Corpos, Símbolos e Poder:
marcadores de desigualdades sociais no espaço religioso[1]

Claudirene A. P. Bandini[2] []

Resumo

O propósito do texto é apresentar a construção de "modelos" femininos no interior de um espaço religioso específico. Como parte de uma pesquisa mais ampla de doutoramento que analisa as práticas sociais de mulheres pentecostais, este texto resulta de um exercício que apura o olhar em relação às práticas cotidianas de resistências de sujeitos engajados em religiões contemporâneas. O objetivo é identificar a construção social dos corpos femininos a partir do contexto do Brasil Colônia. Adotando a formulação teórica que rompe com àquela visão (que ainda persiste) em apresentar a "mulher" como categoria sociológica "universalizante" e com status marginal, este estudo propõe romper com o discurso da contínua desigualdade e subordinação do feminino diante do masculino, haja vista, a existência de vários femininos e masculinos. Um olhar sobre as práticas de resistência das mulheres brancas e não-pobres deste período possibilita a identificação de resistências femininas mediante um modelo normatizador que procurava ao mesmo tempo dominar suas mentes e seus corpos a fim de manter o sistema patriarcal e o controle da sociedade.

Palavras-chave: religião, identidades femininas, gênero e poder.

Abstract

This paper analyzes the construction of feminine "models" in a specific religious space. Part of a broader doctoral study of social practices among Pentecostal women, this text result from an exercise that examines day-to-day practices of resistance in the context of contemporary religions. The objective is to identify to the social construction of women's bodies in colonial Brazil. This study proposes to break both with the (persistent) view that "woman" is a universal sociological category of marginal status and with the resulting discourse of continuous inequality and subordination of "the feminine" by "the masculine." It emphasizes, instead, a plurality of femininities and masculinities. An analysis of practices of resistance on the part of non-poor white women during this period highlights the tension between these feminine practices and a normalizing model that sought to dominate women's minds and bodies in order to maintain a patriarchal system along with its control of society.

Keywords: religion, women's identities, femininities, gender and power.

Introdução

Estudos sobre grupos sem poder[3], como de crianças, mulheres, prisioneiros, negros e escravos, sempre foram temas destacados pelos historiadores, afinal "tanto palavras quanto idéias têm história" (SCOTT, 1990). Ressalvas como da historiadora são compartilhadas com outros/as pesquisadores quando apresentam a necessidade de estudos que incluam a gênero como categoria de análise; porém articulando-a com outras categorias, como raça, classe, geração[4]. A conexão destas categorias resulta na produção de novos olhares sobre a realidade social, bem como na identificação e análise de diferentes identidades.

O presente estudo sociológico concebe a religião como um espaço portador de uma convenção social específica, cujo controle sobre o cotidiano de seus ditos ‘fieis' ocorre também por meio da regulação das necessidades requeridas pelo próprio corpo[5]. Entretanto, há diferentes formas e graus de incorporação desta racionalidade moderna, pois vários fatores podem influenciar na incorporação do pensamento racionalista.

Este artigo adota a categoria mulheres de forma não universalizante e nem essencialista. Busca uma formulação teórica que busca identificar suas diferentes desigualdades, identidades, poderes e experiências na inter-relação com o gênero masculino. As práticas femininas (de mulheres brancas, católicas e não-pobres) do Brasil Colônia expressavam reações ao modelo normatizador que procurava dominar suas mentes e corpos, a fim de manter o sistema patriarcal e o controle da sociedade. Suas práticas religiosas as auxiliavam em seus propósitos de desafio e de reação às pressões masculinas seja no âmbito familiar (diante do marido ou pai) seja no âmbito institucional (Estado ou Igreja)[6]. A legislação civil e canônica normatizavam muito mais a vida cotidiana das mulheres quando as conduziam às condições de esposas ou reclusas da Igreja. Apesar do dever à submissão ao casamento ou à Igreja, as mulheres conseguiam manifestar sua inquietação e, muitas vezes, conquistarem melhorias em suas vidas nas 'brechas' do próprio sistema colonial. Assim, "romper com o estereótipo da reclusão das mulheres pode significar excluir da história as menos ousadas, possivelmente, a grande maioria" (ALGRANTI; 1993,p.59).

