OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008. ISBN 978-85-85696-94-8. 368 p.

por Ênio José da Costa Brito[*] []

Introdução

A Igreja, no período colonial, teve um projeto catequético para os negros? Como a devoção aos “Santos Pretos Carmelitas” Elesbão e Efigênia foi introduzida, promovida e apropriada pelos negros na Colônia? Qual a força simbólica dessa devoção?

Anderson José Machado de Oliveira responde essas e outras questões na sua tese de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), publicada em livro com o título Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial.

Organizado em duas partes, na primeira - O culto de Santo Elesbão e Santa Efigênia e o projeto de catequese - analisa como se estruturou o projeto catequético com base no culto de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Na segunda parte, acompanha a difusão do culto, tendo presente a mediação do clero e a “apropriação” dos fiéis, intitulada O culto a Santo Elesbão e Santa Efigênia e sua difusão.

Para Oliveira, “o tema central deste livro é um estudo da importância do culto dos santos no Brasil colonial, tendo como foco o culto a Santo Elesbão e a Santa Efigênia” (p. 25).

Nesta nota bibliográfica apresentaremos sinteticamente os tópicos essenciais dos quatro capítulos que compõem o livro, conscientes de não poder esgotar a riqueza desse estudo inovador. À apresentação seguir-se-ão comentários pontuais.

Digno de nota é o esforço realizado por Oliveira para compreender profundamente a catequese e a devoção aos santos no período colonial. Sua pesquisa rompe com ideias pré-concebidas e convida os leitores a olharem por dentro a religiosidade negra.

Os Carmelitas

Os primeiros carmelitas chegaram à Colônia em 1580, na armada de Frutuoso Barbosa que atracou em Pernambuco com a missão de expulsar os franceses da Paraíba.

A Ordem Carmelita fundada no início do século XIII no Monte Carmelo, na atual Israel, e rapidamente se instalou na Europa. Em 1247 tornou-se uma ordem de vida ativa, como as ordens mendicantes (Dominicana/Franciscana), e passou a dedicar-se à pastoral das massas urbanas, propagando a devoção ao escapulário de Nossa Senhora.

O processo de autoafirmação na Europa obrigou os carmelitas a uma “invenção de sua tradição”. Eles a remontaram ao profeta Elias. “Com base nesta identidade de descendentes de Elias, os carmelitas reuniram as condições simbólicas para se lançar a uma expansão no interior da cristandade ocidental” (p. 45).

Instalada, em Portugal desde 1251, só se expandiu no século XVI, tornando a viver uma nova onda expansionista no período da Restauração. Nesse tempo, a Igreja e os conventos das ordens religiosas na Colônia se multiplicaram e se enriqueceram.

No Setecentos, os Carmelitas desenvolveram atividades missionárias na Amazônia, contribuindo com a política portuguesa de fixação das fronteiras. Na virada do século XVII e na primeira metade do século XVIII, a Ordem do Carmo procurou sedimentar seu espaço na Cristandade e, em especial, na Colônia. Entende-se, então, seu profundo envolvimento com problemas da sociedade colonial, como a escravidão.

Frei José Pereira de Santana, nascido em 1694 na Candelária, Rio de Janeiro, filho de Simão Pereira de Sá e Ana Bocan, testemunhou, vivenciou e marcou esse processo.

Na sociedade do Antigo Regime imperava uma rígida hierarquia social, cristalizada pela reiteração dos estigmas. Entre as profissões estigmatizadas pode-se enumerar as de ourives, barbeiro, marinheiro, comerciante e os ofícios mecânicos em geral. O acesso à cultura reforçava a hierarquia e naturalizava privilégios. A família e grande parte do círculo de relações de José Pereira de Santana encontravam-se situadas no âmbito das profissões estigmatizadas.

A trajetória de José Pereira de Santana, de filho de ourives a religioso e ouvidor do Santo Oficio, ajuda-nos a entender melhor a intrincada relação entre vocação e ascensão social (projeção intelectual e política). Para Oliveira, “a trajetória vocacional de Frei José configurou-se num claro processo de busca de ascensão social” (p. 62).

