Este artigo apresenta uma análise dos resultados que emergem do Censo de 2000. Os comentários se estendem às várias religiões constantes do recenseamento, mas o autor se preocupa em destacar o quadro que daí emerge para a Igreja Católica no Brasil. O artigo apenas abre o debate sobre estes dados e levanta alguns aspectos novos da Igreja Católica e do catolicismo brasileiro.
O IBGE divulgou no dia 8 de maio os resultados da chamada "tabulação avançada" dos dados preliminares do Censo. Na realidade, trata-se de dados elaborados a partir de uma pequena amostra do censo e, portanto, ainda sujeitos a variações. As tabelas do IBGFE trazem um código assinalando o valor dessa variação. No caso das religiões, as variações afetam pouco os católicos (que são a grande maioria), mas podem ser muito elevadas no caso das minorias religiosas.
Os principais resultados, relativos à questão "religião", que foram ressaltados nas manchetes dos jornais do dia 9, são três:
As porcentagens indicadas acima valem para o total da população brasileira. Há, porém, notáveis diferenças por Estado. A porcentagem dos católicos é mais alta no Nordeste (Piauí, 91,3%; Ceará, 84,9%; Paraíba, 94,2%; Maranhão, 83%) ou em Minas Gerais (78,8%) e mais baixa no estado o Rio de Janeiro (57,2%), Rondônia (57,5%) e Espírito Santo (60,9). As porcentagens dos evangélicos são mais altas em Rondônia (27,7%), Espírito Santo (27,5%), Roraima (23,6%), Rio de Janeiro (21%), Goiás (20,8%), Acre (20,4%). As porcentagens de "sem religião" são mais altas no Rio de Janeiro (15,5%), Pernambuco (10,9%), Bahia (10,2%), Espírito Santo (9,7%), Mato Grosso do Sul (8,5%), Goiás (7,9%).
Algumas considerações preliminares são necessárias, ou ao menos convenientes. O Censo pergunta pela "religião" do entrevistado. Ora, um bom número de brasileiros freqüenta práticas religiosas de vários cultos. A recente pesquisa do CERIS sobre as seis maiores regiões metropolitanas brasileiras[1] encontrou cerca de 25% dos entrevistados que freqüentam mais de uma religião e cerca de metade deles (12,5% do total) o fazem sempre. O Censo não considera esses fenômenos de dupla (ou mais…) pertença, de mistura de várias religiões. Dificilmente um sociólogo ou um antropólogo reduzirá os adeptos de Umbanda e Candomblé, em todo o Brasil, a pouco mais de 570.000 indivíduos (0,33% da população!), como faz o Censo 2000 Certamente há muitas pessoas freqüentando estes cultos, ao menos ocasionalmente, mas que não se declaram "umbandistas".
Ainda antes de 1991, houve pesquisas por amostragem que revelaram dados que o Censo só encontrou em 2000. Por exemplo, a pesquisa Gallup de 1988, feita com respostas "estimuladas", encontrou 62% de católicos, 19% de outras religiões e 19% sem religião; a pesquisa de 1990, feita com a pergunta tradicional "Qual é a sua religião?", encontrou 76,2% de católicos, 14,6% de outras religiões, 9,2% sem religião[2]. Como explicar esse fato? Muitos sociólogos julgavam os números do IBGE, até 1991 inclusive, exagerados em relação aos católicos e inferiores à realidade com relação às outras religiões. Provavelmente, as pessoas – na hora do Censo – continuavam a declarar-se católicas, mas na prática já estavam freqüentando outros cultos. De qualquer forma, os números do Censo 2000 confirmam as pesquisas por amostragem das últimas duas décadas. A novidade não é tanto o aumento real do número dos evangélicos ou dos "sem religião", mas o aumento das pessoas que não têm mais receio de assumir publicamente tal condição.
Uma outra observação importante é que os dados sobre religião podem ser comparados com outros dados do Censo (diminuição da natalidade, aumentos dos casamentos consensuais sem legalização, aumento da escolaridade etc.), os quais parecem apontar para uma "modernização" dos hábitos da população brasileira e para um crescimento do individualismo e subjetivismo[3]. O Censo não revela (só uma pesquisa qualitativa pode mostrá-lo), mas é certo que há muitos modos de crer e de praticar dentro do próprio catolicismo, para não dizer no mundo evangélico (notoriamente dividido em inúmeras denominações) ou em outras religiões, sem falar dos que conscientemente praticam mais de uma religião simultaneamente.
Finalmente, dever-se-ia aprofundar em que medida estamos diante da forma clássica do individualismo (em que o indivíduo se auto-dirige) ou diante de indivíduos que se deixam hetero-dirigir, ou seja, dirigir pelas modas, pelas mídias, pelo desejo de fazer o que os outros fazem…[4].
