Ensino Religioso na Escola Pública – Uma Mudança de Paradigma

Janaína Camilo[*] []

Resumo

Durante o ano de 2003 foi desenvolvido o projeto “Ensino Religioso na Escola Pública do Estado de São Paulo”, que objetivou oferecer aos professores de ensino religioso a oportunidade de discutir propostas que viabilizassem o ensino religioso na Rede Oficial de Ensino, tendo como caminho norteador as premissas estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/96), especialmente aquela que veta o proselitismo religioso na sala de aula. Assim, tanto durante a realização de seminários temáticos, quanto nas várias ações de capacitação dos professores, os debates evidenciaram que não podemos ensinar uma religião, mas religiões, tendo como conceitos éticos básicos o respeito à diversidade e o exercício da tolerância. Este artigo tem como proposta sugerir leituras teóricas sobre alteridade e representação e, também, propor atividades destinadas ao desenvolvimento desses conceitos em sala de aula, especialmente através de projetos interdisciplinares.

Abstract

In 2003, a project entitled “Religious Teaching on Public Schools of the State of São Paulo” gave teachers the opportunity to discuss proposals for Religious Education in public schools. The discussion was stimulated by the “Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/96)”, a Brazilian law which includes the prohibition of proselytizing in the classroom. The main result of several debates was that Religious Education in public schools must avoid teaching of only one single religion but has to refer to many religions while maintaining a spirit of tolerance and openness towards religious diversity. The article calls for a revision of the concepts of alterity and representation and suggests their didactical realization in the classroom especially in the context of interdisciplinary projects.

O contexto

O projeto “Ensino Religioso na Escola Pública do Estado de São Paulo”, desenvolvido ao longo do ano de 2003 através de uma parceria entre a Secretaria Estadual de Educação e a Unicamp, significou a oportunidade de discutirmos propostas que viabilizassem o ensino religioso na Rede Oficial de Ensino, tendo como caminho norteador as premissas estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, especialmente aquela que veta o proselitismo religioso na sala de aula.

Assim, o que fizemos foi discutir e propor práticas educacionais que viabilizassem o exercício da tolerância e o respeito à diversidade, haja visto que o lugar da escola pública permite a congregação de diversas religiões. E foi essa multiplicidade cultural que passou a ser o ponto fundamental para encaminharmos as propostas destinadas a desenvolver as aulas de ensino religioso, o que, nomenclatura à parte, objetivava alcançar os preceitos de que “as religiões são parte importante da memória cultural e do desenvolvimento histórico de todas as sociedades. Desse modo, ensinar religiões (e não uma religião) na Escola não deve ser feito para defesa de uma delas, em detrimento de outras, mas discutindo-se princípios, valores, diferenças e tendo em vista – sempre – a compreensão do outro.”[1]

Essa proposta não se restringe ao ambiente da sala de aula, que pode ser o começo de uma transformação que se pretende social e, daí, a importância de viabilizarmos discussões também junto à comunidade. Entretanto, a experiência mostrou ser essa uma longa jornada, que exige, até mesmo, uma mudança de paradigmas. A ela chegamos por caminhos muitas vezes tortuosos, embora necessários, para fazer frente aos acontecimentos mundiais e mesmo àqueles do nosso cotidiano, muitos dos quais assentados em valores de intolerância, embora, à primeira vista, pareçam girar em torno de questões religiosas, mas que expressam a urgência de compreendermos e exercermos o respeito ao Outro. Desse modo, é salutar e importante debater questões relativas à alteridade para entendermos o limite entre o que é e o que não é permitido; pois, lembrando Locke – mesmo que seus escritos tenham por contexto o século XVIII -, a liberdade não consiste em se fazer tudo o que nos apraz, mas o que as regras idealizadas por indivíduos que vivem em sociedade determinam, e isso quer dizer que o ser não deve se colocar em “Estado de Guerra” – isto é, em estado de inimizade e destruição – em relação ao outro. Para aqueles que transgridem as leis do “Estado de Sociedade” são estabelecidas punições, porque o castigo é um exercício de racionalidade.[2] Com isso, quisemos deixar claro, desde o princípio, que a prioridade deve ser, sempre, o direito à vida de cada indivíduo e a de todo o conjunto social.