Depois dos primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, ainda muito jovem entrou para a Ordem do Carmo. Ordenou-se com 24 ou 25 anos e doutorou-se em Coimbra (1725).

Para Frei José Pereira de Santana, a obtenção do doutorado reafirmava o caminho de sua ascensão social, reforçando a sua trajetória intelectual e, efetivamente, o deixando cada vez mais distante de suas origens sociais (p. 70).

Tornou-se Ouvidor do Santo Ofício (1726), cronista perpétuo da Congregação (1740), preceptor da Rainha D.Maria I (1750) e provincial (1755-1759), vindo a falecer em 31 de janeiro de 1759.

Como hagiógrafo e cronista, era porta-voz da Ordem do Carmo. A Crônica dos Carmelitas da antiga e regular observância nestes Reinos de Portugal, Algarves e seus domínios, em quatro volumes, escrita entre 1740 e 1745, ilustra bem sua visão de mundo e seu método de trabalho. A reconstrução da tradição e mitologia heróica carmelita se fez por apropriações. “Ao realizar esta[s] apropriação[ões] o autor afirmava que a Ordem estivera presente nos momentos-chaves da história da Península e de Portugal” (p. 83).

A catequese

Entre os inúmeros desafios assumidos pela Igreja na Cristandade encontrava-se o da catequese dos “homens de cor”. Para enfrentá-lo, a Igreja promoveu o culto aos Santos Negros.

A Ordem do Carmo envolveu-se profundamente com esse projeto, respaldada pelo livro escrito por Frei José Pereira de Santana intitulado Os Dois Atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador XLVII da Abissínia, Advogado dos perigos do mar & Santa Efigênia, Princesa da Núbia, Advogada dos incêndios dos edifícios e publicado em 1735.

Na análise do texto hagiográfico de Frei José, Oliveira, tendo presente ser ele carregado de sentido e intencionalidade, procurou mostrar “a relação estreita entre o culto aos santos, os textos hagiográficos e a ação evangelizadora e reformadora da Igreja” (p. 98).

A narrativa hagiográfica, ao longo da História da Igreja, conheceu vários gêneros - Ata dos Mártires, Vida dos Santos, com ênfase na biografia e nas virtudes -, acompanhando o culto aos santos, seu processo de clericalização e concentração de poder nas mãos do papa.

As origens, referendadas pelo local de nascimento e pela família, passaram a explicar as virtudes dos santos. Elesbão e Efigênia nasceram na África, respectivamente na Etiópia e na Núbia. Frei José Pereira de Santana tinha da África um conhecimento paradoxal, marcado por estereótipos, ambiguidades e idealizações.

Assim como desejou ‘inventar’ um passado cristão ou protocristão para as pátrias de Elesbão e Efigênia, Frei José Pereira de Santana também se esforçou por lhes apresentar como oriundos de nobilíssimas e espiritualizadas famílias (p. 116).

Implicitamente, Os Dois Atlantes de Etiopia, ao interpretar, ocultar e reforçar certos fatos, construía gradativamente uma memória da África, diferente daquela que os africanos escravizados tinham preservado com muita dificuldade.

Para a hagiografia cristã, os santos são um modelo a ser imitado pelos fiéis. Desde a mais tenra infância eles vivem uma vida virtuosa, praticando as virtudes cristãs da humildade, castidade, temperança e caridade.

A hagiografia revestia o herói cristão de certa dramaticidade, geradora de credibilidade, recorrendo à estratégia de associar imagens figurativas aos santos. Frei José chamou Santo Elesbão e Santa Efigênia de “Atlantes da Etiópia”, associando ainda a eles a imagem do sol e da lua.

E como sol e lua da África, Elesbão e Efigênia superavam a adversidade da cor, mostrando aos seus seguidores que a mesma não representava empecilho quando se seguia o caminho correto, isto é, os passos da verdadeira e única Igreja e da verdadeira e única fé (p. 130).

Frei José Pereira de Santana apresentou Santo Elesbão e Santa Efigênia como carmelitas, inventando tradições, consciente de que essa identificação traria benefícios para a Ordem, ampliando seu papel na cristandade colonial.