Também não me parece exato dizer – como faz o Jornal do Brasil (primeira página de 9.5.2002) que o "País fica menos religioso". Outras pesquisas mostram que a religiosidade continua muito alta entre os brasileiros. A declaração "sem religião" parece indicar mais uma "des-institucionalização" da religião e a emergência da chamada "religião invisível". No caso do estado do Rio de Janeiro, onde o IBGE encontrou 15,5% de "sem religião", a pesquisa do CERIS já citada, que considerou a região metropolitana do Rio de Janeiro (logo a parte mais "moderna" do Estado) encontrou sim 16,9% de entrevistados que se dizem sem pertença religiosa, mas acreditam em Deus ou numa Força Superior, e encontrou apenas 1,2% que se declaram ateus (sem Deus!). O indivíduo não adere mais a uma religião institucionalizada, mas reduz a religião a um sentimento pessoal, íntimo, não acompanhado pela participação em comunidades ou instituições religiosas. Mas não deixa de rezar (ao menos ocasionalmente) e de acreditar em Deus, quase sempre.
Peter Berger ressaltou, há vinte anos ou mais, como a sociedade moderna, urbana, obrigue a população procedente de sociedades tradicionais ou rurais àquilo que ele chamava o "imperativo herético". A sociedade moderna exige dos indivíduos uma "heresia", ou seja, uma escolha. Eles não podem permanecer simplesmente na religião tradicional. Ou fazem a escolha de permanecer nela, mas em termos renovados, modernos, urbanos, ou passam a outra religião, também adaptada ao mundo moderno, não puramente tradicional. Cândido Procópio F. de CAMARGO, já em 1973[5], tinha interpretado neste sentido as mudanças que a urbanização estava trazendo no mundo religioso brasileiro.
Pode-se ver uma confirmação dessa tendência na pesquisa da Datafolha de 1994, que foi a única pesquisa que distinguiu os "católicos tradicionais" daqueles que participavam de comunidades eclesiais de base, do movimento carismático e de outros movimentos[6]. Se considerarmos os que aderiram a estes movimentos como católicos que fizeram uma opção ou escolha consciente do catolicismo, no contexto moderno, deixando de ser apenas "católicos" por tradição familiar, pode-se pensar que o catolicismo – nas últimas décadas – perdeu, no contexto das migrações e da urbanização (que favorecem a ruptura com o ambiente tradicional), um certo número de fiéis, ou de católicos "nominais" (católicos só de nome), mas ganhou em participação ativa dos fiéis na vida eclesial e na evangelização.
Mesmo assim, as igrejas evangélicas – como muitos sociólogos assinalaram há tempo – se mostram mais dinâmicas ou agressivas na procura de novos fiéis, enquanto a organização da Igreja Católica parece ter agido com bastante lentidão diante das mudanças sócio-culturais. A organização católica está muito dependente do padre (presbítero) e da paróquia. Ora, o número dos padres não tem crescido com o mesmo ritmo da população. Em 1970, havia um padre para 7.100 habitantes; em 1990, um padre para 10.100 habitantes. Desde então a proporção padres/habitantes se mantém estável. As paróquias das grandes cidades têm, geralmente, um número exagerado de habitantes, aos quais o único pároco não pode oferecer o cuidado pastoral desejável[7].
A publicação dos dados provocou o início de um debate entre os católicos (que deverá ser aprofundado!) sobre as causas da diminuição da presença católica. O diário Estado de S.Paulo traz, por exemplo, duas opiniões opostas: a do bispo Dom Amaury Castanho, de Jundiaí (estado de S.Paulo), que acusa a "politização" do catolicismo dos anos ’80 (ou seja, a teologia da libertação e o prevalecer de uma tendência progressista também na direção da CNBB), e a do diretor do CERIS, o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza, que, ao contrário, atribui às comunidades de base o fato de ter evitado mais perdas. De fato, os estados mais católicos são aqueles que têm mais comunidades de base, enquanto – acrescento eu – o estado do Rio de Janeiro viu, ao menos na capital, a ação pastoral rigidamente centralizada e tendencialmente conservadora do cardeal Eugenio Sales. Além disso, observaria (com outros) que os anos ’90, nos quais as perdas do catolicismo são mais evidentes, não são os anos do predomínio da Teologia da libertação ou das comunidades de base, mas especialmente da Renovação Carismática e dos padres cantores, pop-stars da televisione.
Um juízo mais preciso sobre a eficácia, ou menos, da ação pastoral das várias dioceses será possível só com a publicação de dados completos, de cada município. Por enquanto, observando os dados relativos aos Estados brasileiros, parece-me que é preciso pensar antes de tudo nos processos culturais de longa duração para explicar a situação, que a rápida urbanização[8] e as migrações tornaram ainda mais complexa.
