Com este artigo pretendemos expor alguns discursos de filósofos pós-modernos sobre Deus, religião e crenças. A primeira parte relata as reflexões de alguns nomes famosos da filosofia pós-moderna, que se reuniram em 1996, na Itália, para um colóquio sobre a religião e o fenômeno mundial do retorno das crenças na atualidade, época que com freqüência é indicada com o polêmico termo “Pós-Modernidade” ou “condição pós-moderna”. Precede essa exposição uma tomada de posição na arena dessa polêmica. A segunda parte busca adentrar na virada lingüística dos últimos decênios e no relevante papel atribuído à linguagem por estudiosos modernos e pós-modernos tendo em mira as contribuições da filosofia da linguagem para o estudo e a análise da religião e das crenças religiosas.
Palavras chaves: Pós-Modernidade, crenças religiosas, filosofia, linguagem.
This article aims to expose some “discourses” of postmodern philosophers on God, religion and religious beliefs. The first part shows reflections of some famous writers of the postmodern philosophy, who had a meeting in Italy in 1996 to discuss religion and the world-wide phenomenon of the current return of religious beliefs, in an age frequently pointed out as “postmodernity” or “postmodern condition”. After exposing our position in the field of this debate, the second part seeks to focus the “linguistic turn” of the last decades and the important role of language for the studies and analysis of religion and religious beliefs.
Key words: Postmodernity, religious beliefs, philosophy, language.
A nossa exposição se desenrola na arena do debate sobre a Pós-Modernidade. Por isso, à guisa de preâmbulo, exporemos sinteticamente as principais posições acerca dessa discussão e o nosso modo de encarar a polêmica. Em seguida, adentraremos nos discursos sobre Deus e a religião na Pós-Modernidade, focalizando sumariamente autores que direta ou indiretamente descartam Deus e a religião e os que se preocupam com o divino e as manifestações religiosas e estabelecem reflexões sobre essas realidades. A ênfase será dada a filósofos que analisaram o retorno da religião na atualidade e aos que buscaram, a partir da filosofia da linguagem, apontar os limites e as possibilidades do discurso religioso.
Sobre o pós-moderno pairam mais indagações do que certezas. Quando teve início? Como se caracteriza? Qual a sua abrangência? Rompe com a Modernidade ou é apenas um prolongamento dela?
Frente a esses quesitos, variam as posições. Há os críticos que manifestam inteira rejeição ao nome e ao conceito. Segundo Habermas (1985), o projeto da Modernidade não está terminado, o que torna inverídico atribuir o “pós” a uma realidade ainda em construção. Latour (1994) escreve um livro para demonstrar, paradoxalmente, que Jamais fomos modernos, e assim coloca em crise o conceito de Modernidade e, por conseqüência, rejeita as pretensões pós-modernas. Eagleton (1998) estabelece uma crítica radical a todos os aspectos do pós-modernismo. Giddens (1991) não vê nenhuma ruptura ou descontinuidade que justifique um “pós” para além do moderno.
Há, entretanto, autores que admitem o pós-moderno como algo que veio para ficar, embora estejam longe de um consenso sobre as suas características. Lyotard (1993) publica, em 1979, a obra considerada pioneira, La condition postmoderne, na qual desconstrói os pilares da ciência moderna e as suas narrativas e indica a ciência pós-moderna como jogo de linguagem, no qual a instabilidade, o paradoxo e o dissenso prevalecem sobre as certezas. Vattimo (1996) acredita que a Modernidade já se extinguiu. Jameson (1997), embora alertando que se trata de um termo “intrinsecamente conflitante e contraditório”, admite que “por bem ou por mal não podemos não usá-lo” (ibid p. 25) e vê o pós-modernismo como a tradução e a expressão da lógica cultural do capitalismo tardio. Maffesoli (2000) analisa o pós-moderno como uma nova forma de tribalismo e o caracteriza como um nomadismo no qual a errância se apresenta como “fundadora de todo o conjunto social”. (IDEM,2001, p.16). Connor (1993) faz um amplo inventário da presença do pós-modernismo na arquitetura, nas artes visuais, na literatura, na TV, em vídeos, em filmes, na cultura popular.
Entre a rejeição total e a admissão pura e simples, julgamos plausível caminhar na linha do “tertium inclusum” (o terceiro incluído) assumindo uma posição intermediária que liga os opostos. Temos por certo que não se pode falar de uma era pós-moderna em total ruptura com as estruturas da Modernidade, pois o sistema sócio-econômico que a sustenta - o capitalismo - ainda está em vigor, embora se lhe atribua um “neo” (neoliberalismo) e até haja quem já admita um “pós-neoliberalismo” (SADER e GENTILI, org., 2004). Mas é sempre o velho paradigma com novas caras: globalização, flexibilização, descentralização, comunidades mercadológicas.
A cultura, também, embora adquira novas conotações, permanece gravitando na esfera do capitalismo, seja para reforçá-lo (cultura de massa, consumismo), seja para contestá-lo (movimentos ecológicos, experiências de economia alternativa), seja para expressar as suas perversidades (cultura da violência, exclusão, limpeza étnica, genocídios, terrorismo). Por isso, não deixam de ter razão os que apontam que a Pós-Modernidade é ainda a Modernidade gerindo e parindo as suas crises (ver HABERMAS, 1980; TOURAINE, 1994).
Mas não há como negar que, nas profundezas da crise, algo novo desponta no horizonte, uma realidade híbrida, mesclando verdades e ilusões. Vive-se uma atmosfera de busca, uma fase heurística, que alia ao pessimismo, ao desalento e ao niilismo - seqüelas da profunda decepção pelas promessas frustradas da Modernidade - um vislumbre de esperança. Mudança de visão, novas tendências e atitudes caracterizam o que Capra (1997), com base na superação da visão mecanicista e fragmentária de Descartes e Newton, pela teoria da relatividade e da física quântica, indica como um “ponto de mutação”. Isso leva a admitir que já não se pode mais falar de simples Modernidade. Mesmo os que rejeitam o termo pós-moderno não deixam de convir que há algo novo na Modernidade, tanto assim que sentem a necessidade de adjetivá-la. Ora ela é tida como “Modernidade radical”, como em Giddens (1991); ora como “Modernidade liquida”, como em Bauman (2001); ora como neo-Modernidade, como em Rouanet (1986). A denominação mais recente é a de hipermodernidade, entendida como exacerbação da Modernidade, e que se coloca como superação do próprio pós-moderno (Nicole AUBERT, org., 2004). Apesar dos seus contornos ainda indefinidos, parece haver um consenso quanto à existência do pós-modernismo, como afirma Connor (1993, p.25): “Pode já não ser possível negar que o pós-moderno existe, visto que o debate sobre ele pode ser visto, em parte, como a prova de sua existência. Os debates críticos sobre o pós-modernismo constituem o próprio pós-modernismo”.
