Interessa-nos aqui indagar não de quaisquer aspectos psicológicos envolvidos na adesão às novas religiões japonesas (Paiva & Nakano, 1987; Paiva, 1996), mas de um determinado aspecto, o da mudança do paradigma da crença na conversão de brasileiros católicos à Seicho-no-iê e à PL. Valemo-nos dos conceitos lacanianos de imaginário e simbólico para discriminar, psicologicamente, a natureza da adesão envolvida na conversão. Não é necessário insistir na limitação de nosso enfoque: não pretendemos abarcar toda a realidade da adesão religiosa ou do processo de conversão, mas tão só certas características cognitivas da aceitação de novas crenças. Supondo conhecidas as crenças fundamentais do catolicismo, será, de certo, útil uma rápida apresentação das crenças que nos parecem essenciais na Seicho-no-iê e na PL.
A Seicho-no-iê foi constituída no Japão, em 1930, por Masaharu Taniguchi, que a recebeu por revelação. Tem como emblema o círculo da Grande Harmonia, que encerra o sol, a lua e uma estrela, ou seja, o xintoismo, o budismo e o cristianismo. Sua doutrina fundamental é de que existe apenas o Jissô, traduzido aproximadamente como Realidade, Verdade, Mente e Deus. Distinguem-se dois planos, o da Realidade/Jissô e o do Fenômeno. No plano da Realidade, o homem é filho perfeito de Deus, sem pecado e imortal; no do Fenômeno, o homem é atingido pelo pecado, pela doença, pela morte e pelos vários infortúnios. O Fenômeno, porém, é ilusão e efeito da causa mental. A cura desses males está na tomada de consciência do Eu verdadeiro, ou seja, de que o homem é filho perfeito de Deus. Na doutrina, nas instruções e no culto, a Seicho-no-iê refere-se muitas vezes, de forma elogiosa, à bíblia cristã e à pessoa de Cristo (Paiva, 1990a).
A PL, restaurada no Japão em 1946 por Tokuchika Miki, tem como o emblema o sol, donde emanam vinte e um raios, que são os vinte e um preceitos revelados. Os 21 Preceitos e a pessoa de Oshieoya-samá ['Pai dos Ensinamentos'] são os elementos essenciais da PL. Os Preceitos são elaborações da revelação principal de que "Vida é Arte". Oshieoya-samá é, em cada período de tempo, o fundador da PL: em virtude de sua união singular com Deus, ele recebe a iluminação apropriada para cada época e é para ele que são transferidos os males do mundo, que ele transfere para Deus. "Segundo os Preceitos, os homens, iguais perante Deus, manifestam Deus através da auto-expressão, que realiza a união matéria/espírito e acompanha a primeira percepção; não se expressando, por exemplo ao deixar-se levar pela emoção, surge o sofrimento; as coisas existem em conexão recíproca (harmonia), em evolução e refletindo-se umas nas outras; a felicidade dos outros e a paz mundial são as metas de uma vida radiante; cada coisa tem sua função e existe um caminho para o homem e outro para a mulher" (Paiva, 1990b: 188). Uma prática sempre presente é a prece do oyashikiri, dotada de poder singular em virtude da união de Oshieoya-samá com quem a recita e da força espiritual dos fundadores nela infundida.
