O potencial da Ciência da Religião de criticar ideologias – um esboço sistemático

Frank Usarski []

0 - Introdução

Entre cientistas da religião na Alemanha é consensual que a crítica à ideologia faz parte do repertório da própria disciplina. O debate sobre este assunto foi instaurado por um artigo de Kurt Rudolph publicado em 1978[1]. Neste ensaio, o autor tratou da critica à ideologia como conseqüência de um estilo cognitivo do cientista da religião, uma atitude caracterizada como agnosticismo metodológico[2].

No seu artigo de 1978, bem como em publicações mais recentes, o próprio Kurt Rudolph identificou as raízes do potencial crítico da Ciência da Religião na herança espiritual da disciplina derivada do movimento inglês e francês do Iluminismo. Segundo Kurt Rudolph, o espírito daquela época deixou a disciplina se desenvolver de acordo com estilos cognitivos típicos e valores não só como o da curiosidade em relação a culturas não-européias, mas também como o do distanciamento do cientista de perspectivas estabelecidas no próprio contexto social e do protesto contra a intolerância religiosa[3]. A partir desta compreensão da história da disciplina os resultados da pesquisa de cientistas da religião abrem possibilidades para uma crítica à ideologia cujos destinatários são religiões particulares, e para uma problematização de seus mecanismos internos e de seus efeitos tanto sobre o indivíduo quanto sobre a sociedade em geral[4].

Embora sem negar a argumentação de Kurt Rudolph, Hans Kippenberg enfatizou o Romantismo como outra raiz espiritual da Ciência da Religião e uma segunda fonte do potencial crítico da disciplina. O autor destacou o papel histórico deste movimento como o de uma contra-crítica às tendências exageradas de racionalismo, que colocavam a religião sob o risco de ser percebida de uma perspectiva funcionalista ou reducionista. Neste sentido, encontra-se uma linha de pensamento que pode ser lida como uma tentativa de resgatar a essência da religião, frente a processos espiritualmente destrutivos em sociedades cada vez mais secularizadas e céticas a respeito de manifestações religiosas[5]. Sob este ponto de vista a crítica à ideologia se refere a um outro objeto, não a uma religião que é problematizada, mas a uma sociedade cujos membros fazem parte de uma construção social de uma realidade na qual fenômenos religiosos são tratados como se fossem pré-modernos e disfuncionais.

I - Problematização

Graças a esta discussão metateórica, foram elaboradas várias implicações da função da crítica à ideologia da Ciência da Religião. Todavia, tanto por causa de uma justificativa primeiramente histórica deste aspecto, quanto devido à falta de uma reflexão mais pragmática do ponto de vista de pesquisas concretas sobre temas atuais, o debate chegou a um estágio não completamente satisfatório. Neste contexto especialmente dois aspectos têm que ser destacados.

Primeiro, o debate tem mostrado uma tendência de seus participantes de associar as mencionadas duas linhas da crítica à ideologia a determinadas "escolas de pensamento". Em outras palavras: a crítica à ideologia apareceu alternadamente ou como uma dedução do ramo "reducionista" ou como um derivado da Fenomenologia da Religião. E qualquer um dos casos, com pré-requisitos teóricos diferentes e com resultados específicos até contraditórios, se não inconciliáveis, em função da forte briga de métodos nos anos 60 e 70, quando as duas abordagens foram discutidas como distintas e incompatíveis em vários pontos. Neste sentido, encontra-se dentro da comunidade de cientistas da religião na Alemanha, uma leitura quase dicotômica não só da história da própria disciplina, mas também da função que a Ciência da Religião pode exercer a respeito da crítica à ideologia.

Segundo, a perspectiva sobretudo histórica levou a uma certa desatenção de outras dimensões do assunto. Foi negligenciada especialmente uma interpretação adequada da Sociologia do Conhecimento ou da Sociologia da Ciência.

O raciocínio deste artigo toma seu ponto de partida nesta situação deficitária. O objetivo é integrar as duas, já elaboradas e mencionadas, opções da crítica à ideologia e, ao mesmo tempo, apontar para três outros aspectos relevantes, ainda não suficientemente considerados. Estas tentativas se baseiam conceitualmente na doutrina de "ídolos" de Francis Bacon, uma abordagem que, embora pareça simples à primeira vista, representa uma das primeiras articulações de uma crítica explícita à ideologia.

II - A doutrina de ídolos de Francis Bacon como base conceitual da reflexão sobre o potencial da crítica à ideologia da Ciência da Religião

II.1. Esboço da doutrina dos ídolos

No contexto da sua argumentação em favor do método experimental e indutivo como único recurso legítimo nas ciências exatas, o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos principais pioneiros do Empirismo, identificou quatro tipos de obstáculos que dificultam, ou, até mesmo, impedem um conhecimento adequado da realidade. Segundo Francis Bacon, estes "ídolos", como ele os chamou, estão "firmemente enraizados" na mente humana e ocupam-na, a não ser que "se tenha cautela com eles e se proteja deles na medida do possível"[6]. Bacon deu a "seus" ídolos nomes metafóricos, assim distinguindo entre o ídolo da tribo, o ídolo da caverna, o ídolo do mercado e o ídolo do teatro.

Com a expressão ídolo da tribo, o filósofo inglês destacou que seres humanos são incapazes de conceber a realidade em todos os seus detalhes em função de suas condições antropológicas, ou seja, devido a limitações do seu instrumentário natural que somente permite acesso a certos segmentos e a certas camadas da complexa existência empírica. Para ilustrar os efeitos deste ídolo, Bacon comparou a mente humana a um espelho, cuja superfície desigual desvia os raios da luz e leva a uma representação destorcida da verdadeira natureza dos fatos refletidos. Enquanto o primeiro ídolo é o mais geral e aponta para restrições da espécie humana, o segundo, o ídolo da caverna, é mais concreto, uma vez que se refere aos requisitos, fisiológicos e psicológicos, com os quais o indivíduo nasce, bem como às condições, ou biográficas ou sociais, nas quais ele cresce. Trata-se aqui, por exemplo, de talentos e de interesses, como também de limitações e restrições particulares que, como Bacon escreveu, deixam o indivíduo aparecer como se vivesse " em uma caverna ou gruta que desvia e obscurece a luz natural".

