Nosso propósito neste artigo é discutir, usando os pressupostos do Paradigma do Mercado Religioso, que têm em Berger (1985), Finke & Stark (1988, 1992) e Stark & Iannaccone (1994) seus principais formuladores, as transformações que se realizam nos modelos de religiosidade em termos de moldagem dos seus discursos e práticas religiosas, a partir de modificações na constituição interna da esfera da religião no Brasil no final do século XX. Privilegia-se, aqui, a definição institucional do fenômeno religioso, sendo nosso objetivo demonstrar que, acima de todos os fatores que influenciam a dinâmica da esfera da religião, têm preponderância aqueles ligados ao nível de concorrência entre organizações religiosas e suas influências sobre a preocupação das mesmas com as questões de sobrevivência institucional, manutenção e expansão dos espaços ocupados no campo religioso e na sociedade.
A lógica mercadológica sob a qual a esfera da religião opera produz, entre outras coisas, o aumento da importância das necessidades e desejos das pessoas na definição dos modelos de práticas e discursos religiosos a serem oferecidos no mercado. Ao mesmo tempo, demanda das organizações religiosas maior flexibilidade em termos de mudança de seus "produtos" no sentido de adequá-los da melhor maneira possível para a satisfação da demanda religiosa dos indivíduos.
Nos contextos de pluralismo acentuado em que vivemos, passou o tempo em que as instituições religiosas podiam propor à sociedade um conjunto de exigências relativas à fé e aos comportamentos esperando uma aceitação social imediata. Nas sociedades contemporâneas, em que os indivíduos são crescentemente orientados para decidir livremente a respeito de que modelo de religiosidade vão adotar (quando escolhem um), o que as organizações religiosas oferecem tem que ser atrativo para os potenciais consumidores. Assim, o ethos do consumo - que prevalece em termos de sociedade inclusiva - e o pluralismo do campo religioso são elementos fundamentais para entender como a lógica mercadológica determina a dinâmica de transformações dos modelos de religiosidade.
A partir desse ponto de vista examinaremos, a seguir, alguns fatos da história recente da religião no Brasil, apresentando uma interpretação do processo pelo qual a Igreja Católica vai perdendo sua posição de monopólio no mercado religioso nacional e se vê pressionada à realização de mudanças reativas em seus discursos e práticas religiosas, refletidas no processo de hegemonia do modelo carismático que, aos poucos, vai substituindo a preponderância anterior do modelo progressista.
O que está em jogo, quando as hierarquias das instituições religiosas abrem espaço para que prevaleça um determinado modelo de religiosidade em detrimento de outro(s), é a eficácia do conjunto de significados e de visões do mundo oferecidos à massa de fiéis atuais e potenciais. Assim, as modificações introduzidas em termos de discursos e práticas religiosas se constituem num esforço no sentido de tornar, a cada momento, o produto religioso oferecido mais eficiente (em termos de eficácia simbólica) no atendimento das necessidades religiosas dos fiéis.
Partimos de uma abordagem que enfatiza, portanto, a crescente necessidade que as diferentes organizações têm de se sintonizar com o perfil dos fiéis - consumidores - no sentido de moldar a mensagem, as atividades, os estilos de celebração, os temários dos sermões e outros aspectos do modelo de religiosidade, de modo a que estes estejam em consonância com a demanda dos indivíduos. Essa dependência das instituições religiosas em relação à vontade dos consumidores parece variar de maneira diretamente proporcional ao nível de competição em um dado mercado religioso e também se relaciona com as mudanças no papel social da religião na vida dos indivíduos, que têm produzido, entre outras coisas, uma tendência que aponta para um consumo fragmentário de religiosidade.
Essa necessidade de um olhar sempre atento às características da demanda dos consumidores de religião sofre, portanto, a influência das características estruturais da concorrência no campo religioso. As condições sob as quais operam as organizações religiosas - ou, se quisermos usar os termos do Paradigma do Mercado Religioso, as regras de regulação da economia religiosa, e, de maneira destacada, os níveis de competição aos quais se submetem as organizações religiosas - também atuam no sentido de determinar uma maior ou uma menor suscetibilidade da instituição à demanda religiosa dos indivíduos.