O projeto foi desenvolvido em duas partes. Na primeira, o encontro com os ATP’s (Assistentes Técnicos Pedagógicos) e Supervisores de Ensino, destinado à apresentação e debates sobre os cinco textos elaborados pelos professores e pesquisadores da Unicamp. Em seguida, foi desenvolvida uma ação de extrema importância, envolvendo diretamente os professores da rede pública de todas as Diretorias de Ensino do Estado e uma equipe composta de quatro capacitadoras, integrantes do programa de pós-graduação em História da Unicamp. Esses encontros representaram a compreensão de que os educadores devem, primeiramente, praticar entre si o exercício da tolerância para, depois, serem promovidas ações e atividades que levem os alunos à mesma prática, especialmente visando sua continuidade para fora dos muros da escola.

Foi nessa segunda etapa do projeto que o trabalho ora apresentado foi desenvolvido, sempre com vistas a trocar experiências, sem a pretensão de ensinar religiões, porque a principal crença que abraçamos foi acreditar que o conteúdo que todos nós temos pode ser ampliado e desenvolvido na pesquisa bibliográfica, pois os livros são e vão continuar sendo os principais aliados de todos os professores, independentemente do nível de ensino em que estiverem atuando. Além de serem mediadoras das discussões, o papel das capacitadoras também tinham por papel o esclarecimento de possíveis dúvidas acerca dos conceitos trabalhados nas monografias produzidas para esse projeto Cada viagem produziu uma nova descoberta e encontros proveitosos, sobretudo, do ponto de vista das idéias metodológicas a serem aplicadas para se alcançar os objetivos propostos, sendo o desenvolvimento de projetos interdisciplinares o mais vibrante, pois foi diante deles que muitas idéias foram compartilhadas, na busca de solucionar problemas, desde a evasão dos alunos na disciplina até a falta de motivação que, na maioria das vezes, contagia aqueles que freqüentam as aulas de Ensino Religioso.[3]

Com relação às dúvidas conceituais, a mais freqüente disse respeito às representações, tema fundamental para discussão das questões propostas pela História Cultural. Diante das indagações e colocações dos professores, discutimos problemas trabalhados por autores como Roger Chartier, que, a partir do dicionário de Furetière, demonstra a ambigüidade desse conceito, que pode tanto registrar a ausência quanto a presença de um objeto através da sua exibição simbólica por outro elemento: “a imagem é presente e o objeto ausente”.[4]

Ainda sobre o dinamismo da cultura, Stuart Hall escreveu que o sujeito sociológico é formado por uma mélange de significados, valores e símbolos da sua essência interior com os mundos culturais externos. O resultado é a necessidade de pertencer, “de alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural”.[5] O desenvolvimento da noção do ser sociológico é a premissa da pós-modernidade, um momento em que o sujeito questiona e é questionado sobre a sua identidade. Segundo Hall, se pensarmos que a nossa identidade é unificada desde o nascimento até à morte, e se pensarmos que ela é segura, completa e coerente, é porque construímos uma história confortante ou fantasiosa de nós mesmos.[6]

Entretanto, para Carlo Ginzburg, esse conceito de representação é um “aborrecido jogo de espelhos”, sendo mais interessante estudá-lo a partir dos seus significados ou, até mesmo, do mimetismo. Assim, a representação pode estar também nas idéias, nas palavras e nas coisas de que se utiliza para construir algo ou alguém, o que inclui também o poder.[7] Com essas definições buscamos exemplos a partir das propostas das monografias, tentando extrair daí a compreensão, por exemplo, das imagens e textos sagrados que devem ser analisados a partir do período em que foram concebidos, já que “nenhuma experiência religiosa pode ser objeto de análise enquanto permanecer oculta ou subjacente. Os usos das linguagens – políticas, científicas, religiosas, morais, estéticas, filosóficas e outras – são carregados de propósitos variados, através dos quais as experiências, individuais e coletivas, são descritas e interpretadas”, pois dependem do contexto em que são criadas e que podem variar, porque “é preciso entender cultura como um conjunto dinâmico, sempre em transformação.[8]

E o seu corpus é determinado pelas várias formas de linguagem: falada, escrita, desenhada, televisionada; enfim, são estruturas que podemos transportar para a dinâmica da sala de aula e que podem servir como mecanismos para motivar o aluno a conhecer outras culturas e a praticar o exercício da tolerância, que tem como componente básico o respeito ao diferente.

