O Alvo da História da Igreja e a História da Igreja como Alvo: O Exemplo da Idade Média Central (Séculos XI-XIII)

Néri de Barros Almeida[*]

Resumo

O ensino da História da Igreja medieval é perturbado por uma série de preconceitos. Deles decorrem abordagens desprovidas de dinâmica histórica e profundidade social. Pretendemos, através da apresentação de alguns destes preconceitos e de exemplos históricos, tratar da importância de uma apresentação mais cuidadosa do período e de sua relevância para a conformação da consciência histórica contemporânea.

Abstract

Due to various prejudices the teaching of medieval Church’s history is often treated superficially in the sense that it does not take into account the real dynamics and complexity of the subject. The article appoints to some of these stereotypes and pleads for a more adequate approach to the matter capable of contributing to the contemporary teaching of human History.

É inegável que a História das religiões e da Igreja despertam cada vez mais as atenções de nossos alunos nas universidades e mesmo do público em geral. Não vão longe os dias em que, entre nós, esse domínio historiográfico atraía apenas um pequeno público de fervorosos ou céticos, ilustrando a cisão, em torno de um mesmo objeto, entre fé e razão, e uma guerra desenvolvida a partir de conflitos contemporâneos. Tratava-se de julgar, purificar e salvar mortos. A despeito dos efeitos da passagem do tempo e da consolidação da Nova História francesa entre nós, responsável direta pela revitalização do estudo da história das religiões,[1] estes grupos ainda estão presentes nas turmas mais alentadas dos cursos de hoje. Tendo em vista o papel de educadores que se destina à maior parte deste público, cabem algumas reflexões sobre a visão que se tem dessa história no momento, seus fatores efetivos de atração, o conteúdo que pode ganhar em sala de aula e suas potencialidades enquanto fonte de reflexão sobre a história do passado e sobre os homens do presente que experimentam a historiografia em que aparece sistematizada.

Como medievalista, me ocuparei da religião cristã na Idade Média, tanto de seu conteúdo quanto das expectativas que os futuros educadores trazem para a sala de aula a respeito de sua história. Mais especificamente tratarei da História da Igreja e aqui, em uma sala de aula, os ânimos já se esfriariam, porque aquela parece sempre infinitamente menos interessante do que a História da religião. Parece-me que isso se deve essencialmente ao fato de que a História da religião, ao nos levar para além do campo da História do cristianismo ou da Igreja cristã, evoca uma multiplicidade de experiências sociais e humanas que é tomada em si mesma por cisão, crítica e oposição à história e à cultura cristãs. Neste caso, o nivelamento das experiências culturais interessa como fonte de posicionamento político. Então, mesmo que neste quadro amplo da História das religiões nos dediquemos à religião cristã, esta já parece receber de antemão, do próprio enquadramento, uma abordagem política e social mais vasta, que divise os níveis “erudito” e “popular” da experiência religiosa. Essa perspectiva merece duas observações.

Em primeiro lugar, desde pelo menos o século V, a história da Igreja está implicada em toda a história do Ocidente e dessa forma é bastante difícil e até mesmo pouco provável que existam limites homogêneos entre as experiências de fé cristã no período. Essas experiências dificilmente se contrapõem de forma clara. Em segundo lugar, pensando objetivamente, os documentos de que dispomos não nos levam tão longe quanto desejamos. Estes são, para qualquer que seja a modalidade de história que pretendamos realizar, fundamentalmente documentos eclesiásticos, ou seja, produzidos por homens comprometidos com a Igreja, em que pese a enormidade das modalidades destes compromissos. Assim, quando Bloch estuda a origem sobrenatural do poder monárquico inglês e francês, ele não declara se ocupar do que é específico, mas do que é comum naquela cultura religiosa, porque é até onde as fontes, pela sua natureza, lhe permitem ir. Atentar para nossa perspectiva de recusa à história da Igreja na Idade Média e às fontes para o estudo desse período é lutar contra a recusa daquele que é praticamente o único manancial informativo disponível. Buscar uma postura afirmativa diante da história da experiência religiosa do Ocidente durante a Idade Média é fundamental para chegarmos a um conhecimento mais preciso de nossa própria história. É essa recusa ao auto-conhecimento que está em cheque nos preconceitos em relação à História da Igreja tão bem exemplificados pela mixórdia desinformativa dos livros didáticos que anulam a oportunidade de reflexão sobre aquele que é o mais importante fenômeno cultural da história do Ocidente: a ascensão da autoridade da Igreja papal e a decorrente uniformização, imposição e extensão dos ritos, valores e autoridade cristãos. História essa que, melhor conhecida e reconhecida pelo estudante, sem dúvida teria papel importante na prática de uma observação mais complexa da experiência social dos homens no tempo, no questionamento dos valores e preconceitos contemporâneos e na crítica ao naturalismo que marca a linguagem com que o senso comum se refere ao que chama de História.