Os vocábulos imaginário e simbólico têm diversas acepções segundo as várias correntes de pensamento que os utilizam. Ater-nos-emos, aqui, ao uso que deles faz a tradição lacaniana (Lacan, 1948, 1966; Kaufmann, 1996). Nessa tradição pode-se dizer, em síntese, que o imaginário se funda no semelhante e que o simbólico se insere numa cadeia de significantes. O imaginário, nesta acepção, caracteriza-se pela preponderância do semelhante e reporta-se à fase do espelho, na qual o ego da criança de poucos meses se constitui a partir da imagem do semelhante. A relação intersubjetiva, que aí se inicia, é uma relação imaginária, em que o ego é um outro e o outro um alter ego (Laplanche & Pontalis, 1995). É próprio do imaginário reduzir o outro a si mesmo, o diferente ao idêntico, o estranho ao semelhante. O imaginário, sempre nesta acepção, se alimenta de sinônimos, analogias, metonímias, isomorfismos e homologias. O simbólico, ao contrário, diz respeito à concatenação de significantes, segundo a qual cada significante adquire essa função enquanto se insere numa ordem que lhe é exterior, de tal forma que, embora como elemento possa permanecer o mesmo, torna-se um significante totalmente outro quando inserido em outra cadeia. Nesta acepção, "o simbólico transita pela alteridade, pela diferença, pela metáfora e produz um sentido novo" (Paiva, 1998: 5).
Nos trabalhos citados em 1. estudaram-se adeptos da Seicho-no-iê e da PL com o objetivo de se levantar alguns fatos e relações psicológicos da filiação de brasileiros de origem não-japonesa a religiões orientais. Alguns dos dados obtidos com 5 adeptos da Seicho-no-iê e 7 adeptos da PL foram recentemente reconsiderados sob a ótica dos processos imaginários e simbólicos com o objetivo de se discutir o lugar do sincretismo na conversão religiosa (Paiva, 1998). Selecionamos, para esta apresentação, algumas entrevistas exemplares, endereçando o interessado a uma exposição mais completa, a ser publicada, ainda este ano, em Cadernos da ANPEPP.
SA, mãe de família, diz-se católica e freqüenta a Seicho-no-iê. Esclarece que essa não é uma religião, mas "uma filosofia [que] é o ensinamento de nossa religião católica, e nos afirma que somos filhos de Deus, irmãos de Jesus, que poderá ser até nosso anjo da guarda". Conversou com o padre do lugar, que lhe disse que "é bom a gente freqüentar; nunca falour que é errado". Conhece uma catequista a quem o padre falou que "pode continuar na Igreja, que não tem nada demais". O que mais lhe chama atenção na Seicho-no-iê é "Deus, o Jissô nosso". É lá que aprendeu "a novidade da Seicho-no-iê", rezar com concentração: "na nossa religião [católica] não temos a coisa total de rezar; na Seicho-no-iê a gente reza com toda a atenção concentrada"; é lá que "a gente renasce". Quando, então, volta ao culto católico, volta mais atenta: "a Seicho-no-iê aconselha o católico a ficar católico, prque a Seicho-no-iê é uma filosofia: lá se aprende a religião católica". Não haveria, então, diferença significativa entre a Seicho-no-iê e o catolicismo? "O Jissô nosso é o Deus verdadeiro. Cristo, na Igreja Católica, é Deus e na Seicho-no-iê é Jissô: é a mesma coisa, tanto faz". No primeiro sutra há várias referências a Cristo, que a Seicho-no-iê manda reverenciar. Mestre Taniguchi "é a segunda pessoa de Deus", seus livros e a Bíblia, os dois "são descoberta igual", e "entrando na Seicho-no-iê, entendo melhor a Bíblia, porque na Igreja Católica não há orientação, alguém que saiba explicar". O primeiro sutra afirma que "não existe pecado na Seicho-no-iê. No catolicismo existe. A Seicho-no-iê explica que não existe pecado, porque o homem é parte de Deus e, por isso, não adoece nem morre". "Hoje não existe mais pecado, porque a evolução modificou: antes tudo era pecado; hoje ninguém mais fala em pecado, já desapareceu. Não haver pecado é bom para a consciência: acabou o peso". Apesar de a Seicho-no-iê levar a um melhor conhecimento do catolicismo, "é provável que o católico deixe de ser", como os crentes, umbandistas e espíritas, que "eram, mas largaram". Parece que o problema da dupla referência religiosa não ocorrerá no futuro, uma vez que nas reuniões das Senhoras as crianças ficam na escola que a Seicho-no-iê criou para elas: "as crianças aprendem a Seicho-no-iê, inclusive os gestos, uma beleza!"