Modelo Normatizador no Brasil colônia: Normas sociais diferenciadas segundo raça, classe e gênero

No século XVIII predominaram três grandes códigos que regiam as práticas sociais e que buscavam controlar corpos e mentes: o direito canônico; a pastoral cristã e a lei civil. Estes códigos regulavam as fronteiras entre o lícito e o ilícito. Centralizavam-se na regulamentação entre os cônjuges e na vigilância, por meio da confissão detalhada (FOUCAULT, 1988). Os procedimentos se seguiram até o século XIX atribuindo à confissão o papel central na ordem dos poderes civis e religiosos. Desta forma, a confissão expandiu-se para as áreas da justiça, medicina, pedagogia, família, relações amorosas; enfim, a toda esfera cotidiana. Desta feita, não somente os crimes deveriam ser confessados, mas também os pecados, os desejos, os pensamentos, o próprio passado, os sonhos, as próprias doenças, e assim por diante. As confissões poderiam ser realizadas ou em público ou em particular; aos pais ou aos educadores; ao médico ou a quem se ama. Ou seja, "a confissão pode ser espontânea ou extorquida; desencavada da alma ou arrancada do corpo" (FOUCAULT; 1988, p.59).

No caso do Brasil, os comportamentos femininos caracterizavam-se como "virtuosos" e resultantes de um padrão moral imposto pela ação conjunta entre a Igreja Católica, o Estado e o patriarcado. As normas do Concílio de Trento (1545-1563) atuaram por todo período colonial não somente reforçando os valores da igreja, como por exemplo, o sacramento matrimonial, mas também legitimando a condição posta como superior do homem em seu papel de pai, marido ou padre. Tanto o Estado quanto a Igreja se apresentaram como instancias de regulação, de arbitragem e de delimitação de poderes. Fixaram princípios e os distribuíram de acordo com as fronteiras e hierarquias estabelecidas. Essas duas grandes instituições, produtoras de poder, funcionaram como princípio de direito por meio de mecanismos legais de interdição e sanção.

Neste contexto, os espaços da família e da religião (como as casas de reclusões) podem ser vistos ao mesmo tempo como espaços de materialização do poder, seja de classe seja de gênero. Trata-se de espaços de compartilhamento de experiências vividas diferencialmente por homens e mulheres, que por sua vez, são portadores de identidades diferenciadas.

Eliana Goldschmid (1991) analisa, por meio da sexualidade, o comportamento feminino transgressor que resultava das atitudes populares divergentes do modelo estabelecido entre a metade do séc XVIII e as duas primeiras décadas do séc XIX. Para a autora, entre a rigidez institucional e tendência individual surge uma moral diferente no qual o conceito de pecado é suavizado. Del Priore (1993) demonstra que o casamento erigia-se na Colônia por razões de Estado, pela necessidade de povoamento das capitanias e por questões de segurança e controle social. O discurso produzido pelos sermões religiosos fomentava uma moral conjugal sóbria e vigilante. O sacramento do matrimonio também auxiliava instalação de um aparelho burocrático que afirmava o poder da Igreja e a reprodução da desigualdade de poder entre homens e mulheres. No propósito de colonização, a mulher ficou condicionada à manutenção dos valores tridentinos; ou seja, como mantenedora, guardiã e gestora dos lares coloniais.

Na visão da Igreja, os cônjuges deveriam procriar e lutar contra o adultério. Neste sentido, a Igreja Católica estabeleceu nove pecados[7] relacionados à sexualidade: sodomia, estupro, rapto, adultério, concubinato, incesto, bestialidade, lenocínio e molície[8]. A lista de pecados graves considerava qualquer pecado contra a natureza também contra a lei e, desta forma o criminoso e a criminosa eram julgados nos tribunais. Qualquer conduta que pudesse confundir a lei ou colocá-la em questionamento era considerada como conduta criminosa. Assim, a sociedade ia produzindo as 'sexualidades periféricas' e pessoas estigmatizadas, ora pela Igreja ora pelo Estado. A união do aparelho jurídico entre o Estado e a Igreja com suas técnicas e táticas de dominação se expandiu e se modificou ao longo do tempo quando tas união começou a ser influenciada por fatores mais globais. A partir daí fez-se perpetuar as reproduções de desigualdades sociais (raça, classe, geração e gênero) em imbricadas relações de força e poder. Um exemplo eram as leis sobre casamento no Brasil Colônia. As leis não eram as mesmas para todas as mulheres, uma vez que elas não são homogêneas. Vários trabalhos demonstram que as normas sociais vigentes no Brasil Colônia variavam de acordo com os grupos sociais e isso ocorre até os dias atuais.