Por outro lado, as fontes medievais não permitem situar esse objeto para nós tão evidente: a religião. Na Igreja antiga, o termo religio era usado junto com sanctitas, studium e outros termos para traduzir o grego ascesis, passando na Idade Média a equivalente de observância monástica. De acordo com Bieler, apenas no final do século XII e XIII o termo começa a ser usado para um sistema de fé e culto.[2] De um ponto de vista mais amplo, Alain Guerreau aponta que o Contrato social de Rousseau foi “o ato de nascimento tanto da política quanto da religião, no sentido em que as entendemos, enquanto que Adam Smith fundava a noção complementar de economia (assim como a de trabalho). [...] Os pensadores das Luzes elaboraram uma síntese intelectual crucial, remodelando de alto a baixo a representação das funções sociais e sua articulação [...] Religião e propriedade eram dois ‘macroconceitos’ inteiramente novos, destinados a um só tempo a pensar e a fazer acontecer uma nova organização social: sua criação e sua adoção fizeram romper e desaparecer a ecclesia e o dominium; é o que chamo a dupla fratura conceitual, que tornava incoerente a síntese social anterior. Este último ponto é crucial; a empresa de desqualificação do passado estava no coração das Luzes [...] era em si mesma uma maneira de tornar impensável toda transformação endógena do sistema social medieval. O efeito foi tão profundo e durável que a oposição a este passado encerrado, permanecerá e permanece, um dos fundamentos maiores da legitimidade do sistema social contemporâneo“.[3]

Assim, seja pela natureza das fontes, ou pela integração das esferas do mundo própria à cultura da época, a história medieval daquilo que conhecemos modernamente como “religião” não pode ser feita, fora dos domínios da História da Igreja, estando a eles subordinada.

Enquanto hoje a História da Igreja cede à História das religiões mediante a seu recuo nos rumos tanto da vida pública quanto íntima, a segunda progride ao sabor da multiplicidade que toma o lugar da falência institucional, modificando seus quadros sem aboli-los por completo. Mas, na Idade Média, a situação é diferente. A Igreja cristã constitui um quadro institucional de inclusão fundamental. Mas esse quadro é heterogêneo, constituído por personagens e idéias que têm, entre si, relações de autoridade pouco claras, onde medeiam conflitos e intransigências, e onde a unidade vêm da força da história comum mais do que de uma organização unívoca dos princípios reguladores das práticas e conceitos da fé.

A visão paternalista, infelizmente ainda tão cara nos trópicos, também responde pela adoção da improvável cisão entre história da religião e da Igreja quando se trata da Idade Média. Tal visão, movida pela suposta irracionalidade que preserva o objeto, o fiel, diante do sujeito, a Igreja. Tem-se, assim, a impressão de se atingir um resultado mais justo ao se valorizar vítimas e culpados, dominados e dominantes, passando para o segundo plano a observação detalhada dos termos envolvidos, submetidos a uma apreciação temporal rigorosa objetivando a determinação de relações e de suas razões. Assim, a história da Igreja acaba abordada correntemente como uma história uniforme em seu domínio social dado e imutável em seus propósitos.