Os dois outros ídolos resultam do intercâmbio social do sentido ou da comunicação cotidiana, ou ainda da discussão sobre teorias, conceitos e termos científicos e sua adoção pelo público de leigos. Segundo Francis Bacon, o terceiro ídolo permeia a mente humana "devido ao contato mútuo e à comunidade de gênero humano" no ambiente da sociedade, uma constelação a respeito da qual o filósofo inglês cunhou a noção ídolo do mercado. Este ídolo consiste tipicamente em construções lingüísticas, frases e designações inadequadas, particularmente no nível da fala cotidiana, uma vez que "palavras violam o intelecto, perturbam tudo e seduzem os indivíduos a inúmeras e vãs desavenças e ficções."

Sob a categoria do ídolo do teatro, Francis Bacon concebe os "princípios e teoremas [...] que ganharam validade por tradição, credulidade e negligência", ou seja, conceitos incorretos que exigem autoridade ilegítima somente pelo fato de que tem se infiltrado na mente humana contribuindo para uma incongruência entre consciência e a verdadeira natureza da realidade empírica.

Sob todas estas circunstâncias, Bacon enfatizou a necessidade de evitar os efeitos negativos dos ídolos: "Com intenção firme e solene, a mente tem que ser liberada e expurgada deles".

II.2. Discussão

O subparágrafo anterior mostrou que já foram abordadas por Francis Bacon as duas linhas de crítica à ideologia destacadas por contemporâneos cientistas da religião. Ao mesmo tempo, a articulação pioneira da crítica à ideologia pelo filósofo inglês aponta para aspectos freqüentemente omitidos pelo debate metateórico atual. Assim, Francis Bacon contribui indiretamente para uma reflexão mais abrangente sobre aquela função da Ciência da Religião.

O ídolo do mercado é um dos dois aspectos da doutrina de Francis Bacon que podem ser imediatamente interpretados como uma antecipação de argumentos aproveitados no debate dos últimos anos sobre a crítica à ideologia como função da Ciência da Religião. Como já foi dito, desenvolveu-se, associada à Fenomenologia da Religião, uma variação da crítica à ideologia, focando condições sociais que tendem a negar a legitimidade de manifestações religiosas no seio de uma sociedade moderna. Em seu texto, o filósofo inglês chamou atenção para distorções da consciência devido a processos de comunicação cotidiana composta por termos e conceitos pré-teóricos mas, que do ponto de vista da maioria da sociedade, são imediatamente "plausíveis". A história prova a validade de tais processos e seus efeitos coletivos. Quanto ao atual discurso público sobre religião, pelo menos em vários países europeus, freqüentemente se encontra um vocabulário carregado de rótulos como "atraso", "pré-modernidade", "superstição", "irracionalidade" ou até "fanatismo". Em primeiro lugar, estas designações pejorativas são aplicadas a fenômenos religiosos fora de padrão do Estado secularizado. O fato de que esses preconceitos estejam profundamente enraizados na opinião pública não só justifica retrospectivamente a competência analítica de Bacon, mas também a posição de cientistas da religião que argumentam em favor de uma crítica à ideologia de um espírito de época que corre o risco de escavar, por meio de tendências anti-religiosas, princípios fundamentais do Estado liberal.

As reflexões de Francis Bacon sobre o ídolo do teatro são tão relevantes como as sobre o ídolo do mercado para a discussão recente a respeito da função da crítica à ideologia da Ciência da Religião. Elaborando as implicações do tal ídolo, o filósofo inglês exprimiu um forte ceticismo a "princípios e teoremas [...]" que perturbam a mente" e se referiu explicitamente à "seitas", à religião e à teologia como entidades responsáveis para a produção de "fábulas" que "ganharam validade por tradição, credulidade e negligência". Desta maneira, encontra-se já na abordagem de Bacon uma perspectiva crítica para mecanismos internos da Religião e seus efeitos individuais e sociais. Em outras palavras, com seu ídolo do teatro, o filósofo inglês antecipou um segundo elemento que se tornaria central na discussão contemporânea dentro da Ciência da Religião a respeito de suas funções disciplinares.

Todavia, o comentário de Bacon a respeito de seu quarto ídolo revela um momento adicional em relação às duas linhas predominantes de tal discussão. É notável que o filósofo inglês identificasse o ídolo do teatro não somente com fenômenos do mundo religioso, mas também com "certos princípios e ensinamentos científicos". É evidente que esta alusão se referiu a hipóteses, a teoremas e a métodos típicos de abordagens que não correspondiam com o próprio ideal de Bacon de uma ciência exata. Neste sentido o filósofo inglês argumentou em favor de uma instância crítica sobre pesquisas e teorias localizadas em círculos científicos não-empiristas. A lógica desta idéia abre espaço para uma interpretação de que uma das maneiras através das quais a Ciência da Religião desenvolve seu potencial crítico é uma reflexão de implicações ideológicas de outras disciplinas. Neste sentido há, além de discursos públicos sobre fenômenos religiosos e além de mecanismos internos da Religião e seus efeitos individuais e sociais, um terceiro "destinatário" da crítica à ideologia: comunidades científicas engajadas no estudo sobre questões religiosas de acordo com normas metateóricas diferentes das da Ciência da Religião.