O rosto do homem contemporâneo já não é o mesmo de 50 anos atrás. É plausível falar-se em pós-modernismo como um jeito novo de estar e ser no momento atual, que vai do social às ciências, da filosofia à literatura e demais humanidades, das artes ao folclore, da linguagem à comunicação, das teologias às ciências das religiões.
No social, as marcas da Pós-Modernidade se fazem presentes com maior intensidade. Embora mantenham-se os pilares estruturais da Modernidade (capitalismo), fato é que, a partir da segunda metade do século XX, grandes transformações aconteceram no âmbito da produção e do consumo, que abalaram o modo de vida moderno, caracterizando-o como um “capitalismo avançado, ou tardio, ou pós-industrial”. A tecnociência - ciência aplicada à tecnologia - responde pelo extraordinário avanço dos meios de comunicação de massa, da informática, da eletrônica, que fazem explodir o consumo e implementam o que Toffler (s.d.) denomina de “sociedade das utilizações não duráveis”. Veloz, efêmero, descartável, volúvel, desenraizado, eis a fisionomia do homem pós-moderno, feita à imagem e semelhança dos objetos que ele consome.
Um rosto sem sujeito, como proclama Baudrillard (1991). O sujeito, a grande descoberta da Modernidade, agora agoniza, manipulado pela simulação (que é fingir ter o que não se tem), pelo simulacro (imagem falsa e enganadora, que impede o acesso à realidade e extermina o sentido das coisas). Mergulhado no universo onipresente do vídeo, das informações, do eletrônico, o humano vai assumindo a forma de um puro código, um sujeito sem corpo, sem substância, (como Neo, personagem central dos filmes Matrix) ou uma peça de um enorme espetáculo (como a personagem do filme The Truman Show). O espetáculo invade o cotidiano na TV, nos filmes, nas revistas, na moda, nas igrejas, um show fantasioso e fantástico, que a todos envolve no mundo da irrealidade. Narcisista, o sujeito só enxerga a própria imagem, eclética, feita de pedaços de objetos informatizados, flutuante, sem consistência, presa fácil da apatia, da ansiedade, da depressão. Publicidade, marketing, design, embalagem, micro, TV, internet, forjam o cérebro e o comportamento. Está em franca ascensão o homo digitalis ou o homo videns (SARTORI, 2001).
Isolada, dispersa, fragmentada, a massa pós-moderna já não é mais a de outrora, que se organizava em classes, partidos, segmentos, sindicatos, blocos. O patriotismo se arrefece; os laços familiares e a vinculação trabalhador-empresa são cada vez mais instáveis. A indefinição e a ausência de identidade alteram também o modo de perceber o tempo e o espaço, as coisas, e acabam tornando a própria vida um teorema “indecidível”, constituído de pequenas experiências, que se sucedem, vivências fragmentárias, onde não cabem mais os grandes ideais de totalidade como Pátria, Céu, Revolução, Libertação. (BAUDRILLARD, 1994; LYOTARD, 1993).
É patente que essas tintas carregadas e sombrias, que descrevem o pós-moderno, devem ser tomadas como tendências em ascensão nos paises de capitalismo avançado e nas grandes metrópoles. O pós-moderno, em muitos lugares, ainda convive com o pré-moderno, e nem todas as grandes narrativas desapareceram da face da terra. Referência especial merece o relato religioso, que hoje apresenta um vigoroso retorno. Que dizer também do relato capitalista? Embora em crise, ele ainda está em pé e se tornou hegemônico após a queda do Muro de Berlim.(Ver QUEIROZ, 1998).
Mas, como já acenamos, o pós-moderno não se restringe a apontar o niilismo da era atual. É preciso salientar os seus aspectos heurísticos, isto é, a descoberta de temas novos, ou a ênfase em outros, ora esquecidos ora marginalizados na Modernidade, que são trabalhados na literatura pós-moderna e constituem uma gama de possibilidades em vários aspectos do saber e da vida.
Assim, por exemplo, Derrida (1991) não apenas desconstrói a metafísica, o logocentrismo e o fonocentrismo, mas propõe uma profunda filosofia da “diferença”, com reflexos no campo social e político (Ver QUEIROZ,2001). Deleuse-Guattari notabilizaram-se não apenas por rejeitarem o Édipo freudiano (1976), mas também por construírem categorias novas de grande alcance para a filosofia, como rizoma, platô, devires, desejo e outras, que são trabalhadas na obra Mil Platôs, em cinco volumes, publicados pela editora 34, de 1995 em diante. Vattimo não só se insurge contra a truculência da metafísica, mas, ao propor o “pensiero debole” (pensamento fraco), oferece um caminho ontológico para enfrentar a violência e construir uma moral enfocada no diálogo, na amizade, superando as imposições repressivas. Entre outras obras, é importante ler Acreditar em Acreditar (1998), escrito autobiográfico no qual o autor tece uma crítica muito pertinente ao rigorismo extremado da moral tradicional católica.
Há muitos outros temas recorrentes na literatura pós-moderna, cada um deles merecedor de exposição e análise, algo impossível de ser feito nos limites deste trabalho. Por isso, vão eles aqui apenas enunciados. A ênfase na linguagem e seus jogos; no cotidiano; o destaque dado à invenção, à imaginação, ao imaginário, à imagem, ao biológico e à corporeidade, à emoção; ao acaso e ao caos, ao nomadismo.
Dois temas merecem menção, ainda que sucinta. A ciência pós-moderna, com Lyotard, Boaventura Souza Santos e outros, abre horizontes para uma nova epistemologia na qual o saber não é mais apenas formal ou lógico, mas é também paralógico e, no debate científico, prevalece o dissenso, pois o consenso é apenas um horizonte. Em vez de uma ciência universal e absoluta, privilegiam-se os pequenos relatos nos quais os jogos de linguagem predominam sobre a racionalidade abstrata. Santos (1995) propõe uma desdogmatização da ciência, uma dupla ruptura epistemológica como via de acesso a um novo “senso comum, conhecimento dotado de uma racionalidade mais ampla do que a racionalidade fechada da Modernidade, e que se assenta na superação radical da distinção sujeito-objeto” (Ibid.,: 27 e 44).
