"Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia de um público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o metafísico aspira a agradar. Essa subserviência que se instala numa fraude de desafecção, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura superficialidade. E marca a agonia de uma cultura. A graça, contrário da exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se um método unicamente concebido para sobreviver.
Ao mesmo tempo que se nivela a inteligência – coisa que não se reparte senão fazendo-a produzir de maneira ilimitada – faz-se da timidez uma esperança. A cultura tornou-se matreira e o espírito, em vez de vigilante, fez-se opinioso.[1]"
Meu objetivo neste paper é introduzir uma reflexão acerca do valor crítico que tem a atividade de investigação do fenômeno religioso. Poucos objetos de pesquisa são vítimas de tanta distorção quanto a religião. Penso que tal fato descreve na realidade um problema de concepção de mundo: a cosmovisão religiosa – ainda que dito de forma muito abrangente – parece entrar em frontal choque com aquela que define o advento da "modernidade". Não vou entrar nos meandros dessa discussão pois esta é já "quase" senso comum: a orfandade do ser humano moderno descreve sua solidão cósmica assim como sua (festejada) liberdade pós-adâmica. Com a mecânica moderna, passamos de um mundo como livro que revela seu autor a espaços infinitos de escuridão e silêncio, presos na matemática indiferente do átomo. O procedimento usual nesta "modernidade" é a redução do fenômeno religioso a alguma de suas mediações, psicológicas ou sociais.
Primeiramente pretendo definir - de modo rápido, visto que já tive oportunidade de me deter sobre esta questão em outras ocasiões[2] - o que entendo como sendo o problema epistemológico da investigação do fenômeno religioso, e aí delinear o que seria uma espécie de crítica epistemológica interna a prática das pesquisadoras do fenômeno religioso. Na seqüência, diretamente relacionado com o primeiro bloco e meu real foco neste paper, tratarei de analisar o potencial crítico que teria para o ser humano moderno uma cosmovisão – mais especificamente, uma antropovisão – que definirei como pessimismo religioso agônico[3], característico de certa corrente dentro da história da filosofia produzida pelo cristianismo. Minha conclusão deverá ser que o conhecimento distante do senso comum acerca da religião pode produzir um outro tipo de "distanciamento": uma crítica social e existencial – assim como epistemológica – com relação ao "sobrevalorizado" humanismo moderno, crítica esta que na realidade nos abre o campo de visão para uma concepção do humano como ontologicamente disfuncional e insuficiente[4]. Isso é que entendo como teologia crítica: a teologia, um objeto de estudo das ciências da religião, objeto privilegiado na medida em que é também uma instância ativa fundamental no procedimento dialógico da investigação em si, se revela muitas vezes como um poderoso olhar filosófico que o "pensamento da Transcendência" nos oferece na forma de uma crítica contundente ao humanismo narcisista que constitui uma certa antropologia contemporânea de raiz renascentista, iluminista e romântica. Meu procedimento não se constituirá em descrever a trama conceitual com a qual lidarei através do processo clássico da visibilidade via citações, deixarei este percurso para o leitor fazer através das referências que indicarei. Minha intenção aqui é assumir o conteúdo dado nestas referências e seguir imediatamente na direção da reflexão a partir deste conteúdo.
A investigação em ciências da religião (CR) pressupõe uma identidade metodológica e objetal. Não me parece que possamos tomar essas duas instâncias como algo facilmente dado. Na realidade, não creio que um olhar epistemológico mais crítico possa aliviar a dúvida cética com relação a consistência da atividade dita científica em qualquer campo das chamadas ciências humanas, isto é, o grau de convencionalismo (mesmo pragmático, para não dizer meramente instrumental-subjetivo no sentido que nos fala Adorno e Horkheimer[5], ou mesmo puramente militante-normativo[6]) neste campo é altíssimo, e arrisco até que a ausência de desconforto epistemológico por parte de tais cientistas é proporcional ao desconhecimento do drama cético que deveria caracterizar a simples (e freqüente) assunção de teorias específicas como dogmas nas ciências sociais e psicológicas. Mas não vou me deter nesta questão que é por demais ampla, prefiro pensar este problema dentro dos limites mais estreitos da pesquisa em CR. A disciplina epistemológica é sempre uma experiência crítica e transformadora para quem a prática, diria quase "iniciática".