SB, jovem, do sexo feminino, chegou a coordenadora dos jovens na Igreja Católica, mas não mais "se encontrava" do ponto de vista espiritual: ia à missa, mas "sem efeito; só via o lado negativo; encontrar a Deus deve dar satisfação!" Na Igreja Católica "era desarmonia, fuxico, diferença de classe e de raça: não se conseguia ultrapassar". Na Seicho-no-iê encontrou a harmonia, grande força interior, a reverência ao outro como filho perfeito de Deus: "não sei o que seria de mim se não tivesse descoberto a Seicho-no-iê". Tem de "reverenciar ainda muito a Igreja Católica, que a preparou para a Seicho-no-iê". Atualmente não mais vai à igreja católica. Diz que "Jesus é o Filho de Deus e é universal, pois no Japão também existe o cristianismo". Mas o Mestre [Taniguchi] é "um enviado de Deus, como Jesus, como Buda, como S. Francisco de Assis. Ele veio para explicar a Bíblia, por exemplo o Pai-nosso. E fala tão bem de Deus e de Cristo!" Entre Cristo e o Mestre [Taniguchi] "não vejo diferença: são um amor". "Cristo teve uma missão: foi crucificado para libertação nossa. O Mestre veio para explicar que Cristo morreu crucificado mas não porque somos pecadores; ele diz que não somos pecadores".
PA, ex-freira católica, mãe de família, tem profunda veneração por Oshieoya-samá, "que é uno com Deus e, por isso, tem acesso fácil a Deus para responder às consultas do mundo todo". Essa veneração torna-a disposta a "ir para qualquer parte do mundo", a seu mandado, pois na PL "aceita-se tudo o que vem de Oshieoya-samá como obra divina" e "a obediência é parecida com a jesuítica: é obediência intelectual". Deus, com quem Oshieoya-samá é uno, é a Força do Universo: "nada de um em três, ou de três em um; nada de Deus se fazer homem; nada de anátema, excomunhão ou condenação". E também "nenhum dogma de infalibilidade", pois "as leis do Universo [é que] são infalíveis". "Nada de mistérios: a vida é o mistério". O simples adepto "pode conservar sua religião, como forma de auto-expressão. Mas como Assistente de Mestre [intermediário entre os simples fiel e o clero da PL] tem de optar pela PL". Foi o caso de uma mãe-de-santo a quem aconselhou deixar a umbanda para tornar-se Assistente de Mestre e realizar, ela mesma, o shikiri sobre o filho doente. Mesmo assim, há "o perigo do sincretismo", razão por que foi restringida a permissão de se fazer a prece de oyashikiri, "prece forte [que resolveu] vários casos de granizo, aftosa, lagartas": alguns haviam começado "a usar o terço da macumba para desfiar a prece de oyashikiri".