Outro destaque cabe à epistemologia da complexidade, com base nas obras de Edgar Morin. Embora Morin não se autodenomine pós-moderno, o seu pensamento rompe com várias posturas da Modernidade, tais como a ciência como acumulação de verdades absolutas, eternas, a fragmentação dos saberes, o culto às certezas, a separação entre conhecimento e ação. Frente a esses parâmetros, Morin (1984) propõe o pensamento complexo, uma nova maneira de encarar a ciência, a vida, o universo. A realidade não é nem o todo, nem a parte. É ambos e um no outro. O todo não é uma soma. O universo é um grande tecido (complexus = tecer junto) que parece ter saído das mãos de um grande artista tão sábio que conseguiu entrelaçar ordem e caos, beleza e feiúra, harmonia e desafino, bem e mal, sabedoria e demência, relativo e absoluto, verdade e erro, certo e incerto. Cada solução faz despontar novas inquietações e incertezas, perguntas e problemas, e assim progride a humanidade.
Nesse vasto horizonte, aparecem também discursos filosóficos pós-modernos focalizando Deus, as crenças, a linguagem religiosa, como veremos em seguida.
Há discursos contrastantes com relação à religião e às crenças religiosas; alguns caminham pela via de exclusão, outros pela via da inclusão.
Citamos apenas dois autores, à guisa de exemplo. Baudrillard, professor da Universidade de Paris, afirma que estamos na sociedade dos objetos. O mundo se tornou um grande espetáculo mercadológico e midiático que faz desaparecer o sujeito humano. Este se torna um ator, uma peça do grande teatro manipulador, que é a mídia, em especial, a telinha televisiva. Um exemplo claro desta situação está retratado no filme pós-moderno o Show de Truman. Personagem central, Truman imagina viver uma vida real, mas não passa de um ator, criado desde a infância numa cidade que é apenas o grande palco de um programa de TV transmitido para milhões de telespectadores, que também se esquecem de sua vida real e permanecem fanaticamente envolvidos no enredo. Não sabem, eles mesmos, que são também outros Truman vivendo na irrealidade.
Outro filme que retrata o pensamento de Baudrillard é Matrix. Morfeus saúda Neo, quando este decide tomar a pílula vermelha e entrar para o mundo de Matrix, com esta frase: “Bem vindo ao deserto do real”. Com efeito, no mundo de Matrix, que é o espelho da sociedade pós-moderna, a vida se transforma numa tela total e o ser humano em um simples código manipulado pela mídia, pela tecnologia, pelo consumo. Vivemos num mundo de simulacros e simulação. Este é o título de uma das principais obras de Baudrillard (1991). Os símbolos que conectam o ser humano com a realidade desapareceram, são puros signos desprovidos de significado. Não há ninguém que possa salvar a sociedade e livrá-la dos simulacros. Nem Deus, pois ele também deixou de ser real. Tornou-se um puro simulacro. Na era da tela total acontece uma segunda morte de Deus (BAUDRILLARD, 2002).
Lyotard também assume uma posição negativa. Refiro-me à sua obra principal, A condição pós-moderna (1993). Um dos principais temas da obra é a tese de que as grandes narrativas estão em crise, em vias de desaparecer, carregando com elas também as narrativas religiosas. “Na sociedade moderna” - diz Lyotard, citando o livro de Horkheimer, Eclipse da Razão - “a ciência moderna substitui a religião, que foi usada até a exaustão para definir a finalidade da vida” (LYOTARD, 1993: 24, nota 38). Tivemos ocasião de realizar alhures um estudo crítico sobre essa posição de Lyotard (ver QUEIROZ, 1998).
Alain Touraine, em A crítica da Modernidade (1994), oferece mais detalhes.. A idéia de Deus e a de sujeito, que a ele se prendia, e as meditações sobre a alma “são substituídas pela dissecação dos cadáveres, pelo estudo das sinapses do cérebro” (Ibid.,: 20). Deus, sua vontade suprema, princípio do juízo moral, é substituído pela sociedade, que, por si só, explica e avalia as condutas. O ser humano deixa de ser “criatura” e torna-se ator social, e é ele mesmo “que define seus papéis e condutas para o bom funcionamento da sociedade” (Ibid.,: 24). Bem e mal é o que é útil ou nocivo ao corpo social.
As posições anteriormente expostas não são compartilhadas por outros filósofos pós-modernos. As crenças e o retorno das religiões na atualidade são um fenômeno que eles têm levado a sério e transformado em objeto de estudo.
Em 1994, um grupo de famosos filósofos pós-modernos vindos da França, da Itália, da Espanha e da Alemanha reuniu-se na ilha de Capri para refletir e buscar explicações para esse novo encantamento advindo da expansão das religiões e das crenças em nível mundial. O resultado do encontro de três dias foi consignado em um livro, traduzido e publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade no ano 2000 sob o título: A religião. A obra traz as posições dos sete filósofos que participaram do encontro. Seria muito extenso, face ao curto espaço de que dispomos, destacar todas as falas. Limito-me a três posições, a título de exemplificação.
Jacques Derrida, coordenador do encontro, francês nascido na Argélia, de origem judaica, famoso pela sua teoria da desconstrução e da diferença, no texto As duas fontes da religião nos limites da simples razão, (In DERRIDA E VATTIMO, org., 2000) vai em busca de uma “revelabilidade” mais originária do que as revelações que constituem as religiões históricas. Ele está preocupado em descobrir essa origem remota porque as religiões, que retornam, correm o risco de se fundamentar e buscar sentido em monoteísmos e politeísmos impregnados de fundamentalismo, que desembocam na guerra entre as religiões, como, aliás, vem acontecendo. Por isso, ele acredita que o sentido profundo do retorno deva ser colocado em algo mais originário, anterior às religiões estabelecidas. A primeira imagem que vem à mente de Derrida para simbolizar esse primórdio da religião é a de um deserto dentro do deserto. Seria um lugar anterior a qualquer lugar religioso, lá onde os profetas e os monges buscam o inefável e o indizível, que nenhuma religião tem palavras adequadas para expressar. Nesse deserto dentro do deserto aparecem dois símbolos que possibilitam imaginar a suprema originalidade do divino. O primeiro, Derrida chama de messianismo; trata-se, porém, de um messianismo sem nenhum messias histórico, pois precede todas as revelações que a história registra e se resume em uma abertura para o futuro, uma espera da vinda do Outro como o advento da Justiça. Seria um anseio de uma justiça plena, que deveria ser anterior e estar acima de todas as religiões. Uma surpresa absoluta e anárquica, isto é, sem as determinações e prescrições religiosas. Embora abstraindo das religiões, esse messianismo inclui uma experiência de fé no Outro e produz uma cultura universalizável das singularidades. Despojado de qualquer interesse religioso particular, ele é uma fé sem dogmas.