De forma resumida – e aqui defino em grandes linhas o que entendo como o problema epistemológico em ciências da religião -, posso afirmar que o campo epistemológico aqui se abre para duas vertentes, uma que seria de maior teor essencialista (Eliade, Otto, Schleiermacher, Wach, entre outros), e uma outra, mais empiricista (Rudolph, Katz e contextualistas em geral)[7]. A primeira se caracterizaria por uma tendência a supor uma "pureza" perene no objeto religião que permaneceria no horizonte da pesquisadora, no mínimo como exigência socrático-maiêutica. A segunda, ao falarmos em "contextualismo", já está posta sua concepção central de mundo: irredutibilidade do contexto, seja ele histórico, social, psicológico ou mesmo bio-físico (contextualismo duro). Na realidade, Otto e Schleiermacher seriam ainda mais radicais – na mesma medida em que seriam anacrônicos, diriam os empiricistas – devido ao fato que suporiam a experiência religiosa por parte da pesquisadora como uma instância transformadora da experiência cognitiva e noética em si, transformação essa que seria condição de possibilidade (no sentido kantiano do termo) da investigação em si. Quem não tem experiência religiosa seria uma pesquisadora menor, porque cega, e portanto a ser eliminada como "senior researcher" para a pesquisa – daí o sentido de se descrever tais autores como eliminacionistas. Trata-se aqui na realidade de uma discussão que toca o conceito de tato religioso – construído dentro do corpo teórico eliadiano – que é na realidade um desdobramento da concepção medieval de sentido do sobrenatural. Toda essa discussão é fortemente filosófica na medida em que supõe "sentidos" não claramente visíveis aos sentidos, portanto ultrapassa o alcance metodológico da ciência moderna, estruturada a partir da seguinte equação: base empírica coletada pelos inseguros sentidos (os "sense-data") associada a procedimentos sistemáticos que reduzam esta insegurança "sustentada" infalivelmente na miserável falibilidade do aparelho sensorial-cognitivo humano, assim como já nos havia mostrado Sócrates, Platão e os grandes sofistas, muito antes do chamado "pensamento" pós-moderno re-inventar comicamente a roda do relativismo[8]. O pecado essencialista estaria exatamente em se colocar problemas fora do alcance de uma ciência sensorialmente "segura" – o que de fato é irreal, ainda que tal fato não legitime críticas ingênuas as tentativas de redução da margem de erro na sistematização de hipóteses: perguntas acerca do que seria esse tato do sobrenatural carrega a prática da pesquisadora com dramas "desnecessários", sendo mais seguro para ela simplesmente se debruçar sobre fenômenos historicamente "claros" – se é que existe tal caso. Não se deve perguntar acerca de uma "tal experiência" religiosa, mas ler – em todos os sentidos hermenêuticos possíveis – o texto e o contexto de uma tradição específica e a partir daí estabelecer a compreensão de um fenômeno religioso empiricamente dado. Por esta razão, Rudolph defenderia inclusive uma "ciência das religiões" na medida em que seria uma história social e psicológica de fenômenos religiosos plurais dados (a identidade da disciplina estaria legitimada no objeto), sem necessidade da pesquisadora se perguntar acerca de seu objeto: investiga-se o budismo japonês das duas últimas décadas do séc. XX na Inglaterra, por exemplo. "Religiões" aqui, na realidade, "mostraria" via linguagem conceitual o nome da família de fenômenos empíricos que se assemelhariam devido a suas práticas e concepções. Por trás de tal procedimento existe antes de tudo uma demanda de "higiene epistemológica" pragmática: evita-se um universo de problemas que estão além da capacidade senso-noética humana de resolver, o que paralisaria ou desviaria o olhar da pesquisadora. Para anacrônicos – uso este termo porque o essencialismo tende a ser decadente entre as pesquisadoras alertas para os delírios platonizantes, o que em absoluto para mim é signo auto-evidente de sua (do essencialismo) ilegitimidade – tal pesquisa empiricista tem seu lugar e seu valor como critério metodológico evidente, mas é incapaz de atingir o "core" da questão na medida em que permanece exterior a experiência cognitiva, afetiva e noética que caracteriza o fenômeno religioso "por dentro". Teria, por exemplo, uma psicóloga que viveu uma depressão profunda um conhecimento "de outra ordem" do que é a depressão, de tal forma que iluminaria a "falta à cognição" que caracterizaria uma outra psicóloga "sempre feliz" ? É evidente que não se pode responder tal questão sem levar em conta que a psicóloga "deprimida" tem um "plus" como material para sua atitude enquanto agente noético. Mas por outro lado, uma tal experiência, a depressão, poderia contagiar a psicóloga de tal modo que inviabilizaria seu alcance epistemológico, do mesmo modo que o contágio supostamente confessional da pesquisadora de tendência eliminacionista, diria uma empiricista pura. Ela, a deprimida, poderia na realidade "desistir" de todo o processo de investigação porque transformada pelo desastre existencial que viveu[9]. Mas o que caracteriza afinal "estar deprimida"? Uma atitude diante da vida que tem como base uma transformação neuronal "indesejável", uma patologia traumática, uma inapetência pela vida, enfim. Em outra cultura, esta mulher poderia não ser inútil, mas em um lugar onde a eficácia é axis mundi, é impossível imagina-la atingindo objetivos: vemos assim como uma boa disciplina contextualista é capaz de relativizar a "essência" do que seria "o" patológico. Obviamente que, aparentemente, não devemos "ir tão longe" no que se refere a uma reflexão epistemológica, a ponto de supor que a depressão (uma disfunção?!) seria um instrumento de conhecimento passível de exercer aí uma função crítica, mas a realidade é que se há uma função cognitiva latente ativa na disfunção depressiva seria precisamente sua insuportável crueldade (auto)crítica. A agressividade crítica deste movimento parece dissolver toda e qualquer consistência possível da cadeia de enunciados: a melancolia é um afeto triste que desfaz a consistência do mundo. Mas a decisão aqui (no plano objetivo da investigação formal) é antes de tudo pragmática: se necessitamos (e sim, necessitamos) de critérios para estabelecer contratos – inclusive cognitivos e noéticos – entre os seres humanos, não podemos simplesmente supor que por isso uma opção pela "higiene epistemológica" anti-essencialista toca o ser, no sentido de que nesta atitude "conhecemos melhor e de fato". A crítica feita a incompetência essencialista deve ser mais radical – e aqui defino mais claramente minha posição: toda e qualquer disciplina epistemológica rígida deve nos levar a experiência cética, do contrário causará algum tipo de dogmatismo risível. Do ponto de vista cético não há repouso cognitivo na verdade, só há na ignorância, ou no máximo, no desespero, ou em uma praxis marcada pela experiência da epoqué – suspensão do juízo acerca da "verdade" dos enunciados. A impenetrabilidade do objeto em ciências da religião – ainda mais levando-se em conta o teor crítico de posturas radicais eliminacionistas como a de Otto e Schleiermacher – deve servir a pesquisadora como alerta contra tais certezas que caracterizam o repouso na ignorância alegre que caracteriza um empirismo/relativismo sem cultura filosófica: assim como a deprimida tem uma experiência transformadora e que a capacita a conhecer tal fenômeno (a depressão) "por dentro", do seu ponto de vista – assim como a experiência possível do seu aniquilamento pessoal –, a pesquisadora "religiosa" eliminacionista tem uma experiência que pela falta desta, descrever-se-á, do ponto de vista eliminacionista, uma forma de cegueira cognitiva e noética que implica necessariamente em uma hermenêutica "menos precisa" devido a ausência de base empírica legítima (os "sense-data" do empirismo relativista seriam aqui vistos como insuficientes): apontar para a dificuldade no procedimento da transmissão das evidências coletadas pela radicalidade da postura eliminacionista não implica que seu argumento seja inválido, pensar que assim o seja é ingenuidade epistemológica. O problema do conhecimento visto de modo rigoroso, na realidade, nos aponta para a agonia produtiva (o combate da dúvida perene), não para o repouso.
