Entendendo secularização como perda da capacidade de influência social e cultural da religião para impor e regular crenças e práticas e, também, o aumento da capacidade das sociedades para guiar seu próprio destino, sem participação das instituições religiosas, isto é, a esfera humana ganhando autonomia em relação aos desígnios divinos, esta pesquisa estuda a relação entre Pentecostalismo e o processo de secularização na periferia social da cidade São Bernardo do Campo (SP). O Pentecostalismo é herdeiro de uma religião, a religião cristã, que se desenvolveu de forma paralela ao processo de Entzauberung der Welt (Weber); isto é, segundo as palavras de Gauchet, “religião para sair da religião”. Mas os pentecostais parecem re-encantar a vida. A questão central deste texto é a seguinte: poderiam os pentecostais escapar ao efeito do avanço da sociedade moderna nos sistemas e instituições religiosas, mais ainda nas particulares condições da periferia urbana? As sociedades latinoamericanas, atingidas em vários níveis pela modernidade, com sua incapacidade para responder às expectativas criadas por elas mesmas, teriam substituído tais expectativas por experiências irracionais como as do culto pentecostal. Discutimos nessas duas perspectivas a diversidade pentecostal na periferia da cidade de São Bernardo do Campo.
Palavras-chave: periferia urbana, Pentecostalismo, pluralismo; São Bernardo do Campo, secularização
On the background of the secularization-thesis – here understood as the religion’s loss of its social and cultural capacity to impose and regulate beliefs and practices of the people – and the corresponding observation that modern societies tend to organize themselves without religious reference, this paper studies the relationship between the Pentecostalism and secularization process in a social periphery of São Bernardo do Campo City. The Pentecostalism is an heir of a manifestation of Christianity, which developed parallel to the process of Entzauberung der Welt (Weber); it’s, according to Gauchet "a religion to get out of religion". However, it seems that the Pentecostals re-enchant life. Hence, the present article raises the question if the Pentecostals are capable of avoiding the impact of the advance of modern society, including the particular circumstances of the urban periphery in contemporary Latin American settings. To answer this question, the article analyses the spectrum of Pentecostal churches located at the periphery of the city of São Bernardo do Campo city.
Keywords: Urban periphery, Pentecostalism, pluralism, Sao Bernardo do Campo; secularization
No campo da Sociologia, o conceito de secularização tem já uma longa história, cujas raízes se perdem nas próprias origens dessa disciplina. De fato, em todos os pensadores clássicos que contribuíram para o surgimento desse campo do conhecimento está presente, de uma forma ou outra, a ideia seminal de uma mudança social em curso no período de constituição do mundo moderno, na qual a religião cristã - que ostentava inquestionável influência na vida das sociedades, nas decisões de suas instituições e na vida das pessoas - foi, aos poucos, perdendo força e obrigada a abrir mão de parcelas cada vez maiores de poder político e de influência social.[1] O impacto da secularização na modernidade européia foi mais evidente e, ainda hoje, o conceito associa-se, pelo senso comum, a um esvaziamento das igrejas. No campo acadêmico dos países mais desenvolvidos, isto é, mais atingidos pela modernidade, o conceito foi objeto de longo debate, que continua ainda. Evidência disso encontra-se nos dois últimos congressos da Sociedade Internacional de Sociologia da Religião, nos quais o tema ocupou lugar de singular importância. Diferente disso, o conceito de secularização não gozou, entre os estudiosos da religião na América Latina, de grande atenção. Embora muito citado pelos estudiosos das religiões, regra geral foi, até recentemente - pouco mais de uma década - mal compreendido e objeto de pouca atenção. Semelhante descaso aconteceu com o conceito de “desencantamento do mundo”.
Na pouca atenção prestada a esses conceitos estava o convencimento de que, diferente e contrariamente ao verificado na Europa secular, na América Latina as igrejas gozavam de excelente saúde e vitalidade, haja vista seus cultos lotados, expressando de alguma forma o caráter intrínseco da religião nas culturas anteriores à colonização. Mas, a compreensão e o sentido do conceito passaram também, no decorrer das últimas décadas, por importantes mudanças. Estudiosos contemporâneos que se tornaram clássicos sobre esse conceito mudaram sua compreensão e a reformularam, alguns de forma explícita (DOBBELAERE 2002, MARTINS 1996), outros sem assumir a mudança (BERGER 1999). Após grande volume de textos produzidos em torno da questão, hoje pode se dizer que o desenvolvimento da religião e o desenvolvimento do mundo moderno secular não são processos necessariamente contraditórios. Vejamos, então, qual o sentido que aqui utilizamos para esse conceito.
Como o conceito “secularização” diz respeito principalmente ao lugar do Cristianismo no mundo ocidental uma primeira questão a ser colocada é a suposta superioridade dessa religião quando comparada às religiões indígenas americanas ou às religiões africanas sobre as quais o Cristianismo tentou impor-se ao longo dos processos coloniais. O Cristianismo seria uma forma religiosa mais desenvolvida pelos seus conceitos abrangentes e universais da divindade. O “Desenvolvimento da religião” implicou a produção de noções abrangentes da divindade (até a ideia de deus universal) e também à inevitável institucionalização religiosa. Mas, esconde-se nessa perspectiva de análise uma mudança progressiva da religião que aos poucos a distanciou do cotidiano das pessoas. Seguindo a análise de Gauchet (1985), é possível sustentar a ideia oposta. Na religião, na verdade, todo desenvolvimento parece apenas aparente, pois leva a um distanciamento de seu caráter radical original, porque apenas a “religião ancestral” era realmente estruturadora do mundo das pessoas e ostentava caráter de inquestionável. Desenvolvimento significa perda das raízes e não aprofundamento. A religião transforma-se irreversivelmente ao se desenvolver. Sobre o Cristianismo como religião para sair da religião, afirma Gauchet:
A partir do momento em que nos encontramos no âmbito da dominação institucionalizada, entramos no interior de um universo onde o religioso no seu caráter radical original é questionado, sendo exposto ao calor de uma máquina que abre os horizontes da vida, do pensamento e da ação, cuja dinâmica não parará mais de estremecer e abrandar seus objetivos. De maneira que, aquilo que nós estamos costumados chamar de “grandes religiões” ou de “religiões universais”, longe de encarnar a quinta essência do aperfeiçoamento desse fenômeno, na realidade representa um conjunto de etapas de seu relaxamento e de sua dissolução. A maior e a mais universal das religiões, a nossa, a religião racional do deus único, foi precisamente a que serviu para que se possa operar a saída da religião ) (GAUCHET, 1985: XI).