Outro símbolo que surge neste deserto anterior às religiões é Khora, imagem enigmática tomada de Platão, no Timeu, um dos mais profundos e obscuros diálogos do grande filósofo. Khora é um não lugar. É exterioridade e alteridade absolutas, que estão além dos seres (portanto além do ser religioso concreto). Não é o ser, nem o bem, nem um deus estabelecido, nem o Homem, nem a história; anterior a qualquer fé determinada e a qualquer lei religiosa, é algo que não se deixa “sacralizar” nem “teologizar” e resiste a toda tentativa de um absolutismo religioso. Deserto dentro do deserto, Messiânico, Khora, não seriam metáforas de Derrida que chegam à beira do Deus escondido, inefável, invisível e inexprimível? Entretanto, é preciso notar que, desde 1968, quando proferiu a célebre conferência sobre “Diferença” perante a Sociedade Francesa de Filosofia, Derrida vem descartando qualquer redução do seu pensamento a uma ontoteologia ou a uma teologia negativa. Essa conferência está publicada em Margens da Filosofia (1991) e sobre ela tivemos ocasião de elaborar um estudo mais detalhado (ver QUEIROZ, 2001).
Gianni Vattimo coordenou o encontro de Capri junto com Derrida. É professor na Universidade de Turim (Itália). Embora católico, vem contestando a rígida moral sexual do Vaticano. No texto O vestígio do vestígio (In DERRIDA E VATTIMO, org., 2000) trabalha a hipótese de que o retorno do sagrado em nossa época não é um fato puramente acidental, mas um aspecto essencial da experiência religiosa. Segundo o filósofo, há vários modos de encarar o retorno. Primeiro, ele poderia ser motivado por “medos apocalípticos”, pavor frente ao perigo nuclear, às ameaças no campo ecológico, à manipulação genética. Medo da perda do sentido da existência, do tédio que acompanha o consumismo. O novo apego à religião poderia ser um fenômeno que vem acompanhando a busca e a afirmação das entidades locais, das etnias, do poder tribal. Um retorno também ínsito na recusa da modernização. A religião seria uma grande aliada na luta das culturas ancestrais contra a ameaça de aniquilação pela cultura tecnológica ocidental. Outro motivo poderia ser o fato de que a filosofia e a ciência já não oferecem um sentido para a existência. Mas, em todas essas razões, mora um perigo. No Ocidente, o abandono do fundamento explicativo da filosofia e da ciência pode significar o recuo para um deus metafísico, fundamento imóvel da história, do qual tudo parte e ao qual tudo deve retornar. Um deus onipotente e fora da história. Ou podem os medos apocalípticos levar a um deus que é apenas uma projeção dos temores humanos. Quiçá estejamos presenciando o retorno de um deus que salva as etnias mas veste a armadura de um guerreiro; um deus terrorista, semeador de ódios, catástrofes, tragédias, feito à imagem e semelhança dos homens bombas.
Para evitar a recaída em qualquer um desses deuses, Vattimo propõe para a religião a via do “pensiero debole”, do pensamento fraco, pelo qual a filosofia descobre o divino como um vestígio, algo histórico, eventual, manifestando-se nos acontecimentos da vida e do cosmo. E um caminho para chegar a essa nova ontologia é abandonar o fundamento metafísico (pensamento forte) e firmar-se na historicidade da Encarnação do Verbo Divino. É preciso que a filosofia veja e interprete o retorno do sagrado como um fato encarnatório. Se o Deus, que a filosofia encontra, for apenas o monoteísmo, o deus único, há uma regressão a um tipo de metafísica despótica. A Trindade Divina, de cujo seio nasce o Verbo feito carne, oferece uma saída a esse risco de regressão. Por isso, Vattimo afirma:
parece ser somente à luz da doutrina cristã da Encarnação do Filho de Deus que a filosofia pode se apresentar como uma leitura dos sinais dos tempos, sem se reduzir a um puro registro passivo do curso do tempo... Deus encarna, revela-se na enunciação bíblica, e este fato dá lugar ao pensamento pós-metafísico da eventualidade do ser (In DEERIDA E VATTIMO, org. 2000:106).
O deus eventual proposto por Vattimo se afasta do ser na vertente de Parmênides e se aproxima da visão do ser em Heráclito. Não se trata de um ser absoluto, eterno, imóvel, sem principio nem fim, único, absoluta verdade e bondade, mas de um ser que é sempre um vir a ser, evolução continua, movimento, transformação; trata-se de um logos que reúne em si um jogo de constantes oposições. Deus, diz Heráclito, é “dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e penúria”.
Outro texto importante é do filósofo espanhol Eugenio Trias, com o título: Pensar a religião.(In DERRIDA E VATTIMO, org., 2000). Trias afirma que o retorno das religiões pode ser pensado por via negativa como o retorno das ilusões (para usar um conceito de Freud) ou das ideologias e do ópio do povo (para relembrar Marx), ou como superstições (como querem em geral os positivistas).
Ele acredita que a caracterização do retorno mediante esses estereótipos deva ser abandonada. Por outro lado, ele critica o regresso dos ritualismos vazios e das imposições morais obsoletas. O verdadeiro retorno das religiões deveria estar ligado a uma recuperação do seu valor simbólico.
Símbolo significa a junção de duas partes: uma, presente, material, é o “simbolizante”; a outra, ausente, é o simbolizado, que dá sentido ao aspecto material. Por exemplo, uma cruz tem seu aspecto material, “simbolizante”, dois pedaços de madeira unidos; mas o simbolizado, que lhe dá sentido, é a recordação de uma pessoa sagrada, que nasceu, viveu, sofreu, morreu, ressuscitou e liberta aqueles que nele acreditam. Esta simbolização requer testemunhas que presenciaram os fatos e atestam o valor do acontecimento simbólico.