Claudia Fonseca (1989) demonstra que conceitos como, amor materno e domesticidade conjugal assumiram proporções concretas somente a partir do século XVIII, pois até então a família "era perpassada por outros grupos que competiam pelas lealdades dos seus membros, criando uma dinâmica social que tinha pouco em comum com o modelo nuclear moderno". A autora argumenta que em famílias mais pobres, as mães raramente tiveram a disponibilidade para se dedicarem inteiramente aos filhos e à unidade doméstica, como requer o modelo nuclear. Mesmo em casais financeiramente mais estáveis, muitas vezes, a mulher se achava na obrigação de trabalhar para complementar a manutenção da unidade doméstica. Assim, a autora apresenta três fatores que impediriam a consolidação de um modelo nuclear: a fluidez dos limites da unidade doméstica, a instabilidade conjugal e o emprego das crianças.

Embora as leis eclesiásticas e civis fossem as mesmas para a colônia e a metrópole, as normas sociais diferenciavam-se na Colônia não somente de acordo com a região geográfica, mas também normas diferenciadas para pessoas de uma mesma região. Esta abordagem cuidadosa de se fazer pesquisa, pode evitar a construção de estereótipos e generalizações, neste caso ao modelo colonial.

A legislação eclesiástica adotava o casamento como legitimação pelas leis de Deus e do Estado para a reprodução das espécies. A prole somente seria reconhecida se originasse de uma relação que tivesse passado pelo matrimonio. Desta forma, o matrimonio estabelecia o limite da sexualidade da família legitima e controlava os comportamentos femininos que residia entre a honra e a desonra.

Apesar de existir vários tipos de concubinato na colônia, a Igreja raramente aludia aos seguintes tipos de casos:

A coabitação e a publicidade deixam de ser características principais do relacionamento ilícito, pois este passa a ter outros elementos que o define como, a manutenção da casa, da própria concubina e de seus filhos pelo amásio (GOLDSCHMIDT; 1992 p.26).

A prática que atribuía às transgressões sexuais um significado moral mais diluído do que o proposto pela Igreja era uma prática comum no Brasil Colônia. A Igreja não conseguia evitar tal concubinato porque bastavam os consentimentos dos noivos para a relação existir (TORRES-LONDOÑO 1988). Os padres até divulgavam oralmente nas paróquias a lista de impedimentos do matrimonio, mas esta lista era pouco conhecida pelas pessoas devido ao distanciamento entre a Igreja a população, pois havia um isolamento entre os grandes núcleos urbanos no Brasil Colônia.

A Igreja não chegou a proibir o matrimonio entre a população negra. Entretanto, o matrimonio entre escravos e não escravos encontrava muito mais resistências de legitimação diante das normas sociais do que das legais, pois tal união estenderia o efeito do estigma do casamento com um escravo ou escrava para seus parentes e filhos (GOLDSCHMIDT 1992).

No cotidiano, as pessoas desobedeciam às demarcações dos espaços e freqüentavam lugares caracterizados com pouco convenientes para uma boa fama pública; entretanto propícios aos encontros identificados como "proibidos". O amor ilícito era confirmado dentro de um universo constituído por encontros noturnos, relações clandestinas e amancebamentos públicos (TORRES-LONDOÑO 1989).

Embora as táticas de dominação e de controle sobre a sociedade por parte da Igreja, em consonância com o Estado, servissem como técnicas para o funcionamento da desigualdade das relações sociais, os habitantes da colônia experimentavam situações e relações em seu cotidiano que os faziam reagir, à sua maneira, às situações determinadas. Adotando o sujeito como determinante e determinado pode-se identificar algumas armas de resistência utilizadas pelas mulheres (brancas, católicas e ricas) da Colônia em relação às pressões institucionais e sociais. Vamos a elas.

Formas diferenciadas do mundo feminino: mulheres e mulheres...