Assim sendo, não me parece razoável que simplesmente dissolvamos esta tensão em uma decisão que na realidade permanece risível: se um empirismo robusto faz a higiene de um platonismo renitente[10] de viés metafísico complicador, o eliminacionismo de Otto e Schleiermacher sustenta a indagação cética na medida em que postula, como os céticos sempre o fizeram, a cegueira (entendida como insegurança ou incompetência) dos sentidos diante das trevas do mundo (no caso, o objeto das CR). O modo de enfrentar tal drama cognitivo é antes de tudo assumir o caráter agônico – combate contínuo com a impenetrabilidade do mundo em geral – da prática epistemológica, que é na realidade uma atitude simetricamente oposta a ingenuidade que caracteriza o alegre repouso na ignorância, porque se constitui na disciplina de quem faz a experiência cética como um "combate iniciático" que tem em seu percurso, alias, um forte grau de "depressão" diante da miséria cognitiva que caracteriza o gênero humano – na realidade, trata-se de uma cognição que se reconhece como em essência insuficiente, e que esta característica opera sobre si mesma como exigência de sustentação da agonia produtiva. No que se refere aos instrumentos de enfrentamento (a "tool box" da pesquisadora), penso que deveriam ser múltiplos: sua amplitude deve incluir tanto a empiria mais bruta e "higiênica" das ciências sociais e psicológicas experimentais, quanto a psicologia dita profunda, as ciências naturais, a epistemologia e filosofia da religião, chegando mesmo a sofisticada poética de um Dostoiesvki – conhecedor profundo da experiência religiosa cristã – como exemplo de uma abordagem via literatura. Diante de tal impenetrabilidade, na realidade, a prática em CR deve ser antes de tudo inclusiva, no sentido de buscar recursos nos mais diversos campos da produção humana, e não permanecer refém de um repouso higiênico travestido de rigor – rigor este legítimo como reação ao confessionalismo fora de lugar, erro este, por exemplo, materializado na passagem que faz Otto de seu fundamental postulado epistemológico eliminacionista a suposta universalidade da categoria descrita por ele como o "Sagrado"[11]. A experiência cética em si é um objeto central da reflexão filosófica religiosa: místicos e céticos se encontram no deserto da "falta à cognição" segura[12]. O problema do conhecimento não nos leva a um mar calmo de evidências, mas a dolorosa linguagem incerteza.
A tradição a qual me refiro é aquela que podemos traçar, grosso modo, desde o chamado "pessimismo antropológico (e cosmológico) radical" da gnose[13] do paleocristianismo presente em autores como Valentinus, Carpocrates, Basilides e Marcion[14], entre outros, posteriormente re-contextualizado e re-definido pelo agostinismo antropológico "da graça" dos textos onde Agostinho[15] polemiza contra o "humanismo" avant la lettre do pelagianismo, ressurgindo depois já na idade média nos movimentos bogomilo e cátaro[16], para depois chegar ao século XVII francês no fenômeno jansenista[17], entrando a partir daí nas raízes do existencialismo kierkegaardiano[18] no XIX[19]. Obviamente que aqui entrecruzam-se referências históricas e sociais nesse longo percurso, mas não me parece que esse (importante) fato torne o percurso acima descrito por mim como inconsistente, pelo contrário, a falta de cultura filosófico-religiosa pode levar uma pesquisadora a total incapacidade de perceber exatamente o que acima fiz referência como a antropologia teológica crítica pessimista (com seríssimos desdobramentos epistemológicos) que caracteriza um certo cristianismo, e que tem um fundamental valor crítico dentro do cenário do humanismo contemporâneo afogado nos "delírios narcisistas pós-modernos", não só por gerar esta concepção filosófico-religiosa que critica a fundo o modelo "narcisisic-oriented", mas por significar um discurso que fala de uma experiência religiosa específica que produz exatamente tal concepção. Assim como nossa deprimida experimentava a possibilidade de sua "justa" completa aniquilação, o ser humano ressurge desta experiência religiosa pessimista – ou desta espiritualidade agônica - com a vivência de sua legítima possível aniquilação ontológica[20].