A tese central do autor é a de que a religião mais complexa e completa, a mais radicalmente estruturadora do mundo, é aquela que se encontra no início desse processo que de certa maneira culmina com as religiões monoteístas. As transformações posteriores – supostamente um avanço – são etapas no caminho do questionamento daquela religião original realmente estruturadora das sociedades quanto inquestionável (GAUCHET, 1985: 12). A essência primitiva do fato religioso encontra-se na sua disposição contra a história. Na religião em estado “puro”, o presente depende absolutamente do passado mítico. As duas grandes características das sociedades religiosas eram a adesão ao comportamento coletivo e a conformidade desse comportamento à lei ancestral (GAUCHET, 1985: 25). A evolução religiosa posterior questionará essa conformidade ao passado. O “desenvolvimento religioso” (Weber) pode ser chamado assim de “expropriação do religioso” (GAUCHET, 1985: 17). A “sociedade religiosa” era um tipo social fundado na importância prévia e superior da ordenação coletiva sobre a vontade individual: o comportamento coletivo era a lei. As sociedades religiosas, com reduzidíssimo conhecimento do mundo em que viviam e com incapacidade de explicar seu próprio mundo natural, eram, de fato, sociedades que viviam num mundo encantado. Para Gauchet, o próprio Cristianismo como religião racional contribuiu para a superação progressiva dessa realidade em que a religião era radicalmente estruturadora. Como se pode perceber, o pensamento de Gauchet vai ao encontro do conceito weberiano de “desencantamento do mundo”.
Os pentecostais urbanos, moradores das periferias, com enorme déficit de escolaridade, têm mais dificuldade em acompanhar o avanço da ciência e perceber o processo de desencantamento do mundo, mas nada indica que o Pentecostalismo tenha levado seus fiéis de volta a um mundo encantado, enfeitiçado, misterioso. Se os pentecostais re-encantaram alguma coisa foi o culto, por isso a simplicidade de sua doutrina e de sua ética, mas a sua visão de mundo não deixou de ser atingida fortemente pela sociedade na informação rápida.
Um argumento muito utilizado para deslegitimar a proposta de que as sociedades latinoamericanas são atingidas pela secularização é o crescimento de grupos religiosos, a sua expressão pública, os seus cultos e o espaço na mídia. Mas, esse crescimento religioso não constitui um retorno à época da heteronomia da religião. Muito pelo contrário: o enfraquecimento das tradições traz como consequência a proliferação de opções religiosas e o “declínio do compromisso religioso” (WILSON, 1976).
O conceito de poder político moderno pressupõe a separação jurídica entre Estado e Igreja, questão fundamental para garantir a liberdade dos cidadãos. A Igreja Católica e também igrejas evangélicas e pentecostais ainda tentam exercer influência sobre as pessoas e, não poucas vezes, sobre o Estado. Como está acontecendo no Brasil nos últimos meses com a tentativa de impor uma nova “Concordata” que garanta privilégios e direitos exclusivos à Igreja Católica com prejuízo das outras igrejas. Mas, a própria Constituição brasileira expressa uma condição de laicidade do Estado que atrapalha essas tentativas.
Quanto à relação Igreja e Estado no contexto da modernidade, consideramos importantes vincular os conceitos de secularização e de laicidade. Podemos aproveitar a discussão de Baubérot (1988) que constrói dois tipos ideais para comparar os conceitos “secularização” e “laicização”. Ambos os conceitos constituem, inicialmente, parte de um mesmo movimento: ambas implicam uma quebra da simbiose entre a sociedade religiosa e a sociedade civil. Essa simbiose nunca é total, mas toda sociedade comporta algum traço dela. “Laicização” expressa a perda de importância da religião nas instituições, enquanto que “secularização” expressa essa perda no campo da cultura e da sociedade. Na Europa da Idade Média, a Igreja era uma instituição globalizadora, mas, outras instituições embrionárias desenvolveram-se e se ganharam autonomia, como a medicina e a escola. A Igreja tornou-se, aos poucos, uma instituição entre outras, conservando um reconhecimento social, mas não podendo mais controlar as outras instituições.
Uma sociedade não secularizada seria aquela na qual a religião tem autoridade no plano do saber e na esfera dos valores. A secularização corresponde ao desenvolvimento e à autonomia das ciências, que forçaram as portas do saber teórico e minaram a autoridade social da religião. A escola pública, por exemplo, é clara expressão de laicidade, embora no Brasil continue a discussão sobre o lugar da disciplina “Ensino Religioso”.
Na América Latina, a simbiose entre governo e religião permaneceu em muitos aspectos. Ações sociais correspondentes a uma sociedade pré-secularizada convivem com ações próprias de sociedades mais secularizadas e formas mais desenvolvidas de religião coexistem com estruturas religiosas menos elaboradas. Aí, o tradicional e o moderno são simultâneos.
Resumindo, entendemos a secularização em duplo sentido: de um lado perda da religião de sua capacidade para impor e regular crenças e práticas. De outro, as sociedades reivindicando sua capacidade de orientar seu destino sem a participação da religião, relegando-a a um lugar secundário. Neste artigo, pretendemos argumentar evidências dessa autonomia em relação à religião constatada entre moradores da favela. A observação da realidade social da periferia urbana mostra uma relativização da importância da religião na vida das pessoas. Escolhe-se a religião segundo as urgências “mundanas”, que, na periferia, são mais fortes, e da mesma forma se as abandona.