Não se encontra, porém, no texto de Francis Bacon uma reflexão crítica de qualquer empreendimento científico. O Empirismo, o favorito de Bacon, não foi tematizado como um portador potencial de distorções da mente. O insight de que nenhum contexto acadêmico é livre de interferências ideológicas surgiu mais recentemente. É especialmente mérito da Sociologia do Conhecimento e da Sociologia da Ciência. As implicações de tais abordagens se tornam claras a partir da definição de paradigma sugerido por Peter Weingart. Referindo-se à obra famosa de Thomas S.Kuhn A estrutura das revoluções científicas[7] Weingart distinguiu cinco denotações principais com as quais o termo é usado naquele livro. Segundo Weingart, a noção de paradigma representa, entre outros significados, a idéia de uma cosmovisão compartilhada por uma comunidade científica, condições intelectuais que prefiguram as teorias e pesquisas desta comunidade. A partir desta interpretação, um paradigma pode ser uma fonte de ideologia porque serve como um "filtro" de percepção que destaca certos segmentos da realidade, mas ofusca outros ao negligenciá-los como cientificamente "irrelevantes". Neste sentido o conceito de paradigma implica a idéia de uma certa "distorção" da mente. Isso vale para qualquer empreendimento científico, inclusive o da Ciência da Religião. Correspondentemente pode-se exigir que cientistas da religião devam institucionalizar, como uma de suas rotinas acadêmicas, o costume de auto-reflexão crítica da própria abordagem para entender melhor as limitações da própria disciplina.

Apesar deste ponto não estar incluído na doutrina de ídolos, Francis Bacon mostrou uma sensibilidade para um outro aspecto que na discussão atual sobre a função crítica da Ciência da Religião também não foi ainda suficientemente refletido. Esse aspecto se deduz a partir dos dois primeiros ídolos, ou seja, do ídolo da tribo e do ídolo da caverna. Referem-se a distorções da mente que cada cientista traz consigo devido a suas condições físicas e mentais, biográficas e familiares. Na Ciência da Religião, estes fatores são amplamente discutidos a partir da preocupação de que valores e convicções particulares podem atrapalhar o ideal da neutralidade com a qual o pesquisador se compromete quando exerce sua profissão. A discussão freqüente sobre a relação precária entre o cotidiano e o científico reflete a necessidade intradisciplinar de diminuir interferências ideológicas que têm sua origem na vida pessoal do cientista. Todavia, a perspectiva se reverte quando se coloca a questão de como uma formação intelectual que promove uma atitude de neutralidade influencia o pensamento do cientista da religião na sua esfera privada. Espera-se que a imparcialidade assumida por um cientista da religião na sua função acadêmica imponha-se, gradativamente, também como uma atitude cotidiana, fazendo com que este indivíduo distancie-se de si mesmo e desenvolva a capacidade de avaliar conceitos e modos da vida alternativos, inclusive os de outras religiões, de maneira mais racional e objetiva.

II.3. Resumo

A doutrina de ídolos de Francis Bacon, uma das primeiras articulações de uma crítica à ideologia, contribui para a discussão da Ciência da Religião sobre este tema. Com seus comentários sobre o ídolo do mercado e o ídolo do teatro, o filósofo inglês antecipou, ainda que de maneira rudimentar, as duas linhas atualmente predominantes no debate correspondente entre cientistas da religião. Todavia, diferentemente da tendência atual de dicotomizar estes duas linhas como opções alternadas, a abordagem de Bacon trata os dois ídolos como variações equivalentes de um problema mais abrangente. Além disso, as demais implicações do ídolo do teatro apontam para um papel crítico da Ciência da Religião, geralmente negligenciado pela discussão contemporânea. Neste sentido, a disciplina pode desenvolver, no contexto de discussões interdisciplinares sobre assuntos relativos à religião, uma função crítica a elementos ideológicos introduzidos por outras ciências. Um quarto aspecto, também geralmente relegado nas reflexões metateóricas na Ciência da Religião, resulta de comentários de Francis Bacon tanto sobre o ídolo da tribo quanto sobre o ídolo da caverna. Foi proposto acima que a necessidade de um cientista da religião de "disciplinar" suas preferências e convicções particulares, quando trabalha de acordo com as regras da sua comunidade científica, pode ter repercussões na sua vida privada. Tratar-se-ia de um efeito colateral no cotidiano individual de um estilo de pensamento propagado na esfera acadêmica. Pode-se conceber este efeito em termos de uma critica à ideologia, na medida em que a atitude de neutralidade, cultivada através da prática da Ciência da Religião, possibilita que o indivíduo ganhe maior objetividade também no seu cotidiano, quando confrontado com alternativas que diferem de suas próprias preferências.

Um aspecto, porém, falta na doutrina de ídolos: um olhar crítico de Francis Bacon para seu próprio paradigma. Neste ponto, a Ciência da Religião recebe impulsos de abordagens sociológicas mais recentes.

III - Exemplificação do potencial crítico da Ciência da Religião

III.1. A sociedade como destinatária de uma crítica à ideologia

Neste número da REVER encontra-se uma reflexão diferenciada de Hubert Seiwert sobre a função crítica da Ciência da Religião no sentido de uma correção de preconceitos e julgamentos irracionais enraizados na opinião pública sobre certos fenômenos religiosos. O autor justifica um engajamento de cientistas da religião em debates políticos relevantes. Aponta, através do exemplo do tratamento pejorativo dado a novos movimentos religiosos em alguns países europeus, para a responsabilidade social da Ciência da Religião. O fato de que o próprio Hubert Seiwert tinha sido convocado como especialista pela comissão do governo alemão sobre seitas, prova que seu raciocínio elaborado no artigo mencionado é mais do que uma articulação idealista de um status desejado da disciplina. Na verdade, depois de décadas nas quais a Ciência da Religião manteve-se ausente do debate polêmico sobre novos movimentos religiosos, a disciplina, pelo menos na Alemanha, desempenha atualmente um papel importante e eminentemente político naquela controvérsia. A participação construtiva neste discurso e seu efeito tranqüilizante a respeito da indignação pública sobre fenômenos religiosos fora de padrão é um bom exemplo da capacidade da Ciência da Religião de assumir o status de uma instância crítica à ideologias mantidas pela maioria social.