Ampliando mais a reflexão, o mundo todo pode ser visto como um grande símbolo; vemos e experimentamos a sua parte material, mas o seu significado profundo nos é oculto. É preciso sempre estar em busca do sentido profundo do cosmo, da natureza, do ser humano, do sofrimento, do trabalho e das nossas lutas. A própria exclusão social pode e deve também significar a possibilidade de uma utopia, o advento da liberdade e da libertação. No oprimido, não há apenas o aspecto negativo, de sofrimento e tragédia; ele pode também significar e carregar a possibilidade de uma utopia de liberdade a ser conquistada pela práxis humana.
A virada lingüística é um dos fenômenos marcantes do século XX, que penetrou nas ciências em geral e no estudo da religião, a ponto de se poder afirmar que a linguagem passou a ocupar um lugar de “quase musa” na filosofia. (Silvia FAUSTINO, 1998: 87). O primeiro passo da virada foi o surgir da filosofia analítica, que se caracteriza, em termos gerais, “por ter como idéia básica a concepção de que a filosofia deve realizar-se de alguma maneira através da linguagem” (MARCONDES, 1989:11). Ela ganhou sua maior notoriedade com as posições do primeiro Wittgenstein, expressas no Tractatus Lógico-Philosophicus (1ª ed. em 1921) e no segundo Wittgenstein, das Investigações Filosóficas (1ª ed. póstuma em 1952). O primeiro, na esteira do positivismo lógico do Circulo de Viena, caracteriza o analítico da filosofia como “decomposição da proposição, reconstruindo-a em termos de uma concepção lógica da linguagem, produzindo desse modo a elucidação... Ela supõe uma ontologia que pode ser ilustrada pelo atomismo lógico, no qual se fundamenta a possibilidade do conhecimento científico” (MARCONDES, 1989: 36). Já o segundo inicia uma tradição analítica que em vez da decomposição da linguagem, busca “elucidar o significado das expressões lingüísticas através do exame do seu uso” (MARCONDES, op. cit.:36).
É notória a posição restritiva do Tractatus no que respeita o alcance da linguagem. Sendo essencialmente representativa, ela se restringe ao que se pode dizer com sentido, isto é, às coisas contingentes, fatos do mundo tal qual ele é. “No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece. Todo acontecer e ser-assim é casual” (WITTGENSTEIN, 6.41. 2ª ed. 1994: 275). Como conseqüência dessa posição, a crítica e os limites da linguagem vão constituir os limites da própria razão. As proposições, que pretendem expressar verdades absolutas, transcendentes ou valores, são sem sentido. Tudo o que se coloca fora das coisas contingentes são inexprimíveis. No final do Tractatus, vários aforismos aparecem para apontar essas realidades que estão fora do alcance da lógica lingüística. Por exemplo: “da vontade enquanto portadora de ética, não se pode falar” (6.423; 1994: 277). A filosofia também se esvazia, pois “o método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições das ciências naturais - portanto algo que nada tem a ver com a filosofia” (6.53; 1994: 281). Deus também é inexprimível: “como seja o mundo é completamente indiferente para o Altíssimo. Deus não se revela no mundo” (6.432; 1994:279). Partindo do principio de que “para uma resposta que não se pode formular, tampouco se pode formular a questão”, conclui Wittgenstein que “o enigma não existe” (6.5; 1994:279). Por isso, também a imortalidade da alma, por ser enigmática, é algo inexistente na lógica lingüística. E o último aforismo do Tractatus é categórico: “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (7; 1994: 281).
Os estreitos limites da linguagem expressos no Tractatus abrem janelas para uma leitura mística, que se desenrola no indizível, no silêncio; e o próprio autor estaria apontando esse horizonte. De fato, diz ele: “há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico” (6.522: 1994:281).
Desde 1940, Wittgenstein começou a redigir as Investigações Filosóficas, obra finalizada em 1952, e publicada em 1953, dois anos após a morte do filósofo. No prefácio, escrito em 1945, ele reconhece “graves erros naquilo que expusera naquele primeiro livro” (isto é no Tractatus) (WITTGENSTEIN, 2ª ed. 1996: 12). Nas Investigações, o autor trabalha uma concepção de linguagem que ficou célebre e ganhou espaços em várias áreas do saber, a teoria dos jogos lingüísticos. A linguagem não é mais monolítica mas se desmanche em um número infinito de jogos. Ela adquire diferentes funções como “as ferramentas dentro de uma caixa: martelo, alicate, serra, chave de fenda, metro...” (WITTGENSTEIN, nº 11; 1996: 20). O sentido das palavras não é estático; depende do uso que dela se faz. Os jogos correspondem a infinitos usos da linguagem, desde a construção de teorias científicas, até os mais corriqueiros, como agradecer, xingar, cantar, poetar, saudar, rezar. Esses jogos nascem continuamente, caem em desuso, se extinguem, a depender das circunstâncias concretas da vida.
Lyotard recorreu amplamente a essa teoria na obra A Condição Pós-Moderna. Segundo o autor, o problema do saber, na sociedade pós-moderna, é analisado pelo método dos jogos de linguagem, considerando seu aspecto pragmático (LYOTARD, 1993:15). Por isso, no capítulo III, ele apresenta uma visão sumária dos jogos de linguagem. Os enunciados, que os constituem, podem ser denotativos ou descritivos, declarativos ou de desempenho, prescritivos, interrogativos, promitentes, literários, narrativos. São chamados jogos porque devem ser determinados por regras que especificam suas propriedades e o uso que deles se faz (Ibid.,: 15-16). Essas regras não possuem legitimação por si mesmas, mas constituem objeto de contrato, explícito ou não, entre os jogadores. Na ausência de regra, não há jogo e a modificação da regra modifica também o jogo; um lance ou enunciado fora das regras não pertence ao jogo definido por elas (Ibid.,: 17).
Os jogos (ou atos) de linguagem contêm uma “agonística geral” (ou dialética): falar é combater, no sentido de jogar. Pode-se jogar para ganhar ou por puro prazer, como, por exemplo, o prazer da criatividade literária (Ibid.,: 17). O vínculo social é constituído de jogos de linguagem (Ibid.,:17-18).