No caso da Igreja Católica no Brasil, cujas recentes transformações pretendemos enfatizar neste artigo, o que temos observado é a convivência de múltiplas maneiras de conceber a identidade católica. Embora exista na instituição um alto grau de hierarquização, o que ocorre é uma luta ideológica entre diferentes concepções de Igreja, que acontece no espaço de autonomia dos bispos e padres locais.
As divergências na definição do que é ser católico e a respeito de como deve atuar a Igreja Católica, existentes no seu espaço eclesiástico, são determinadas, dentre outros fatores: a) pelas diferenças existentes entre facções de religiosos, relativas às definições dos objetivos da instituição; b) pelas suas variadas concepções a respeito dos meios para alcançar as finalidades institucionais escolhidas; c) pelo enfrentamento de posições ideológicas contrárias, a respeito da maneira pela qual a proposta de religiosidade católica deve se posicionar em relação às questões ligadas às estruturas de poder vigentes na sociedade; d) pela força da demanda dos consumidores.
De qualquer maneira, acreditamos que essas divergências tendem a ser resolvidas levando em consideração o caráter institucional da Igreja Católica, ainda mais em situações em que o campo religioso se estruture em termos de mercado desregulado, nas quais as organizações religiosas tenderão a se preocupar com questões ligadas a sua sobrevivência, à manutenção e expansão dos espaços ocupados. Nesse sentido, por causa do acirramento da competição, as organizações religiosas em geral, e a Igreja Católica em particular, tendem a moldar seus discursos e seu conjunto de práticas sacramentais em referência às características da demanda dos fiéis já conquistados e do público a ser atingido. É o que tentaremos demonstrar na análise que fazemos a seguir, da tendência atualmente em curso à passagem da hegemonia do modelo progressista para a predominância do modelo católico-carismático.
Entendemos a adoção desse modelo e a posterior restauração conservadora e, no âmbito desta, a força do Movimento Carismático, como o resultado dos esforços que a Igreja faz para adaptar sua proposta de religiosidade às novas condições de mercado e de competição, que exigiam uma atenção crescente à demanda dos consumidores reais e potenciais de religião. As transformações na configuração do mercado religioso nacional podem ser observadas nos dados dos Censos nacionais referentes ao crescimento dos evangélicos no Brasil, que apontam para a década de 50 como o início de um processo mais acentuado de descatolicização do país, como vemos na tabela a seguir:
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1940 | 1950 | 1960 | 1970 | 1980 | 1990 |
População | 41236315 | 61944397 | 70191370 | 94139037 | 119002706 | 146825475 |
Católicos | 95.0 | 93.4 | 93.0 | 91.7 | 89.0 | 83.3 |
Evangélicos | 2.6 | 3.3 | 4.0 | 5.2 | 6.6 | 9.0 |
Espíritas | 1.1 | 1.6 | 1.4 | 1.3 | 1.2 | 1.6 |
Outras | 0.8 | 0.8 | 1.0 | 1.0 | 1.2 | 1.0 |
Sem religião | 0.5 | 0.8 | 0.5 | 0.8 | 1.8 | 5.1 |
Fonte: Censos do IBGE. |
Esse processo pode ser entendido menos como um sinal de decadência institucional católica do que como o resultado do aumento na ofensiva dos evangélicos no país, que produz um gradual crescimento do número de adeptos das igrejas dos "crentes", colocando sob questionamento o monopólio do mercado religioso exercido pela Igreja Católica no campo religioso desde os tempos do Brasil-Colônia.
A ameaça concreta, que os números revelavam já no censo de 1960, exigia uma ação efetiva da Igreja. Era preciso dar uma resposta institucional ao avanço dos evangélicos/protestantes, possibilitado, inclusive, pelo fato de que enfrentavam uma Igreja Católica enfraquecida pelo fortalecimento da secularização e do "livre pensamento". Para entender as medidas tomadas e as transformações realizadas no sentido da adoção do modelo progressista na Igreja Católica, precisamos ter claros alguns elementos do contexto histórico no qual operavam as diversas organizações religiosas naquele período.