Um outro exemplo provando a competência crítica da disciplina refere-se ao ensino religioso não-confessional, institucionalizado nas escolas alemãs sob nomes como "conhecimento sobre religiões", "normas e valores" ou "ética". Trata-se de ofertas alternativas para alunos que não querem participar de aulas de orientação cristã (católica ou luterana). Os conteúdos desta matéria exigem uma referência a diferentes disciplinas auxiliares, entre elas a Filosofia e a Ciência da Religião. Quanto à última, a pretensão de contribuir o melhor possível para este desenvolvimento curricular, estimulou entre cientistas da religião uma reflexão metateórica correspondente. Neste contexto, encontra-se um artigo de Peter Antes tematizando o potencial crítico da Ciência da Religião no nível escolar, a partir do qual podem se desenvolver, a longo prazo, efeitos para a sociedade inteira. Peter Antes argumenta que um curso sobre religiões não-cristãs, dado em uma atmosfera não-missionária e liberal e didaticamente realizado com empatia para "o outro", é não somente capaz de induzir o aluno a uma apreciação da riqueza do mundo religioso, mas também sensibilizá-lo para o fato de que seus sentimentos e pensamentos sejam determinados por uma certa tradição religiosa. Desta maneira, ele desenvolve, no decorrer do curso, a capacidade de por em dúvida a plausibilidade "natural" da sua própria cosmovisão. É justamente neste ponto que se revela a relevância política da Ciência da Religião. Peter Antes afirma que: "A contribuição da Ciência da Religião consiste em possibilitar comparações contrastantes entre sistemas de referência. Aprende-se que nenhum ser humano que tem sua língua, seus pensamentos e seus valores, pode viver sem nenhum sistema de referência. Aprende-se também que nenhum sistema de referência pode ou deve reclamar validade absoluta. Com isso, desmascara-se qualquer forma de um eurocentrismo como uma ilusão perigosa."[8]

O artigo de Peter Antes traz uma reflexão básica sobre o potencial crítico que a Ciência da Religião introduz em currículos escolares relativos às matérias chamadas "conhecimento sobre religiões", "normas e valores" ou "ética". Um manual didático escrito por Udo Tworuschka trabalha essa questão de forma mais concreta e detalhada[9]. Encontra-se nesta publicação um capítulo que problematiza o uso de classificações polêmicas e termos prejudiciais em discursos cotidianos sobre religiões. Os exemplos que Udo Tworuschka discute exercem, em primeiro lugar, uma função didática. Além disso, demonstram de modo exemplar, como a Ciência da Religião cumpre sua aspiração de servir como instância crítica a ideologias enraizadas na consciência coletiva e lingüisticamente desdobradas. A maneira com a qual Udo Tworuschka aborda este assunto desperta associações com o ídolo do mercado descrito por Francis Bacon. O capítulo relevante enumera vários termos negativamente conotados, por exemplo, rótulos como pagão ou seita, e explica, do ponto de vista da Ciência da Religião, por que designações deste tipo devem ser excluídas do vocabulário popular. Ainda mais instrutivo, porém, é o parágrafo que trata de expressões referentes a manifestações religiosas, expressões ingenuamente aproveitadas como metáforas para manifestações seculares. Udo Tworuschka escreve: "Já faz tempo que algumas palavras entraram em nossa língua e agora torna-se difícil excluí-las. Por exemplo, se nós queremos suprimir certas instituições estabelecidas, dizemos que abatemos ´vacas sagradas´, e com isso ofendemos o Hinduísmo."[10] Problemáticas são também frases como "O Maracanã é o templo de futebol" ou "Ímola é a Meca da Formula 1". Udo Tworuschka reclama o costume de utilizar esta palavra como se fosse uma banalidade: "Deve-se ter consciência de que tal termo designa o santuário central do Islã. A fala sobre Meca [...] é repugnante para muçulmanos, para não dizer que, nestes casos, o termo assume uma conotação de blasfêmia."[11]

Ao criticar essa escolha lexical inadequada, a Ciência da Religião resgata valores de minorias religiosas e contribui para a diminuição de tensões entre grupos que constituem uma sociedade multicultural.

III.2. Religiões como destinatárias de uma crítica à ideologia

No decorrer da história da disciplina, a problematização de constituição de comunidades religiosas, ou do caráter da religião em geral, é a opção mais acentuada dentro do espectro das cinco possibilidades de realizar uma crítica à ideologia do ponto de vista da Ciência da Religião. Aspectos como a organização hierárquica de instituições religiosas, o poder de sacerdotes sobre leigos ou a função da religião a respeito da legitimação de regimes políticos têm sido freqüentemente analisados. Inúmeras obras correspondentes demonstram que se trata aqui de um dos temas clássicos da disciplina. Segundo Jacques Waardenburg, a Ciência da Religião tem, entre outras, "a tarefa importante de indicar casos nos quais a religião, em contextos concretos, foi, ou ainda é, usada contra homens e mulheres. Muitas vezes, a religião tem a função de disfarçar, ou seja, por sua causa certos fatos são representados de forma que situações e processos reais ficam dissimulados. Em princípio, todas as religiões podem ser usadas por certos interesses e podem causar comportamentos destrutivos. A Ciência da Religião, pois, não deve aceitar ingenuamente articulações religiosas como aparecem à primeira vista, mas tem que investigar os motivos que estão na sua base, nas suas interpretações e suas práticas."[12]

Análises sobre assuntos mencionados por Waardenburg podem ter um efeito nas próprias religiões do mesmo jeito que resultados da pesquisa filológica, histórica ou astrofísica causavam revisões e re-interpretações na teologia cristã. Tem sido difícil para representantes do Cristianismo continuar, de forma tradicional, com a pretensão de fazer parte de uma religião meramente baseada na revelação divina, frente a descobertas dos contatos e interferências culturais entre Israel e seus vizinhos desde tempos pré-bíblicos. Da mesma maneira, é inevitável aceitar, devido a popularidade da teoria do "big bang", que a doutrina bíblica de criação seja "apenas" uma imaginação simbólica de eventos cósmicos.