O século XX, especialmente sua segunda metade, foi o cenário do desenvolvimento de grandes cidades no Brasil e na maioria dos países da América Latina. Complexos processos de mudança social, econômica e política estão na base desse fenômeno que o termo “urbanização” sintetiza. As cidades são resultado do avanço do capitalismo industrializado e da modernidade em geral. Não a lugar, neste texto, para analisar esses processos, mas, a literatura é vasta e eloquente para sustentar a afirmação de que esses processos produziram sociedades muito desiguais: centros urbanos com regiões que concentram maior poder político e econômico, e espaços periféricos sem infraestrutura básica e pouca ou nula presença do Estado. A cidade moderna na América Latina produziu ao mesmo tempo riqueza e pobreza (SILVEIRA, 2004). Nas palavras de Santos (2000) trata-se do caráter perverso da sociedade global contemporânea.
O termo “periferia urbana” adquire diversos significados segundo o ângulo de observação ou o campo do conhecimento escolhido. Torna-se, assim, importante afirmar o que expressamos neste artigo. Do sentido amplo do conceito “periferia” destacamos a pobreza, como destituição dos meios de sobrevivência física e a insuficiência de renda e de trabalho. Também a inexistência de infraestrutura física adequada nos locais de moradia, que está vinculada à inoperância ou ausência de políticas sociais. Experiência comum na origem de favelas na cidade de São Paulo é a iniciativa do poder público para remover um “assentamento subnormal” que estava atrapalhando alguma obra pública, oferecendo aos afetados todo tipo de assistência para construção de moradias em algum terreno não utilizado, mas, frequentemente os removidos são abandonados a sua própria sorte. Um exemplo eloquente dessa experiência encontra-se nas origens da favela Heliópolis (situada na Zona Oeste da cidade de São Paulo), considerada hoje a maior ou uma das maiores do Brasil e da América Latina (Sampaio, 1990 e Alessi, 2009). Outros dois aspectos importantes do conceito de “periferia” são a violência, da qual moradores são objeto e sujeito simultaneamente, e a não garantia dos direitos básicos de cidadania. Outras formas de caracterizar a periferia são em função de seu maior nível de vulnerabilidade social (MÁRQUEZ 2004) e também pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ou ainda sob o conceito de “fronteira urbana” que se refere à periferia com altíssima taxa de crescimento demográfico e precariedade no acesso aos serviços públicos (TORRES, 2005).
Com “periferia”, então, não nos referimos simplesmente a uma situação física geométrica. O sentido físico e geográfico de distância é insuficiente para pensar a periferia. Como regra geral, a população que se mobiliza em direção das periferias está composta de pessoas com maior carência econômica e social. Mas, também classes mais abastadas se mobilizam a regiões distantes do centro e se fecham em seus condomínios procurando segurança, lazer, etc. práticas essas que sem dúvida geram segregação espacial (MARQUES & BITAR, 2002 e CALDEIRA, 2000).
Fechamos a explicação do que entendemos por “periferia”, destacando que a carência é uma referência importante, mas não suficiente para pensar a periferia, nem quando se trata de sua expressão de maior impacto, isto é, a favela. No espaço social da periferia há muita criatividade, no campo social, cultural e até econômico. Os moradores da periferia não apenas sobrevivem, mas vivem, produzem e se reproduzem; tanto no plano econômico material quanto no campo simbólico cultural. As religiões presentes na periferia fazem parte dessa dinâmica social e cultural, com destaque para as igrejas pentecostais, muitas das quais fazem parte da paisagem da favela desde suas origens.
No caso específico do Brasil, ao se falar no crescimento da periferia urbana, devemos lembrar a re-configuração geográfica da pobreza entre 1940 e 1970, período em que a população das áreas urbanas do Brasil passa de 12 milhões para 130 milhões. Segundo dados da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano[2], no ano de 1940 o Brasil tinha 31,1% de população urbana, já no ano 2000 a população urbana era de 81,2% e no Estado de São Paulo de 93,4%. Nesse mesmo período se expandiram os cinturões de pobreza urbana que caracterizam as cidades desse país, mas o crescimento nesse período é fenômeno comum à maioria dos países de América Latina. Para o Brasil, assim, a uma tradicional concentração de pobreza rural (Norte e Nordeste) se somou outra concentração de pobreza urbana. Quando chegamos ao final do século XX, em 1990, as regiões metropolitanas de Rio de Janeiro e de São Paulo congregavam mais de 50% do total da população pobre metropolitana do Brasil. Assim, as regiões metropolitanas dessas duas cidades se constituem em lugar privilegiado da observação do fenômeno da “periferização” urbana e da multiplicação e expansão das favelas.
A região do ABC paulista e especialmente a cidade de São Bernardo do Campo foram cenário de importante desenvolvimento industrial no decorrer da segunda metade do século XX. No Município de São Bernardo do Campo (SBC), situado no chamado ABC Paulista, se encontram bairros socialmente bastante desiguais, mas com semelhante presença de grupos religiosos evangélicos. A pesquisa de campo numa favela desse município mostrou, como veremos adiante, aspectos particulares da prática religiosa dos pentecostais.
Os municípios de São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano do Sul, Diadema e Ribeira Pires estão classificados nos grupos de “alta criminalidade” (KAHN, 2005). Também segundo as taxas de homicídios registrados pelo Ministério de Saúde, São Paulo está entre as mais altas. O número de homicídios por 100 mil habitantes era em 1998 de 61,9 em São Paulo, atrás de Vitória (92,5) e Rio de Janeiro (64,7). Em 1999, São Paulo (68,8) superou a Rio de Janeiro (64,1).
É conhecida a capacidade das lideranças pentecostais de integrar os novos convertidos a uma comunidade de “irmãos”. Segundo Sampson e Groves (2009), há uma relação entre desorganização social e crime: à pouca participação em organizações de bairro e organizações religiosas corresponde maior tendência à criminalidade. As igrejas pentecostais podem ser consideradas como espaços de organização social nos bairros da periferia. Pesquisas recentes têm demonstrado a importância do associativismo religioso em favelas de Rio de Janeiro (ZALUAR 1998; MAFRA 1998 e ALVITO 2001) e de São Paulo (ALMEIDA e D´ANDREA 2004; LAVALLE e CASTELLO 2004).