Se olharmos para o período que vai até meados da década de 60 do século passado, veremos uma Igreja que se aliava ao governo e às elites dominantes, dotada de uma proposta de religiosidade mais dirigida para setores médios e urbanos, inclusive devido à escassez de efetivos. Especificamente no período que vai de 1950 a 1963, a Igreja atua como coordenadora em vários movimentos e programas governamentais que tinham como objetivo a construção de um país mais desenvolvido e economicamente mais autônomo. Não podemos esquecer que essa atuação "social" era uma oportunidade de marcar presença em termos políticos, e, nos casos de programas de assistência social às camadas mais pobres da população, uma chance de atuar em setores historicamente desprezados pela Igreja (cf. Bruneau, 1974; Mainwaring, 1986).
No que se refere à conjuntura propriamente religiosa do período acima citado, o dado mais importante é o avanço dos evangélicos, por um lado, e da umbanda, por outro - mais dos primeiros, com sua defesa do exclusivismo religioso, do que dos segundos, graças aos seus padrões flexíveis de participação religiosa, associados aos menores graus de institucionalização - que colocava em cheque a hegemonia absoluta da Igreja Católica no país. Se refinarmos as informações relativas às estatísticas de crescimento dos evangélicos e dos afro-brasileiros, notaremos que o principal alvo e público desses modelos de religiosidade eram as camadas pobres da população, que, sobretudo naquele momento, constituíam a ampla maioria no país.
Somente esse elemento referente ao aumento da competição no campo religioso já seria suficiente para justificar a tomada de medidas destinadas a tornar a concorrência com os pentecostais e afro-brasileiros pela preferência dos fiéis das camadas populares - onde as duas propostas faziam mais sucesso - mais agressiva e competente. A adoção do progressismo, uma proposta de religiosidade que deveria contemplar os segmentos sociais citados, se inscreve no conjunto de ações reativas implementadas. Ao nosso ver, no entanto, é o golpe militar - e as modificações políticas que ele acarreta - que completam o cenário no qual a estratégia de competição adotada pela Igreja se articula de maneira mais precisa.
Gradativamente, as condições para a adoção do modelo progressista de Igreja iam se fortalecendo: (1) a perda de espaço em termos de articulação com o Estado e, por conseqüência, a diminuição da influência na sociedade, juntamente com (2) a nova conjuntura do campo religioso, crescentemente organizado em termos de mercado religioso, na medida em que a adesão religiosa se baseava cada vez menos na tradição e mais na escolha livre dos indivíduos, situação que se traduzia no aumento da expressão evangélica - num certo sentido, também adquirem maior visibilidade as afro-brasileiras e os espíritas, mas em grau muito menor do que os evangélicos, estes sim com igrejas altamente articuladas, exclusivistas e opostas ao catolicismo. No caso das afro-brasileiras, e mesmo dos espíritas, movimentos mais informais, raramente foram observados enfrentamentos explícitos com a Igreja Católica. Isso não impediu que surgisse toda uma literatura polêmica, já nos anos 40 e 50, no âmbito da qual se destaca o trabalho de Kloppenburg, sobre umbandistas e espíritas (cf. Motta, 1998) - no mesmo mercado, além da (3) concorrência com projetos políticos de esquerda, que se propunham às massas como alternativas de "salvação" e de explicação e significação do mundo, são dados que vão influenciar significativamente o desenrolar dos fatos no espaço intraeclesial católico, que desembocam na hegemonia do modelo progressista de Igreja.
Em termos do campo internacional, as transformações institucionais provocadas pelo Concílio Vaticano II e pela Conferência dos Bispos da América Latina, realizada em 1968 na cidade de Medellín, expressaram uma preocupação da Igreja em "ir ao povo" e reconquistar as massas, sendo observado um deslocamento de suas bases sociais das classes médias para as classes subalternas. Esse movimento implicou numa série de tentativas de redefinição da visão da Igreja a respeito da cultura popular e em um direcionamento preferencial das atividades, práticas e discursos para as camadas pobres da população.