Assim como na atualidade, no Brasil colônia a condição feminina apresentava-se diferentemente de acordo com o estrato social e sua posição na sociedade. Assim, a mulher poderia exercer o papel de mulher casada ou amancebada, viúva, solteira, freira, recolhida ou prostituta.

As recolhidas

Os recolhimentos eram casas onde as mulheres pobres habitavam a fim de manterem a honra e garantirem o casamento. Anna Amélia V. Nascimento (1993) demonstra que as mulheres do recolhimento utilizavam sua condição de pobre como capital simbólico para conquistarem uma posição na hierarquia social do recolhimento e alcançar o casamento que as livrariam da condição de pobres. Entretanto, a autora ressalta que "essas moças não eram de uma pobreza irremediável, nem eram mendigas. Pertenciam a um grau de pobreza que ainda lhes permitiam persistir em ocupar um status social médio". Entretanto, existiam as pobres irremediáveis, mas por serem numerosas e abandonadas, não eram aceitas pelos recolhimentos.

No Recolhimento, as mulheres podiam exercer o "luxo" de possuírem escravas, comprar comestíveis e tecidos de vendedores que passavam à porta. Elas também se divertiam escrevendo cartas de amor aos seus enamorados; embora o estatuto previsse castigos, como p.ex., de quatro dias de prisão e outros tantos de jejum para tal comportamento. Algumas mulheres recolhidas chegavam a quebrar janelas para conversar com seus enamorados e trocar cartas de amor, que por sua vez, "significavam a possibilidade de romper com barreiras diligentes" (DEL PRIORE, 1989). Tais cartas podem ser consideradas ricas fontes de pesquisa, pois permitem o resgate da linguagem e das formas de expressão utilizadas na época, num determinado local, por um determinado grupo e numa condição específica.

As cartas de amor podiam ser transformadas em "armas" de resistência quando sua autora tinha o propósito de conseguir o casamento desejado. A prática se efetivava quando as cartas demonstravam que, por conta da promessa, a mulher "prometida" teve intimidades com o rapaz. Como conseqüência da intimidade e da promessa o "noivo" deveria ser encontrado para o casamento que prometeu, mesmo que não prometeu.

Táticas como esta eram utilizadas por mulheres de diferentes condições sociais, pois cada uma, a sua maneira, buscava o meio mais eficaz de solucionar seus problemas seja conjugal (quando casada) seja de classe (ainda solteira). Seus problemas imbricavam os espaços públicos e privados, de classe e de gênero. As fronteiras colocadas pelo discurso dominante eram, muitas vezes, inexistentes na vida dos grupos dominados. A reclusão feminina, seja na vida doméstica seja no espaço institucional religioso, poderia ser transformada em prática de resistência ou de reação em espaços de disputas de poder entre homens e mulheres; brancos e brancas; negros e negras; ricos e ricas; escravos e escravos; e assim por diante.

Neste sentido, Algranti (1993) argumenta que os recolhimentos podem ser vistos pelos pesquisadores como "espaços privilegiados" por possibilitarem a identificação da diferentes figuras femininas. Ao analisar o cotidiano destas instituições, pode-se captar tanto os desejos e sentimentos quanto recuperar os valores e as imagens femininas desenvolvidas neste ambiente, pois cada mulher exerce uma certa parcela de poder sobre a outra. Por conta disso, algumas reclusas controlavam, enquanto outras eram controladas. Desse modo, se criava relações de subordinação e dominação de mulheres sobre mulheres.

As mulheres casadas, amancebadas ou concubinas

Sob a ordem patriarcal, o casamento era considerado uma engrenagem essencial para a manutenção e transmissão do patrimônio; um espaço para interesses pessoais e de formação de um sistema de dominação política e econômica. O sistema patriarcal garantia a transferência da autoridade paterna para o marido que passava a ter a função de manter e de disciplinar a esposa e a prole, para ser bem sucedido neste empreitada, o marido (e pai) tinha legitimidade para os atos de violência tanto para a esposa quanto para os filhos.