A favela objeto desta pesquisa encontra-se numa região, o “Grande ABC”, que tem grande concentração de favelas. Segundo estudos da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano[3] que analisa 39 cidades incluindo a capital, a região concentra 20% da área total de favelas na Região Metropolitana de São Paulo. De um total de 60,7 km2 de favelas na região, 12 km2 estão no Grande ABC; São Bernardo do Campo é a terceira com maior área de favelas (5 km2) ficando atrás somente da Capital (31,42 km2), e de Guarulhos (7,2 km2). A cidade de Diadema (2,2 km2) também está entre as 7 cidades com maior perímetro de favelas. Considera-se ainda que aproximadamente um terço da população dessa cidade mora em favelas.
Apresentamos a seguir dados gerais sobre o bairro em questão que ajudarão o leitor acompanhar nossa reflexão posterior. O bairro do “Montanhão” encontra-se do lado esquerdo da Via Anchieta, que comunica São Paulo com o porto de Santos. A única via de ingresso ao bairro é a Via Anchieta. Entra-se no bairro pela favela “Areião”, que é o primeiro conjunto habitacional. Utilizamos o conceito “favela” no sentido discutido por Saraiva e Marques (2005) seguindo a ideia de “setores subnormais” do IBGE.
Os moradores da favela “Areião” devem caminhar mais ou menos dois quilômetros para aceder à Via Anchieta. O bairro começou a se formar no final dos anos 70 do século XX, mais de duas décadas depois da inauguração da Via Anchieta (1947). Na margem esquerda da Via Anchieta é o bairro mais próximo da represa Billings, a cujas orilhas os moradores da favela chegam caminhando em torno de dois quilômetros, especialmente nos finais de semana, para pescar o tomar banho. O lugar da represa conhecido como “A Prainha” constitui um dos poucos espaços de lazer e o mais próximo. A seguir, apresentamos uma síntese dos dados sobre o bairro, oferecida pela Prefeitura do município de São Bernardo do Campo no seu anuário estatístico (2005).
Dos dados demográficos, interessa destacar os seguintes. A taxa geométrica de crescimento anual do município (2,42%) é maior que a do estado de São Paulo (1,78%), que a do Grande São Paulo (1,56%) e que a do Grande ABC (1,56%). Essa diferença era bem maior há quatro décadas, quando a taxa em SBC era de 9,52%. No ano de 2005 estimava-se a população do município em 788.560; com 69,54% de católicos, 16,49% de evangélicos e, 7,39 % de sem religião. Quanto à cor ou raça, destacam-se 69,56% de brancos, 24,37% de pardos e 3,44% de pretos. O Montanhão é o bairro com maior número de moradores (116.773 em 2004) e também o bairro com maior número de habitantes por domicílio (3,84) do município.
No campo da economia e da educação, o bairro mostra diferenças sensíveis em relação ao resto do município. Destaque-se o fato de ter a maior porcentagem (6,87) de chefes de domicílio que recebem até um salário mínimo, e maior porcentagem também de chefes de domicílio sem instrução ou com menos de um ano de estudo (11,11). Há no bairro uma escola fundamental e uma de ensino médio, mas os moradores da favela devem caminhar em torno de dois quilômetros para chegar à escola. Na avaliação de 2008 do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), detectou-se que a escola pior avaliada está precisamente no bairro em questão. Não há equipamento municipal de cultura nem de saúde. Para ser atendidos, os moradores do bairro procuram os postos de saúde do centro de SBC ou de Riacho Grande. Quanto a esporte e lazer, o bairro tem apenas uma quadra de terra para futebol.
Cabe ainda destacar que o bairro em questão, e especialmente os moradores da favela Areião, possuem importante capacidade de organização e mobilização, embora se trate apenas de situações conjunturais. Durante as fortes chuvas que castigaram o Grande ABC e SBC nos primeiros meses de 2006, as ruas da favela ficaram alagadas. A falta de limpeza de um braço de água que corre às margens da favela e capta o esgoto levou o esgoto a invadir as moradias. Como protesto, os moradores da favela - os mais afetados por morarem nas partes mais baixas - fecharam uma parte da Via Anchieta. Nesses protestos, os moradores pentecostais participam de igual forma que os outros moradores. A religião não é, assim, um fator que diferencia as práticas sociais reivindicatórias de direitos básicos de cidadania.
No centro do processo de industrialização brasileira encontra-se a cidade de São Paulo, que a partir dos anos 30 do século XX passou a ocupar lugar de destaque no processo de acumulação e reprodução capitalista. As migrações rural x urbano se dirigiam especialmente para São Paulo. Em 1970, São Paulo concentrava o parque industrial que respondia por 58% do valor da transformação industrial nacional (SEABRA, 2004). A partir dos Anos 80, a indústria de São Paulo começa a mostrar incapacidade para absorver a mão-de-obra dos migrantes que não paravam de chegar e, com isso, acelera o crescimento das periferias e o desemprego de seus moradores.
A respeito dos pentecostais, que, segundo os dados censitários, constituem a forma religiosa de maior crescimento nas últimas décadas, os estudiosos da religião enfatizam que crescem especialmente entre os mais pobres. Nas periferias de SBC encontramos os mais diversos pentecostalismos - cabe, assim, falar em um pluralismo pentecostal constituído por um leque de opções pentecostais que se oferecem aos indivíduos. Mas, as escolhas religiosas, entre as diversas igrejas pentecostais, são feitas por razões diversas, que incluem também razões não-religiosas. Voltaremos a essa questão na ultima parte deste texto.
A partir dos Anos 80 tornou-se evidente nas cidades brasileiras a realidade do crime, da violência e do medo decorrente disso (CALDEIRA, 2003). A partir do ano 2000 essas questões passarem a ocupar um lugar na agenda pública; tanto em políticas federais, estaduais e municipais, como também em iniciativas da sociedade civil. Exemplo disso são: o Plano Nacional de Segurança Pública, lançado pelo governo federal em 2000, o Plano de Acompanhamento dos Programas Sociais de Prevenção à Violência, diretamente vinculado à Presidência da República e que começou em 2001. Há exemplos estaduais, como o movimento “Viva Rio” ou o Projeto “Santo André mais igual”, entre outros. Um maior conhecimento do aumento dos índices de criminalidade, não apenas a partir das notícias, mas também de dados objetivos disponibilizados por diversos centros de pesquisa, contribuiu para fazer da violência uma questão indispensável na análise da realidade brasileira contemporânea (SENTO-SÉ, 2005).