O segundo grupo de elementos do cenário em que se consolida o modelo progressista católico refere-se à conjuntura sócio-política nacional, que vai "empurrar" a Igreja para assumir uma postura de porta-voz da sociedade civil, construindo uma interlocução de cunho oposicionista e contestatório com o governo.
A pressão exercida pela sociedade civil sobre a Igreja representava o reconhecimento da posição de poder exercida pela instituição na sociedade, o que a transformava num lugar de veiculação do discurso de várias entidades populares que se tornaram clandestinas após o golpe. A principal novidade em termos de prática eclesiástica trazida pelo modelo progressista de Igreja, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), foi uma tentativa de atender às demandas de setores da sociedade tais como os dos estudantes, trabalhadores sindicalizados, intelectuais e, mais tardiamente, as dos movimentos de negros e de mulheres, por espaços de mobilização e contestação do autoritarismo.
No período que vai do final da década de 60 até o final dos anos 80 do século passado, as CEBs se multiplicaram em todo o país, propondo uma religiosidade que era, sobretudo, intelectualizada e politicamente engajada. Como veremos a seguir, ao discutir a passagem do modelo progressista para a hegemonia da proposta conservadora da Igreja, por terem os basistas superestimado a demanda de grupos politizados por espaços de expressão política - que enfrentavam uma conjuntura de repressão e perseguição e se "refugiaram" na Igreja - ao mesmo tempo em que colocavam em segundo plano as necessidades relativas à mística, à espiritualidade vertical e de respostas aos problemas práticos individuais, experimentaram a rejeição do seu modelo pelo público ao qual a Igreja Popular pretendia atender.
Se, por um lado, a Igreja ganhava em visibilidade na sociedade, já que, investida de um poder moral decorrente de sua posição social, enfrentava o governo abertamente, por outro lado favorecia os concorrentes dentro do mercado religioso brasileiro, que ofereciam justamente modelos de religiosidade despolitizados, dirigidos para uma visão mais extramundana das práticas e discursos religiosos e dedicados ao provimento de alternativas para as dificuldades cotidianas das pessoas, tais como o desemprego, as doenças, as complicações na vida familiar e outras dessa ordem. Sob as condições macro-sociais mencionadas, os pentecostais e afro-brasileiros ganham um espaço considerável de atuação com a invenção e disseminação das CEBs pela Igreja Popular justamente entre aqueles indivíduos pertencentes aos segmentos cuja proposta progressista pretendia atingir.
É a preocupação com a concorrência crescente com outras formas de religiosidade que constitui o terceiro elemento do cenário em que surge o modelo progressista de Igreja. A opção pelos pobres, que é anunciada nesse modelo, reflete a preocupação da instituição em preparar uma reação organizacional católica ao avanço dos evangélicos e afro-brasileiros nas camadas desfavorecidas do país, que se acentuara desde o fim da década de 50. A perda de fiéis para essas propostas de religiosidade colocava o problema da ênfase dada pela Igreja às classes médias e dominantes, tendo provocado a mudança de foco dos discursos e práticas católicas no sentido de construir uma "Igreja que nascia do Povo", uma "Igreja das Bases" ou, ainda, uma "Igreja Popular". Embora o principal motivo alegado para fundamentar a "opção pelos pobres" tenha sido o fato de que o clamor deles - originado pelo aumento dos níveis de miséria, de pobreza e de injustiça social nos tempos do "Brasil, ame-o ou deixe-o", no qual se produzia um milagre das altas taxas de riqueza, alto desempenho do PIB, altos níveis de outros indicadores gerais da economia e, ao mesmo tempo, altas taxas de exclusão social - tinha sido ouvido pela Igreja, com o passar do tempo essa motivação vai, aos poucos, perdendo as condições de sua legitimidade. O que se observa é que mesmo com o agravamento da situação social de forte exclusão, que não deixou de piorar desde então, o caráter institucional e organizacional, que também fundamentara a adoção estratégica da proposta, foi se fortalecendo até suplantar aquele explicitado como razão do progressismo, principalmente em face do aparecimento das estatísticas sobre a crescente perda de fiéis, que não aceitavam o estilo racionalizado e secularizado das CEBs e afirmavam isso saindo da Igreja para as igrejas e seitas de inspiração pentecostal.