Nos textos clássicos sobre os santos na Igreja Católica, como a Vida dos Santos de Butler (1756-1759), a Acta Sanctorum (século XVII), o Martirológico Romano (1584), o Catalogus Sanctorum e a Legenda Áurea (século XIII), não há nenhuma referência a algum vínculo entre os santos e a Ordem do Carmo. No entanto, “Frei José recorria, desse modo, a dados de histórias passadas, apropriando-se das mesmas e relendo-as sob a ótica dos anseios da Ordem do Carmo” (p. 147).

A função primordial do texto hagiográfico era a de divulgar os atributos e milagres dos santos responsáveis pela devoção e pela dimensão catequética do culto. A narrativa de Frei José Pereira de Santana atende a essa finalidade, ao apresentar Santo Elesbão “como advogado das boas viagens” e protetor contra os perigos do mar, e Santa Efigênia como “advogada dos incêndios” e protetora contra os perigos do fogo. Atributos densos de simbolismo, tanto para a cultura portuguesa como para a africana.

Quanto aos milagres e curas, eram associados às necessidades diárias, em especial às da população pobre e escravizada. O foco das curas estava em males como febres e moléstias respiratórias.

Percebe-se, portanto, que a junção entre atributos e milagres compunha um outro elemento importantíssimo da narrativa hagiográfica, em que as manifestações sobrenaturais da divindade, através dos santos contribuíam de forma incisiva para cristianizar a comunidade de africanos e seus descendentes em Portugal e no Brasil colonial (p. 172).

No contexto de uma pastoral do medo, a narrativa da morte tinha um peso especial: nesta revelava-se não só a vida santa do morto como os desígnios de Deus. Frei José aproveitou a potencialidade pedagógica desse momento para mostrar a resignação, a submissão de Santo Elesbão e Santa Efigênia a Deus e à Igreja, como também para expressar a preocupação com os ritos fúnebres, muitas vezes celebrados de modo pouco ortodoxo pelos africanos.

A concepção festiva dos funerais, nas culturas africanas, estava referendada em, no mínimo, duas ideias. A primeira partia da visão de que a morte era a oportunidade de reencontro com os ancestrais, daí a necessidade de comemoração. A segunda ideia ancorava-se na perspectiva de que a festa era uma forma de espantar a dor pela perda (p.179).

O Culto aos Santos Pretos

Frei José apresentou os santos aos fiéis como negros. Deve-se notar que no século XVIII a cor preta não trazia conotação racial, mas sim apontava para um lugar social, o que justificava a naturalidade e legitimidade da escravidão.

Os carmelitas inseriam-se assim, num amplo mercado de produção de ’bens simbólicos’, visando, em última instância, a projetar a Ordem diante de uma das principais tarefas da Igreja ou seja, garantir a inserção subordinada dos negros dentro do sistema de cristandade (p. 191).

O culto a Santo Elesbão e Santa Efigênia na Metrópole e na Colônia se espalhou graças à ação de agentes culturais, isto é, do clero, e foi opção dos escravos. Introduzido em Portugal por Frei Francisco de Santa Helena, que trouxe o culto da Espanha, na Colônia se tem notícia do culto a Santa Efigênia por um ex-voto de 1636.

Sem dúvida alguma o trabalho de Frei José Santana Pereira deu grande impulso à devoção. Ao escrever sobre os santos, o fez dentro de seu horizonte cultural muito erudito. Seu texto foi destinado, principalmente, ao clero, responsável por evangelizar os fiéis.

A escolha da casa editora Antônio Pedroso Galvão - especializada na publicação de obras religiosas -, deixa transparecer a preocupação do autor com a circulação da obra. O projeto deu certo: chegou às mãos do clero e, por meio deste, ao povo.

Em 1742, Padre Antônio de Oliveira, português, colaborador do Arcebispo da Bahia, D. José Botelho de Mattos (1741-1760), publicou a Novena da Bem Aventurada Virgem Santa Efigênia, aprovada pelo próprio Frei José Pereira de Santana. As novenas eram atos devocionais muito populares.