Exemplos deste tipo apontam para o fato de que comunidades religiosas estão envolvidas em um processo permanente de intercâmbio com outros subsistemas sociais. Neste sentido, religiões exercem uma influência em vários segmentos da sociedade e recebem, ao mesmo tempo, impulsos do ambiente, inclusive de subsistemas da esfera acadêmica. Neste sentido um insight da Ciência da Religião em certos mecanismos internos de uma dada religião pode repercutir dentro da comunidade investigada. Os resultados da pesquisa podem levar a esforços de corrigir os aspectos problemáticos. Um dos exemplos mais evidentes nesse sentido se refere às atividades de orientalistas britânicos na Índia e a prova filológica que uma prática tão cruel como a de incineração de viúvas não era sancionada pela literatura sagrada hindu. A identificação, ou seja, a desvalorização deste rito como um mero costume popular se tornou um argumento importante dentro do chamado Neo-Hinduismo. Abriu caminho não só para reformas internas, mas também para intervenções políticas que oficialmente proibiram esta prática e promoveram uma emancipação social de viúvas através de uma série de leis votadas entre 1829 e 1856[13].

Um segundo exemplo, porém de outro tipo e mais recente, tem a ver com um projeto realizado pelo Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade na Universidade de Victoria no Canadá[14]. Tratou-se de uma tentativa de unir, sob a égide da Ciência da Religião, não somente especialistas de várias disciplinas, mas também representantes de diversas religiões. O objetivo desse projeto era desenhar cenários futuros em reação a problemas globais como o do efeito estufa. Como Harold Coward, coordenador do projeto, relatou que se tornou evidente, no decorrer da pesquisa, que "em nenhuma religião pudemos encontrar uma resposta já pronta à problemática múltipla e complexa." Segundo Harold Coward, "este desafio exigia uma verdadeiramente nova teologia do ponto de vista de cada religião" envolvida no projeto[15].

Assim, o Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade tinha criado uma situação de laboratório cuja dinâmica não somente facilitou a comunicação entre religiões diferentes, mas também dentro de comunidades particulares. Neste sentido, a Ciência da Religião desempenhou um papel "anfitriã" e conseguiu estimular, por parte de religiões que participaram da pesquisa, uma auto-reflexão crítica sobre o inventário teológico com a qual cada uma das tradições tinha entrada no projeto.

III.3. Outras disciplinas como destinatárias de uma crítica à ideologia

O projeto relacionado ao problema do efeito estufa não foi o único realizado pelo Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade na Universidade de Victoria nos últimos anos. Houve também, por exemplo, uma pesquisa sobre o potencial de várias religiões para promover a paz. Um outro exemplo é a investigação sobre as contribuições de religiões diferentes a respeito de problemas que o sistema canadense atualmente sofre com relação a seu sistema penal.

Todos estes projetos tiveram um caráter interdisciplinar e em cada um dos casos, a Ciência da Religião agiu como um quadro referencial quanto à coleta de dados, à sistematização de resultados e à divulgação de suas conclusões. Justamente neste papel, o Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade cumpriu uma importante função acadêmica. Integrou-se em um contexto universitário majoritariamente composto por pesquisadores cujos campos de especialidade, normalmente, não colocam em posição de destaque o papel construtivo de religiões no mundo moderno. O coordenador do Centro, o próprio Howard Coward, enumera como ciências envolvidas, algumas que são extremamente "secularizadas", como Direito, Economia ou Biologia. Ao chamar atenção para a atualidade de tradições religiosas na busca de respostas para problemas globais urgentes, o Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade alargou as perspectivas de representantes de outras disciplinas. Mostra-se aqui uma opção particular de crítica à ideologia, pelo menos quando se propõe que uma perspectiva restrita assemelha-se à "distorção da mente" causada por um dos ídolos descritos por Francis Bacon.

Porém, um exemplo melhor para a função crítica que a Ciência da Religião pode exercer em diálogos interdisciplinares, refere-se novamente à discussão sobre seitas na Alemanha - já mencionada, sob uma outra perspectiva, no parágrafo III.1. Em uma primeira fase, até o início dos anos 80, esta discussão foi dominada, tanto na esfera pública, quanto acadêmica, por declarações e publicações de teólogos, especialmente os da Igreja Luterana. Os artigos e livros produzidos em grande número nesta primeira fase desenhavam, de maneira estereotipada e por meio de um vocabulário carregado de conotação negativa, um perfil extremamente restrito e pejorativo de vários novos movimentos religiosos. Por falta de estudos detalhados de um ponto de vista neutro, estas publicações eram as únicas fontes de referência, não só para leitores comuns, mas também para representantes de outras ciências, sobretudo para psicólogos, sociólogos e pedagogos. Membros dessas comunidades científicas reagiram à forte repercussão deste tema na sociedade alemã e se sentiram atraídos por este assunto tão "relevante". De acordo com abordagens típicas das disciplinas mencionadas, a imagem negativa de seitas se desdobrou. Psicólogos, por exemplo, tematizaram o fenômeno de seitas de acordo com a teoria de narcisismo ou da hipótese freudiana de compensação. Sociólogos levantaram como hipótese a adesão a uma seita "fechada" o desejo do indivíduo de fugir da complexidade da pós-modernidade. Reflexões do ponto de vista da pedagogia mostraram um interesse de prevenção e de correção de um comportamento "pseudo-religioso" fora de padrão e destacaram a necessidade de terapia e reintegração social de ex-membros daqueles grupos[16].

Até hoje, a discussão alemã sobre novos movimentos religiosos não está livre dessas tendências. Todavia, em comparação com a primeira fase, a situação mudou consideravelmente. Em grande parte, isso tem sido mérito de cientistas da religião. Além de poucas exceções, eles entraram relativamente tarde no debate, mas se tornaram cada vez mais ativos a partir da segunda metade dos anos 80. Contribuíram, em três sentidos, para o debate acadêmico interdisciplinar sobre o tema.