Assim, como a preocupação institucional com a manutenção dos níveis de poder e influência na sociedade abre as portas da Igreja para a proposta de Igreja Popular e das CEBs, é a importância que a instituição dá à garantia da sua hegemonia em termos de mercado religioso que torna possível a cessão de espaço para a Reação Neoconservadora. Ao reconhecer o fracasso das Comunidades como estratégia para atingir os pobres - que, de acordo com as estatísticas, tendiam a optar pelos pentecostais e pelas afro-brasileiras - mesmo em face da continuação dos processos de empobrecimento de amplos setores da população e da agudização da exclusão social no Brasil, a hierarquia cria condições para o florescimento do Movimento de Renovação Carismática que, adotando uma direção contrária à da Igreja Progressista, será sua principal arma na competição contra os pentecostais, seus principais concorrentes no mercado religioso.
O fato de que a proposta das CEBs, embora elaborada em referência aos pobres, tenha tido uma aceitação muito abaixo da expectativa, representa um sinal de que houve alguns problemas na maneira pela qual a estratégia de atingimento dos segmentos sociais desfavorecidos foi construída. Na linguagem de mercado, diríamos que houve uma avaliação equivocada da demanda, que, por sua vez, provocou uma elaboração do produto descolada das necessidades e interesses efetivos do público alvo.
É preciso compreender que a luta entre pentecostais e católicos, acentuada na segunda parte do século, era (e continua sendo) uma disputa por quantidade de fiéis, ou de "fatias de mercado", que se traduzia também na legitimidade de falar pelo povo. Tratava-se, também, de uma questão de propor modelos de padrões de liderança, de práticas religiosas e de discursos com os quais os indivíduos se identificassem e, por conseguinte, decidissem por uma afiliação efetiva a eles e pela participação nas instituições que os veiculavam.
A conjuntura de mercado religioso não parou de evoluir desde então. Como veremos a seguir, tanto a Igreja Católica vai implementar mudanças - relacionadas não somente ao espaço interno do mercado, mas também ligadas às transformações da situação sócio-política nacional - como os pentecostais, evangélicos tradicionais e outras organizações religiosas vão experimentar dinâmicas influenciadas pela sempre crescente concorrência pela preferência dos fiéis e pelos aspectos de mercadoria que a lógica mercadológica impõe à produção e disponibilização de propostas de religiosidade.
A idéia principal que apresentamos nessa seção é a de que o ressurgimento do Movimento Carismático Católico, nas dimensões observadas, somente foi possível por dois motivos principais: (1) a emergência e hegemonia da Reação Conservadora no espaço eclesial católico; e (2) as condições existentes no mercado religioso nacional, que apontavam como principais concorrentes do catolicismo na região os pentecostais e neo-pentecostais. A Renovação Carismática Católica se constituiu como uma possibilidade concreta de que a Igreja atuasse em duas direções simultâneas: uma referida ao espaço externo à Igreja, visando restringir a ação expansionista dos pentecostais; outra, ao espaço intraeclesial, limitando o espaço dos setores progressistas católicos.
A vitória dos conservadores na Igreja Católica criou condições institucionais para o florescimento do novo modelo de ser igreja, cuja implementação significou justamente a possibilidade de oferecimento, no âmbito do catolicismo, de uma proposta de religiosidade que poderia atender às necessidades da demanda religiosa dos fiéis por espiritualidade e misticismo, reprimidas durante o período em que o modelo da Igreja Popular prevaleceu.
É significativo, aqui, o fato de que o modelo dos Carismáticos Católicos se assemelhe em muitos aspectos ao dos pentecostais, o que é explicado, no âmbito do Paradigma do Mercado Religioso, como uma tendência a ser observada entre produtos religiosos que se destinam a um mesmo público: se pretendem responder ao mesmo conjunto de demandas religiosas, os produtos religiosos - os discursos elaborados e as práticas propostas - tenderão à padronização.