As mulheres casadas e mães, aos olhos da Igreja, eram superiores às solteiras porque eram as mantenedoras e gestoras de lares cristãos. Nesta caracterização, a Igreja acabava construindo relações de poder entre as próprias mulheres. Assim, ser mãe passou a significar ser casada, ser boa esposa, ser humilde, ser obediente e ser devota[9]. As identidades femininas passavam a ser formuladas a partir dos instrumentos da Igreja, pois cabia a elas a perpetuação dos valores da Igreja, do Estado e do patriarcado. A mulher casada representava o equilíbrio social por ser destacada perante as amancebadas ou concubinas e "não-casadas que eram facilmente confundidas como desfrutáveis ou prostitutas".

Desafiando as pressões masculinas: divorciadas, raptadas

O rapto, caracterizado como a retirada da mulher da casa da família, poderia ocorrer tanto contra a vontade quanto com o consentimento da raptada. O rapto por sedução implicava no casamento ou no dote oferecido à mulher, por isso, o rapto, muitas vezes, era utilizado por mulheres mais pobres como meio de melhorar sua condição de vida. Mas o rapto também podia ser acionado quando o casal desejava o casamento e não conseguia por algum outro motivo.

Como já relatado no texto, a mulher branca e não-pobre do Brasil Colônia tinha a possibilidade de manter o status por meio dos Recolhimentos, dos esposais ou pelo próprio rapto. O modelo institucional lhe cerceava qualquer tipo de liberdade. Entretanto, havia mulheres que resistiam ao controle pretendido pela Igreja adotando comportamentos e utilizando os meios mais condizentes com suas necessidades. Um dos meios de ruptura do papel feminino era o apelo à própria justiça eclesiástica alegando o abandono do cônjuge ou a bigamia. Algumas mulheres utilizavam estes meios para se divorciarem de maridos muito violentos ou adúlteros. Os vigários também realizavam advertências secretas às mulheres adúlteras quando estas corriam risco de serem mortas pelos maridos. Entretanto, a lei civil dava ao marido o direito de matar a esposa e o adúltero quando pegos em flagrante, salvo se o amante não fosse de uma hierarquia social superior, caso contrário, poderia "somente" matar a esposa (VAINFAS 1997).

A cada conduta de resistência ou de reação à pressão da Igreja ou à violência do marido, reforçava o modelo normatizador que caracterizava as mulheres como pessoas que deveriam ser controladas e disciplinadas. Pesquisas demonstram que em todas as classes a violência masculina estava presente, assim como, a necessidade de toda mulher se casar. No cotidiano, as mulheres construíam laços de cumplicidade entre amigas, mucamas ou coma as próprias mães que as auxiliavam nos planos de encontros amorosos, proibidos por alguma condição. Como a petição de divórcio por adultério era o mais aceito pela Igreja, era também o mais utilizado pelas mulheres, mesmo que este não fosse o real motivo. Também havia aquelas mulheres que utilizavam a Inquisição para denunciarem os homens que queriam se ver livres.

Vainfas (1997) demonstra que várias mulheres, obrigadas ao casamento, abandonaram seus maridos por ter encontrado um amor. Entretanto, o autor ressalta que as mulheres mais pobres, freqüentemente, abandonavam o casamento devido à situação insuportável de miséria e/ou violência e não por outro homem como ocorriam com as mulheres ricas.

O fato é que na colônia o matrimonio adquiriu uma valoração moral e social que diferenciava de acordo com as camadas sociais. O valor significativo do modelo feminino era representado pelas camadas mais altas e transmitido às camadas mais baixas aspirando às moças deste estrato social a representarem os mesmo valores embora tivessem condições diferentes. Desta forma, "a conquista de um estado, quer fosse o da religião, ou do matrimonio, era fundamental na vida de muitas mulheres e fazia parte de suas aspirações e preocupações, fossem elas das camadas mais ou menos favorecidas" (ALGRANTI, 1993). Segundo Vainfas (1997), "nem mesmo as freiras guardavam o recato esperado pela Igreja" e, muitas vezes, a liberdade que as freiras gozavam nos conventos era maior do que da casa paterna. Neste ambiente, as mulheres adquiriam a cultura (reservada somente aos homens ricos), encenavam peças de teatros, organizavam recitais, possuíam escravas e namoravam muito.