A violência como prática de indivíduos e grupos (civis, policiais ou militares) ou como resultado das desigualdades sociais pode ser considerada um procedimento histórico consolidado que se volta de maneira mais direta contra as camadas sociais mais pobres. Nessas iniciativas, mais tarde ou mais cedo torna-se inevitável o diálogo com o chamado “poder local”, sem cuja participação qualquer projeto de prevenção ou combate à violência corre grande risco de ineficácia. O poder local, entendido como o conjunto de iniciativas, mais ou menos espontâneas, mais ou menos institucionalizadas e mais ou menos politizadas, que conseguem eficácia na tomada de decisões sobre problemas locais, se constrói sempre a partir da realidade do dia-a-dia do lugar específico onde moram as pessoas que são objeto e sujeito de violência. As igrejas fazem parte desse dia-a-dia e, nesse sentido, é importante pensar a sua participação na dinâmica do poder local. Ainda mais enquanto as políticas de segurança pública costumam depender de períodos eleitorais, alternância do poder, etc., o poder local costuma gozar de permanência e presença constante. As igrejas pentecostais participam das redes sociais locais inibidoras ou indiferentes ao aumento dos índices de violência. Como veremos adiante, a visão dos pentecostais sobre as causas e soluções do problema da violência não é uniforme.
Os estudos sobre a violência demonstram que seus efeitos mais graves não se distribuem de forma aleatória. São, sobretudo, os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, os que mais sofrem os efeitos da violência (SOARES, 2005). As igrejas evangélicas tão presentes na periferia urbana concentram grande quantidade de população negra. O cruzamento dos dados do último censo (2000) levam sem dúvida nenhuma a essa conclusão (ROMERO ET ALII, 2003) e são especialmente as igrejas pentecostais que concentram maior número de seguidores negros, com destaque para a Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Universal do Reino de Deus e Assembléias de Deus, nessa ordem (BARRERA, 2005a).
Tanto a observação de campo quanto a literatura existente que estuda as favelas no Brasil, especialmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, mostram a importante presença de diversos grupos religiosos com marcado ativismo de católicos e pentecostais. Com frequência estudiosos da realidade da favela se encontram, no decorrer da pesquisa, com o fator religioso. Já mencionamos anteriormente que o estudo da religião na favela é preocupação recente e promissora. Dois exemplos desta última situação, na qual o pesquisador não tinha como objetivo estudar o papel das religiões, mas, encontrou-se com essa questão, são os seguintes: estudando a situação social e econômica do negro em duas favelas da região metropolitana de Rio de Janeiro, BRANDÃO (2004) encontra entre seus entrevistados negros evangélicos que falam no seus depoimentos a respeito da importância ou influência de sua filiação religiosa na experiência cotidiana de encarar o preconceito racial. Ferreira (2002) estudou na favela Heliópolis, em São Paulo - hoje considerada a maior do Brasil por sua extensão e população, que bordeja os 120 mil moradores - questões vinculadas à percepção da violência policial e à punição nas classes populares, mas entre seus entrevistados se encontram seguidores do Catolicismo e dos pentecostalismos, como por exemplo da Igreja Pentecostal Deus é Amor.
Estudiosos das religiões no Brasil têm prestado atenção, mais recentemente, ao papel das práticas religiosas nessas regiões periféricas. O tema mais frequente dessas pesquisas é a participação de grupos religiosos nas “redes solidárias”, assim, por exemplo, o trabalho de MEDEIROS e CHINELLI sobre a favela do Borel, no Rio de Janeiro (2003). Em alguns casos, as práticas religiosas constituem a base de uma rede que se sobrepõe outras redes, familiares, de migrantes, de profissionais do mesmo ofício, etc. (ALMEIDA e D’ANDREA 2004).
Tratando-se mais precisamente da presença pentecostal nas periferias urbanas, pode-se afirmar, sem dúvida, que as igrejas pentecostais são as mais numerosas e diversas atuando nessas regiões das grandes cidades. No Brasil, o tamanho das metrópoles e o rápido crescimento urbano das últimas décadas que coincide no tempo com o grande crescimento pentecostal impressiona, mas o fenômeno do crescimento pentecostal especialmente nas periferias urbanas é comum a outros países da América Latina, por exemplo no Peru. Lá, a Igreja Pentecostal Deus é Amor é o grupo religioso que mais cresce, e seu público-alvo são os migrantes das regiões andinas que chegando às cidades do litoral passam facilmente a engrossar o número de seguidores das igrejas pentecostais (BARRERA RIVERA, 2009). Situação semelhante acontece na cidade de Buenos Aires.[4]
No Brasil, o Censo do ano 2000 forneceu rica informação que demonstra de forma clara que os pentecostais estão mais presentes na periferia da cidade de São Paulo. O anel periférico em torno da metrópole paulistana é o espaço geográfico e sócio-econômico onde os pentecostais estão mais presentes, como mostra o mapa seguinte (fig.1).[5]
Figura 1
Os seguintes mapas mostram que o lugar ocupado pelos pentecostais se sobrepõe ao lugar ocupado por mais moradores com menos rendimentos (fig. 2)
Figura 2
Também o mapa da localização das favelas (fig. 3) coincide em grande parte com o mapa da localização dos pentecostais.
Figura 3
Finalmente, os pentecostais estão também nas regiões com maior população com baixos níveis de estudo, como mostra a fig. 4.