Mas de que modo podemos identificar tal "pessimismo teológico" – que impilcaria no conceito de disfuncionalidade humana –, e em que medida ele se constituiria em um instrumento crítico? Usualmente o olhar dito "pessimista" é associado a imobilismo, depressão, conservadorismo político, ou mesmo niilismo moral, ou seja, tudo que poderíamos classificar de "indesejável". Devemos, todavia, tomar o devido cuidado para não estabelecermos uma relação estreita e necessária entre o que seria uma atitude crítica e sua suposta conseqüência, "progressivismo", como se criticar implicasse em necessariamente uma construção geradora de bem-estar progressivo. Aliás, é à própria infantil "cultura do bem-estar" que me referi acima como narcísica. A idéia, que na realidade tem uma lógica sedutora evidente, de que podemos descrever (ou seja, naturalizar, já que dar nome é dar uma natureza) o que seria o estado de "aperfeiçoamento" ontológico que caracterizaria a redenção religiosa verdadeira, reduzindo-o a parâmetros antropomórficos de "felicidade", me parece um ato, do ponto de vista da filosofia da religião, essencialmente imanentizador daquilo que chamamos de "Transcendente" em vocabulário religioso ocidental: como se esse Transcendente estivesse implicado na declaração revolucionária francesa dos direitos do homem e nas descobertas da psicologia centrada no eu, divinizando necessariamente a história (do indivíduo), onde emancipação histórica moderna passa a ser sinônimo de sentido da Transcendência. Tal tipo de crítica ao processo de naturalização do Transcendente – ou esquecimento deste, por exemplo – está no foco das críticas do agostinismo pessimista da graça, seja ele antigo ou moderno, à teologia naturalizante que representa o pensamento pelagiano ou molinista moderno. Mas a fim de tentar esclarecer o que tenho em mente quando me refiro ao pessimismo teológico (pensado enquanto objeto de estudo do fenômeno religioso) e seu valor crítico, discutirei dois casos específicos da história do cristianismo, a saber, a gnose pessimista paleocristã demiúrgica e na seqüência, a teologia da graça agostiniana (antiga e moderna).
O termo "pessimismo" é naturalmente polissêmico. Normalmente é compreendido como oposto ao "otimismo". Uma crítica clara ao uso de termos aparentemente não filosóficos como esses, seria que remete o leitor a região sombria do senso comum. Aqui faço uso da idéia pragmática (tanto no sentido de "jogos de linguagem" do Wittgenstein II como na forma pragmatista rortiana[21]) de que o uso de um termo pode se tornar claro na medida em que precisamos o campo de utilidade (os limites da produção de sentido em uma comunidade específica) de sua aplicação: nos limites deste paper, o termo "pessimismo" deve remeter o leitor a idéia de disfunção ontologicamente necessária do ser humano tal como se ele encontra no seu estado dado de natureza., assim como também descreve historicamente a crítica da construção da idéia (oposta a anterior definida por mim como pessimista) de que a natureza humana é suficiente nos limites de seus componentes e funções, o que normalmente é entendido na tradição renascentista como "dignitatis hominis", ou seja, a dignidade natural do Homem[22] O que está em questão aqui é a idéia da autonomia humana. O pessimismo ao qual me refiro pensará esta autonomia sempre como pesadelo de um ser que se degenera no processo de auto-afirmação de uma condição irreal, seja ela só do ser humano, seja ela de todo o cosmos.
Na gnose demiúrgica paleocristã, a dissociação entre a idéia de criador (o qual associa traços do demiurgo do Timeu ao Deus do Gênesis, mas com um caráter marcadamente incompetente ou mal) e do verdadeiro Deus (este na realidade é referido como o "Pai silencioso", o "Pai desconhecido", o "Deus da misericórdia" ou "Deus não-existente", aquele que enviou o Cristo) é a chave da visão crítica que daí surge. Assumirei o termo "gnóstico"[23] com todos os ruídos que ele possa causar de um ponto de vista histórico como o modo mais rápido de estabelecer a descrição que pretendo. Por "gnóstico" entendo o ser humano que possuído pela gnose, toma conhecimento do estado de embriaguez[24] no qual se encontra os demais seres humanos e que por isso não conhecem a real história da criação, portanto trata-se de um discurso religioso que conta o mito da cosmogênese, mito este que ao invés de investir teologicamente e afetivamente na criação e no sentido maior dela, contempla ("teoria" em grego, de modo aproximado) esta criação com um olhar crítico: o gnóstico percebe o cosmos como uma ordem perversa, trocando a idéia de uma providência divina "benigna" pela de destino aterrorizador, dando a esta um sentido de tormento interminável. O gnóstico vê a lei natural como a força demoníaca do demiurgo pronta para encarcera-lo no inferno que é o mundo (sendo o peso do corpo – o que chamamos gravidade – uma evidência desta lei "carcerária"). E mais: a evidente corrupção (outra lei demiurgica) de uma matéria que não é capaz de se sustentar no tempo, e que gera necessariamente a morte e o terror nos seres humanos. O mal é portanto o Ser, não se tratando de uma realidade humana, mas divina (o demiurgo é um "deus menor"[25]): basta percebermos que para um ser se manter vivo, outro(s) deve(m) ser destruído(s), indicação evidente da tara de um criador perverso. O gnóstico não vê o universo da moral e da razão como algo legítimo, pois qualquer movimento da razão e da vontade do ser humano é palco do demiurgo perverso: o mal é cosmológico, da ordem da física não da liberdade, o cosmos é determinísticamente mau, daí o antinomianismo[26] decorrente. O gnóstico é um solitário cósmico que faz ciência natural para estudar o mal. Diante de tamanho