Enclausuradas ou casadas, as mulheres da Colônia "precisavam" ser sempre vigiadas. Apesar de serem caracterizadas pelo modelo normatizador como esposas, religiosas e dedicadas, estas mulheres buscavam e, as vezes conseguiam por meio de suas experiências cotidianas melhorias em suas condições de vida. Estas melhorias poderiam ser benefícios materiais (casa, alimentação) ou simbólicos (cultura, status).

A resistência individual produzia uma sociabilidade e uma linguagem que influenciava material e simbolicamente as organizações formais que mantinham a ordem patriarcal. As resistências eram de mulheres destituídas do poder formal, porém construíam suas próprias armas de luta contra as estruturas de poder e sua condição social. Na interação com os 'poderosos' (maridos, padres, pais), as mulheres podiam instrumentalizar sua subordinação ora para se proteger ora para se beneficiar da condição na qual se encontrava.

Ao se apresentarem conforme as expectativas da ordem patriarcal (seja por medo, seja por proteção), as mulheres podiam se valer do resultado da expectativa correspondida. Assim, por meio da dissimulação, do falso consentimento, da falsa submissão, da ignorância fingida e outras ações similares, elas construíam suas resistências. De fato, não tinham organização ou qualquer outra forma de planejamento. Restava-lhes sempre uma forma de auto-ajuda individual; mais importante, restava-lhes a contínua reprodução das formas cotidianas de resistência via atos individuais de insubordinação. Estes atos isolados fazem surgir barreiras econômicas e políticas em espaços protegidos do controle normatizador (SCOTT 1990).

Remetendo-se ao trabalho de Vainfas (1997), pode-se analisar que o espaço protegido, no qual as mulheres da colônia podiam falar sobre suas relações de dominação, suas idéias e práticas de como sair da relação de subordinação era o espaço do sobrenatural. O autor ressalva, que não era somente as mulheres que apelavam ao sobrenatural, alguns homens também dominavam os códigos mágicos tornando-se magos ou feiticeiros. Entretanto, "eram as mulheres que despontavam como doutoras da magia no mundo ocidental e, assim eram vistas pelos eruditos da época"[10].

Estudos do nouvelle histoire contribuíram para uma nova história da mulher. A maior parte destes estudos partiram de famílias no período da escravidão, dos sistemas de casamento, da maternidade e das análises das práticas cotidianas e sexuais sobre as mulheres na colônia (ALGRANTI,1993). Mesmo nesta abordagem o cuidado deve ter a atenção para não, simplesmente, desconstruir alguns estereótipos femininos (como da mulher passiva, religiosa e reclusa) e construir outros (da mulher rebelde), por isso, a contribuição dos estudos de gênero que ao adotar a categoria como relacional e histórica impossibilita uma análise generalizante e essencialista das categorias socialmente construídas da mulher e do homem. Alguns estudos expressam uma análise de caráter sexista que resulta no enviesamento da análise sobre a mulher e a religião, pois freqüentemente, acabam relegando a mulher ao domínio das religiões mágicas incorporadas de erotismo e irracionalidade[11]. As razões simbólicas que permeiam a biologia feminina estão, muitas vezes, inerentes ao pensamento, pois são razões que estão incorporadas nas estruturas de pensamento que permeiam não só o inconsciente, mas também o mundo social. A partir da década de 1960, surgem as contribuições dos estudos feministas para transformar a historiografia por meio da História das Mulheres. Neste sentido, ressaltam-se as contribuições da História Social, da História das Mentalidades e, posteriormente, da História Cultural, articuladas ao crescimento da antropologia, que tiveram papel decisivo nesse processo, "em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História" (SOIHET, 1999).

Considerações finais

No século XVIII acabou impondo-se o Brasil o padrão da Europa cristã nas formas de relacionamento entre gênero. Desta forma e, como única válida, o controle sexual consolidou uma a sociedade triplamente estratificada: raça, classe e gênero.