Aos números indicando o crescimento dos evangélicos, sobretudo o dos pentecostais, podem-se juntar informações estatísticas segundo as quais 48% dos pentecostais e 41% dos evangélicos não-pentecostais se declararam ex-católicos (conforme o jornal Folha de São Paulo de 14/01/96). De acordo com Oro (1991), 77% dos crentes reunidos nas igrejas Deus é Amor e Universal do Reino de Deus no Rio Grande do Sul são provenientes do catolicismo. Os dados de Campos (1997) indicam 43% como provenientes do catolicismo. Essa diferença nos dados de Campos em relação aos de Oro pode ser devida ao fato de que, no período em que foi feita a pesquisa mais recente, a configuração do campo interno à Igreja Católica, com o sucesso do movimento carismático, entre outros dados, pode já ter apresentado resultados em termos de reação ao avanço dos neopentecostais. Esses dados podem ser vistos como uma indicação de que é dos quadros da Igreja Católica, que ocupava a posição de semimonopolista no mercado religioso nacional até então, que os fiéis saem para outras religiões, principalmente para as indicadas acima.
Seria, portanto, para os fiéis católicos que estavam deixando o catolicismo em busca de devoção, espiritualidade e misticismo, que não encontravam nas CEBs, pelo menos da maneira por eles desejada - já que, pelo menos em referência à espiritualidade, o que o modelo dos progressistas fazia era propô-la em termos de prática cotidiana dos princípios cristãos, ao invés do privilégio aos aspectos rituais - que qualquer estratégia de reação ao avanço dos pentecostais deveria se construir. Uma ação destinada a fazer frente à perda de fiéis para os pentecostais, que ofereciam o que tinha sido deixado de lado no produto religiosos dos progressistas, significou, efetivamente, uma apropriação de algumas características do principal adversário dos católicos no mercado religioso no Brasil.
Esse processo de apropriação de algumas das principais características do modelo pentecostal evangélico pelo Movimento de Renovação Carismática não significa, de nenhuma maneira, o resultado de uma ação planejada por uma cúpula maquiavélica de padres que, na calada da noite, teria resolvido os detalhes da estratégia a ser operacionalizada como reação às novas condições do mercado religioso. O que aconteceu foi, por um lado, a criação de uma série de mecanismos estruturais e organizacionais que dão apoio ao desenvolvimento desse estilo de ser católico - o carismático - e, por outro, a tomada de um conjunto de medidas que resultariam, na prática, em maiores dificuldades para a continuidade e desenvolvimento do projeto da Igreja Popular. Na nossa opinião, essa conjuntura favorável à identidade católico-carismática é amplamente determinada pelo fato de que a Igreja tem que enfrentar níveis cada vez mais altos de concorrência no mercado religioso, bem como uma crescente perda de fiéis justamente para os pentecostais tradicionais e para os neopentecostais.
Algumas características do modelo carismático católico são muito próximas das linhas definidoras do pentecostalismo evangélico, conforme Guerra, (1993 e 1995); Prandi & Souza (1996); Oro (1996) e outros. Dentre esses principais pontos de semelhança - a partir dos quais Prandi & Souza (1996:68) comentam - "quem os vê em reunião pode pensar facilmente tratar-se de uma invasão de crentes em território católico" - citamos aqui:
Esse padrão de similitude entre produtos religiosos destinados a um mesmo público ou a segmentos de mercados semelhantes já foi previsto por Berger (1985). Esse processo de padronização traz, também, alguns problemas ligados à questão das identidades religiosas, já que cada produto é obrigado, então, a enfrentar uma pressão dupla: uma no sentido da similitude e, outra, no sentido da diferenciação. A proposta de religiosidade tem que ser parecida com as concorrentes nos elementos que fazem sucesso no mercado e, ao mesmo tempo, pelo menos marginalmente, diferente.
No caso dos carismáticos católicos, as convergências se realizam mais no nível da liturgia e da definição de religiosidade em seu aspecto prático, ou seja, na moldagem da visão do "ser religioso" no cotidiano. No que se refere aos aspectos teológicos, a semelhança atinge só até um determinado ponto, de forma a resguardar um espaço de definição da diferença. No caso dos católicos carismáticos e os pentecostais, esse espaço demarcador da diferença parece estar, principalmente, no culto a Maria e na submissão, ao menos formal, à autoridade do Papa.