Durante os encontros com os professores do Estado, muito se debateu sobre a intolerância religiosa no Oriente, um tema muito presente em seus debates com os alunos, os quais, bombardeados pela mídia (tantas vezes tendenciosa), tornam-se propagandistas de idéias intolerantes. Nossa compreensão, porém, foi a de que isso acontecia pela falta de informação, o que só aumentou a importância desse projeto e destacou o papel dos professores da rede pública, pois uma de suas responsabilidades é colocar em discussão informações, e não determinar valores aos alunos. Sobre esse papel tendencioso da mídia, falamos com os professores a respeito do escritor Edward Said, que escreveu que o mundo eletrônico pós-moderno reforçou o estereótipo do Oriente “misterioso” - um discurso, segundo ele, depressivamente pequeno sobre essa sociedade, razão pela qual a reação dos árabes e islâmicos a tal visão é extremamente politizada, quase áspera.[9]

Edward Said, em o Orientalismo, estuda a construção do Oriente pelos ocidentais, tendo como premissa norteadora a discussão sobre representações, inserida em estudos sobre a cultura Oriental, por ele denominados de orientalismo, que seria a exterioridade do orientalista, do poeta ou erudito, que “faz com que o Oriente fale”.[10] Os orientalistas descrevem o Oriente, tornando os seus mistérios simples para o Ocidente. “Eles nunca se preocupam com o Oriente, a não ser como causa primeira do que ele diz. O que ele diz e escreve, devido ao fato de ser dito e escrito, quer indicar que estes estudiosos estão fora do Oriente, tanto existencial como moralmente. O principal produto dessa exterioridade é, claro, a representação.”[11]

Essas representações são, na verdade, carregadas de estilos, figuras de linguagem, cenários, mecanismos narrativos, circunstâncias históricas e sociais; portanto, não são invisíveis e nem descrições fiéis, originais e “naturais” do Oriente.

Assim, diante dessas premissas, a representação não é “verdade”, mas representação daquilo que é exterior àquele que produz. Daí a importância da linguagem, que, segundo Said, “é um sistema codificado, que emprega muitos dispositivos para exprimir, indicar, intercambiar mensagens e informações, representar e assim por diante”.[12] Por isso, as representações do mundo social são determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.

Não podemos deixar de observar que a investigação de Said também se completa com as afirmações de Ginzburg, principalmente quando este autor busca a construção feita sobre o Oriente no próprio significado da palavra orientalismo, que é expressão cultural. Assim, ao pensarmos sobre a identidade cultural como uma construção, um discurso ou “uma comunidade imaginada”, e quando lemos sobre as representações que construíram o Oriente e o discurso sobre o Ocidente, é possível indagar sobre se o que nos propomos a estudar não seria a busca pela nossa identidade, que aqui se revela pela multiplicidade dos lugares sobre os quais falamos.

O ponto central desse debate teórico é, obviamente, filtrá-lo para torná-lo compreensível aos alunos, esclarecendo-lhes que as práticas e os discursos racistas sobre o “outro” estão presentes em vários lugares e diferentes épocas, porque aquele que é diferente sempre foi alvo de estranhamento. Por isso, nossas propostas metodológicas e estratégicas para desenvolver as ações de capacitação incluíram sugestões e orientação para se trabalhar em sala de aula obras literárias, filmes, manchetes jornalísticas e imagens, buscando-se assim demonstrar as representações que se constroem sobre o diferente, pois “conhecer é saber”,[13] ou seja, o “bem ou o mal” têm várias formas, e não se faz guerra para combater o mal, pois, ao contrário disso, com a guerra, ele é reproduzido e ampliado.

Projetos Interdisciplinares: Propostas de Leituras e Atividades

Dentre as propostas relativas aos projetos interdisciplinares, que permitem o trabalho em conjunto de quantos professores sejam necessários e com variados recursos metodológicos, selecionamos para este artigo a proposta de se trabalhar a disciplina de Ensino Religioso com a Matemática. O professor da primeira disciplina orientaria os alunos a fazerem uma entrevista dentro da sala de aula, para saber quantas religiões estão ali presentes. O segundo professor ensinaria os alunos a transferirem os dados coletados para gráficos.