Primeiro, autores como Rainer Flasche[17] e Günther Kehrer[18], demonstraram a base preconceituosa do debate e apontaram para os interesses extra-acadêmicos de teólogos que tinham inaugurado o debate contra seitas e que dominavam, nesta época, também a discussão interdisciplinar.

Segundo, surgiram, na segunda metade dos anos 80, em número crescente, publicações escritas do ponto de vista da Ciência da Religião, que abordaram o assunto sobre novos movimentos religiosos de maneira comparativa. Assim foram elaborados traços idênticos ou semelhantes entre os grupos contemporâneos estigmatizados como seitas e outras comunidades socialmente toleradas. Outras obras apontaram até mesmo para estruturas comuns na história da religião e indicaram que, em muitos aspectos, novos movimentos religiosos não diferem de princípios e elementos que são característicos para religiões em geral.

Terceiro, no seio de um pequeno grupo de estudantes na Universidade de Marburg, manifestou-se o Religionswissenschaftlicher Medien- und Informationsdienst [REMID][19], comprometido com as normas metateóricas da Ciência da Religião. Trata-se de um serviço de informação e de materiais sobre fenômenos religiosos contemporâneos. Mais tarde, foi fundada pelas mesmas pessoas, a editora Diagonal, formalmente independente mas praticamente associada com o REMID. Uma das atividades do REMID consiste em organizações de congressos, dos quais especialistas internacionais participam, e cuja abordagem corresponde com as pretensões dos fundadores do grupo de Marburg. Entre vários outros projetos, a editora Diagonal publica a revista Spirita que regularmente traz artigos sobre temas relativos a novos movimentos religiosos e o debate polêmico sobre os mesmos. O REMID, no decorrer dos anos, deixou de ser uma iniciativa de alunos e se transformou em uma entidade profissional. Tornou-se um desafio para o Evangelische Zentralstelle für Weltanschauungsfragen [EZW], uma instituição semelhante, porém, enraizada na Igreja Luterana.

Tudo isso aumentou a influência da Ciência da Religião no debate interdisciplinar sobre novos movimentos religiosos. Cientistas da religião problematizarem freqüentemente o uso de termos pejorativos quando se fala de novas religiões, especialmente palavras como seita ou culto destrutivo. A literatura mais recente, produzida por cientistas de disciplinas diferentes, mostra que esta crítica lingüística teve seu efeito. Além disso, cientistas da religião introduziram reflexões gerais a respeito da relação entre líderes espirituais e seus discípulos. Peter Antes, por exemplo, indicou que a simbiose entre um "guru" de uma nova religião e seus discípulos, considerada típica de novas seitas, tem seus paralelos em religiões tradicionais e respeitadas[20]. Outros autores argumentaram que em inúmeros casos se encontra um financiamento de uma comunidade religiosa através de atividades econômicas "mundanas". Tais casos não devem ser automaticamente associados à tentativas de um grupo contemporâneo de assumir o rótulo "religião" para evitar o pagamento de impostos[21].

Os dois exemplos referidos neste subparágrafo apontam para duas variações de uma crítica à ideologia cujas destinatárias são outras ciências. No caso do Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade na Universidade de Victoria, a antecipação da Ciência da Religião em diálogos interdisciplinares ampliou o horizonte de representantes de disciplinas cujos estudos normalmente não promovem uma reflexão sobre o papel construtivo de religiões no mundo contemporâneo.

Quanto à discussão sobre seitas na Alemanha, mostrou-se a importância da abordagem comparativa representada pela Ciência da Religião. Desta maneira, o debate acadêmico não limitou a repetir o que já fora discutido pelo público, mas abriu novas perspectivas de discussão interdisciplinar.

III.4. O cientista da religião em sua vida privada como destinatário de uma crítica à ideologia

O aspecto teórico chave a respeito da questão abordada neste subparágrafo é a hipótese de Alfred Schütz de que a esfera da ciência é predominada por uma consciência de seus representantes que difere qualitativamente do estilo cognitivo típico do cotidiano. Schütz tematizou estas duas maneiras de trata o mundo em termos da dicotomia atitude teórica versus atitude natural . Peter L.Berger e Thomas Luckmann, os dois mais reputados representantes da Sociologia do Conhecimento e discípulos de Alfred Schütz, conhecido como fundador da Sociologia Fenomenológica, descrevem a atitude natural da seguinte maneira: "A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum [...]. A realidade da vida cotidiana é admitida como sendo a realidade. Não requer maior verificação, que se estenda além de sua simples presença. Está simplesmente aí, como facticidade evidente por si mesma e compulsória. Sei que é real. Embora seja capaz de empenhar-me em dúvida a respeito da realidade dela, sou obrigado a suspender esta dúvida ao existir rotineiramente na vida cotidiana."[22] Deve-se destacar que a atitude natural não se restringe a constituintes meramente cognitivos. Trata-se de uma posição na vida cotidiana que depende da personalidade de homens e mulheres em todas os seus aspectos, inclusive crenças e valores religiosos.

Tanto Alfred Schütz, quanto Peter L.Berger e Thomas Luckmann, caracterizam a vida cotidiana como uma esfera coletiva: "A realidade da vida cotidiana [...] apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com outros [...]. De fato, não posso existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros."[23] Como todo os outros indivíduos, um cientista da religião na sua vida privada faz parte da rede de plausibilidades descrita acima.

Em oposição à atitude natural, ou seja ao estilo cognitivo predominante no cotidiano, Schütz aproveitou a categoria de atitude teórica para designar o ideal de uma consciência disciplinada com a qual um cientista exerce sua tarefa de acordo com as regras metodológicas da sua disciplina. Neste sentido, a atitude teórica é caracterizada pela disposição do indivíduo de "não aceitar nenhuma condição e nenhum fenômeno como simplesmente existentes, ausentes da necessidade de explicação"[24]. Com isso Schütz exigiu que um cientista institucionalize, como uma instância interna, a chamada dúvida metodológica. Está dúvida se refere a qualquer segmento da realidade, inclusive aqueles aspectos que parecem não-problemáticos do ponto de vista de uma atitude natural na vida particular do cientista.