No “tudo dito e claro” da história da Igreja viceja uma recusa ao direito alheio de exercício do espírito crítico a respeito de uma questão que lhe é muito próxima, deixando as portas abertas para o partidarismo simplista e a cooptação passiva. Por vezes, a recusa parte do educador, seja porque ele mesmo é um homem de fé e confunde a Igreja cristã e sua deidade, seja porque não tem fé e quer confundir a Igreja e todo e qualquer poder e opressão. Assim, e defende uma visão monolítica da Igreja, dotada de uma consciência unívoca orientada para a manipulação do pensamento das “massas” e a exploração das riquezas materiais por elas produzidas. Delineia-se um perfil que por si só constrói a mais crédula imagem da Igreja, como realidade que irrompe miraculosamente na história, tão madura quanto Palas brotando da cabeça de Zeus. Quanto a seu papel ideológico, ele é construído seja pelas autoridades que cedo se estabelecem no corpo da Igreja, seja pelas circunstâncias que oferecem oportunidade de aproximação e afastamento das diversas forças sociais. É por isso que, no senso comum, do qual participam muitos educadores, a história da Igreja na Idade Média simplesmente não existe. Ou seja, é uma desconstrução. Para o bem e para o mal, um ocultamento com o qual o educador precisa passar a lidar. A história da Igreja tem sido mais um alvo de contendas ideológicas – mesmo que o pleito seja o direito à desideologização porque o efeito é a desistoricização do objeto – do que um alvo da reflexão comum.

Pelo que dissemos acima, a história atual da Igreja parece colocar em evidência um problema capital para o historiador de qualquer período, que é a forma como a sua contemporaneidade, fora das teses acadêmicas, pensa a história e, por conseguinte, de que forma o historiador, que entre nós é fundamentalmente um educador, deve investir suas forças para estabelecer um diálogo vivo – mesmo que inelutavelmente restrito - com a sociedade.

Nosso objetivo é argumentar a favor de uma história da Igreja na Idade Média que respeite suas especificidades históricas amplas, considerando sua dinâmica temporal à luz das particularidades culturais que a constituem e dos meios políticos e sociais com os quais interage, sem deixar de lado, sem absolutizar o seu papel ideológico. Para tanto, apresentaremos algumas considerações gerais a respeito da complexidade da Igreja na Idade Média central, o peso desse período no estabelecimento de um quadro radicalmente novo em sua história e as especificidades básicas que marcam seu estabelecimento no mundo a partir do relacionamento com a sociedade laica no mesmo período.

Há historiadores que preferem valorizar o comum em sua abordagem da Idade Média. Mas, se esse procedimento é uma abstração em relação a todos os períodos da história o é ainda mais em relação à Idade Média. Assim, o particularismo que marca o período precisa ser levado em conta seriamente. A Igreja pode ser evocada como elemento ordenador e uniformizador na medida em que, de fato, pelo menos formalmente, desde o século V todos no Ocidente são marcados pela presença e pela experiência cristã. No entanto, de que Igreja tratamos? Aí, nossos modelos pós tridentinos falam mais alto do que os fatos. Evidentemente que os grandes bispos ocidentais, homens ilustres e ilustrados, mantiveram sempre entre si um importante contato epistolar e mesmo pessoal; no entanto, ele era irremediavelmente limitado no contexto da cristandade. Esses contatos eram profícuos para relações dentro de âmbitos sociais restritos, mas não contribuíam para a conformação imediata de uma fé, de uma liturgia, de uma doutrina e pelo respeito a uma autoridade comum. Obedeciam à sociabilidade do coração, sempre dependente dos critérios de proximidade. Esses contatos, de grande relevância para a história da Igreja tiveram uma projeção lenta no âmbito da cristandade e da fé cristã. Esta carecia, para ter o perfil que queremos lhe imprimir desde sempre, de uma organização político-religiosa que simplesmente não era pretendida antes do século XI, coerentemente ancorada em uma força de coerção que, por princípio, não poderia de per se, dispor, e que, portanto, dependia de relações com as esferas de poder leigo. Uma tal Igreja realizou-se apenas a partir da segunda metade do século XII e por um período efêmero de tempo, embora capital para o estabelecimento de modelos políticos, jurídicos, culturais e ideológicos que marcam a história ocidental por séculos. Dessa forma, a Igreja também é, a despeito da condição favorável de seu “internacionalismo”, uma instituição ancorada em localismos, aos quais se molda com uma naturalidade para nós desconcertante, porém, historicamente coerente com os interesses e possibilidades dos homens que a constituíam enquanto instituição e corpo místico.