Na perspectiva moderna, a sociedade é vista sob dois modelos: o funcionalista, capitalista ou neocapitalista, que a considera como uma totalidade unida, que deve superar as crises (ou disfunções) mediante o desempenho, a competição, visando à otimização da relação global. O outro modelo é o marxista, ou modelo crítico, que vê a sociedade dialeticamente e adota o princípio da luta de classes. Ambos os modelos estão em crise na atualidade, embora tenham influência na concepção do saber (Ibid.,: 20-24). Na perspectiva pós-moderna, as grande narrativas estão em decomposição, não mais sustentam o vínculo social e o saber. Apesar dessa crise, Lyotard acredita que não há uma total dissolução do vínculo social, pois os sujeitos não estão isolados, mas participam de um tecido de relações e comunicações complexas e móveis, nas quais, ora assumem a posição de remetente (aquele que enuncia), ora de destinatário (aquele que recebe), ora de referente (o conteúdo do enunciado). Todos participam de um ou do outro modo de relacionamento e de vínculo social constituído pelos jogos de linguagem. E os deslocamentos dos sujeitos nas várias posições (remetentes, destinatários, referentes) é encorajada pelo próprio sistema para aumentar o desempenho dos indivíduos e do grupo de “parceiros” no jogo (Ibid.,: 28-29).
O jogo científico do século XIX se fundamenta na verificação. O remetente deve provar seu enunciado e refutar o enunciado contrário. O do século XX tem por base o princípio de falseabilidade: uma proposição é científica se puder ser submetida a uma demonstração de que seja falsa e será verdadeira enquanto tal demonstração não acontecer. O consenso é apenas um horizonte nesse jogo e não é indicativo da verdade (Ibid.,:45).
No saber tradicional (histórias populares, saber “primitivo”) predomina a forma narrativa. Já o científico trabalha com o jogo de linguagem denotativo e tende a excluir os outros. Ambos os saberes (científico e narrativo) são igualmente necessários. A ciência não pode julgar o valor do narrativo, nem o inverso (Ibid.;:48-49). Entretanto, há um conflito entre os jogos de linguagem desses dois saberes. O cientista questiona a validade dos enunciados narrativos e o fato de os mesmos nunca serem submetidos à argumentação e à prova. Por isso, classifica-os de selvagens, alienados, ignorâncias, ideologias, fabulas, mitos. Mas acontece um retorno do narrativo no jogo da ciência, pois não raro há cientistas narrando suas descobertas em entrevistas e reportagens. (Ibid.,:51). O próprio Estado investe para apresentar a ciência como epopéia. Os diálogos de Platão legitimam a verdade pela narração; o discurso de Platão, que inaugura a ciência, não é científico. O saber científico não pode se impor como verdadeiro sem recorrer a outro saber, o relato, que para ele é o não saber. As narrativas estão presentes nas filosofias antigas, medievais e clássicas (Ibid.,: 53).
A posição moderna e pós-moderna do saber como jogo de linguagem suscita a indagação: as crenças religiosas podem ser vistas como jogos de linguagem? A questão vem sendo debatida desde os anos 60. Filósofos da religião como Ronald Hepburn, John Hick, Kai Nelson manifestaram-se contrários. Já D. Z. Phillips, em artigo publicado na revista Ratio, em 1970, reeditado recentemente sob o título Religious Beliefs and Language-Games (“Crenças religiosas e jogos de linguagem”), posiciona-se favorável. (PHILLIPS, In: MITCHELL, 2004:121-142).
O autor não esconde a plausibilidade de certos receios advindos dos que sustentam a posição contrária e procura dissipá-los. O receio mais comum é que a admissão das crenças como jogos de linguagem poderia reduzir o entendimento e a prática da religião a poucos iluminados, que compreendem esses jogos, criando assim um segmento esotérico entre os crentes. Esse receio, segundo Phillips, decorre do fato de pensar a crença religiosa como algo isolado, “como jogos de linguagem auto-suficientes e de pouca relevância fora das formalidades internas de suas atividades” (Ibid.:122 - as traduções dos textos são nossas). Assim considerados, eles tomariam um aspecto de “hobbies para se ocupar em fins de semana” (p. 122). Essa visão esotérica poderia justificar a suspeita de que as crenças religiosas “estariam fora do alcance de qualquer crítica possível, e o apelo para a interioridade dos critérios religiosos de sentido poderia atuar como uma justificativa para coisas que, de outro modo, seriam tidas como sem sentido” (Ibid.,: 122).
No intuito de desfazer esses receios, o autor enfatiza que os jogos de linguagem das crenças religiosas nunca devem ser tomados como absolutos ou metafísicos. Eles expressam juízos de valor históricos, relativos às circunstâncias, e reversíveis (Ibid.,: 123). Entretanto, a crença em Deus, ou em alguma divindade, assume, para muitos crentes, um caráter absoluto; para eles, não se pode justificar a qualidade divina de Deus por fatores externos.
Mas, insistem os adversários, as crenças não devem mostrar-se importantes para os adeptos em geral? E essa relevância não é relativa aos resultados positivos advindos da fé?
Buscando responder, Phillips adverte que é necessário discutir o uso e o alcance da palavra “importância”. Muitas vezes, ela inclui um juízo de valor relativo: acredita-se em Deus porque é o ser mais poderoso e só os que nele confiam têm a garantia da prosperidade final; ele tem a história nas mãos e sempre vencerá, apesar das aparências contrárias. Ao fundar-se em juízos de valor dependentes do sucesso da fé, a crença se torna inútil se o desenrolar dos acontecimentos for em direção contrária às expectativas. Mas, segundo Phillips, essa posição parece falsear o caráter absoluto que a crença em Deus apresenta para muitos fiéis. No caso de se acreditar com base em juízos relativos, não será mais uma fé em Deus, mas um acreditar nas coisas mais proveitosas para o crente. “Se as crenças religiosas têm apenas um valor relativo, não podemos dar conta da distinção entre ultramundanidade (transcendência) e mundanidade (imanência), distinção importante na maioria das religiões” (Ibid.,:124).
Não é o resultado ou o curso dos acontecimentos que deve determinar se Deus é vitorioso; é a fé em Deus que determina o que se há de considerar como valor. Daí advém a tensão entre o modo mundano de dar valor aos eventos e o modo religioso. Para muitos crentes, é o amor de Deus que qualifica o que é importante, tanto assim que fatos considerados sucessos para o fiel podem parecer fracassos aos olhos do mundo (Ibid.,:125).