"Estudos de gênero rompem posições normativas que são demonstradas como se fossem produto de um consenso e que não existissem conflitos" (BIDEGAIN, 1993). Para a historiadora Ana Maria Bidegain, a utilização de categorias de análises permitiria entender a contradição histórica entre a vida cotidiana e a moral dominante defendida pelas instituições e organizações sociais e religiosas tão característica das nossas sociedades latino-americanas. Neste sentido, vários estudos têm se baseado no referencial teórico de gênero na tentativa de reconstruir o histórico da atuação feminina nos mais diferentes contextos e esferas sociais. Uma pesquisa que adota o gênero como categoria histórica e analítica e que enfoca o cotidiano tem a possibilidade de desvendar papeis informais e identidades invisíveis dos sujeitos. Esta abordagem possibilita a obtenção de novas experiências concretas da inter-relação entre mulheres e homens em sociedade.

Os estudos de gênero contribuem na produção do conhecimento porque amplia o objeto de conhecimento histórico; desnaturaliza as identidades sexuais e, principalmente, postula a dimensão relacional. As diferenças sexuais, enquanto construções culturais, lingüísticas e históricas, incluem relações de poder que não estão presentes somente no masculino, mas numa teia de processos históricos que implica em ações que constrange, disciplina, esconde, negocia e resiste. Para se entender como a dominação se reproduz é preciso investigar os elementos inerentes nos discursos dos dominantes e dos dominados; ou seja, de indivíduos pertencentes aos "grupos dominados" que podem variar de discurso, de táticas e de rejeições, pois estão sempre num processo de re-elaboração do próprio discurso, além de negociarem na relação como o outro suas identidades de tal forma que as representações (naturalizadas) de subordinação passam a ser, cada vez, mais complexas.

O propósito deste texto foi apresentar as representações da "mulher colonial" enquanto sujeito de sua história. Inseridas num mundo social não dicotômico, oposto ao modelo normatizador, as mulheres da Colônia (branca, católica e de classe mais favorecida) constituíam-se não somente no espaço da família e do relacionamento conjugal, mas também no espaço da religião. Mesmo a condição de reclusa, poderia ser apresentada ou como uma escolha pessoal, em que a mulher busca pela submissão voluntária concretizar o ideal feminino, ou como uma condição resultante de sua rebeldia em relação ao mesmo modelo feminino proposto[12].

O espaço do sobrenatural, da magia e das 'brechas' das leis eclesiásticas tornaram-se espaços para ações de resistência e de reação à ordem estabelecida. Estas ações, apesar de não serem organizadas e nem planejadas no intuito mais coletivo interferiam na estrutura de relações de poder diminuindo a invisibilidade que a ordem patriarcal lhe forçava. Apesar de focalizar o grupo feminino mais abastado da Colônia, a análise não permite encobrir a integração entre outros grupos sociais (mulheres brancas/pobres/ricas e negras/escravas/pobres), pois são agentes integrantes do mundo social - econômico e político - no qual todos estão inseridos: da "patroa" da família às "criadas" há fator econômico, como o mercado de trabalho, que disponibiliza, hierarquiza segundo gênero, classe social e etnia. Estabelecer uma inter-relação entre essas categorias é estudar as particularidades e realidades implícitas nas relações complexas de poder e de hierarquização.

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Notas

[1] Originalmente apresentado no 32º Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos na Universidade de São Paulo: NAP-CERU. Maio de 2005.

[2] Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sócias da Universidade Federal de São Carlos. Na mesma instituição desenvolve a pesquisa de doutoramento na área de gênero e religião, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida de Moraes Silva, a quem agradece pela leitura e indicações bibliográficas sugeridas neste texto.

[3] As noções de armas comuns e de grupos sem poder referem-se ao trabalho de James Scott (1990). Seus conceitos, embora aplicados aos estudos do campesinato são de extrema eficácia em estudos sobre outros sujeitos também excluídos do poder e que sofrem no cotidiano os preconceitos sociais de geração, gênero, classe e raça/etnia. Como o autor adota o espaço do campo enquanto "espaço de expressão de ação política" no qual podem ser criadas tanto ações que fortaleçam o Estado (reprodução do sistema) quanto ações de 'resistências cotidianas'; o espaço religioso também pode ser concebido como um espaço de fuga às discriminações sociais. As práticas sociais cotidianas podem corresponder às ações de confrontação simbólica com a autoridade e desmentir a concepção de uma hegemonia cultural. (SCOTT, James C. Domination and the arts of resistance: hidden transcripts. New Haven Conn.: Yale University Press, 1990.).