espetáculo, salta aos olhos o caráter crítico de tal experiência religiosa: o foco da crítica é a própria criação. Da ordem cosmológica a instituição social, do cânone moral possível (racional) a psicologia profunda (diríamos hoje em dia), do Logos a biologia, tudo é objeto de distanciamento e estranhamento. Todo o regime da imanência cai sob o flagelo da crítica: aqui todo o pensamento religioso sobre o mundo é uma teoria (contemplação) crítica ativa. O pessimismo descreve na realidade a atitude de um lúcido: a disfunção não é antropológica mas ontológica. Toda a "positividade" teológica referente ao "Pai silencioso" é como ele silenciosa, pois a língua é mais do que tagarela, é perversamente construída para o erro. Interessante também observar – e fundamental – que no sistema valenciano (Evangelho da Verdade[27]), a matéria prima da criação é a angústia (entre outras, como o medo e a ignorância) e portanto a angústia não é um afeto contingente ou secundário na cadeia das causas, mas a verdadeira química demente que liga os átomos entre si, portanto uma causa primeira. Sendo assim, não é possível erradicar a angústia na condição humana (séculos antes do existencialismo de Kierkegaard ou Sartre ou Heidegger – que não era existencialista – falar nisso) pois esta não é o resultado de uma angústia da finitude mas a substância que gera a "lei" cosmológica da matéria: mais do que uma neurociciência, uma física da angústia. Idéias como essa nos coloca com força o tema da disfuncionalidade referido acima: como pensar a função enquanto critério em um cenário como este? A própria idéia de critério legítimo é "banido" para o Transcendente silencioso que se manifesta apenas na gnose (pela experiência religiosa) associando o traço crítico a um forte componente iniciático mistérico. No mundo da imanência resta somente o patológico sem fisiologia possível. Não há repouso possível na criação. Aquilo que "ingenuamente" os hílicos ou psíquicos[28] tomam como suas funções (assim como da natureza) é na realidade figura de uma disfunção divina: o termo "disfunção" é aqui obviamente complicado, já que por definição geral na linguagem carrega o sentido de negativo simétrico ao positivo que descreveria a fisiologia da função. Na Gnose não há esta "função" simétrica a partir da qual faríamos uma matemática das formas (e das "desformas') no regime da imanência: só há a disfunção como horizonte na imanência. A razão é disfunção: o ceticismo, assim como o fato que células podem absorver venenos, é apenas uma marca evidente deste escândalo que é a criação. O gnóstico não é mais homem ou mulher, por isso pode produzir uma teoria crítica que é a única possível fala do Transcendente acerca do mundo: na Gnose só há teologia crítica, procedimento este que ao longo do tempo se constitui na pneumatização redentora. Assim sendo, em um cenário filosófico mais amplo, o ceticismo se revela dentro da reflexão epistemológica como uma analogia ao que um regime alimentar rígido seria no campo dos cuidados digestivos.
Outro exemplo de discurso teológico que se caracteriza como crítico – neste caso, mais especificamente antropológico – é a teologia da graça agostiniana. Concentrarei minhas considerações mais na sua retomada moderna por Pascal (como exemplo maior do jansenismo[29]) na medida em que neste cenário, a oposição à "mística" da natureza humana (humanismo moderno) se mostra de forma clara como uma filosofia da religião que fala de um Transcendente em processo de esquecimento. Obviamente que os espaços de silêncio e escuridão aos quais fiz referência no início deste paper vêem do texto pascaliano[30] e nos remete ao rompimento entre a cosmovisão religiosa pré-moderna e a mecanicista científica. Todavia, meu foco aqui não é esse rompimento mas a antropologia teológica que o sustenta.
Na Antiguidade, Agostinho[31] polemizou contra Pelagius e sua antropologia da suficiência da natureza humana. Segundo o pensador religioso "humanista" vindo das Ilhas Britânicas, o livre arbítrio não estava necessariamente danificado, portanto o alcance da função decisória do ser humano se dava dentro dos limites da sua volição livre. Para Agostinho, esta teoria não só era empiricamente irreal – o mundo é a prova evidente de que as "más" escolhas imperavam – como também implicava na falta de sentido daquilo que ele se referia como o valor da "graça de Cristo". Para o bispo de Hipona, era a ação eficaz (daí o conceito de graça eficaz) que armava o livre arbítrio para a atitude independente com relação a escravidão da concupiscência. Sem a graça sobrenatural, o ser humano só agiria pela concupiscência. E mais: o caráter contingente da graça – na realidade, uma redundância, já que se trata de "graça" – garantia a não instalação do orgulho (3a e pior concupiscência[32]) já que não havia qualquer ingerência do humano na "economia" da graça. Daí a insuportável incognoscibilidade da salvação (não há um "mecanismo" razoável em ação), fazendo toda sua teoria soar como um violência contra a suficiência da natureza humana. Na realidade, a disfuncionalidade da natureza humana está exatamente nesta insuficiência da natureza humana em operar na natureza sem o componente sobrenatural (o efeito circular do enunciado é proposital): a funcionalidade humana é na verdade função do Transcendente, pois para Agostinho não se tratava de "humilhar" a natureza, mas sim elevá-la (superando-a) ao regime do sobrenatural. Sua antropologia é teológica na medida em que o ser humano é um "animal divino" e só conhece a si mesmo negativamente, tanto como miserável (negatividade como "mal"), como no sentido de negatividade que descreve aquilo que um ser não é, portanto uma descrição centrada na falta[33].
