ocidente latino é imensa e inegável e neste tema, especificamente, ao lado de Al-Farabi, influenciou marcantemente a Escolástica: “A classificação das ciências ocupou um lugar importante entre os problemas tratados pelos pensadores árabes que não a concebiam apenas como uma disputa acerca da maneira de separar os diversos subiecta do conhecimento” (268).

A Filosofia Medieval Islâmica é ainda pouco estudada e desperta interesse em público restrito. Pelo fato desse volume consistir num livro composto basicamente de ensaios pontuais, fruto do trabalho de diferentes pesquisadores, alguns dos textos primam por uma característica mais histórica, o que faz deles mais acessíveis ao público leigo e a alunos de graduação. Outros trabalhos, porém, surpreendem o leitor comum, posto que dependem de um conhecimento mais profundo do vocabulário filosófico medieval, sendo compreensíveis somente por aqueles que já se ocupam de temas afins. Ainda assim, sem sombra de dúvida, o livro de Rosalie Pereira é certamente uma grande contribuição para a divulgação destes temas pouco conhecidos no Brasil.

Notas

[1] O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. Rosalie Helena de Souza Pereira (org.) São Paulo: Editora Perspectiva, 2007. Resenha publicada em REVER, nº. 4, ano 7, dezembro 2007.