Esses pontos de diferenciação com o modelo dos pentecostais precisam ser reforçados no sentido de evitar o sentimento de que os modelos são equivalentes e, portanto, perfeitamente intercambiáveis, o que seria improdutivo em termos de estratégia para manter e conquistar fiéis. Sobre a confusão na cabeça dos fiéis católicos tradicionais em relação à semelhança do modelo dos carismáticos com o dos crentes, Maués (1998:18) cita uma fala de um informante: "Via aquele pessoal batendo palmas e cantando, e eu olhava para cima e via lá a cruz com Jesus lá, né, pregado, e eu me questionava: mas isso aí é católico?". Muitos declararam que não gostam e não freqüentam o Movimento Carismático justamente pela semelhança (cf. Guerra, 1995). Ainda outra diferença refere-se à inexistência, entre os católicos carismáticos, de uma prática centrada na atividade de contribuir financeiramente como aquela observada principalmente entre os pentecostais autônomos ou neopentecostais. Talvez um dos condicionantes desse aspecto do modelo seja o fato de que os projetos do Movimento Carismático têm garantida sua realização graças à participação de importantes empresários internacionais (conforme Benedetti, 1988, um dos financiadores do movimento é Brenninkmeyer, dono das lojas C&A).
Relacionada a essa diferença, temos ainda que a ênfase na Teologia da Prosperidade, um forte elemento do produto dos pentecostais na concorrência no mercado religioso, não é encontrada no Movimento Carismático, pelo menos em sua versão inicial. Como veremos a seguir, há sinais de mudanças no próprio Movimento Carismático em direção de uma convergência com os pentecostais também nessas últimas áreas de divergência acima mencionadas.
O fenômeno do padre Marcelo Rossi, do padre Zeca, e do padre Marcário Batista, figuras que ganham visibilidade através da mídia nacional no final da última década do século passado, indicam mudanças nesse panorama, ligadas ao retorno do catolicismo a um modelo mais místico e espiritualista. A proposta de um "novo catolicismo", ou de um "catolicismo de terceira via" desses padres, pop stars da fé, são sinais de uma Igreja preocupada em se mobilizar para enfrentar os novos tempos de competição.
Esses novos modelos de religiosidade católica, que alguns têm chamado de "contra-reforma" do catolicismo no Brasil, não apresentam substancialmente nenhuma grande diferença em relação ao "velho catolicismo", não havendo nada de radical ou inovador no discurso teológico dos padres mencionados. Tudo é mais uma questão de estilo, no qual se destacam algumas marcas:
Essa proposta de redefinição do catolicismo como uma religião não meramente tradicional tem dado origem ao fenômeno denominado de "reconversão" de católicos, que pode sinalizar para um movimento de retorno de fiéis que haviam deixado a Igreja em direção de outros modelos de religiosidade, justamente em busca de uma "mudança de vida", de "transformação". Em termos mercadológicos, essa proposta de uma ruptura com o catolicismo nominal ou tradicionalista pode significar a possibilidade de valorização do modelo de religiosidade católico, inclusive pelos mais altos níveis de sacrifício exigidos (cf. Iannaccone, 1988).
Um dos mais importantes elementos desse "novo" estilo de ser católico é a possibilidade de construção de uma identidade católica caracterizada pelo "orgulho" de ser católico, em contraposição à ostentação presente nas identidades evangélicas em geral, que definem os "crentes" como "diferentes", "puros" num mundo de impuros, "regenerados" e "filhos de Deus", em oposição à maioria descrente, classificada por eles como apenas "criaturas de Deus". Essa proposta implica numa identidade católica moderna, marcada pela idéia de "novo nascimento" espiritual, por uma visão do catolicismo como energético, "para cima", que produz entusiasmo e bem-estar nos que o incorporam.