Pascal, no séc. XVII, retomará a argumentação agostiniana contra a retomada do pelagianismo pelo jesuíta Molina, defendendo a radical incognoscibilidade da "economia" da graça. Naquela época, todo o movimento renascentista já indicava um "retorno" à "mística" da dignidade natural do ser humano[34]. Tal fato implicava exatamente a assunção da autonomia do ser humano enquanto ser de natureza: a chamada modernidade iluminista é filha desse processo. A crítica que emana da experiência religiosa jansenista é uma crítica ao caráter ilusório da funcionalibidade desta "natureza" inexistente e uma defesa da necessidade da graça sobrenatural. Por que " natureza inexistente"? A idéia de natureza supõe uma organização através da qual os elementos internos a um "corpo delimitado" se relacionam compondo uma síntese operacional. Segundo Pascal, a condição miserável do ser humano "natural" – verificável empiricamente de modo escandaloso – poderia ser resumida (por mim), pelo menos, a partir de dois pontos de vista, os quais em termos contemporâneos chamaríamos de "psicológico" e ontológico[35]. O primeiro descrevia o mecanismo "divertissement x ennui" (aproximadamente, "divertimento/desvio/fuga pelo lazer x tédio/angústia/aborrecimento"), o segundo apontava para a disjunção entre os "elementos"(ou ordens) componentes do ser humano, 1ª - corpo/matéria, 2ª - espírito/intelecto, 3ª - vontade/"caritas"/"coração" como órgão do sobrenatural (porta de entrada da graça eficaz). O ser humano atormentado pelo "ennui" essencial (que é o fundo da alma humana), foge pelo "divertissement" que se constitui em uma cadeia sem fim (como um mau infinito hegeliano) de objetos incapazes de preencher um "desejo" que na realidade é "capax Dei", ou seja, "pensado" teologicamente enquanto "desejo" por um objeto Infinito. O resultado é uma alienação infinita em objetos naturais (criaturas) incapacitados para a resolução de uma falta que é na realidade de origem sobrenatural, daí podermos afirmar que a natureza é insuficiente como "objeto" para o ser humano. Tal "mecânica" descreve a realidade "psicológica" do ser humano como infinitamente aberta para Deus e por existir aberta ("somente", após o pecado) para o mundo, revela-se disfuncional: os objetos se desgastam exatamente por serem naturais. Quando sob ação da graça eficaz (não interessa a graça suficiente molinista, pois essa supõe a decisão humana, e esta é sempre tomada, para Pascal, no eixo da concupiscência) todo o mecanismo concupiscente ("divertissement x ennui"=dinâmica da concupiscência) é alterado produzindo o sofrimento do "déchirement" ("dilaceramento" qualificado por Deus) que é exatamente o processo espiritual passível de uma fenomenologia dos afetos teológico-dependentes: o ser humano vai se distanciando da natureza (do mundo e seus objetos finitos) tornando-se sobrenaturalizado. Permanece, todavia, o caráter contingente desta graça, pelas mesmas razões aos quais me referi acima ao falar do Agostinho. A redenção se dá, portanto, também via uma fenomenologia da disfunção: o ser humano sofre um pathos divino e se perde a si mesmo enquanto simétrico a natureza – uma "alienação" santa. Quanto ao segundo ponto de vista, o ontológico, Pascal afirmará que as ordens não se tocam, portanto não estabelecem uma conjunção, mas uma disjunção, daí podermos falar em uma "natureza disjuntiva", que é por definição uma natureza disfuncional. O corpo não se comunica com o espírito e nem esse com a vontade/"caritas". Pela submissão da vontade ao orgulho (o poder da "des-graça de Adão e Eva, o pecado original), a disjunção se instala e só é dissolvida pela graça eficaz: aqui, a argumentação ontológica pascaliana, na realidade, se revela espiritual.
Percebemos assim, que para a experiência religiosa de Pascal, sem o acesso ao sobrenatural, a disfuncionalidade humana se mantém sem sacralização, seja como alienação psicológica (em termos nossos), seja como natureza "louca", porque disjuntiva. O ser humano só se "constitui" como ser na Transcendência, daí podermos afirmar sua insuficiência tanto como natureza miserável, como "capax Dei" infinita. Neste cenário, a disfunção teologiza-se, revelando-se como signo do Sagrado (compreendido dentro dos limites do "jogo de linguagem" religioso judaico-cristão e definidos por autores como Eliade e Otto). Assim sendo, a afirmação da suficiência da natureza humana é na realidade uma permanência na disfunção sem sentido redentor (mera disfunção profana), pois aliena o ser humano de seu destino: o resultado será necessariamente uma cultura do culto ao humano "des-graçado", que colocando a si mesmo no foco da cadeia de desejos infinitos (o mecanismo da concupiscência descrito no primeiro ponto de vista acima) só poderá terminar por desgastar-se, pois ele não é suficiente como objeto de "divertissement" de si mesmo – aliás, como nenhum outro. O ser humano tende a se dissolver na vã tentativa de se bastar a si mesmo: o narcisismo – como Freud já sabia[36] – só pode ser vivido como desespero da consciência mergulhada na própria miséria.
O pessimismo agostiniano/pascaliano revela-se portanto como reativo a idéia de que o ser humano opere satisfatoriamente enquanto ser de natureza. A função teológico-crítica permanece ativa na medida em que sustenta a valência ontológica do Transcendente como "componente" – palavra infeliz mas que descreve o que pretendo nos limites deste enunciado – necessário para pensarmos na existência de um ser humano como funcional, e este funcional será sempre divinizado: a natureza sem Deus é muito próxima da natureza do demiurgo gnóstico. Sem a referência direta a experiência religiosa (pensada aqui obviamente dentro dos limites agostinianos como precisamente – e isso é muitas vezes esquecido – a inundação do ser humano pela graça eficaz) não há como o ser humano se identificar como ser organizado (de uma organização que transcende a razão natural) . O pessimismo feroz de Agsotinho e Pascal aqui revela que qualquer reflexão antropológica só pode ser feita (assim como qualquer auto-inspeção interior) a partir do "olhar de Deus". É portanto, uma poderosa crítica do naturalismo aplicado ao ser humano.