Falar da Igreja antes do século XI nos obriga ao aprendizado de um vocabulário que, por si só, já nos aproxima das realidades evocadas acima. Hoje temos muito claro o que é um leigo e o que é um clérigo. Mesmo essa distinção elementar não se impôs de maneira marginal à história e, na Idade Média, ela era muito mais complexa. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o monasticismo aparece como um tipo de vida religiosa que busca primeiramente na solidão uma forma de contato íntimo com Deus. Dessa maneira, distanciava-se do papel fundamental dos líderes da comunidade cristã que dizia respeito aos cuidados com o rebanho. Paulatinamente, esse papel foi sendo ligado a formas particulares de entrada na via religiosa que ilustravam a separação daqueles religiosos que conhecemos como sacerdotes. Assim, em relação ao monge, o sacerdote tinha ou adquiria uma outra peculiaridade, relacionada ao recebimento e à capacidade de oficiar a transmissão de sacramentos. Ele era ordenado e, como tal, também habilitado ao trato com as coisas consagradas: as sés arcebispais, os arcebispados, as paróquias ou as capelas com altar e pia batismal. Enquanto o sacerdote era ordenado, seu superior nos assuntos da Igreja, o bispo, era sagrado para esta função. Portanto, embora possamos dizer que, pelo cuidado com os fiéis, o sacerdote e o bispo têm funções seculares, porque diretamente envolvidas com a organização da Igreja e com o cuidado das almas, eles são os únicos que podem ser chamados “eclesiásticos”. A esses sacerdotes - e apenas a eles - é correto designar “padres”, “clérigos” ou “presbíteros”. Os monges, por sua vez, não são clérigos, mas homens leigos. Em comum com clérigos há o fato de serem dedicados exclusivamente à vida religiosa podendo ambos, dessa forma, ser chamados de “religiosos”. Essa distinção não é vazia de implicações relativas à autoridade abacial e bispal que tendem a se confrontar e, a partir do século X, a buscar o assentimento papal para a concretização de seu desejo de autonomia frente não apenas aos poderes senhoriais laicos, mas também eclesiásticos, dando destaque à autoridade pontifícia.

O estatuto religioso dos monges não derivava necessariamente do assentimento de autoridades eclesiásticas, mas do reconhecimento dos cristãos da excelência de seu modo de vida. Podemos observar, dessa forma, como a inclusão nos quadros diferenciados da Igreja é relativa, pouco clara e permissiva a estruturas de poder e costumes diversos. Com a reforma promovida por Bento de Aniane no território do Império entre os séculos VIII e IX, a regra beneditina é paulatinamente imposta à maior parte dos mosteiros, aprofundando a institucionalização da vocação monástica. A regra beneditina previa uma conversatio morum do novo monge em três partes: estabilidade (o monge não podia abandonar sua comunidade a não ser em caso de extrema necessidade e com a autorização de seu abade), conversão dos costumes (pobreza e celibato) e obediência. A clericalização, porém, viria a acontecer apenas lentamente entre o final do século XI, com o triunfo do modelo litúrgico cluniacense[4], e a reforma gregoriana que estimulou a clericalização do meio monástico.

Até a reforma gregoriana, cada sé episcopal era autônoma. Estas sés “decidiam as formas de governo eclesiástico em assembléias regionais de vários bispos (concílios ou sínodos) e podiam assumir decisões inclusive contrárias às de Roma ou à de bispos de outra região. Isso explica porque a vida dos cristãos podia ser diferente em diversas zonas da Europa, porque, por exemplo, na primeira Idade Média em algumas regiões os clérigos podiam casar-se e em outras não, em algumas os bispos podiam combater e em outras não”.[5]

Soma-se a isso o fato de que a autoridade bispal, mas também a abacial, correspondiam às forças políticas leigas locais, lançando a Igreja em contendas bastante extensas. Apesar disso, não se pode pensar a Igreja como mero apêndice da aristocracia. A autoridade simultaneamente política e religiosa era disputada do nível local ao imperial entre senhores leigos e eclesiásticos e entre potentados e casas religiosas.