Essa atividade, que pode ser introdutória para se trabalhar o tema das religiões presentes no espaço escolar do aluno, pode dar conta do que se pretende com a proposta do projeto, já que é possível começar por aquelas religiões mais próximas de sua realidade social. Por fim, o resultado dos trabalhos pode ser apresentado à comunidade em feiras culturais que fazem parte do calendário escolar, sendo, por conseguinte, uma maneira de romper com a imagem do professor de Ensino Religioso como uma espécie de corruptor das tradições familiares.

Foram muitas as sugestões,[14] mas não podemos nos esquecer de que o ambiente de trabalho em questão era o espaço da escola pública; por isso, foi preciso que pensássemos também em estratégias para a aquisição dos materiais necessários para o desenvolvimento dos trabalhos: filmes, livros e transporte, para possíveis visitações, o que poderia ser viabilizado, por exemplo, por meio de barracas nas festas juninas ou em programações promovidas pela escola junto à comunidade, específicas para angariar fundos destinados a esses projetos educacionais.

Homens Superiores versus Homens Inferiores

A respeito de temas específicos como, por exemplo, o Índio, propusemos que se trabalhasse a Cosmologia indígena a partir de leituras de mitos que expliquem as suas visões sobre a origem da Humanidade. Uma atividade que pode ser trabalhada a partir da associação dos professores de Português, História, Geografia e Artes. Para sustentar a proposta, apresentamos em várias diretorias algumas transparências a respeito de uma visão do índio sobre a existência do Mundo, segundo a qual existem quatro cantos: o fogo, a água, a terra e o ar. Trata-se de um mito Tupi-guarani cuja apresentação fez emergir um rico debate sobre a questão das representações indígenas e que podem ser trabalhadas com os alunos: “O criador, cujo coração é o Sol, tataravô desse Sol que vemos, soprou seu cachimbo sagrado e da fumaça desse cachimbo se fez a Mãe Terra. Chamou sete anciães e disse: ‘Gostaria que criassem ali uma humanidade’. Os anciães navegaram em uma canoa que era como uma cobra de fogo pelo céu; e a cobra-canoa levou-os até a Terra. Logo eles ali depositaram os desenhos-sementes de tudo o que viria a existir. Então eles criaram o primeiro se humano e disseram: ‘Você é o guardião da roça’. Estava criado o homem. O primeiro homem desceu do céu através do arco-íris em que os anciães se transformaram. Seu nome era Nanderuvuçu, o nosso Pai Antepassado, o que viria a ser Sol. E logo os anciães fizeram surgir das Águas do Grande Rio Nanderykei-cy, a nossa Mãe Antepassada. Depois que eles geraram a humanidade, um se transformou no Sol, e a outra, na Lua. São nossos tataravôs.”[15]

Paralelamente a isso, as leituras propostas aos professores foram, principalmente, sobre alguns autores que apresentam em seus escritos pensamentos de filósofos iluministas acerca da imagem que se construía do homem americano que, por não pertencer ao que se apresentava como normal no social, cultural e visual, causou tantas polêmicas nas discussões filosóficas na Europa. Daí surgiram teses que procuraram dar sustentabilidade teórica para o preconceito racial que inferiorizava o índio em relação ao branco superior, com o que se tentava justificar a escravidão indígena.[16]