O escritor judeu I.L. Peretz[37] conta que o Rabino de Nemirov[38], por volta do período anterior ao ano novo, tempo da expiação no judaísmo, poucos dias antes do Yom Kippur (dia do perdão), costumava sumir, desaparecer!! Isso criava um caos na pequena comunidade. Como um rabino podia sumir em uma época como essa? Pensavam pois que ele subia ao céu e voltava em seguida. Um judeu lituano, famoso na Europa judaica do leste como figura do judeu erudito em religião e ciências, por isso mesmo cético com relação as vãs possibilidades humanas, decidiu investigar o caso. Seguiu o rabino em um desses dias da expiação e descobriu que neste dia ele se disfarçava de camponês e após cortar lenha na floresta oferecia a uma pobre e miserável gentia idosa que vivia do outro lado do mundo (o mundo não judeu). Enquanto alimentava a lareira desta infeliz para combater o frio de sua casa, orava pedindo perdão a Deus por sua miséria pessoal (consciência pessimista de si mesmo, dir-se-ia). Tal visão alterou profundamente o que pensava o brilhante cético da Lituânia acerca do rabino de Nemirov, tornando-se discípulo dele (sua dúvida ativa gerou sua experiência religiosa). Após esse dia, quando lhe perguntavam se era verdade que nos dias da expiação o velho rabino de Nemirov subia ao céu, o judeu lituano respondia, "...e talvez mais alto...".
[1] Bessa-Luís, A, "Contemplação Carinhosa da Angústia", Guimarães editores, Lisboa, 2000, pg. 23.
[2] Refiro-me, entre outras ocasiões, ao texto que se encontra no prelo da ed. Paulinas "Em Busca de uma Cultura Epistemológica" fruto do seminário realizado pelo Departamento de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, em outubro de 2000 que se transformou em uma coletânea de textos que discutem o problema da investigação do fenômeno religioso a partir do ponto de vista da epistemologia.
[3] A associação entre agonia, pessimismo e teologia necessariamente nos leva a pensar no existencialista cristão espanhol Miguel de Unamuno ("Del Sentimiento Trágico de la Vida", Alianza Editorial, Madrid, 1991). Dialoguei com esta questão também no texto "Um Esboço da Mística da Agonia" no volume "O Finito e o Infinito na Experiência Humana Contemporânea", NIPPCUnitau/GEIC/CRE-PUC/SP, 2000. No presente paper não é meu foco o tratamento dado por Unamuno a questão da "consciência agônica" (consciência do combate constante e da duvida de "carne e osso"), mas evidentemente que toda a discussão da agonia como hierofania e instância privilegiada dentro da teologia cristã não pode ser pensada sem levarmos em conta a reflexão unamoniana.
[4] Uma discussão aprofundada do conceito de insuficiência no pensamento agostiniano de Pascal é objeto do meu "O Homem Insuficiente" no prelo da Edusp.
[5] Adorno,T./Horkheimer,M., "Dialética do Esclarecimento", ed. Jorge Zahar, RJ, 1985.
[6] Refiro-me as variadas formas de hermenêuticas engajadas em causas sociais presentes na vida acadêmica em nossa época.
[7] Tenho em mente aqui mais aqueles autores que se ocupam preferencialmente do tema da experiência mística.
[8] Vale a pena esclarecer que o "drama pós-moderno" é mais consistente quando pensado como o problema da "descoberta" pela sociedade ocidental (via ciências humanas em geral) de que o projeto racionalista da modernidade (Iluminismo + crítica romântica alemã) não conseguiu na realidade resolver a resistência relativista; na chamada "era pós-moderna" o relativismo é vivido como tecido social e psicológico, mas a realidade em si do relativismo como "fato pós-moderno" só pode ser assim pensado como uma questão "nova" para uma reflexão que desconhece o fato de que a filosofia ocidental não começa no séc. XIX.
[9] Vale a pena lembrar o que nos diz Freud acerca do fato da depressão ser um momento onde a pessoa adoece exatamente por ver a verdade sobre si mesma e sobre o mundo de um modo absolutamente real, Freud, S., "Luto E Melancolia" in Obras Completas de Sigmund Freud, ed. Imago, RJ, 1982.
[10] Não há dúvida que o essencialismo opera, como bem disse Popper, como um "spell" – feitiço - sobre o ser humano, e que portanto um empirismo robusto é importante para romper as sombras de um idealismo desejante e antropocêntrico.; sobre este "spell" ver Popper, K., "The Open Society and its Enemies", Routledge, London, 1995.
[11] Otto, R., "O Sagrado", ed. Setenta, Lisboa, 1970.
[12] Não poderei me deter na sofisticada e profunda relação que existe entre ceticismo e mística, já presente no próprio Platão, mas pretendo em breve tratar desta questão.
[13] Há grandes controvérsias acerca da legitimidade desta categoria "gnose" como descrição de uma fenômeno histórico "único". Todavia, não há dúvida de que alguns autores nos sécs. de I a IV da era comum carregam nas suas cosmologias e antropologias um forte caráter pessimista com relação a natureza humana, e que a esmagadora maioria destes autores fazem referência a idéia da redenção como o "conhecimento" da verdade (gnose). O uso que faço aqui é simplesmente no sentido de usar um termo que descreva essa unidade do pessimismo antropológico desses autores. Sobre esta polêmica ver, entre outros, Williams, M., "Rethinking 'Gnosticism'" Princeton University Press, Princeton, 1999, Jonas, H., "The Gnostic Religion", Beacon Press, Boston, 1991 e Rudolph, K., "Die Gnosis: Wesen und Geschichte einer spätantiken Religion" Koehler & Amelang, 1977.
[14] Marcion não fala a rigor em "gnose" mas sim em fé, mas a relação aqui é feita exatamente pelo pessimismo antropológico "demiurgico" que está presente nos quatro autores aqui referidos; sobre Marcion ver as referências bibliográficas sobre "gnose" elencadas na nota anterior.
[15] Provavelmente esta "conexão" teológica foi feita dentro da tradição paleocristã até Agostinho através do seu período maniqueísta, pois o maniqueísmo foi uma forma de pessimismo teológico próximo aos sistemas "cristãos gnósticos" de origem iraniana (Mani) e que se caracterizava, assim como as seitas bíblico-demiúrgicas (Williams, 1999, ver nota 12 acima) ou seitas "gnósticas", pela afirmação do caráter divino do mal, e Agostinho antes da conversão ao cristianismo católico foi um "maniqueu". Sobre a questão da graça contra Pelagius ver Agostinho, "La Crise Pélagienne" IEA, Paris, 1994.