Uma das mais importantes armas em termos de renovação do poder competitivo do modelo de religiosidade católico representado pelo estilo dos padres citados, mas também da já mais estabelecida Renovação Carismática Católica, é justamente o conjunto de mudanças da missa em termos de liturgia. Como já mencionado, não há diferenças significativas nas missas celebradas pelos padres pop stars, que seguem todos os passos tradicionais do ritual. Uma vez terminados os rituais, aí sim entram em cena elementos inovadores, que podem ser a "aeróbica do Senhor", de Rossi, ou as grandes e animadas seções de cânticos em ritmo de samba ou no estilo country do padre Marcário, entre outros. Essa metodologia é eficiente, em termos de mercado, porque combina a manutenção da tradição com a adoção de procedimentos litúrgicos que podem conferir às missas uma nova força atrativa - já que eram (e às vezes ainda são) associadas com, por exemplo, sobriedade, controle do corpo, participação limitada à repetição de frases em horários planejados - em termos de significados subjetivos nela mobilizados e de efeitos produzidos tais como o alívio das tensões, a reflexão sobre a necessidade de compromisso com a Igreja Católica, entre outros.
Esse elemento do "novo catolicismo" se contrapõe aos elementos negativistas do discurso da IURD, com sua ênfase nos demônios, doenças, satanás, luta constante contra as "potestades" espirituais malignas, que são substituídas, principalmente no discurso de Rossi, por anjos protetores, que fazem companhia aos indivíduos, inclusive servindo como seus intermediários nas preces a Deus.
Partindo do ditado de inspiração materialista segundo o qual "a virtude sozinha não move a história", e ao mesmo tempo sem poder dedicar muito espaço à análise desses personagens que ganham visibilidade no mercado religioso brasileiro do final do milênio – que justificariam um estudo mais aprofundado, inclusive centrado nos aspectos superestruturais do carisma fabricado, em grande medida, via meios de comunicação - gostaríamos de destacar alguns pontos fundamentais sobre o fenômeno dos padres pop stars, ligados a nossa proposta de análise da esfera da religião em termos de mercado:
As características do modelo do "novo" catolicismo poderiam ser assim listadas:
Essas características têm em comum o fato de atenderem a uma lógica segundo a qual tudo passa a ser decidido em referência aos desejos dos prováveis consumidores de religião, num exercício claro da lógica da propaganda e do marketing. Não queremos dizer com isso que as intenções e os resultados do exercício da fé sejam menos dignos ou "verdadeiros" do que em outros momentos do campo religioso, nos quais as propostas de religiosidade ainda não eram colocadas em circulação num ambiente de alto nível de competição, como produtos para o mercado. Reafirmamos que não pretendemos aqui reduzir o fenômeno religioso a esse aspecto. Nossa análise tenta apenas dar conta dos mecanismos que atuam sobre a produção dos discursos e práticas religiosas, que são diferentes dentro e fora de uma conjuntura de mercado religioso.
Os produtos religiosos se constroem a partir da articulação de dois níveis de determinação: (1) a dinâmica das condições internas ao mercado religioso - os níveis de concorrência e os produtos de maior sucesso; (2) a dinâmica das características mais gerais do conjunto de necessidades valorizadas pelos indivíduos na sociedade inclusiva. Assim, (1) se a posição de semi-monopólio da Igreja Católica dentro do mercado religioso nacional não estivesse ameaçada; (2) se os principais concorrentes fossem não os pentecostais, com sua proposta de religiosidade espiritualista, mas, por exemplo, os metodistas, com sua visão avançada em termos de horizontalidade da fé, sua teologia existencialista, moderna, e sua preocupação com a construção de um espaço mais igualitário entre homens e mulheres, que implica, inclusive, na ordenação de mulheres; (3) somente se a conjuntura social indicasse a existência de uma demanda forte dos indivíduos em termos de atividades de mobilização coletiva para a solução de problemas relativos ao bem comum - e não essa que atualmente atravessamos, na qual o individualismo prevalece de forma tão abrangente - o cenário, no qual observamos a crescente força do Movimento Carismático Católico, a perda de espaço das CEBs e outros elementos da identidade católica que vem se tornando hegemônica, poderia ser diferente.
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