A Ordem Carmelita desempenhou um papel primordial na difusão do culto a Santo Elesbão e Santa Efigênia. O estilo de vida carmelita, mendicante e ativo, possibilitava uma intensa inserção na pastoral urbana, o que permitiu um estreito contato com a população negra. Proximidade que cresceu por ocasião da epidemia de varíola, em 1692, quando a Igreja do Carmo abriu suas portas para o sepultamento de negros. Contribuiu também para essa proximidade a devoção ao Escapulário do Carmo ou Bentinho, muito difundida na Colônia entre os africanos e seus descendentes.

O autor não considera

como meramente casual esta proximidade entre fiéis e membros da ordem do Carmo, e sim como uma consequente expressão de apreço pelos símbolos da espiritualidade carmelita (p. 226).

As imagens contribuíram para a divulgação e consolidação da devoção e dos modelos de santidade entre os fiéis. Entende-se a preocupação da Igreja e do próprio Frei José de Santana Pereira, que sinalizou como deveriam ser esculpidas as imagens e estampas de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Dois atributos se destacam: a cor preta e o hábito carmelita.

Na ampla pesquisa iconográfica realizada pelo autor foram encontradas mais imagens de Santa Efigênia do que de Santo Elesbão, na sua maioria do século XVIII. Após a análise, afirma:

pode-se concluir que a difusão do culto esteve perfeitamente integrada no circuito do apelo visual da cultura barroca, em que se associavam devoção e sugestão visual, expansão artística e desenvolvimento da sensibilidade de apreender as mensagens expressas nas representações imagéticas (p. 249).

Ressignificações da devoção

A devoção, ao se estruturar e difundir, confirmou a eficácia do projeto catequético formulado pela Ordem do Carmo e abriu possibilidades para as mais diversas apropriações da figura do santo. Estamos diante de um complexo processo em construção de coesão de grupo, cuja identidade se construía através do estabelecimento do contraste.

Gradualmente, Santo Elesbão e Santa Efigênia se tornaram santos negros pelo papel protetor por eles desempenhado. A devoção floresceu no espaço das irmandades. As irmandades de Santo Elesbão (Rio), Santa Efigênia (Mariana) são do Setecentos.

No século XVIII, o culto aos dois já está consolidado. Para o autor, “a devoção desempenha um papel fundamental na construção de identidade mais abrangente do grupo em questão” (p. 267).

Compreender a devoção em uma perspectiva utilitarista é desconhecer sua força simbólica, aglutinadora e geradora de identidades coletivas. O culto ao santo, ao traduzir a primeira obrigação do devoto, apresenta-se como fator de distinção do grupo. Daí a importância do “bem festejar” o santo. A criação das Folias, com seu “Estado Imperial”, atende a essa dimensão, além de evocar estruturas políticas africanas.

A coroação, ao recuperar traços de identidade tribal, reveste-se de importância para os negros, que recriam tradições africanas e católicas, e de preocupação para as autoridades.

A religião é um elemento a ser levado em conta no processo de reconstrução étnica. O culto religioso contribuiu de modo expressivo nesse processo. Sua compreensão tem como pré-requisito uma visão renovada do que seja um grupo étnico. Este

passou a ser visto como não como uma unidade natural/pura, mas sim como uma unidade que dotada de uma cultura, empreende um processo de reconstrução de suas formas de organização em meio a condições políticas, culturais e econômicas impostas pela situação vivida (p. 282).

No Rio de Janeiro, a devoção a Santo Elesbão e Santa Efigênia congregava os minas, em Minas os crioulos se identificavam com Santa Efigênia e os angolas com Santo Elesbão, enquanto os minas estavam envolvidos com o culto à Nossa Senhora do Rosário.

Em Minas há uma clivagem étnica envolvendo crioulos e africanos e africanos entre si, mas constata-se, também, uma mútua reverência pela devoção dos outros, diferentemente do que acontecia no Rio. A vivência de determinadas experiências explica essa diversidade. Em Minas, experiências traumáticas de fome, como nas secas de 1697-1698, 1701 e 1702, levaram os irmãos a economizar para enfrentar futuras adversidades. Constata-se, pois, uma apropriação reveladora de uma relativa autonomia das irmandades diante do esforço de padronização da Igreja.