Uma vez que entrar para a religião nos séculos XI e XII implicava em um modo de vida mais do que em assumir um estatuto legal, não é inteiramente claro como alguém se tornava um monge: “no decorrer do século XII o princípio de uma só profissão e confissão (ou consagração) estabelece junto com um voto que liga o monge tanto a seu mosteiro como a seu abade, como um vassalo a seu senhor. O que na alta Idade Média tinha sido primeiramente um compromisso com um modo de vida e uma promessa para com Deus então se torna uma entrada em um status ligado a obrigações para com os homens. Tanto cavaleiros quanto monges tenderam a fechar fileiras contra a variedade e mobilidade da sociedade no século XII. Como os cavaleiros amalgamados em uma ordem com votos e cerimônias de entrada, assim as formas exteriores de monasticismo foram institucionalizadas enquanto a vida interior dos monges cada vez mais acentuava uma relação direta entre o indivíduo e Deus.”[6]

Os contemporâneos às vezes confundiam clérigos regulares[7] e cônegos com monges. As comunidades de cônegos freqüentemente eram indistinguíveis das casas de monges, especialmente quando o superior era chamado de abade em lugar do mais usual preboste ou quando a casa era referida por mosteiro ou abadia. Durante os séculos X e XI as diferenças foram ficando nebulosas na medida em que mais monges eram ordenados e mais cônegos adotavam regras semelhantes às dos monges.

As ordens mendicantes aparecidas no início do século XIII vieram a realizar de modo mais eficiente, nos quadros da reforma, a aproximação entre os estatutos dos monges e dos clérigos e estabelecer melhor os domínios das autoridades religiosas. Procuravam aplicar, mais próximos aos leigos, o ideal de vida monástico tal qual o interpretavam e realizar a pregação reservada aos sacerdotes. Diferentemente de seus antecessores, vão se definir não enquanto monges, mas “frades”, “porque sua característica não era obedecer a regras monásticas (que sugeriam vida de oração fora do mundo) mas a novas regras baseadas no compromisso sócio-religioso no mundo.”[8]

Como a realidade do historiador está ligada às fontes, a documentação de que dispomos é primeiramente a da Igreja, e fala de sua história e de seu ponto de vista. Acentua a significância disso o fato de que a Igreja é, na Idade Média, o que podemos chamar de única instituição englobante. Ou seja, se há uma instituição que tem poder e pretensão de interferir de maneira profunda no ordenamento da sociedade e em sua determinação, não é o Estado, mas a Igreja, que não o faz dentro da lógica de Estado[9] - e essa é uma das especificidades capitais da Idade Média que nos escapa porque rejeitamos a história da Igreja fora da perspectiva fabulosa, para o bem e para o mal. Os textos medievais não são repositórios de irracionalidade. Coube à literatura contemporânea a busca da expressão do “irracional” através da escrita. Na Idade Média a escrita é um instrumento comprometido com a comunicação objetiva mesmo que se objetive a fé. Um texto como o bíblico é lido com profunda objetividade, lastreado na comparação com o parecer das Autoridades. Daí não haver textos privados de fato. Os usos desses textos também não se dissociavam da fala, mas a fala buscava um conteúdo igualmente objetivo. A Idade Média não encerra uma civilização de analfabetos. Nela, a escrita tem um papel coletivamente reconhecido como importante e experimentado por todos, porque dependente desse conjunto. A escrita não é negada aos leigos, ela é reservada ao universo dos gestos que instituem, que instauram o que deve ser lembrado e relembrado segundo os grupos dominantes, mas também, em parte, segundo os interesses gerais de salvação porque tais coisas são reputadas ao campo do sagrado.

Assim, a sociedade precisa comungar no respeito, conhecimento e reconhecimento não da escrita, mas do escrito. Daí a importância dos modelos literários, narrativos, temáticos, retóricos. Porque a escrita serve a um tipo especial de lembrança: o reconhecimento. Assim, a civilização medieval pode ser considerada, em seu conjunto, uma civilização da voz, mas também da letra. As cartas são destinadas a todos e circulam amplamente. Quando o monge Abelardo escreve nas primeiras linhas de sua célebre Historia Calamitatum: “Os exemplos mais do que as palavras, muitas vezes exaltam ou serenam os sentimentos. Por isso, depois de algum conforto obtido pela conversação em tua presença, resolvi escrever ao ausente esta carta de consolação,”[10] ele adianta ao leitor o perfil de todo o texto, o gênero narrativo em que se insere e seu objetivo final de, através da contraposição entre o vício da inveja e a virtude da paciência, enaltecer um ideal de imitatio Christi que sustenta para além do modelo exemplar do próprio autor o de sua teologia. Assim, o tema cristão da oposição entre inveja e paciência ganha as dimensões do pensamento particular de Abelardo sem deixar de se inscrever na cultura medieval.