Nesse ambiente, que revela as ambigüidades do mundo civilizado europeu sobre o selvagem americano, destacamos Antonello Gerbi,[17] que desenvolve em sua obra um levantamento sobre a visão construída por alguns filósofos e naturalistas acerca do homem habitante do “Novo Mundo”. Uma jornada histórica que vai desde o século XVIII até o início do XX. No 1º capítulo, Gerbi faz um levantamento das teses buffonianas, formadas no século XVIII, que caracterizavam os seres humanos do Novo Mundo como “poucos e débeis”, por ter o homem americano se submetido ao controle da natureza, dificultando, assim, o desenvolvimento das espécies animais e o aperfeiçoamento das raças domésticas. E, por sua passividade, o homem é comparado aos outros animais – “apenas primus inter paris”.[18] Segundo Gerbi, as observações de Buffon sobre a América assentavam-se sobre o “sistema de geração espontânea”, que compreendia a natureza americana como uma oscilação entre a “imaturidade” e a “decadência”, sendo “as espécies mais vis, mais abjetas, mais minúsculas” aquelas que se multiplicam “com mais medonha fertilidade”.[19] Sentenciando a obra Robinson Crusoe, encontrava-se De Pauw, um abade filósofo prussiano e enciclopedista típico, que julgava o homem em estado natural um bruto, já que a perfeição só pode ser alcançada na sociedade. “O maior metafísico, o maior filósofo, abandonado durante seis anos na ilha de Fernandez, se tornaria embrutecido, mudo, imbecil e nada conheceria em toda a natureza”.[20]

Mais radical do que Buffon, De Pauw percebia os americanos como selvagens que negavam qualquer forma de civilização; eram como “animais imaturos”, não sendo, portanto, uma criação, e sim uma “degeneração”.[21] Para De Pauw, segundo Gerbi, os americanos eram desprovidos de qualquer sentimento, força física e inteligência “eram como bebês raquíticos, irreparavelmente indolentes e incapazes de qualquer progresso mental”.[22] No tocante à escravidão, Gerbi cita a tese de Aristóteles (Espírito das leis, XV, 7 – 8; XVII, 2), que associava o clima à liberdade ou à escravidão, ou seja, enquanto exaltava a liberdade que prosperava nas áreas de clima frio, considerava que os habitantes de regiões quentes possuíam uma predisposição à escravidão. Nesse sentido, os índios do Novo Mundo deviam ser duplamente escravos por natureza: por habitarem uma região tórrida e por serem fortes, segundo o modelo de servos natos de Aristóteles.[23] Por essa via de pensamento, a América seria incapaz de gerar homens livres. Sua inferioridade era intrínseca.

Em O Novo Mundo, Antonello Gerbi apresenta as variáveis em torno das descrições dos índios americanos. Uma série de imagens delimitadas por um determinado período histórico, desde as teses de Las Casas, Aristóteles e Sepúlveda, até Voltaire, padre Clavigero e outros, sendo eles apologistas ou não do índio, independentemente do século em que transmitiram seus pensamentos polêmicos em torno da questão indígena, com que acabaram eles, também, contribuindo para justificar a escravidão do homem americano. Ainda sobre a condição física e intelectual, como argumentos determinantes da superioridade ou inferioridade de uma dada raça, encontramos escrevendo a respeito Stephen Jay Gould, com a tese científica do “determinismo biológico”[24] como sendo um fator preponderante para classificar os indivíduos e os grupos sociais.

Gould afirma que o preconceito racial pode ser mais antigo do que podemos imaginar, mas a ciência, a partir do XIX, veio para justificá-lo através da tese de que a inferioridade é intrínseca aos grupos menos favorecidos.[25] Para este autor, antes de avaliarmos os discursos científicos sobre as idéias de raça nos séculos XVIII/XIX, devemos, primeiramente, reconhecer o “contexto cultural de uma sociedade cujos líderes e intelectuais não duvidaram da pertinência da hierarquização social, com os índios abaixo dos brancos, e os negros abaixo de todos os outros”.[26] Obviamente, as obras sugeridas são específicas para orientar o trabalho do professor, pois, para os alunos, fica a sugestão de literaturas e filmes correspondentes ao ensino fundamental, que possam reforçar a importância do exercício da tolerância e o respeito à diversidade.

Em síntese, esse projeto, que tem o Estado de São Paulo como precursor, representa um esforço para vencer a intolerância que se pratica com aquele que é diferente sobretudo culturalmente, mas, sabendo que os frutos só virão a longo prazo, devemos conter nossas ansiedades, que nos dão sempre a impressão de que tudo vai mal na escola pública, o que inclui o Ensino Religioso; porém, um primeiro passo foi dado no sentido de fazer da disciplina mais uma aliada no combate à desigualdade que gera o preconceito, a violência e a injustiça.