Numa perspectiva histórico-cultural, parece-me significativo que os estados mais católicos pertencem ao Nordeste árido, do interior (Piauí, 91,4% de católicos; Ceará, 84,9%; Paraíba, 84,3%; Maranhão, 83%; Alagoas, 81,9%; Sergipe, 81,7%; Rio Grande do Norte, 81,7%); aqui é o catolicismo popular tradicional, creio, o grande obstáculo à penetração de protestantes ou de outras religiões "modernas"[9]. Seguem, com uma porcentagem de católicos um pouco mais baixa, os estados do Sul, de migração alemã e italiana (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e o estado d Minas Gerais (formado no século XVIII), tradicionalmente católico.
É também significativo que o litoral do Nordeste, onde se desenvolveu desde o século XVII a cultura da cana de açúcar e onde mais cedo entrou um estilo de vida mais livre do que os austeros costumes do catolicismo do "sertão", representado por Pernambuco e Bahia, e o estado do Rio de Janeiro contem com o maior número dos que se dizem "sem religião" (respectivamente 11%, 10,3% e 15,5%, enquanto a média nacional é de 7,3%).
Quanto à presença de evangélicos, considerando as grandes regiões, é mais forte no Centro-Oeste (19,1%), no Norte (Amazônia, 18,3%), no Sudeste (18,3%); aproxima-se da média nacional no Sul (15,4%) e é nitidamente inferior no Nordeste (10,4). Os estados com maior presença de evangélicos são Rondônia (27,8%), Espírito Santo (27,5%), Roraima (23,7%) Rio de Janeiro (21,1%), Goiás (20,9%), onde se pode ver uma conexão do fenômeno com as migrações recentes (e uma atividade missionária mais intensa dos protestantes do que dos católicos).
[1] Cf. CERIS, Desafios do catolicismo na cidade. São Paulo, Paulus, 2002, 290 p.
[2] Cito esses dados tirando-os do estudo de Leandro Piquet CARNEIRO e Luiz Eduardo SOARES, Religiosidade, estrutura social e comportamento político, in: Maria Clara L. BINGEMER (org.), O impacto da modernidade sobre a religião; Loyola, S.Paulo, 1992, p. 9-58 (especialmente p.13-16).
[3] Para uma discussão mais aprofundada, remeto ao meu capítulo no livro do CERIS, Desafios do catolicismo na cidade, p.252-267.
[4] Retomo aqui a indicação de David RIESMAN, o conhecido sociólogo recentemente falecido aos 92 anos, cujo livro de 1948, The lonely crowd (A multidão solitária), o livro de sociologia mais vendido até recentemente nos Estados Unidos, sugeria a distinção das personalidades "dirigidas pela tradição" (típicas das sociedades estáveis), "auto-dirigidas" (típicas da Renascença e da Reforma) e "hetero-dirigidas" (típicas da sociedade das massas ou multidões e do consumo).
[5] Na obra Católicos, protestantes e espíritas. Ed. Vozes, Petrópolis.
[6] Cf. A.F. PIERUCCI - R.PRANDI, A realidade social das religiões no Brasil, p. 216. A pesquisa, feita sobre uma amostra dos eleitores brasileiros (então quase 100 milhões), encontrou 74,9% de católicos, dos quais 61,4% (do total da população) "tradicionais", 3,8% carismáticos, 1,8% das CEBs e 7,9% de outros movimentos. Significa que cerca de 14% da população adulta brasileira (ou 14 milhões de pessoas) pertencem a movimentos católicos organizados.
[7] Cf. Alberto ANTONIAZZI, A Igreja e seu território, quatro artigos com informações sobre dioceses, paróquias e comunidades de base no Brasil; publicados no JORNAL DE OPINIÃO, 1 - nº 613, 26.02 a 4.03.2001, p.6-7; 2 -nº 614, 5 a 11.03.2001, p.6-7; 3 - nº 615, 12 a 18.03.2001, p.6-7; 4 - nº 616, 19 a 25.03.2001, p.6-7.
[8] A população considerada "urbana" pelo IBGE era de 31% em 1940, de 56% em 1970, de 80% em 2000; enquanto a população rural sofria poucas alterações: crescia de pouco menos de 30 milhões (1940) para 41 milhões em 1970, para depois descer para cerca de 35 milhões (2000).
[9] Estes estados são também os que têm menor escolaridade: no Piauí, 56,6% da população não concluiu a escola primária; seguem os outros Estados do Nordeste, citados como mais católicos, que ocupam os lugares 2º a 4º e 7º a 9ºentre os Estados com mais baixo índice de escolaridade; Bahia e Acre ocupam o 5º e o 6º lugar.