Da consideração do maravilhoso na experiência medieval não decorre que o homem do período se achasse alienado das realidades objetivas. Ele simplesmente não pressupunha tantas inexistências quanto nós. Sua concepção da realidade era mais afirmativa do que a nossa. Isso permitia, ao contrário dos dogmas do senso comum, o cultivo da dúvida. E assim foi até o início do movimento de reforma que de fato estabeleceu uma orientação mais precisa da experiência cristã, educando e moralizando o clero primeiramente. Mas o clero resistiu. Então falamos de um processo temporalmente longo. De trezentos, talvez seiscentos anos.... das reformas monásticas do século XI até a significativa condenação das teses pseudo-averroístas na Universidade de Paris pelo bispo da cidade, Etienne Tempier, em 1277, que favoreceu a proliferação das idéias dos mendicantes, sobretudo franciscanos, e uma objetivação moderna da percepção da realidade. Esta, com o tempo, pôs abaixo a própria hegemonia da Igreja em termos políticos. Embora seu discurso tenha permanecido, proliferou, sendo apropriado diretamente pelos príncipes e reis de então.

A reforma da Igreja na Idade Média central foi um movimento multidirecional que atingiu praticamente todos níveis da cristandade e estabeleceu um novo momento de sua história e definição, passando pela reforma monástica, do clero e papal. Reformas que, de formas diversas, também acarretaram a mudança do perfil do laicado, do modo de vida da aristocracia – na orientação da guerra e sua penitencialização e no aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos do poder – ao do campesinato, através dos sacramentos sobretudo da confissão e da eucaristia, mas também do matrimônio.

A despeito da origem comum, os interesses da aristocracia eclesiástica não se identificavam estritamente com os interesses da aristocracia laica, o que faz com que sua história seja pontuada de conflitos pela hegemonia social. Mesmo quando essa aliança acontece de maneira firme, como durante o período carolíngio, não é isenta de conflitos como aqueles ligados às reiteradas e fracassadas tentativas de disciplinamento cristão do casamento no período – leia-se aliança – na aristocracia. Mas esses conflitos não abolem o terreno comum da fé e apenas mostram que este não é nivelado como por vezes se supõe. É bem conhecida a história de como São Bernardo salvou a casa religiosa fundada pelo abade Robert de Molesmes em Citeaux. Quando o jovem Bernardo de Fontaines chega às suas portas, esta agonizava, materialmente asfixiada pelo pântano que materializava o ideal de fuga do mundo dos novos monges ali reunidos. Bernardo ali entra, acompanhado por mais trinta jovens por ele convertidos, praticamente arruinando a aristocracia local, inclusive sua própria família – seus sete irmãos, incluindo uma irmã, acabariam por se tornar monges. Mas de que ruína se trata? Da ruína sacrifical. Ninguém então desconhece os danos materiais e as perdas que as doações humanas e materiais representam, mas esse sacrifício tem uma contrapartida imaterial. Falamos aqui não de mentalidade, mas primeiramente de sistema de valores.

Alain Guerreau mostrou que o poder da aristocracia medieval não derivava da extorsão daquilo que produzia o campesinato, e sim das trocas permanentes entre a aristocracia, através da guerra, do acesso às unidades dentro das quais essa produção tinha expressividade, os largos senhorios, onde se exercia simultaneamente poder sobre homens – não apenas camponeses, mas um vasto espectro de dependentes - e terras.[11] O destino das exações senhoriais desenha um ponto de conflito na medida em que aquilo que se produz está inserido no sistema de dádivas entre os homens e Deus em cujas trocas o papel de mediação é parcialmente disputado, até o início da Idade Média central, por guerreiros e sacerdotes.[12] A monopolização, pela Igreja, das dádivas ultraterrenas - um processo lento de meandros ainda mal conhecidos - se impõe no contexto de modificação do sistema de valores em cuja liberação ela colabora de maneira evidente quando, a despeito da condenação da usura, empresta e permite a concretização na cultura cristã de um lugar alternativo no Além, para a purgação das faltas ligadas aos novos ofícios comerciais e assim a novos esquemas sociais que ela pretendia e, mais que isso, precisava abarcar.[13]