Figura 4
Pensando a questão dos pentecostais nas favelas, em outro nível de observação, mais focado em regiões específicas, a pesquisa comprova importante interação dos pentecostais com a realidade social e econômica da favela, com efeitos na forma de interpretar a tradição religiosa por parte dos seguidores (FOERSTER, 2009). Nossa pesquisa na favela “O Areião”, em São Bernardo do Campo, atualmente em andamento, está mostrando questões inéditas quanto ao papel dos evangélicos nessa realidade específica. Gostaríamos de destacar dois grandes aspectos dessas questões, de um lado o pluralismo pentecostal na favela e, do outro, o fato aparentemente contraditório da variedade da oferta religiosa simultânea à diminuição da importância da religião na vida dos moradores da favela. A seguir analisamos esses dois aspectos, tomando como base empírica a nossa observação de campo, depoimentos e informação recolhida no lugar dos fatos.
No bairro em questão há verdadeira diversidade de opções religiosas pentecostais que consideramos constituir um pluralismo religioso. A julgar pela opinião dos pentecostais que moram no lugar, podemos dizer que não é apropriado colocar todos os grupos pentecostais como sendo parte de uma mesma coisa. A classificação “pentecostal” não representa uma realidade homogênea. Muito pelo contrário: os grupos pentecostais se consideram diferentes entre si e os seguidores que já passaram por mais de uma igreja pentecostal têm suficiente consciência, prática e discursiva, de diferenças entre essas igrejas pentecostais. As normas impostas por cada grupo pentecostal, e que como toda norma diz respeito ao corpo das pessoas, quanto a questões externas sobre a forma de vestir ou usar cabelo (ou barba e bigode) de homens e mulheres, ou como fazer uso do corpo, voz ou mãos em cada parte do culto é muito claro para as pessoas. Em poucas palavras, cada grupo pentecostal produz sua própria “técnica corporal” (BARRERA RIVERA, 2005b), mas os seguidores desenvolveram habilidades para se utilizar de variadas técnicas corporais segundo o grupo do qual participam no momento.
Antes de continuar, devemos elencar os principais grupos religiosos que agem no bairro. São os seguintes: Igreja Católica, Congregação Cristã do Brasil, Assembléias de Deus, Igreja Pentecostal Deus é Amor (quatros templos), Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional do Reino de Deus, Comunidade Evangélica Hebron, Igreja Batista Missionária, Igreja Batista Restauração da Aliança, Igreja Sinos de Belém, Testemunhas de Jeová, Grupo Ideal Espírita. Alem desses grupos religiosos, há cinco outras pequenas igrejas pentecostais que mudaram de lugar várias vezes nos dois últimos anos. Duas delas fecharam, mas nada indica que não voltem a abrir. Não há no bairro igrejas, e nunca houve, segundo a informação dos moradores mais antigos, presbiterianas, metodistas e luteranas. A observação de grupos religiosos presentes nas favelas revela como fato comum a ausência dessas igrejas que o Censo do ano 2000 chamou de “Evangélicas de Missão”. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que essas igrejas têm dificuldades para entrar e se manter nas favelas. Conhecemos de casos recentes em que igrejas evangélicas de missão presentes em favelas e com bom número de seguidores tiveram que fechar. É o caso, por exemplo, da Igreja Metodista em Heliópolis. Em conclusão, o pluralismo de opções religiosas no bairro que estudamos é basicamente pentecostal. Vejamos a seguir as escolhas e suas razões segundo o depoimento dos moradores.
Em primeiro lugar, é necessário destacar que essa situação de pluralidade de opções religiosas acontece num contexto quase fechado. No sentido de que as pessoas que moram no bairro dificilmente se deslocam para fora dele por motivos religiosos. Encontramos poucas pessoas que congregam em igrejas localizadas fora do bairro. Essa situação se apresenta bastante lógica e prática, pois os meios de transporte público são insuficientes e implicam sempre em despesas extras. O único ônibus que entra no bairro tem itinerário limitado até o Centro da cidade, assim, para ir a qualquer outro ponto da cidade de São Bernardo do Campo ou os municípios vizinhos são necessárias pelo menos duas conduções. A outra alternativa é caminhar aproximadamente dois quilômetros até o ponto mais próximo da Via Anchieta, que também não oferece muitas opções de itinerário. Por que ir até outro lugar da cidade, quando no próprio bairro há diversos cultos oferecidos com opções de dias e horários diversos? Entre os entrevistados, encontramos pessoas que vieram morar no Areião procedentes de outros municípios do Grande ABC,e filiaram-se a outras igrejas diferentes da igreja anteriormente frequentada.
Essa pluralidade interna ao bairro combina muito bem com o forte senso de pertença que os moradores em geral têm da “Vila”, como é chamado o bairro por muitos deles. A identidade com o lugar de moradia, a despeito de todo tipo de preconceito da sociedade contra a favela, à qual vê imediatamente como lugar de degradação, miséria, violência, perigo, ignorância, etc., é forte e aparece recorrentemente nos depoimentos das pessoas. O senso de pertença é mais forte nos moradores mais antigos, que gostam de contar como começaram a construção do “barraco” e do primeiro cômodo e se orgulham de “olhar para trás” e mostrar a casa que conseguiram construir ao longo de várias décadas e que, regra geral, ainda está em construção. O espaço geográfico se constitui, assim, em espaço social de cuja construção esses moradores “fundadores” se sentem protagonistas e atores. Cabe aqui destacar que as igrejas pentecostais mais antigas no bairro, Congregação Cristã, Assembléias de Deus e Pentecostal Deus é Amor, têm legitimidade perante os moradores não-pentecostais porque estão presentes no bairro desde as suas origens. Essas igrejas surgiram junto com o bairro, estão lá antes de muitos dos moradores e fazem parte da paisagem do bairro. Em outros termos, não são vistas como incursões estranhas ou vindas de fora do bairro.
A pesquisa de contextos sociais com pluralidade de opções religiosas tem demonstrado de forma suficiente que quanto mais amplas as opções religiosas, maior também o trânsito e, consequentemente, maior a instabilidade da relação entre seguidores e instituições religiosas. As biografias religiosas dos moradores entrevistados mostram frequente trânsito entre os diversos pentecostalismos. No obstante, na realidade da favela esse fenômeno manifesta características dessa instabilidade religiosa, que nos parecem particulares. Em primeiro lugar devemos sublinhar que as diversas igrejas pentecostais estão próximas uma da outra e, em consequência, o convite está sempre aberto. Em outros termos, as pessoas estão expostas constantemente a uma variedade de ofertas religiosas fisicamente concentradas no mesmo bairro. As maiores igrejas pentecostais - Congregação Cristã do Brasil e Assembléias de Deus - estão na Rua do Cruzeiro, via que, embora muito estreita, é o principal corredor do bairro.. As outras estão dispersas pelas ruas próximas.