Outro argumento, que justifica o receio dos que se opõem a admitir os jogos de linguagem nas crenças religiosas, é a alegação de que crentes e não crentes devem utilizar critérios comuns de racionalidade para demonstrar suas posições. Se não o fizerem, pode pairar a suspeita de que as crenças religiosas sejam jogos esotéricos e até irracionais. (Ibid.,:126).
A essa alegação, Phillips responde dizendo que a oposição existente entre o discurso dos que afirmam crer em Deus e aquele dos que o negam não se pode generalizar incluindo-a entre as contradições comuns que ocorrem entre os homens quando discutem sobre coisas do mundo, pois, nesse caso, os oponentes estão jogando o mesmo jogo e observando as mesmas regras. Já a contradição entre crentes e não crentes se coloca em outro campo, pois “a realidade de Deus não pertence a um gênero, não é um ente entre os entes. Por isso, ela não pode ser enquadrada em uma medida comum que se aplique também a coisas distintas de Deus”. (Ibid.,:127).
Uma generalização, que conduz a muitos mal-entendidos nas discussões filosóficas sobre religião, é pensar que nada se pode crer se não houver evidência ou razões para tal. Nem sempre as crenças religiosas precisam ser hipóteses demonstráveis ou falseáveis. Muitas vezes, elas são para os crentes afirmações absolutas, que jogam um papel importante no seu pensamento e no seu agir (Ibid.,:128-130).
A importância da religião na vida não se pode compreender separando a religião dos outros modos da vida social. A força das crenças depende em parte do que está fora da religião (Ibid.,:132-134). Por isso, os jogos de linguagem não devem ser vistos isolados das demais formas de vida. Daí decorrem as tensões ínsitas nas crenças, quando a pessoa se defronta com o problema do mal, do sofrimento, da morte, da perda prematura de um filho, e outras tragédias. Se se tratasse de meros jogos esotéricos, esses infortúnios não seriam uma terrível prova da fé. (Ibid.,: 136).
O autor finaliza assinalando os limites da filosofia da linguagem ao abordar as crenças religiosas como jogos lingüísticos. Diz ele que a filosofia não se coloca nem a favor nem contra elas. Depois de procurar esclarecer a “gramática” de tais crenças, seu trabalho está encerrado. Como resultado deste esclarecimento, pode ser que alguém entreveja que as crenças religiosas não são o que pensavam; ou que alguém deixe de objetá-las, ainda que não acredite nelas; ou que alguém ache que agora é capaz de crer; ou enfim, que alguém odeie a religião mais do que odiava antes. Os resultados são improváveis. Em qualquer caso, não são assuntos da filosofia (Ibid.,:142).
A reflexão filosófica sobre a linguagem, na esteira do segundo Wittgenstein, e sua relação com a religião, amplia-se nos estudos de Paul M. van Buren, que apresenta dois períodos distintos na sua trajetória. O primeiro van Buren, ao escrever, em 1963, The Secular Meaning of the Gospel (“O significado secular do Evangelho”) assumia uma posição neopositivista; retomava a morte de Deus, proclamada por Nietsche, instituindo um “ateísmo semântico”. Enquanto o teísmo afirma Deus pela força da razão, e o ateísmo o nega, o agnóstico não encontra razões para negar ou afirmar a sua existência. Já o “ateu semântico” não vê sequer a possibilidade de se colocar esse problema, pois termos como Deus, Providência, Outra Vida, são inverificáveis, portanto, sem sentido. Mas o principio de verificação foi criticado e superado pelo principio da falseabilidade (Popper). Um mergulho nas Investigações Filosóficas do segundo Wittgenstein, que revolucionou os estudos da linguagem pela teoria dos jogos e pela ênfase nas vida e no uso como fontes do sentido das palavras, levam van Buren a rever suas posições, e a escrever, em 1972, uma obra considerada um marco na filosofia da religião, The Edges of Language. An Essay in the Logic of a Religion, (“As Fronteiras da Linguagem. Um ensaio sobe a lógica de uma religião”) cujos pontos centrais, expostos no capitulo V (“Os limites da linguagem”) e no capítulo VI (“Falando nas fronteiras da linguagem”), vamos apresentar, seguindo a tradução italiana de 1977, pois não nos foi possível o acesso ao original inglês.
A linguagem tem limites porque tem regras. Eliminadas as regras, já não há mais linguagem. Mas nem por isso se deve pensar a linguagem “como uma gaiola, que restringe nossa liberdade de movimento” (van BUREN, 1977:87). Para eliminar essa concepção restritiva, o autor acredita que o papel da linguagem pode ser melhor entendido introduzindo a imagem de uma plataforma, sobre a qual podemos circular, caminhar, dançar ou dormir, isto é, fazer tudo o que fazemos com as palavras (Ibid.,:91). Longe de nos aprisionar, a plataforma linguística nos torna livres. No centro dela, nos movemos com segurança; já menos seguros estaremos se caminharmos para as margens. Se chegarmos ao seu extremo, corremos o risco de cair fora dela. O centro da plataforma corresponde àquela linguagem cujas regras são claras: é o linguajar do cotidiano e das ciências. Indo para a periferia, a linguagem deixa a clareza do centro e assume o falar metafórico, analógico e até paradoxal, mas ainda continua submetido a regras, mesmo que chegue à extrema fronteira. Se ultrapassá-la, cessam as regras e caímos no falar sem sentido.
No Ocidente, as forças econômicas nos pressionam a concentrar nosso modo de falar e viver no centro, isto é, nas áreas mais definidas e seguras, nas quais o valor é medido em dólares, a educação se reduz a treinamento para conquistar uma profissão e uma obra de arte se transforma em investimento (Ibid.,: 110). Entretanto, há muitos que se sentem inclinados para os confins da linguagem, atraídos pelo desconhecido, pelos enigmas, que podem talvez levar a descobertas, pois não só os cientistas mas também os poetas, os profetas, os artistas são descobridores, como diz John Wisdon, em Philosophy and Psycoanalysis, (apud van BUREN, 1977: 111).
Razões culturais também conduzem a essa viagem para as fronteiras. Quanto mais amplo é o espectro da linguagem, mais ricas são a compreensão do mundo e as possibilidades da vida. Nossa cultura tecnológica e industrial (cultura dita secularizada) por muitos é vista como chata, ausente de imaginação. As extravagâncias lingüísticas são traços de uma “contracultura”. Ir para as fronteiras indica também uma reação pessoal à ordem estagnada da sociedade. Ordem e regras são muitas vezes consideradas como fins a si mesmas. Uma boa dose de desordem e de caos pode ser necessária para tornar humana a vida. Excluir as fronteiras significa colocar limites indesejáveis à nossa liberdade (Ibid.,: 112).