Quando Guilherme da Aquitânia doa a São Pedro e, portanto, à Santa Sé, parte dos territórios por ele conquistados na região do Maconnais, ele evidentemente procura consolidar a posse desse território situado no limite oriental de suas conquistas através da presença física do mosteiro mas, sobretudo, por meio das relações pessoais e espirituais que através dele poderiam ser estabelecidas com as casas da aristocracia das regiões circundantes. Ao referir-se a si mesmo no texto da carta de doação como “por dom de Deus conde e duque” pretendia legitimar a autoridade sobre a Aquitânia que nenhum príncipe lhe havia legado, como era de direito, a partir do assentimento dos presentes aos termos da carta e do apoio perene dos monges, da nova casa de Cluny, manifesto através da presença eterna da memória do doador em sua liturgia. No entanto, naqueles tempos em que a autoridade imperial já desaparecera há pelo menos duas décadas,[14] quando os senhores locais se apossavam dos direitos reais de nomeação das autoridades religiosas – bispos e abades - o grande problema era a ingerência dos senhores sobre os domínios concedidos às casas religiosas. Nesse contexto, Guilherme abre mão dessa tradição e dá liberdade a Cluny ao declarar a abadia isenta de sua autoridade e da de seus descendentes e de qualquer outra casa leiga ou religiosa. Para assegurar essa liberdade, serve-se de argumentos espirituais e lança anátemas contra os supostos infratores. É nesse recurso, fundamentalmente, que está depositada a esperança de Guilherme e de Cluny. O gesto de Guilherme não pode ser entendido por completo se for descartada sua dimensão religiosa. Tratava-se de uma atitude de fé pessoal, mas que pressupunha a fé da sociedade. Gesto que correspondia à opinião de um segmento da aristocracia que aceitava o ideal de separação entre religiosos e leigos. Deveríamos desconsiderar que Guilherme era neto da piedosa Dhuoda, que, na obra dedicada a seus filhos, se esforçava justamente para promover neles a virtude da renúncia, a consciência de seu papel social junto aos pobres e a piedade da recitação cotidiana dos salmos em oração? É possível esquecer que Dhuoda empenhou seu filho a oferecer freqüentemente a eucaristia por todos os fiéis defuntos, gesto que viria a se tornar a função primordial de Cluny? Na carta de fundação, Guilherme alude ao “terrível julgamento”, ou seja, àquele individual que se segue à saída da alma do corpo Assim fazendo, ele afirmava indiretamente sua fé no hiato que separava a alma do juízo final e, portanto, se abria para a existência da purgação post mortem e para os sufrágios pelos mortos. Como não vê-lo envolvido, de fato, com uma forma devocional específica?

Ligado de maneira apaixonada à reforma da Igreja, Pedro Damiano, cardeal-bispo de Óstia, abraçou a causa cluniacense, em especial a celebração da festa dos mortos em 2 de novembro instituída por Hugo de Cluny em cerca de 1030 e logo difundida por todo o Ocidente. As repercussões dessa festa no âmbito das relações de poder estão longe de serem limitadas. Mesmo assim, devemos ver Pedro Damiano manipulando a fé dos ignorantes camponeses e aristocratas laicos a fim de melhor implantar o projeto de hegemonia papal? Ora, a reforma não nasce como oposição à sociedade, mas a favor de sua realização, segundo a concepção papal. Por sua própria origem, a Igreja não concebe sua autoridade fora da composição com a autoridade laica, em especial a do Imperador. Ela surge da necessidade de marcar a liberdade da Igreja em meio às relações de poder variadas do mundo leigo, daí ser fundamentalmente um esforço de separação e não de abolição de poderes. Mesmo assim, Pedro Damiano, o genial reformador, demonstra sua convicção na eficácia do culto e na festa ao pedir que ele mesmo, depois de morto, fosse beneficiado pelas missas e orações dos monges de Cluny por sua alma. Papas não escaparam a esse desejo de salvação cumprida após o óbito, como Damaso II, que em 1119 morreu e foi sepultado em Cluny III, inter crucem et altare post chorum.

Talvez as dificuldades para a abordagem sem paixões da história da Igreja estejam relacionadas ao crescente desinteresse pela história de nossa época. Quando o professor se arrisca a tratar sem historicidade uma instituição como a Igreja, nega ao aluno o exercício livre de seu senso crítico e, pior, a mascara diante presente porque é a ele que servem as invectivas jocosas e simplificadoras a respeito da constituição, funcionamento e alvos da Igreja. Reproduzindo o discurso anticlerical ou anticatólico conceituado, ele também histórico, uma sociedade se perde e outra é afirmada fora da dimensão histórica.