Todos os grupos pentecostais são objeto de incursão e abandono. Nenhuma delas se salva dessa infidelidade ou de fidelidade transitória. Deve-se destacar que esse fenômeno acontece bem menos na Congregação Cristã do Brasil. A questão pode parecer um tanto estranha porque se trata do Pentecostalismo que não faz campanha, propaganda ou proselitismo organizado. Não tem meios de divulgação de nenhum tipo, rádio, programas de TV, páginas na internet ou jornais. Após um século de existência, essa igreja ainda carrega a marca da doutrina da predestinação herdada das origens presbiterianas de seu fundador, Luigui Francesconi. Segundo essa doutrina, apenas os escolhidos serão salvos e, em consequência, não há sentido em fazer evangelização. Mas, no lugar de investir em propaganda religiosa, essa igreja constitui uma verdadeira e eficaz rede de contatos entre seus seguidores, que se sobrepõe a outras redes sociais, como rede de migrantes da mesma região, rede de parentesco, rede de amizades entre membros da igreja que prestam serviço na mesma firma, etc. Nesses múltiplos contatos, os seguidores da Congregação Cristã convidam novas pessoas a assistirem um culto. Após a primeira vez que uma pessoa aceita o convite e assiste um culto, passa a ser incentivado por vários outros membros a repetir a experiência. Em pouco tempo, ele ou ela será cobrado(a) em relação à sua presença ou ausência nos cultos. Na verdade, trata-se de uma forma eficaz, porém muito sutil de todo um grupo fazer pressão sobre um indivíduo sem que ele ou ela sinta isso como uma coação. É por isso que pensamos que não se pode afirmar que a Congregação Cristã cresce sem fazer nada para isso. Ela tem também outros atrativos, sem dúvida, muito interessantes para os moradores da favela, tais como a cuidadosa rede de assistência social articulado em torno do que eles chamam de “ministério da piedade”, também o fato de ser a única igreja pentecostal que não cobra nada em dinheiro de seus seguidores e suas autoridades não recebem salários, entre outros.
Há uma última relativa ao fenômeno de incursão e abandono das igrejas pentecostais no bairro do Areião. Percebe-se, na opinião de lideranças e seguidores, que é absolutamente legítimo sair de uma igreja e entrar em outra, e voltar à primeira depois de algum tempo. Poucas pessoas entrevistadas, e todas elas sempre da Congregação Cristã e das Assembléias de Deus, dizem ter permanecido na primeira igreja pentecostal que conheceram e na qual se converteram. É um fato comum mudar de igreja, provavelmente por isso essa prática é legítima, reconhecida, válida, tanto para os pentecostais quanto para os moradores que não são pentecostais. Diferente e em oposição a isso, não é bem vista a múltipla pertença: fazer parte simultaneamente de mais de uma igreja não é aceito e é uma prática criticada. Parece, assim, coexistirem a aceitação de mudar de igreja com uma exigência de exclusividade, o que não deixa de ser uma forma de fidelidade. Curiosa semelhança com outra prática comum no campo familiar detectada nos depoimentos dos entrevistados, homens e mulheres. A mudança de parceiro ou parceira é também fato comum dos moradores da favela, incluso entre pentecostais. Mas, nesse campo, também ninguém vê com bons olhos quem mantém algum tipo de relação com mais de uma pessoa. Podemos aproveitar essa última questão para destacar que a instituição do matrimônio tem um caráter social e civil e pouco religioso. De fato, poucas pessoas, entre os entrevistados, casaram-se religiosamente. A maioria cassou civilmente e, regra geral, anos após conviver e criar filhos. Saímos brevemente do campo pentecostal para colocar um exemplo eloquente. Nos dias em que escrevo este texto, acontecerá no Areião um casamento civil seguido de casamento religioso. Um casal jovem de 18 e 22 anos, netos ambos de avós pentecostais, mas de país sem-religião e eles próprios considerando-se sem-religião, casarão na Igreja Católica e a festa será no salão da “Associação de amigos do Bairro”. Nem os noivos, nem os pais jamais foram católicos, mas garantiram ao padre que seguiriam todas as exigências. A mãe da noiva contou-me que a filha ficou preocupada porque não iria cumprir a exigência de frequentar a igreja. A mãe tranquilizou-a, dizendo que, no momento, o que importava era a aceitação do padre de fazer a cerimônia. O interessante do caso é que não eram os noivos, e sim a mãe da noiva, quem queria que eles casassem em cerimônia religiosa.
Vejamos, finalmente, as evidências de uma visão secular da realidade social e da vida cotidiana manifesta nas relações sociais no bairro em questão. Cabe relembrar, nesta parte final, a questão básica da discussão feita no início deste texto à respeito dos conceito de secularização e de pluralidade de opções religiosas. O impacto da modernidade, os efeitos da urbanização no campo cultural, a industrialização capitalista e o avanço do conhecimento levaram a importante mudança no papel das religiões nas nossas sociedades e na vida dos indivíduos. Essa mudança significa fundamentalmente o enfraquecimento da autoridade religiosa sobre as pessoas que passaram aos poucos a ver as religiões mais como recursos a serem acionados segundo as circunstâncias ou necessidades que como princípios inquestionáveis e ultraterrenos aos quais se deve apenas obediência.
Na nossa pesquisa de campo chamou muito a atenção o frequente posicionamento de pessoas dizendo não ter religião ou não pertencer a nenhuma igreja. O projeto de pesquisa, do qual este texto expressa apenas um resultado parcial, visa conhecer também a opinião dos não-evangélicos sobre as práticas religiosas dos “crentes”. Procurando o depoimento dessas pessoas, encontramos muitas delas que se declaravam “sem-religião”. Na verdade, o Censo de 2000 já indicava que muitos “sem-religião” encontram-se na periferia urbana, como mostra o mapa a seguir (fig. 5).