Uma aplicação da idéia de uma tensão entre atitude natural e atitude teórica no campo da Ciência da Religião encontra-se no livro Was ist Religionswissenschaft escrito por Hans-Jürgen Greschat, professor na Universidade de Marburg. Esta obra traz, de maneira exagerada, a seguinte caraterização da vida cotidiana inclusive a de um pesquisador da religião: "Nossos mecanismos de defesa funcionam automaticamente. Algo dá o alerta e o resto acontece quase autonomamente. Nós reagimos como robôs, rotineiramente, pois nós somos programados. [...] Alguns deles determinam nosso comportamento desde nossa infância, outros são assumidos mais tarde. Identificados com nossos programas, reagimos robotizadamente. Aquilo, com nos nós identificamos, esforça-nos, diminui nossa liberdade de reagir de maneira diferente."[25]

O que Hans-Jürgen Greschat indica com suas palavras metafóricas corresponde, bem como o conceito de atitude natural introduzido por Alfred Schütz, com as reflexões de Francis Bacon sobre o ídolo da caverna. Como Schütz e sua categoria de atitude teórica, também Greschat aponta para uma possibilidade de vencer, ou pelo menos, relativizar as determinações que limitam a flexibilidade na vida cotidiana. Neste sentido, Greschat defende a hipótese de que um indivíduo pode se distanciar de "programas automáticos" na medida em que ele estabelece em si mesmo uma instância chamada observador imparcial: "O observador imparcial é igual a um pesquisador que persistente e pacientemente observa algo, talvez um formigueiro ou uma constelação de estrelas. Esta ‘testemunha’ percebe tudo o que acontece, sem avaliar nada. O observador imparcial desliga o seu ego ativo, pois o ego quer o que não tem e teme perder o que tem."[26]

É obvio que Greschat sugere uma investigação de fenômenos religiosos de maneira neutra independentemente da simpatia ou antipatia com a qual o cientista da religião encontra estes fenômenos como cidadão enraizado na vida cotidiana. A partir disso, colocou a hipótese de que o costume de um cientista de religião de tomar uma posição radicalmente imparcial, pode também ajudar o individuo no cotidiano para transcender seus limites ideológicos. Neste sentido, Greschat propôs que uma metodologia, originalmente exercida como uma técnica profissional, torne-se parte de repertorio prático da vida particular do cientista. Segundo o autor, o mecanismo com o qual um pesquisador da religião deve combater seus preconceitos enraizados na sua atitude natural é caracterizado assim: "Nossas identificações se tornam evidentes em nossos valores e nossas avaliações. Nós nos reconhecemos naquilo com que nos identificamos, se nos investigamos como nos avaliamos, isso nos mostra o observador imparcial. Trata-se de uma função de nossa consciência. Quando fazemos algo automaticamente, nossa consciência dorme. [...] Quem quer se tornar consciente, tem que despertar sua consciência e se esforçar em mantê-la alerta."[27]

III.5. A Ciência da Religião destinatária de uma crítica à ideologia

Reflexões sobre a função crítica de auto-reflexão da Ciência da Religião sobre si mesmo ganham inspirações de várias fontes. Encontram-se idéias relevantes, por exemplo, na obra de Thomas S.Kuhn quando o autor leva em conta a plausibilidade inerente de qualquer sistema de conhecimento e a não-possibilidade de abstrair este sistema das suas condições históricas e das predisposições culturais dos seus representantes[28]. Entre as abordagens relevantes chamou atenção, no fim dos anos 70 na Alemanha, uma análise de Wolfram Fischer sobre o desenvolvimento recente da Sociologia da Religião[29] como uma das disciplinas principais da Ciência da Religião. O autor identificou como primeira fase de pós-guerra uma forte tendência de se referir, na pesquisa, a problemas institucionais de grandes igrejas e uma religiosidade associada a elas. A fase a partir do início de 70, porém, mostrou uma expansão de campo do estudo e os objetos de investigação em dois sentidos. Por um lado a Sociologia reagiu à relevância de novos movimentos espirituais. Por outro lado, fenômenos seculares como os do comunismo e do nacionalismo-social foram, incluído na área de pesquisa, de acordo com a argumentação que estas manifestações exercem várias funções normalmente relacionadas a religiões no sentido estrito. Sob estas condições o termo religião, desde sempre uma categoria polemicamente discutida em círculos acadêmicos, tornou-se ainda mais problemática quanto à necessidade de marcar as competências e limites da própria disciplina. Por isso, Fischer argumentou em favor de uma nova designação da matéria. Sugeriu uma substituição do nome Sociologia de Religião por Sociologia de Sistemas de Conhecimentos e da Interpretação. Essa designação não se impôs, mas a idéia de desenvolver uma perspectiva mais abrangente a respeito do campo da pesquisa, tem relevância para a reflexão sobre a competência crítica não somente da Sociologia da Religião em particular, mas também para a Ciência da Religião em geral. A relevância consiste no fato de que, quando a Ciência da Religião define como seus objetos de estudo quaisquer sistemas de conhecimentos e da interpretação, abre espaço para uma auto-reflexão, pois ela mesma é, afinal de contas, nada mais e nada menos do que um sistema que produz e reproduz conhecimento e interpreta realidade. Um olhar crítico sobre si mesma se realiza à mediada em que a comunidade cientifica está consciente das determinações culturais da própria disciplina. Neste ponto a Ciência da Religião deve aprender da Etnologia, uma disciplina caracterizada pelo hábito de por em dúvidas os seus princípios epistemológicos frente à multiplicidade de cosmovisões que se encontram em tempos anteriores ou regiões distantes, e que são representadas por grupos, tribos e povos diferentes. Neste sentido, Wolfdietrich Schmied-Kowarzik formulou do ponto de vista etnológico: "Muitas pessoas acreditam que nossa compreensão científica da realidade é definitivamente válida em comparação a uma cosmovisão mágica ou mística que se prova pré-lógico. Mas esta fé na ciência se transforma imediatamente em uma superstição se refletirmos e olharmos metateoricamente para os critérios que qualificam nossa compreensão da realidade como válida. Sob esta condição, se torna visível que nossas ciências não são capazes, em nenhum ponto, de atingir a realidade como tal. Fica óbvio que todas elas nos oferecem "jogos de linguagem" [...], regras de estruturação, de acordo com as quais integramos nossos experiências numa rede, mas que não representam, de jeito nenhum, a realidade como tal. [...] Nossa racionalidade científica é, entre outras, também somente uma maneira de interpretação de realidade, mas não é a forma privilegiada de compreensão."[30]