Notas

[*] Departamento de História – UNICAMP.

[1] O papel da “escola” dos Annales a esse respeito foi marcado sobretudo pela visão do estudo da religião como meio para se atingir a presença da maioria dos homens na história medieval e, portanto, das relações entre uma religião erudita e uma religião popular. Procurava-se “contornar” os documentos eruditos buscando neles uma cultura religiosa desviante ou outra, concorrente ou componente da cultura cristã. É bastante lembrarmos de três momentos: a publicação de Os reis Taumaturgos de Marc Bloch (São Paulo: Cia. das Letras, 1990), obra fundamental por muito tempo e um exemplo isolado em que a experiência religiosa é abordada do ponto de vista de seus elementos comuns; as sugestões de Jacques Le Goff em “Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia” – artigo reaparecido em Para um novo conceito de Idade Média, Lisboa: Estampa, 1988 - onde o autor, utilizando as obras dos folcloristas do século XIX e início do século XX, propõe para a Idade Média até o século XII o modelo da não coincidência entre clivagem social e cultural, estabelecendo uma reavaliação da concepção tradicional de oposição sócio-cultural entre o erudito e o popular. Por fim, na esteira das considerações de Le Goff, os trabalhos que Jean-Claude Schmitt publicou nos anos 70 do século XX, precisando, a partir da mesmas fontes e métodos com os quais trabalhara Le Goff, os domínios do que chamavam de folclórico, e que marcou uma fase de profundo debate, dentro da revista Annales, entre os estudiosos da chamada “religião popular” na França e Alemanha.

[2] Apud Giles CONSTABLE, The reformation of the Twelfth Century. Cambridge/New York: Longman, 1995, p. 25

[3] Alain GUERREAU. L’avenir d’un passé incertain. Quelle histoire du Moyen Age au XXIe. siècle? Paris, Seuil, 2001, pp. 32-34.

[4] Os cluniacenses estabeleceram um marco na clericalização do monacato devido às necessidades amplíssimas geradas por seus sacerdotes pela difusão da liturgia dos mortos – quando, no auge de sua composição, Cluny, no início do século XII contava entre 300 e 400 monges, eram celebradas nessa casa monástica a memória de 18 mil mortos - para a qual era preciso haver dentro do mosteiro, por um longo tempo, sacerdotes disponíveis.

[5] Giuseppe SERGI, La Idea de Edad Media. Barcelona: Crítica, 2001, pp. 94-95.

[6] Giles CONSTABLE, The reformation of the Twelfth Century. Cambridge/New York: Longman, 1995, pp. 19-20

[7] Os cônegos podem ser leigos ou clérigos – o que são de fato na maioria das vezes – e seguem uma regra religiosa diferente da monástica, uma regra canônica voltada para a assistência e a pastoral como a de Santo Agostinho, que também estabelecia a vida em comum.

[8] Giuseppe SERGI, La Idea de Edad Media. Barcelona: Crítica, 2001, p. 93.

[9] É preciso lembrar que uma das características fundamentais da Idade Média é a manutenção de um particularismo geral que não se torna negligenciável senão no final da época moderna. Embora a Igreja papal pretenda avançar no processo de clericalização da sociedade a partir de século XI e reconheçamos a existência de uma monarquia papal no século XII, essa centralização tem efeito efêmero e suas conseqüências culturais, de vida bastante longa, se cristalizam apenas na época moderna no contexto da Igreja pós-tridentina.

[10] ABELARDO e HELOÍSA, Cartas. Zeferino ROCHA (ed.), Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p. 49.

[11] Alain GUERREAU, O feudalismo. Um horizonte teórico. Lisboa: Ed.70, 19s/d, pp. 217-244.

[12] Georges DUBY, Guerreiros e camponeses. Lisboa: Ed. 70, 1980, pp. 61-86.

[13] Georges DUBY. As tres ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Ed 70, 1982 e Jacques LE GOFF, O nascimento do purgatório. Lisboa: Ed. 70, 1993.

[14] A fundação de Cluny, em 910 ou 911, acontece 21 anos após a morte de Carlos, o Gordo, último imperador carolíngio que pretendeu governar o império.