PB é presidente de uma igreja PL, isto é, cuida de sua administração. Foi católico por 40 anos antes de passar à PL. "É difícil se libertar. E depois, outra: Deus é um só; a diferença está em outro setor, não na fé". Em sua experiência, o que os ensinamentos da PL produzem é "um contato mais direto com Deus, pois começo a valorizar as pequenas coisas: começo a me encontrar e aí vejo Deus, através do pequeno e do pouquinho". Até hoje tem o emblema da PL e o crucifixo na cama: "não desfazendo de Cristo, o crucifixo hoje é um adorno, respeitado mas não representando mais tanto quanto representava. No começo, depois da prece da PL rezava um Pai-nosso para Cristo. Esses confrontos e choques a gente tem". "Não menosprezo 40 anos de religião católica: fui coroinha, estudei em colégio de padre, confessava, comungava: mas só me encontrei com Deus através dos ensinamentos da PL". A PL é uma religião moderna porque "certos princípios de algumas religiões, dada a evolução da técnica e da humanidade, não cabem mais; o princípio é o mesmo, mas o modo de transmitir tem de se atualizar. O sentido de pecado, por exemplo, tem que modificar: não pode ser o arroz-feijão de séculos atrás. Tabus sobre sexo, procriação, a própria Igreja está revendo. Quanto ao aborto, o princípio se mantém, mas as razões são outras: não se pode falar de pecado, ofensa a Deus. Não se pode continuar falando de pecado, bobaginha (sic), se bem que na PL não tem disso". Em suas atividades na PL, fez vários casamentos: é "santo Antônio casamenteiro". Também fez o que os pais chamam "batizado", embora a PL não tenha batismo: a PL agradece a Deus pela criança e a apresenta a Deus, mas os pais, em sua grande maioria de origem católica, "carregam muitos resquícios da Igreja Católica". A PL é "quase a religião do desesperado, que reclama a salvação, o milagre momentâneo, a graça. A prece de oyashikiri é fortíssima. As pessoas levam para o lado do curandeirismo, e por isso a PL não divulga. Ainda mais com brasileiro... A palavra oyashikiri tem força extraordinária. Só com a palavra oyashikiri 99,99% dos peelistas se salvaram de problemas sérios, e obtêm contato imediato com Deus". Tudo na PL é orientado por Oshieoya-samá: "casamento, gravidez, educação; numa geração não se eliminam todos os vícios, mas já o filho do peelista é totalmente diferente do não-peelista".
As entrevistas selecionadas ilustram a existência de dois grupos: o que mantém a articulação simbólica de origem (católica), acrescentando-lhe elementos do imaginário (Seicho-no-iê ou PL) [entrevista SA], e o que inaugura uma articulação simbólica nova (Seicho-no-iê ou PL), retendo imaginariamente elementos do catolicismo [entrevistas SB, PA e PB]. Do ponto de vista cognitivo do processo de conversão, o primeiro grupo pode ser denominado de Imaginário e o segundo de Simbólico. Os comentários às entrevistas são apenas ilustrativos, remetendo-se os interessados à publicação anunciada em 4.
SA mantém claramente o sistema simbólico católico: filhos de Deus, irmãos de Jesus, que é Deus. A autoridade do padre e o exemplo da catequista confirmam-na na certeza de que a Seicho-no-iê não é religião mas filosofia. A realidade do pecado se acha esmaecida, mas não com o apoio exclusivo da Seicho-no-iê: a própria evolução dos tempos é que levou a Igreja a deixar de falar de pecado a propósito de tudo, aliviando as consciências. Mas a Seicho-no-iê trouxe a SA a confirmação de sua religião, a aprendizagem da oração, o exercício da gratidão, o renascimento espiritual, o melhor entendimento da Escritura, além de um novo vocabulário, no qual se destaca a polissêmica palavra Jissô. As referências à pessoa e aos escritos de M.Taniguchi tendem a encaixar-se no léxico e na semântica católica: o Mestre é a segunda pessoa de Deus, mas não é o Jissô/Deus, como Jesus o é, e seus escritos esclarecem a Bíblia, sem substituí-la. Se SA mantém o catolicismo como núcleo simbólico, os novos conceitos e vocábulos que lhe agrega, principalmente o Jissô, Mestre Taniguchi e os escritos do Mestre, ampliam, conformam, partilham esse núcleo segundo o critério da semelhança e, pois, do imaginário. Teríamos aqui, cognitivamente, não a substituição do paradigma de crença católico pelo da Seicho-no-iê, mas a amalgamação de referências periféricas novas, da Seicho-no-iê, com o cerne antigo. Esse o caso de SA, que sabe de outros, católicos, crentes, umbandistas e espíritas, que "eram, mas largaram", e que observa o processo de aprendizagem precoce da Seicho-no-iê por parte das crianças.