Pode-se exigir de um Cientista da Religião que ele deva internalizar este insight. Somente se for capaz de questionar as regras da sua comunidade acadêmica e relativizar sua maneira de interpretar o mundo, terá o direito de exercer uma função crítica no sentido dos quatro subparágrafos anteriores.

Notas

[1] Cf. Rudolph, Kurt: Die ideologiekritische Funktion der Religionswissenschaft, em: Numen 25 (1978), pp.17-39.

[2] Cf. Smart, Ninian: The Science of Religion and the Sociology of Knowledge, Princeton, Princeton University Press 1977.

[3] Cf. Rudolph, Kurt: Historical Fundamentals and the Study of Religions. Haskell Lectures Delivered at the University of Chicago, New York; London, Macmillan, 1985

[4] Cf. Rudolph, Kurt: Die religionskritischen Traditionen in der Religionswissenschaft, em: Kippenberg, Hans G.; Brigitte Luchesi [orgs.] Religionswissenschaft und Kulturkritik, Marburg, Diagonal, 1991, pp.149-156, especialmente pp.155-156.

[5] Cf. Kippenberg, Hans G.: Einleitung: Religionswissenschaft und Kulturkritik, em: Kippenberg, Hans G.; Brigitte Luchesi [orgs.], op.cit., pp.13-28, especialmente pp.20-21.

[6] Bacon, Francis: Die Idolenlehre, em: Lenk, Kurt [org.]: Ideologie, Ideologiekritik, Wissenssoziologie, Darmstadt; Neuwied 1978, pp.50 ff, especialmente p.50. Nesta fonte, encontram-se também todas as outras citações neste parágrafo.

[7] Kuhn, Thomas S.: A Estrutura das revoluções científicas, São Paulo (Editora Perspectiva) 2000, p.13.

[8] Antes, Peter: Der Beitrag der Religionswissenschaft zum Alternativ-Unterricht, em: Der evangelische Erzieher: 30 (1978), pp..152-163, especialmente p.163.

[9] Cf. Tworuschka, Udo: Methodische Zugänge zu den Weltreligionen. Einführung für Unterricht und Studium, Frankfurt a.M. 1982.

[10] Ibid., p.126.

[11] Ibid., p.127.

[12] Jacques Waardenburg: Religionen und Religion, Berlin 1986, p.59

[13] Cf.Müller, Hans-Peter: Die Rmakrishna-Bewegung. Studien zu ihrer Entstehung, Verbreitung und Gestalt, Gütersloh 1986, p.2.

[14] Cf. http://web.uvic.ca/csrs

[15] Coward, Harold: The contribution of religious studies to public policy, in: Studies in Religion/ Sciences Religieuses 28/4 (1999): pp.489-502, especialmente p.492.

[16] Cf. Usarski, Frank: Die Stigmatisierung neuer spiritueller Bewegungen in der Bundesrepublik Deutschland, Köln, Wien 1988, especialmente pp.15-30.

[17] Cf., por exemplo, Flasche, Rainer: Jugendreligionen zwischen Verunglimpfung und Verfolgung?, em: Gewissen und Freiheit: 19 (1982), pp.50 ff.

[18] Cf., por exemplo, Kehrer, Günter: Kirchen, Sekten und der Staat. Zum Problem der religiösen Tolweranz, em: Gladigow, Burkhard [org.]: Staat und Religion, Düsseldorf 1981, pp.142 ff.

[19] Cf. http://www.uni-leipzig.de/~religion/remid.htm

[20] Cf. Antes, Peter: Der Hinduismus und hinduistische Jugendreligionen in Deutschland em: Mensen, B. [org.]: Jugendreligionen (Vortragsreihe 1979/80), St.Augustin 1980, p.23 ff.

[21] Cf. Usarski, Frank, op.cit., pp.123-125.

[22] Berger, Peter L.; Thomas Luckmann: A Construção Social da Realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento, Petrópolis, Vozes, 1998, p.40 f.

[23] Ibid., p.40.

[24] Schütz, Alfred: Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt. Eine Einleitung in die verstehende Soziologie, Frankfurt am Main 1974, p.15.

[25] Greschat, Hans-Jürgen: Was ist Religionswissenschaft, Stuttgart 1988, p.137.

[26] Ibid.

[27] Ibid.

[28] Cf. Kuhn, Thomas S.: A Estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Editora Perspectiva, 2000.

[29] Cf. Fischer, Wolfram: Von der Kirchensoziologie zur Soziologie der Wissens- und Deutungssysteme. Ein Literaturbericht zur Religionssoziologie, em: Theologia Pracica: 13 (1978), pp.124-139.

[30] Cf. Schmied-Kowarzik, Wolfdietrich: Philosophische Überlegungen zum Verstehen fremder Kulturen und zu einer Theorie der menschlichen Kultur, em: Schmied-Kowarzik, W.; J.Stagl [orgs.]: Grundlagen der Ethnologie. Beiträge zur gegenwärtigen Theoriediskussion, Berlin 1981, pp.349-387, especialmente pp. 368-369.