Figura 5
É interessante também destacar, na fig. 6, o “Perfil religioso” da cidade de São Paulo, em que os “evangélicos pentecostais” e os “sem-religião” praticamente se sobrepõem de maneira que ambos aparecem identificados com a mesma cor, o rosa.
Figura 6
Ao cruzar os dados censitários (2000) dos “sem-religião” com os de raça e escolaridade, detectou-se também que havia bom número de analfabetos, de pessoas com baixa escolaridade e de negros nesse grupo (BARRERA, 2005a). Em consonância com esse dado em nível nacional, nossa observação focada em essa parcela específica da sociedade brasileira constituída pelos moradores do bairro em questão encontrou que nesse lugar social da periferia urbana é muito comum ser um “sem-religião”. Cabe indicar que logo de um primeiro período de observação de campo que detectou os lugares de culto, partimos para a aplicação de questionário e de entrevistas. Oferecemos aqui um resultado parcial de uma amostra de 80 pessoas questionadas ou entrevistadas. Consideramos ser ainda um resultado parcial, mas que indica já uma tendência sobre o peso específico do número de “sem-religião” no bairro: 60% disseram ser “Católico”, 20% “Evangélico Pentecostal”, 15% “Sem-religião”, 2,5% “Evangélico de Missão” e 2,5 % de outras religiões. Não há, neste texto, como analisar ainda o quadro completo desses dados, mas queremos, sim, chamar a atenção para a alta porcentagem dos “sem-religião”. Importa destacar uma questão metodológica do tratamento desse grupo. Até três perguntas foram feitas com o objetivo de confirmar o sentido da resposta: “Qual é a sua religião?” “Que igreja frequenta?” e “Tem alguma crença religiosa?”. As respostas mais frequentes que constituem esse 15% foram do tipo seguinte: “Não tenho religião no momento”, “Não frequento nenhuma igreja”, “Eu ia, mas agora eu estou quieto” e “Acredito em Deus, mas, não vou a igreja nenhuma”. Cabe destacar, ainda, que todas as pessoas que se dizem “sem-religião” já foram frequentadoras de, pelo menos, duas ou três diferentes igrejas.
Entre os pentecostais também encontramos uma visão pouco “encantada” da realidade. Ser um crente, nesse bairro, significa de fato estar à procura de diversos benefícios absolutamente legítimos e mundanos, no sentido weberiano do termo. Vejamos as evidências disso. Dona Elena, de 50 anos, filha de migrantes nordestinos (Ceará), que nunca foi católica, cuja mãe sempre foi pentecostal (Assembléias de Deus), conta que mandava suas crianças assistirem a missa “porque o Padre dava, no final do mês, uma boa cesta básica a quem frequentava a missa”. Conta ela que tinha que “mandar as crianças direitinho”, porque “se faltavam uma ou duas vezes, o Padre não dava a cesta”.
Rosana, de 24 anos, também filha de avós migrantes e fiéis da Congregação Cristã, mãe de duas crianças, diz que alguns anos atrás: “(...) decidi frequentar a Congregação (CCB) porque precisava encontrar um bom marido”. As duas crianças que tinha eram de pais diferentes e ela estava cuidando sozinha da casa, trabalhando como diarista. Poucos meses depois, quando voltou a morar junto com o pai de sua última filha, de oito anos, parou de ir à Congregação. Tiveram outra criança e quando ela tinha três anos o casal viveu uma crise marital muito séria, que os levou a frequentarem uma pequena igreja das Assembléias de Deus “até que as coisas se acalmasseem”.
A pesquisa dos motivos da pertença religiosa entre moradores da periferia urbana mostra dois aspectos importantes que podem ser relembrados aqui. Um é o de que a pertença religiosa de fato ameniza a exclusão do mercado de trabalho. O outro é de que especialmente os grupos pentecostais têm importante capacidade de inclusão social. O peso empírico desse dado não pode ser desconsiderado, mas, penso ser necessário chamar a atenção para as evidências de explícito utilitarismo dos benefícios objetivos da religião por parte dos moradores da favela. Em consonância com essa visão utilitarista e legítima da religião e de seus benefícios, as pessoas abandonam o grupo religioso quando as “coisas se acalmam” e o fazem sem remorso evidente nos depoimentos.
Essa atitude perante os grupos religiosos e a frequência dos “sem-religião” correspondem, sem dúvida, a uma visão pouco encantada da realidade social e do lugar da religião nela. Os entrevistados mostram um conjunto de práticas sociais que denuncia compreensão moderna e secularizada da religião. Apoiados nessa constatação empírica, pode-se afirmar que as religiões são menos importantes para o povo que mora na periferia a despeito do grande número de opções religiosas ou, também, graças a ela. As opções religiosas estão à mão. Por isso, também a biografia religiosa dos moradores é plural: 80% dos pentecostais entrevistados dizem ter sido membros de três ou mais outras igrejas. E, dentre eles, há quem está entre os que hoje se declaram “sem-religião”. Também na favela as religiões se escolhem e se descartam. As difíceis condições de emprego, de moradia, enfim, de vulnerabilidade social, não implicam necessariamente que a religião leve as pessoas a reconstruir uma visão “encantado do mundo” em que vivem.
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[*] Professor de Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo.
[1] Para uma revisão da “Gênese e desenvolvimento” do conceito, veja-se DAVIE (2007, 47 e ss)
[2] http://www.emplasa.sp.gov.br]
[3] http://www.emplasa.sp.gov.br]
[4] Veja-se FORNI Floreal, MALLIMACI Fortunato e CÁRDENAS Luis (Orgs.) Guía de La diversidad religiosa de Buenos Aires, Buenos Aires, Biblos, 2003
[5] Todos os mapas utilizados neste artigo são do Atlas Religião e sociedade em capitais brasileiras (Jacob et ali 2006) que apenas retrabalhamos para melhorar a imagem. Conservamos os números dos mapas na publicação original. Para maiores detalhes, o leitor poderá se remeter ao texto em questão.