SB, não se refere à Seicho-no-iê como filosofia e parece colocar sua tradição católica sob uma referência mais inclusiva, que lhe dá um novo sentido. A Igreja Católica serviu-lhe como "preparação", pela qual é agradecida, mas que atualmente dispensa, tanto que não vai mais à igreja [católica]. Não rejeita a Cristo, que é "Filho de Deus" e "universal", mas não vê diferença entre ele e Mestre Taniguchi: ambos "são um amor", ambos enviados de Deus, como também Buda e S.Francisco. Mas o Mestre [Taniguchi] veio para explicar a Bíblia, a própria oração de Cristo e principalmente o sentido de sua missão e morte: libertar-nos, mas não dos pecados, pois não somos pecadores. Se a análise é correta, SB pode dizer-se convertida à Seicho-no-iê por adotar um sistema simbólico novo, no qual encaixa os conteúdos anteriores. Pode-se, mesmo, dizer que é a Seicho-no-iê que incorpora, imaginariamente, elementos católicos.
PA compõe toda sua referência religiosa, incluindo a praxis, ao redor dos símbolos articulados da PL: Oshieoya-samá, sua orientação , a Força do Universo e a infalibilidade de suas leis. Deve-se, mais, evitar a dupla pertinência religiosa e o sincretismo. Quanto à antiga pertença religiosa, PA recusa explicitamente o que é essencial nela: a Trindade e a Encarnação. Pode-se suspeitar de elementos do imaginário trazidos da antiga fé: a obediência jesuítica, a infalibilidade papal, os mistérios. Esses elementos comparecem integrados no novo sistema simbólico da PL. É o caso de se dizer que ocorreu uma mudança de paradigma, a introdução de uma nova cadeia de significantes, que manteve alguns elementos antigos imaginariamente assimilados a um novo sistema propriamente simbólico.
PB também parece ter abandonado o sistema simbólico católico, quando reconhece que o crucifixo é um adorno, que não representa o que representava, quando deixa de rezar a Oração do Senhor, quando explica que a consagração da criança a Deus não é o batismo, quando não considera a ofensa a Deus no pecado e chega a compará-lo a uma "bobaginha" e, finalmente, quando reconhece que a geração criada na PL não sofre dos mesmos inconvenientes espirituais dos que vêm de outra religião. Digno de nota, também, é o destaque dado por PB à prece de oyashikiri, elemento singular da PL. Pode-se, pois, afirmar que PB se rege, na referência religiosa, por um único sistema simbólico, distinto do sistema em que nasceu e viveu boa parte da vida. Temos novamente, do ponto de vista psicológico, um caso de mudança de paradigma de crença: elementos do antigo sistema são assimilados à nova cadeia de significantes e tornam-se elementos imaginários que gravitam ao redor de um núcleo simbólico novo.
O imaginário tende a perceber a semelhança. Não hierarquizamos o imaginário como inferior ao simbólico: ao contrário, a manutenção do idêntico é um vetor poderoso da organização cognitiva e afetiva, cujos efeitos se observam na organização operada por simbólicos sucessivos. O imaginário não tem, tampouco, conteúdo privilegiado: define-se em reciprocidade com o simbólico. Por isso é que alguns entrevistados incorporam as novas religiões ao catolicismo mantido, ao passo que outros incorporam o catolicismo à Seicho-no-iê ou à PL.
O simbólico exige outras considerações. Em primeiro lugar, a solidez de um simbólico varia de pessoa para pessoa, e essa será uma variável na probabilidade de se alterar o sistema simbólico. Além disso, o simbólico, sujeito à fragilização da pessoa, varia na mesma pessoa. É costumeiro associar-se conversão e crise acompanhada de stress emocional: nesse caso, a substituição de um sistema simbólico por outro é semelhante à substituição de quadro de referência perceptual, que constitui a base cognitiva da experiência religiosa (van der Lans, 1977). Em terceiro lugar, deve-se levar em conta o acaso dos contatos na probabilidade concreta do simbólico. Finalmente, embora reconhecendo que a vida real é muito mais complexa do que qualquer modelo psicológico, se mantivermos a distinção entre simbólico e imaginário por meio do critério da diferença e da semelhança, é forçoso admitir, relativamente a um determinado tema, um único simbólico, ao qual são referidos todos os elementos.