Nesse processo de apropriação, a devoção a Santa Efigênia teve forte recepção por parte dos negros. Os registros de óbito; a toponímia nas cidades (Rio de Janeiro, São Paulo); a proliferação dos juízes por devoção; e o quadro de receitas das irmandades comprovam esse dado à saciedade.

Como explicá-lo? Uma primeira explicação, segundo Oliveira, passa pela associação da figura feminina de Santa Efigênia ao culto de Maria, tão presente na Colônia. Uma segunda, mais consistente, relaciona-se com o processo de construção da memória africana no Brasil, baseado na comparação da atuação das mulheres na África e no Brasil e na preservação dos valores culturais. Assim,

o patronato da santa, neste aspecto, refletia não só o simbolismo da mãe protetora e consoladora mas também a ideia do parentesco ancestral que se reconstituía nas recordações da figura feminina transmissora de valores e igualmente protetora presente em diversas sociedades africanas (p. 321).

Observações pontuais

Anderson de Oliveira, em Devoção Negra, resgata a história de Frei José Pereira de Santana, dos carmelitas, de Santo Elesbão e Santa Efigênia, assim como da catequese e devoção dos negros e negras, tendo como farol, como fio condutor, o livro Os dois Atlantes de Etiópia.

Resgate que passa por um refinado diálogo entre a História Cultural e a História Religiosa, no qual o autor deixa transparecer sua conaturalidade com as duas vertentes historiográficas, pois as articula e as distingue no tempo certo, dando ao texto um tom dialético e harmônico. Inscreve novas variáveis na compreensão da catequese, da devoção e da religiosidade dos “homens de cor”, convidando seus leitores a realizarem autênticos deslocamentos. Passar de uma compreensão linear da catequese, que a via como simples dominação, para uma percepção de suas profundas incidências na sociedade colonial; deixar de compreender a devoção como “dissimuladora” para vê-la como geradora de identidades individuais e grupais; e passar de uma “religiosidade superficial” para uma vivência religiosa profunda, que possibilita o encontro simbólico de deuses africanos e santos católicos.

Oliveira reitera inúmeras vezes o papel ativo da Igreja como íntima colaboradora e mantenedora da ordem escravista, mas não esquece de sinalizar a relativa autonomia dos negros na apropriação do Catolicismo.

A riqueza dos temas abordados, especialmente o da recriação cultural por homens e mulheres de cor na recepção e vivência da devoção a Santo Elesbão e Santa Efigênia, abre uma larga vereda para os estudos no âmbito da História Cultural. Perspectiva confirmada pelo autor ao afirmar que

o culto dos santos, no Brasil colonial, foi muito mais do que uma expressão da fé católica e sim um todo complexo que permite ao historiador compreender uma série de injunções sociais, políticas e culturais que assinalaram o processo de colonização da América portuguesa (p. 323).

Um tópico a ser mais trabalhado é o da visão da Segunda Escolástica. No atacado, as características apresentadas estão corretas, mas a hegemonia das mesmas não é tão absoluta quanto o texto deixa entrever. No período, pode-se notar sementes do pensamento moderno que brotam aqui e ali, gerando tensões e conflitos.

O rigor metodológico, a inteligência argumentativa e a riqueza dos temas analisados tornam a leitura de Devoção Negra uma viagem fascinante pelos meandros da vida da Igreja e pela vida de homens e mulheres de cor na sociedade colonial.

Além do belo material iconográfico e dos inúmeros quadros que sistematizam preciosos dados colhidos nos arquivos, o livro – produzido em cuidadosa edição - captura o leitor logo no início ao colocar em pauta a instigante questão da “culpabilização da Igreja Colonial pela superficialidade do catolicismo entre os negros”.

Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial tem já um lugar de destaque na rica produção historiográfica brasileira. Seu destino é ser um livro de consulta ao qual os pesquisadores retornarão com frequência e interesse sempre renovado.

Notas

[*] Ênio José da Costa Brito é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e líder do Grupo de Pesquisa O Imaginário Religioso Brasileiro.