Bibliografia

CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo, Lisboa, Difel

______________. À beira da falésia – A História entre certezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos, Editora da Universidade do Rio Grande do Sul.

GERBI, Antonello. O novo mundo – história de uma polêmica (1750 – 1900). Trad. Bernardo Joffily. São Paulo, Companhia das letras, 1996.

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LOCKE, Jonh. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro, São Paulo: Abril Cultural, 1978

MICHELE, Duchet. Antropologia e História en el siglo de las luces: Buffon, Voltaire, Rosseau, Helvecio, Diderot. Trad. Francisco González Aramburo. Siglo Veintiuno editores, 2ª edição, introdução, 1984.

SAID. Edward W. Orientalismo – o Oriente como invenção do ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

Notas

[*] Janaina Camilo graduou-se na Universidade Federal do Pará em 1995, defendeu o Mestrado pela Unicamp em 2003, no mesmo Departamento de História onde hoje é doutoranda.

[1] MOURA, Eliane e KARNAL, Leandro (Leitura Crítica: Paulo Miceli). O ensino religioso na escola pública, São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, no 1, p. 8.

[2] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro, São Paulo: Abril Cultural, 1978, págs. 21, 40 e 41.

[3] Conforme as divisões geográficas das diretorias de ensino do Estado de São, fui incumbida de capacitar os professores das diretorias de Campinas Oeste, Jundiaí, Limeira, São Bernardo do Campo, Pirassununga, São Vicente, Santos, Guarulhos Norte, Guarulhos Sul, Mauá, Osasco, Santo André, Apiaí, São Paulo – Leste 4, Piraju, Barretos, Itaquaquecetuba e Itararé.

[4] Idem, p. 20

[5] HALL, Stuart. A questão da identidade cultural. Trad. Andréa Borghi Moreira Jacinto e Simone Miziara Frangella, Textos didáticos, nº 18, 2ª edição, fevereiro de 1998, págs., p. 11.

[6] Idem, p. 12.

[7] GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Companhia da Letras, 2001, cap. 3, págs. 85 a 86.

[8] MOURA, Eliane e KARNAL, Leandro. Idem, nº 2, p. 7 e8.

[9] SAID, Edward. Orientalismo – o Oriente como invenção do ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 38.

[10] Idem, págs. 34 e 38.

[11] Idem, p. 32.

[12] Ibidem.

[13] SAID, Edward. Op. cit., p. 43.

[14] Uma outra proposta foi trabalhar o tema da alteridade e do respeito ao outro através do livro As aventuras de Robinson Crusoe. Com ele, os professores de História e Geografia poderiam trabalhar questões relativas ao contexto político, econômico, social, ou as rotas das “Grandes Navegações”. Assim, os professores de Ensino Religioso e o de Português poderiam trabalhar a leitura do livro, fazendo o encerramento com a análise do filme “As aventuras de Robinson Crusoe” ou “Náufrago”.

[15] JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos – história indígena do Brasil contada por um índio, São Paulo, Editora Fundação Peiropólis, 1998, p. 65.

[16] Segundo Michele Duchet, o espaço humano se constitui a partir de imagens opostas: de um lado os civilizados, que, através de um movimento, deixam cada vez mais sua condição primitiva e, de outro, os selvagens, sem escritos e, portanto, sem passado. Esses mundos são diferentes no tempo e na história. (DUCHET, Michele. Antropologia e História em el siglo de las luces: Buffon, Voltaire, Rossue, Helvécio, Diderot. Trad. Francisco González Aramburo. Espanha, Siglo Veintiuno editores, p. 25, 1984).

[17] GERBI, Antonello. O novo mundo. História de uma polêmica: 1750 – 1900. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo, Companhia das letras, 1996.

[18] GERBI, Antonello. Op.cit., p. 21.

[19] Idem p. 24.

[20] Idem. P. 56.

[21] Idem. P. 57.

[22] Idem. P. 58.

[23] Todas as referências feitas por Antonello Gerbi a Aristóteles, encontra-se em GERBI, Antonello. Op. Cit. p. 73.

[24] GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Trad. Valter Lelles Siqueira. São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[25] Op. Cit., p. 156.

[26] Idem p.18.