Na distribuição dos 12 entrevistados a que nos referimos (supra, 4), observa-se que os adeptos da Seicho-no-iê tendem a manter o simbólico católico e os adeptos da PL a assumir o simbólico peelista. Como estamos interessados em mudanças no paradigma das crenças é importante frisar que a razão fundamental dessa diferença reside no caráter doutrinal das duas novas religiões.
A Seicho-no-iê refere-se explicitamente a Cristo, a sua missão e às escrituras cristãs. A PL não tem nenhuma palavra acerca de Cristo ou das escrituras bíblicas. Por isso, o contato de católicos com a Seicho-no-iê, ao criar um conflito de interpretações, permite a manutenção da referência simbólica católica modificada. Ao contrário, o contato com a PL leva à adoção de uma referência simbólica sem lugar para o simbólico cristão, a ponto de um dos mais articulados depoentes (não incluído aqui) não ter apresentado sequer a tentativa de assimilação, pelo imaginário, de elementos católicos.
Os elementos dissonantes quanto à pessoa e à obra de Cristo têm produzido nos adeptos da Seicho-no-iê uma cisão da pessoa de Cristo, "o Cristo da Igreja Católica" e "o Cristo da Seicho-no-iê" (Paiva & Nakano, 1987). O que se tem observado algumas vezes foi a ênfase acrescentada ou diminuída no elemento dissonante. Assim, por exemplo, ao invés de procurar combinar pecado e filiação divina, os adeptos quase só se referem à "filiação perfeita". É possível, então, manter o eixo simbólico católico porque não se demora na discussão do caráter redentor ou do caráter liberador da morte de Cristo, e destaca-se o dado positivo, também presente no corpus católico, da filiação divina.
A PL, ao contrário, abstrai de discursos acerca da transcendência, orienta as atividades para este mundo, não fala de pecado e insiste na ética como estética. Mesmo o conceito de transferência, que poderia evocar a mediação de Cristo, não foi lembrado por nenhum dos entrevistados. Na ausência de pontos específicos de contato e de conflito, há menos lugar para a retenção, pelo imaginário, de elementos da primeira fé.
Se nos perguntarmos se os adeptos da Seicho-no-iê e da PL fazem parte das "minorias em expansão" na realidade latino-americana a resposta não é simples. Antes de tudo porque os critérios de pertença dessas duas instituições não são unívocos e, em seguida, porque não existe um lançamento e um controle estatísticos dos que simpatizam, filiam-se, perseveram ou desistem. Outra razão, mais substantiva, é a que vimos discutindo nesta apresentação. Enquanto o simbólico de origem permanece, quaisquer acréscimos, diminuições e modificações ocorrem na esfera do imaginário, isto é, da confirmação do mesmo. Desse ponto de vista, é, então, possível que a Seicho-no-iê não constitua um fenômeno religioso minoritário em verdadeira expansão, ao contrário, talvez, da PL.
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LACAN, J. (1948), L'agressivité en Psychanalyse. Revue Française de Psychanalyse, XII, 367-388
LACAN, J. (1966) Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. Ecrits I. Paris: Seuil, 89-97
PAIVA, G.J.de (1990a), Seicho-no-iê. Em L.Landim (org.), Sinais dos Tempos: Diversidade Religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 181-185
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van der LANS, J.M. (1977), Religious Experience. An Argument for a Multidisciplinary Approach. The Annual Review of the Social Sciences of Religion, 1, 113-143