[4] Donna Haraway faz uma passagem interessante sobre a "canonização da linguagem" nos estudos feministas em vários países e por diferentes autoras. Haraway verifica que a três categorias (raça, gênero e classe) acabam sempre sendo reduzidos a dois, e em seguida a um. "(...) essas coisas têm importância política", ressalta. (HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. In:Cadernos Pagu (22). 2004. p.201-246).

[5] Jacques Donzelot demonstra os principais meios utilizados para normatizar o cotidiano das pessoas, como por exemplo o controle que advém da aliança entre a medicina e o Estado que transforma a higiene pública ao mesmo tempo em que a psiquiatria sai do setor privado; as políticas do eugenismo, do malthusianismo e do planejamento familiar. Todas elas estão sob a tutela do Estado, pois remodelam a instituição família, cuja função é perpetuar os valores e os comportamentos sociais. (DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Trad. ALBUQUERQUE, M. T. da Costa. Ed. Graal. 2º edição. Rio de Janeiro, 1986)

[6] Não será desenvolvido neste texto o conceito sobre modelo normatizador, pois para isto seria necessário historicizá-lo a fim de identificar os elementos, os processos e os produtores desta construção discursiva. Entretanto, lembremos que não eram somente as mulheres excluídas da representatividade social e da participação política, mas também homens brancos e negros. Nesta perspectiva, vale a indicação do texto de Mary Keller que relaciona o gênero e raça como eixos-chave de poder na vida religiosa das mulheres. Articulando os argumentos de W.E.B Du Bois e Frantz Fanon, a autora relaciona a teoria feminista branca e as teorias de consciência marcada pela raça. Ver:KELLER, Mary. A pele, o sujeito e o território dos estudos da religião. In: Revista Imaginário-USP. N.8. p.157-172.São Paulo, 2002

[7] Para saber mais dos efeitos destas leis sobre os habitantes da colônia e sobre a criação de um ambiente de estímulo à denuncia, que expunha a sociedade numa relação de tensão, maldades e rancores, ver Goldschmidt Eliana Maria Rea. Virtude e Pecado: Sexualidade em São Paulo Colonial. In. Entre a Virtude e o Pecado,1992.

[8] Bestialidade: uma parafilia caracterizada pelo desejo de manter relações sexuais com animais. (Referência:psiquiatria forense??) Lenocíneo: ato criminoso de provocar ou facilitar a corrupção ou a prostituição de qualquer pessoa; alcovitice. Molície: moleza; brandura; voluptuosidade. (Dicionário Universal da Língua Portuguesa. Ed. Texto)

[9] Del Priori, O corpo feminino e o amor...1989.p.172

[10] ibidem

[11] Étienne de Fougères, um dos padres oficiais da liturgia na casa principesca, define em 1174 a "mulher como portadora do mal". E a partir daí, os padres faziam das mulheres, na França do século XII, verdadeiras "representantes do demônio da terra". Para eles, a natureza cavou a divisão entre as espécies masculina e feminina, sendo a primeira vítima da segunda. A mulher seria dotada dos três maiores vícios: são levadas a opor-se às intenções divinas; não suporta a tutela (no caso do marido ou pai) e, por último tem sua natureza afetada pela luxúria (DUBY,George. Eva e os Padres: Damas do século XII. Companhia das Letras.São Paulo. 2001.

[12] Como sugestão de filme que retrata as relações aqui apresentadas, ver "Em nome de Deus" (The Magdalene Sisters). Direção: Peter Mullan; Estúdio: Europa Filmes. Jan/2004. Sob o ponto de vistas das personagens, o filme se passa nos Lares Madalena, na Irlanda. Essas casas eram de responsabilidade das Irmãs da Misericórdia da Igreja Católica. As jovens mulheres eram mandadas pelos orfanatos ou por suas famílias por conta de seus pecados (de ser mãe solteira, ser bonita ou feia demais, ter problemas mentais, ser inteligente ou ser vítima de estupro). Confinadas, trabalhavam na lavagem de roupa o ano todo, sem remuneração. Eram mal alimentadas, surradas, humilhadas, estupradas, e seus filhos levados à força pelas mulheres noivas de Cristo. Com um futuro indefinido, milhares de mulheres viveram e morreram nesses Lares. O último Asilo Madalena na Irlanda foi fechado em 1996.