[16] Ver Van den Broek, R./Hanegraaff, W.J."(orgs), "Gnosis and Hermeticism", State University of New York Press, NY, 1998.
[17] Ver Pascal, B., "Les Écrits sur la Grace", in Oeuvres Complètes, ed. Jean Mesnard, DDB, Paris, 1991.
[18] Ver, entre outros títulos, Kierkegaard, S., "The Concept of Anxiety", Princeton University Press, NJ, 1980.
[19] Minha intenção não afirmar que existe uma identidade conceitual necessária em todos os exemplos que elenco neste enunciado, mas sim afirmar que um tema semelhante aí se apresenta que justifica considerá-lo como uma tradição que se manifesta nestes momentos da forma de uma preocupação que se materializa em uma concepção de mundo e do ser humano que é identificada como pessimista.
[20] Valeria salientar que pára além desta tradição específica (ver a nota 18 acima), o estudioso das religiões Mircea Eliade tem como um dos seus eixos conceituais da descrição do "Homem Religioso" a autopercepção de si mesmo como uma vítima necessária da contingência o que implica no seu "terror da história". Já aqui está presente uma concepção do ser humano como um "animal" aterrorizado pela sensação da aniquilação presente no horizonte. Ver Eliade, M., "Traité d'Histoire des Religions", Payot, Paris, 1949.
[21] Ver Wittgenstein, L., "Investigações Filosóficas" in Col. Pensadores, Abril Cultural, SP, 1983 e Rorty, R., "Contingência, Ironia e Solidariedade", Editorial Presença, Lisboa, 1992.
[22] Contra a possível crítica de que só agora fiz a delimitação pragmática do termo "pessimismo", chamo atenção para o fato que o título do paper já revela minha definição.
[23] Nele também incluo, para simplificar, o cristão marcionita (nunca descrito como "gnóstico") que se descobre criação de um deus que não é o verdadeiro deus, que tem preferidos (os judeus) e não é perfeito e não conhece a misericórdia. Assim sendo, "gnóstico" aqui significa aquele tem conhecimento da condição de desastre cósmico e portanto ontológico. Não estou fazendo uso deste termo de nenhuma forma que seja possível uma relação direta com o que a chamada "nova era" faz com o termo "gnose".
[24] Ver a nota 12 acima para uma bibliografia sobre o tema e também o volume "The Nag Hammadí Library", James M. Robinson (editor), HarperSanFrancisco, 1990.
[25] Existem variações sobre esse criador, muitas vezes tomando-o como uma multiplicidade de demiurgos. Mais uma vez aqui opto pela simplificação a fim de tornar mais objetiva a "teoria crítica" gnóstica acerca do mundo".
[26] Este termo deve remeter o leitor ao fato do Deus verdadeiro não ser produtor do "nomos", isto é, o cosmos não tem referência a fins, o que rompe a noção de que o "nomos" existente na natureza sirva realmente para organizar uma vida religiosa – ou qualquer que seja, mas sendo a gnose uma revelação redentora do Transcendente ela implica a idéia de religião.
[27] Ver as referências bibliográficas que estão nas notas 12 e 23.
[28] O restante dos seres humanos, embriagados pela força destruidora do demiurgo.
[29] Ver de Cognet, L., "Le Jansénisme", Puf, Paris, 1995.
[30] Ver Pascal, B., "Pensées" in ed. Lafuma, ed. Seuil, Paris, 1963.
[31] Vale a pena lembrar que Agostinho, assim como seus "ex-companheiros" maniqueístas e gnósticos, eram teólogos e homens religiosos "especialistas" no Mal. Talvez, seja exatamente esta disciplina da reflexão dura acerca do Mal que leve esses autores a uma cosmologia (maniqueus e gnósticos) e a uma antropologia (Agostinho e Pascal) ao pessimismo, ou seja, uma visão aguda da disfuncionalidade humana.
[32] A 1ª é a concupiscência da carne, o desejo sexual sem freios; a 2ª a do espírito, a curiosidade vazia do conhecimento sem intenção redentora; e a 3ª, a pior, o orgulho, a submissão da vontade ao amor de si mesmo (narcisismo, forçando anacronicamente a linguagem), que submete o espírito ao amor de sua própria imagem.
[33] Como no sentido de teologia negativa usada pela tradição gerada a partir de Pseudo-Dionísius (Biblioteca BAC, Madrid, varias edições).
[34] Ver de Faye, E., "Philosophie et Perfection de l'Homme", J. Vrin, Paris, 1998.
[35] Há também o ponto de vista "epistemológico" no qual Pascal associa o funcionamento da imaginação (faculdade da contingência que assola a razão submetendo-a) ao mecanismo circular da linguagem que é sempre artificial pois sem referência como "espelho necessário" do mundo (o problema da equivocidade infinita da linguagem e seu caráter meramente pragmático e retórico) – o ceticismo é conseqüência evidente de tal processo crítico. O paper, "La Connaissance dans la Disgrace", produzido como resultado do meu pós-doutorado nas Universidade de Tel Aviv e Giessen (2000) trata pontualmente deste "ponto de vista", sem publicação programada.
[36] Vários textos de Freud falam disso, entre eles, "Uma Introdução ao Narcisismo", Obras Completas de Sigmund Freud, ed. Imago, RJ, 1983.
[37] Peretz, I.L., "E Talvez mais Alto..." in "Contos de I.L. Peretz" organizados e traduzidos por J. Guinsburg, ed. Perspectiva, SP, 1966.
[38] Famoso rabino hassídico da virada do séc. XVIII para o XIX.