Há várias manifestações deste comportamento lingüístico que vão às fronteiras do uso das palavras. O “scherzo”, jogo de palavras humorístico, é um deles. Jogamos com a semelhança fonética das palavras para expressar significados diferentes, como, por exemplo, dizer que um falecido é muito “vivo” porque encomendou um funeral extravagante. Jogar com as palavras é jogar com os fundamentos de todas as nossas relações com o mundo. Por que devemos ser sempre sérios, sem humor? O humor, em palavras, expressa as fronteiras da nossa existência lingüística. A linguagem do amor também toca com freqüência as fronteiras das nossas regras para a aplicação das palavras. Ela se move ao longo dos limites extremos dos nossos modos de expressar os sentimentos humanos. Estar apaixonado é pendurar-se na orla e às vezes precipitar-se para além da plataforma lingüística, correndo até o risco de cair no sem-sentido. Entretanto, mesmo na relação amorosa não há como fugir da linguagem. Se isso ocorresse, o amor seria mudo. Os amantes podem se entender uns aos outros porque se projetam até, não porém além dos limites da linguagem. A poesia é outro exemplo. Ela é uma “irrupção no inarticulado” (T. S. ELIOT, apud van BUREN, 1977: 115). O poeta joga com as palavras e descobre nelas a possibilidade de novos usos e combinações.
Enfim, a religião é outro modo de se falar nos extremos da linguagem. Ela é também um comportamento lingüístico ao apresentar-se como oração, pregação, teologia, atividades culturais coletivas, canto, colóquio, e outras manifestações. Na maioria das vezes, ela permanece dentro dos limites. Mas o que caracteriza como religioso o comportamento lingüístico é o fato de viajar pelas fronteiras, expressando-se por meio de paradoxos, do balbuciar palavras, do silêncio. As pessoas religiosas usam metáforas, parábolas e outros modos indiretos de dizer o que entendem (Ibid.,:120). Falam da impossibilidade de conhecer o Deus no qual acreditam, olham o sorriso de Buda como a única resposta às perguntas dos homens, dizem que a razão não conhece as razões do coração, ou que a maior sabedoria do homem pode ser o silêncio. Admitem que a fé se aproxima do não-sentido e que suas palavras podem fracassar; muitas vezes elas são as mais ambíguas porque o crente é levado a estendê-las até o extremo limite da área na qual operam as suas regras e também porque quem tem fé sempre quer dizer sobre ela tudo o que for possível.
Na religião cristã, a palavra Deus é a que mais se aproxima das bordas da plataforma. Na Carta de Paulo aos Romanos, van Buren vê um exemplo do falar nos confins da linguagem quando o Apóstolo, mestre na oração, insiste em afirmar que não sabe o que dizer quando reza, “mas o Espírito intercede com insistência por nós com gemidos inexprimíveis (Rom 8,26, apud van BUREN, 197:121). Outro exemplo é quando o Apóstolo explica que há uma multiplicidade de corpos e termina distinguindo entre corpo físico e espiritual. (I Cor 15,39-44). Aqui é evidente que a palavra corpo foi estendida ao máximo até um ponto de ruptura além do qual o seu uso já não seria mais governado por regras e ultrapassaria os limites da nossa linguagem. “Empurrar as palavras até seus limites extremos é essencial para o comportamento lingüístico que é a religião” (Ibid.,:121).
Percorremos um rápido itinerário pelos filósofos pós-modernos, que buscam explicar o fenômeno atual do retorno massivo das religiões. Eles se mostram preocupados em que esse re-encantamento do mundo não seja uma volta ao teísmo, a uma teodicéia racionalista, aos resquícios da metafísica ou a uma ontoteologia. Por isso, as suas reflexões procuram expressar o divino em metáforas que possibilitam descartar esse risco. Derrida recorre ao deserto dentro do deserto, ao messianismo sem messias, ao Khora platônico, a uma escritura primordial além das revelações e da própria revelabilidade. Vattimo vai ao “vestígio do vestígio”, ao religioso como ser eventual, historicamente manifestado na Encarnação do Verbo. Trias vê nesse retorno a possibilidade de uma nova hermenêutica simbólica. Já os filósofos da linguagem religiosa querem superar os estreitos limites do neopositivismo, que leva a um novo “ateísmo semântico”, e analisam a religião como fenômeno lingüístico, enfatizando os limites e as possibilidades desse enfoque.
Para nós, latino-americanos, preocupados com um fazer teologia e ciência(s) da religião em nosso contexto, a partir dos grandes desafios sociais e religiosos que enfrentamos, o discurso desses filósofos pode parecer inacessível, deixando até transparecer um mundo no qual as teorias nem sempre surgem da arena dura e angustiante do cotidiano. Entretanto, julgamos que os temas que eles levantam são relevantes em toda parte, incluem, e ao mesmo tempo transcendem, os relatos conjunturais das realidades históricas. Acreditamos que certas categorias, que eles trabalham, algumas das quais focalizamos, são férteis e se prestam a um diálogo com o nosso fazer teologia e ciência(s) da religião.
Percebe-se também que a intenção deste trabalho foi mais expositiva do que analítica, mais interrogativa do que afirmativa. E é indagando que terminamos. Deus e a religiões estariam desaparecendo no bojo da crise das grandes narrativas (Lyotard)? Estaria decretado o fim do divino ou a sua metamorfose em um mero simulacro, no naufrágio do real (Baudrillard)? Que dizer da louvável tentativa de filósofos pós-modernos em superar a “morte de Deus”, voltando-se, porém, a um divino e a uma religião para além de metafísica e da ontoteologia? As metáforas de Derrida não seriam um retorno ao Deus indizível do primeiro Wittgenstein? O Deus histórico, encarnatório, eventual de Vattimo e o universal simbólico de Trias, não enclausuram a transcendência nos limites da pura imanência? A ênfase dada à linguagem e aos seus jogos na análise das realidades religiosas não abriria um dualismo entre linguagem e razão, privilegiando o discurso a ponto de marginalizar a racionalidade? A famosa plataforma de van Buren seria o marco final explicativo dos limites e possibilidades da linguagem religiosa? São algumas indagações desafiadoras a exigir ulteriores discussões, que transcendem os limites deste ensaio.
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[1] Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP