Nietzsche: Um Tipo Asceta

Mauro Araujo de Sousa[*]

Resumo

O ascetismo ficou conhecido pelos esforços dos metafísicos para alcançar seus objetivos “espirituais” e Nietzsche dedicou, em especial, uma crítica aos ideais ascéticos na III Dissertação de Para a Genealogia da Moral, porque a ascese tomara a “vida transcendente” como referencial de todos os valores para além desta vida, que é imanente. Assim, indo à origem da cultura ocidental, Nietzsche propõe que uma ascese com base na transcendência, no imutável, na “verdade”, seja revista a partir de uma perspectiva da vida, desta vida, - um fluir constante, com lugar somente para a mudança, para “aparências”. Portanto, alguém que deseja estar além do que seja o comum na contemporaneidade só poderia exigir de si o máximo de auto-superação, de um domínio de si mesmo, para se realizar em uma espiritualização dos instintos no lugar da castração que os valores transcendentes têm proposto para o corpo como vida. Este alguém se configura em um tipo asceta que, aqui, é apresentado como o próprio Nietzsche.

Abstract

Ascetism became known for the efforts made by metaphysician to reach their 'spiritual' purpose. Nietzsche published a critique on ascetical ideals in the III Dissertation of the For the Genealogy of Morals because ascesis had taken 'transcendental life' as a reference for all values beyond this life - which is immanent. Thus, by returning to the cradle of Western culture, Nietzsche propounds a revision of ascesis based on transcendence, immutability, and 'truth' from the standpoint of life, this life - a constant flow, concerned exclusively with change, with outward aspects. Therefore, anyone willing to go further ahead of what is ordinary in the contemporary world could only demand of oneself the utmost self-overcoming, the utmost self-control in order to attain a quintessential spiritualization of instincts instead of the sterilization that transcendent values have long prescribed to the body as a rule for life. This hypothetical being is embodied in ascetic type, here represented as Nietzsche himself.

Introdução

Por influência religiosa, o ascetismo tem-se sobressaído como um exercício espiritual, diante do qual o corpo não é senão um instrumento. O próprio corpo é modelado diante de uma ascese imposta pelo “espírito”. Nesta perspectiva, o corpo fica sempre em segundo plano e essa é a melhor das hipóteses do ascetismo para o corpo. A pior é aquela em que o corpo, para dar liberdade à alma, deixa o “espírito” fluir e acaba consigo mesmo. Certamente há exceções entre os ascetas que optam pelo além e esta exceção é caracterizada por cuidar bem do corpo enquanto a alma estiver habitando nele. Platão, como atleta, lembra tal posicionamento. Em um tipo filosófico para o qual o corpo se fazia cárcere da alma, no mínimo deveria soar estranho o cuidado com o corpo. Porém, não devemos esquecer que Platão priorizava a alma e o seu mundo das Idéias. E a alma, enquanto estiver no corpo, implica em que este merece ser bem tratado. Platão morreu idoso e forte.

A condição é que, antes de Platão e depois dele, muitas religiões praticaram o ascetismo contra corpo e em prol do além. Interessante é que Nietzsche, crítico por excelência do ideal ascético, principalmente na GM/GM III, estende esta metafísica ao artista, ao cientista e ao filósofo. Porém, ele o faz tomando a verdade, o a priori como ponto de referência para tais tipos humanos. Neste sentido, ascese do ideal ascético do religioso, do artista, do cientista e do filósofo não se diferenciam, porque todas essas asceses têm como baliza um mesmo ideal: o de verdade. Ainda que artistas, cientistas e filósofos não necessariamente desprezem o corpo como muitos religiosos fizeram e continuam fazendo, a questão é que a ascese do ideal ascético se sobressai enquanto princípio ascético geral. Há nisto um erro de generalização, para usar um princípio da lógica. Aliás, este é um problema dos conceitos, ou seja, eles generalizam, universalizam o que não é universalizável.

Mas, diante deste quadro de ascetismo, do qual Nietzsche, a um primeiro momento não poderia escapar como filósofo, surge uma nova perspectiva. Talvez não tão nova, uma vez que para os gregos a ascese tem o significado de exercício, de esforço para se atingir um fim, contudo um fim imanente. É o caso, por exemplo, do soldado que se exercita para a guerra. Ele se prepara com artes marciais de modo a deixar “prontos” o corpo e o espírito para qualquer eventualidade de combate que, naquela época, era mais um combate corpo a corpo. Ascese, portanto, como necessidade para um a mais de força e não somente em nome da sobrevivência, mas do viver. Para muito mais eles treinavam, para o exercício mesmo do poder, para a efetivação das forças em relação ou para a vontade de poder.

Nisto está a diferença de um Nietzsche como tipo asceta, isto é, não existe dualismo entre corpo e alma ou corpo e “espírito”. Este tipo asceta é o da ascese imanente contra o ideal ascético. Até então, mesmo os filósofos sacrificavam seus corpos em nome da “verdade” procurada pelo “espírito” e não pelo corpo. Filósofos cujos corpos se fazem “mentes”, porém mentes vazias em nome de um racionalismo que tomou conta da filosofia por séculos a fio. Um tipo asceta nietzschiano ou um Nietzsche como um tipo asceta vem apresentar um novo olhar, uma nova perspectiva, uma ascese que, porém, ultrapassa a ascese do guerreiro grego. Ultrapassa porque Nietzsche está para além de um pessimismo, caso, por exemplo, entre os gregos diante de seus jovens hoplitas que morriam em combate. Para o filósofo, a morte está contida na vida. Não há dualismo de vida e morte. O que este tipo filosófico pretende é o amor fati. Então, temos uma ascese diferente, uma ascese longe do ideal ascético e próxima do amor incondicional à vida.

O ideal ascético sob ótica nietzschiana

Na perspectiva de que a religião, a arte, a filosofia e a ciência têm em comum a metafísica, isso nos vem por meio de suas ligações com a verdade. A arte, no caso, como aquela que imita a “realidade” e, neste caso, visto mais por um viés aristotélico, também tem como referencial a verdade. A condição da verdade dá-se, pois, em todas as instâncias citadas, uma vez que é por esse ideal que todas elas possuem a metafísica como algo em comum. O ideal ascético assume, assim, a metafísica do religioso, a metafísica do artista, a metafísica do filósofo e a metafísica do cientista. Todavia, a relação com o corpo muda em cada instância. Um religioso, por exemplo, pode se autoflagelar para conseguir a “purificação” e ficar mais próximo da “verdade”. Um artista já põe a sua “alma” na sua arte, porém não precisa chegar ao autoflagelo. O artista até pode ter a realidade corpo como um protótipo, pode ter a “intuição” como um a priori, ainda que não seja um imitador, mas um criador. Já um filósofo disciplina o corpo e a mente para o caminho da reflexão e da ação mais “apropriada” ao homem que raciocina, porém isto não é um indicador de que seu corpo precisa ser flagelado ou, em outras palavras, que ele precise se libertar do “cárcere da alma”, contudo ele está, desde o início da História da Filosofia, preocupado com a “verdade”, com o “ser”. No caso de um cientista, cabe-lhe muito menos a questão do cuidar mal do corpo, uma vez que a ciência tem em vista, inclusive, o “progresso”, o que dá a subentender a busca da diminuição do sofrimento do corpo, o que, por sua vez, pode diminuir o sofrimento da “alma”. Mas, assim como o filósofo, da verdade nenhum deles escapa. São todos tipos do ideal ascético, em busca do transcendente, do a priori, da “verdade”.

São tipos ascéticos mesmo os que atuam na imanência, porque não deixam de lado a ontologia, de forma que têm em foco a questão da “verdade do ser”. É importante frisar que tais tipos têm, também, a crença na razão como ponto de unificação entre eles. Ainda no tipo religioso, a razão também atua, mesmo sendo denominada de “espírito” ou, “melhor”: que a “razão” está presente no “espírito” que raciocina, sendo o espírito um “corpo” sem corpo. “Puro espírito”.

Qual é, por assim dizer, a função da ascese no ideal ascético? Estabelecer a prioridade do além sobre o aqui e agora, do além ou como sobrenatural, ou ainda um além que está para lá do corpo, um “além” razão. Parece também, ainda que com o êxtase do artista, o corpo sempre é aquele que deve ser submetido. No ideal ascético, ele é submetido a um além-mundo, a um além-corpo.

Tomando-se a arte como referência, “imitando uma aparência”[1] ou “criando uma aparência”, fazendo corpo e espírito flutuarem, ela ainda é plástica demais, o que remete o corpo, com seu olhar, para o belo e do belo temos o estopim do êxtase. Podemos levantar aí a questão do “em si”, do “belo em si”. A metafísica do artista pode caminhar para este lado contemplativo. Por isso, não foram poucos os filósofos que também se enveredaram por este caminho. De um Platão a Kant, por exemplo. Em Kant, é sabido que o “em si” é inatingível pela razão, porém Kant não nega a existência deste “em si”. O ideal ascético kantiano, ao que parece, não obteve tanto sucesso na sua “liqüidação” com a metafísica.

Porém, dentre todos os tipos do ideal ascético, nenhum foi mais longe em perspicácia, em criatividade, em crença, do que o religioso e, especialmente, o religioso cristão. A própria promessa de ressurreição do Cristianismo, que é a promessa de um novo corpo, atinge apenas os “puros de alma”, ou seja, o cerne da questão não mudou.

No ideal ascético, qual a finalidade do corpo? É o de ser instrumento para se atingir o que está além dele mesmo. Por isso, a apropriação da noção inicial da ascese grega passa para o estágio da ascese como exercício do corpo em prol da alma. O dualismo entra em vigor com as mesmas “armas” da imanência deslocadas para a transcendência. E o Cristianismo atingindo a arte, a filosofia e mesmo a ciência, faz a ascese, então, se transformar naquilo que perpassa todo o conhecimento humano: a consciência, porém consciência “pura”. Consciência com o objetivo de castração dos instintos em prol do conhecimento em todos os seus aspectos. Também no conhecimento mítico, o qual não deixa de ser um conhecimento. O caso é que, agora, temos o dualismo do exercício: aquele relegado à educação física e aquele que é a ascese que cuida da alma, da razão. O dualismo platônico toma contornos bem visíveis. A ascese do corpo, se quisermos dizer de outra forma, é diferente da ascese do espírito. No racionalismo ou na espiritualidade, e, ainda, muitas vezes, os dois como sendo um só. Temos sempre o corpo em segundo lugar.

Mesmo no Oriente, em vista de um trabalho “holístico”, que integra corpo e alma, tudo caminha para aquele tipo de meditação em que o corpo é percebido pela razão em variados graus dessa mesma razão, o que demonstra que ainda nisto existe a preponderância do espírito sobre o corpo. Em termos de espiritualidade, não há, neste caso, diferenças entre o Ocidente e o Oriente. A não ser no caso de niilismo absoluto, mas aí o desprezo também é absoluto, o que não melhora em nada o tratamento da questão do “ser”. Pelo contrário, o “nirvana” o faz piorar, se a palavra for levada às suas últimas conseqüências como nir = não e vana = sopro. No nirvana, o sopro da vida se esvai. É o niilismo total.

O que parece é que, até agora, não há uma clareza a respeito de que tipo de relação o homem tem que ter com seus instintos. A castração, ao que tudo indica, tem sido o único modo de lidar com eles. Ascese como castração é uma prática bastante comum ainda na atualidade, o que nos remete ao questionamento do que vem a ser “atualidade”. Na congregação do passado e do futuro no instante, isto é, só do instante como o que existe, o homem ainda está para aprender o que deve significar ascese. Mas, este homem do ideal ascético não eternizou esta vida, ele eternizou a vida no além, eternizou, em outras instâncias de seu conhecimento, a razão como consciência e como superiora ao corpo que “não pensa”. O tipo do ideal ascético eternizou a negação desta vida tendo em vista congelar o “ser”. Em alguns casos, optou pelo “não-ser”. O ideal ascético, ainda que muitas vezes flerte com o vir-a-ser, não está disposto a uma aproximação maior com o devir. O que temos é um não à vida como deveniente. Para longe de tudo que escapa ao “eu”, os metafísicos firmaram sua noção de vida. De algum modo, o antropocentrismo sempre esteve presente. No Renascimento, por exemplo, o homem não se desprendeu do seu “eu”, mesmo aí, quando entendeu virtú para além de virtude, para além de uma “moralina”, tendo a chance de por a ruir o Cristianismo, não o fez, como afirma Nietzsche (Cf. AC/AC, 61). A virtude moral dominou. Alguém colocaria “algo” no lugar da “Onipotência”?

O Caso Schopenhauer

Tratando-se de ascese não se pode deixar de lado aquele que, em um primeiro instante, Nietzsche muito admirou. Afinal, ele apresentava ao filósofo de Röcken algo de diferente. Não mais havia um Deus que governava o universo, mas uma vontade. Até que, aos poucos, Nietzsche o criticou também. Schopenhauer estava em uma metafísica: uma metafísica da vontade. Uma vontade absoluta e não plural. Uma vontade cega, porém cosmológica, pois sua ordem (cosmos) é a conservação de si mesma por meio de todas as aparências, ou seja, de tudo que existe como um aparecer da vontade ou a soma das partes para se obter o todo. Neste aparecer de parte em parte, estaria ela presente, a própria vontade, a vontade como “vontade em si”. Nada mais tem importância para esta vontade, a qual é cega e “em si”. Em seus escritos, Schopenhauer, pessimista, apresenta-se com uma “categoria” nova: uma vontade cosmológica, porém metafísica. Mas, ainda a metafísica governava fortemente a filosofia.

E qual o único e efetivo “remédio” que ele, em seus escritos, indica para o homem escapar e firmar-se diante dessa vontade absoluta? O ascetismo rigoroso com o corpo. Mas, de onde vem esse pessimismo? De sua perspectiva sobre a natureza e, claro, da “natureza humana”.

A natureza está sempre pronta a abandonar o indivíduo que não somente está exposto a perecer de mil modos e pelas causas mais insignificantes, como também é, desde o princípio, destinado a uma perda certa, para a qual é arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão que tem de conservar a espécie. Com isto a natureza exprime ingenuamente esta grande verdade, que são as Idéias e não os indivíduos que têm uma verdadeira realidade, isto é, são a objetividade perfeita da vontade. (Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, p. 27-8).

O homem é um instrumento na mão de uma natureza que faz da “razão humana” sua “objetividade” enquanto natureza. A vontade dotou de “idéias” o homem para que, por meio dele, visse a si própria como em um espelho: visse a si como uma “Idéia”. Em um espelho porque seria a sua representação, uma “imagem” da própria vontade. O homem como um tipo de aparecer da vontade suprema, fornece à mesma uma capacidade de ver a si mesma representada, porém para além de um fragmento chamado homem. No homem mora a “razão universal” e casual desta própria vontade. Se universal, então absoluta, segundo os ditames da própria lógica.

E o que seria, neste homem enganado pela vontade, a “vontade de viver”? Não seria a sua vontade de viver. Daí, sua ilusão. Esta vontade, da qual ele é fenômeno, “[...] está certa de viver: a forma de vida é um presente sem fim; e pouco importa que os indivíduos, fenômenos da Idéia, nasçam e morram como sonhos fugazes” (ibid., p. 34). Destarte, faz-se compreensível o pessimismo de Schopenhauer. A pergunta que resta é: o que pode o homem diante desta vontade? “A reflexão é quase impotente contra a poderosa voz da natureza” (Ibid., p. 35). Nesse caso, ainda resta algo sobre o “quase”. Schopenhauer, então, apela para o ascetismo como forma de castigar a vontade e age de forma pela qual o homem atinge esse “quase”. Desse modo, a reflexão ainda traz ao homem dirigido pela vontade uma salvaguarda. Mesmo assim, na realidade, aquilo que nele próprio, o homem, é denominado de vontade, não é a sua vontade, mas é a vontade metafísica travestida de indivíduo que sempre vê a si mesma. O que isso causa ao homem, segundo Schopenhauer? Não poderia ser diferente: “viver é sofrer”. Por mais que o homem tente satisfazer a vontade, pensando-a como “sua vontade”, ele nunca satisfará a vontade em si mesmo e, muito menos, a vontade “em si”. A vontade nela mesma e a vontade nele, que, na verdade, são a mesma coisa. Por isso, como ensina o Budismo, para cada vontade satisfeita, sempre haverá outra vontade a ser satisfeita. É um ciclo infindável enquanto o homem não compreender que nada pode contra a vontade a não ser pela via do extinguir-se a si próprio. No entanto, isto significa o nirvana, o qual Schopenhauer tanto critica. O que o filósofo pessimista propõe é um ascetismo que possibilite o raciocínio filosófico, algo bem longe do nirvana. O homem precisa refletir. Filosoficamente, o homem pode compreender que, afora o caminho da ascese, ele nada pode contra a vontade, já que todo conhecimento também é uma individuação da vontade. Como entender, então, este filosoficamente? Schopenhauer foi capaz de passar para o entendimento humano o contraponto da vontade, a ponto de questioná-la em seu próprio terreno, isto é, o homem como vontade. O Budismo deu o início de um caminho: a ansiedade é sede insaciável à qual o homem incauto se deixa arrastar. Ansiar por exige sempre um novo ansiar por. Disso resulta que cada querer é o que está na base de cada dor. E dentre as dores do homem está uma bem grande: a morte. E o que faz a morte com este fenômeno humano da vontade? Em que o homem se transforma? “[...] Porquanto nos tornamos sua herança desde que nascemos e ela não faz mais que brincar com sua presa antes de devorá-la” (Ibid., p. 80). Certo, parece, é o homem não se agarrar nem à sua própria vida. Nesse item, se o filósofo pessimista recebeu influências do Budismo, ele beira o niilismo. Porém, o próprio Buda foi além e encontrou o “caminho do meio”. Mas, o nível de excelência ainda seria o nirvana. Já Schopenhauer exigiu para si um ascetismo rigoroso, tentado pelo Buda, mas também renunciado por ele mesmo antes de se tornar o “Iluminado”. Buda não nega a ascese, nega o exagero. Schopenhauer enxerga que para anular a vontade cega há somente uma saída: o ascetismo forte.

Schopenhauer segue em sua dissecação da vontade:

“O que ocupa e mantém em atividade todos os viventes é o desejo de viver. Mas uma vez assegurada a vida, já não sabem o que fazer dela: donde o segundo motor que os faz agitar-se, é o desejo de aliviar-se do peso da existência, de torná-lo menos sensível, de 'matar o tempo', isto é, de fugir ao fastio” (Ibid., p. 82).

Por isso é preciso dar aos vulgos panen et circenses. De uma certa forma, o filósofo pessimista admite uma superioridade do pensamento filosófico, ainda que se tome de empréstimo do Budismo que “a dor é a essência da vida”. Saciedade e fastio são, na realidade, insatisfação. A dor está, por exemplo, oscilando na saciedade pelo prazer sexual, assim como no tédio pela rotina. O homem sabe que seu prazer é momentâneo e sabe, também, que não é difícil cair no tédio. Um “eterno insatisfeito”: é este homem schopenhauriano. Nele, prazer e dor se comungam. É ilusão, pois, ser feliz sem dor. Felicidade, dizendo de outra maneira, é aprender a conviver com a dor. É o que Schopenhauer denomina de felicidade negativa. Não significa a calma ou a serenidade dos estóicos. Não é nem mesmo a ataraxia epicúrea. Sem dúvida, essa convivência com a dor torna o homem mais forte, porém não o faz livre da vontade que se lhe faz viva como Idéia em sua consciência, portanto como absoluta, e como representação em todas as instâncias da “realidade”. O mundo não é outra coisa que vontade e representação. O fenômeno humano, por causa da consciência, sente mais o que outros tipos vitais também sentem: a vontade de ver satisfeitas suas necessidades básicas. E, diferentemente dos outros tipos vitais, o homem precisa sempre manter sua mente ocupada para não sentir tanta dor existencial. Mas, filosoficamente, ele pode reconhecer melhor a vontade e desfechar contra ela o ascetismo, mesmo pela via da reflexão.

Retomando, então, temos que o homem tem duas necessidades básicas: a de assistência, de ser assistido, e a de ocupação, a de estar sempre ocupado com alguma coisa. É nesse sentido que o benefício de todos os conhecimentos, e não somente o filosófico, é grande. Ainda que seja pela superstição, no conhecimento do senso comum, o homem alcança um ser assistido e um estar ocupado com sua crença. Não é, por acaso, que Nietzsche, desde o início até o final de sua GM/GM é claro ao afirmar que o homem ter horror ao vácuo. O escopo principal da nossa existência está na palavra latina vanitas (vaidade como vacuidade, como nada). Mesmo que a palavra tenha mudado de sentido ao longo dos séculos, a vaidade é o modo pelo qual o homem ainda se mantém com relação a si um “amor próprio” diante do seu próprio vazio, porque até quando olha para si, não vê sentido algum. Sua realidade mais próxima, por absurda que seja, parece ser a vacuidade. Do seu nada, o homem criou a sua vaidade como antropocentrismo. Mas, ainda assim tudo é “vaidade das vaidades”, é o vácuo que todo “amor próprio” esconde. Vanitas, como origem, é o que impera no mundo humano. Porém, os homens tolos caem na armadilha da vontade absoluta e buscam o prazer sexual e a propagação da espécie humana, e, desse modo, propagam a eternidade da própria vontade que os domina. Schopenhauer descobriu o ponto nevrálgico da vontade, seu ponto fraco, atacou-a pelo ascetismo acompanhado do celibato. Não seria difícil, pensar, neste caso, o quanto o celibato possibilitou ao homem inúmeras criações da razão e da concretização de sua téchne. Quem sabe, poderíamos dizer, fazendo uso da vontade que o dominava.

As partes genitais são, mais que qualquer outras, sujeitas exclusivamente à vontade e nunca à inteligência. A vontade ali se mostra independente do conhecimento, quase como sucede com os órgãos que servem à reprodução da vida vegetativa, por virtude da simples excitação, e em que a vontade age cegamente como na natureza inconsciente. (Ibid., p. 108).

Schopenhauer, de maneira interessante, coloca as partes sexuais como local por excelência da atuação da vontade. Sendo assim, e considerando um dualismo, a inteligência pode atuar em contraposição e mostrar a outra face do mundo, isto é: do mundo como representação. Ora, se a vontade vê a si mesma em cada indivíduo, não seria o papel do intelecto algo sem poder sobre ela? Sem perceber, porque é cega, a vontade se manifesta no homem de modo a participar de uma rede nervosa em que há partes da vontade absoluta atuando sobre outras partes desta mesma vontade. Por princípio lógico, não poderiam se contrapor. Porém, o que é absoluta é a vontade e não seus modos de manifestação, inclusive, dentro de um mesmo corpo como, por exemplo, o corpo humano[2]. Em outro viés, cada “eu” é portador de representações de mundo. Assim, a existência está subordinada a tais representações entre os “eus” e, desaparecido todos eles, não haveria mais existência, pois não haveria existência “em si”. Nesse sentido, o “eu” é valorizado, ainda que, também ele, de algum modo, seja manifestação da vontade que enxerga a si própria por meio deste seu canal de representação dentre os outros vários canais. Mas, os únicos dotados de “consciência” seriam os humanos e, por isso mesmo, um acaso da própria vontade, a qual é cega. Seria, então, o ser humano um “ser de duas cabeças”? Ou, apenas, não teria ele compreendido suficientemente a vontade absoluta? Ao que parece, se tudo acontece em representações, o que se pode afirmar é que o mundo não é mais que vontade e representação e nada além disso. Isso sim, deve ter chamado muito a atenção de Nietzsche. Como fenômeno é que o homem assume a responsabilidade sobre os seus atos e disso advém a noção de justiça e de dever. “Tal visão inspirou o gênio adivinhador de Calderon[3] quando, no drama 'A vida é um sonho', diz: 'Pues el delito mayor del hombre es haber nacido'” (Ibid., p. 146). Quanto à contradição entre inteligência e vontade, Schopenhauer prefere recorrer aos Upanishad e afirmar que o mundo da consciência é múltiplo em termos da pluralidade de seres que passam por ela, mas, que, ao mesmo tempo, reconhece algo de absoluto como uma espécie de “substância”. Ao homem cabe uma definição Upanishad: “Tudo isto és tu”. A influência dos textos orientais na filosofia de Schopenhauer acabam por fazer dele o filósofo que, na prática de seus escritos, fez a ponte entre o que seria uma “filosofia oriental” e a dita filosofia, de per si, a partir dos gregos. E, ao trazer o ascetismo para os seus escritos, o traz tanto nas formas do Ocidente e do Oriente no que diz respeito ao celibato. Do mais, o que é a vida para um asceta, na visão de Schopenhauer:

A vida de qualquer indivíduo, considerada no seu conjunto e na sua generalidade e unicamente nos fatos mais salientes, é, em realidade, sempre uma tragédia; mas, examinada nos pormenores, tem o caráter duma comédia. Porquanto, o andamento e os tormentos de cada dia, as incessantes secaduras do momento, os desejos e os temores da semana, os aborrecimentos de toda hora que nos foram mandados pela sorte sem pausa ocupada em escarnecer-nos, tudo isto são deveras cenas de comédia. Mas, as ambições sempre desiludidas, os esforços sempre inúteis, as esperanças esmagadas sem piedade pela fortuna, os erros fatais de toda vida, com a dor que vai aumentando e com a morte por conclusão, eis em verdade a tragédia. (Ibid., p. 95).

A existência é uma ironia, segundo Schopenhauer. E contra o absolutismo do Cristianismo[4], ele pronuncia que a sabedoria da Índia é que influi sobre toda a Europa. O Cristianismo, talvez possamos colocar assim, seria uma tentativa de cooptação daquilo que chamavam de pagão e, isto, em grande escala?[5]

Enfim, o ascetismo é foco central de toda a obra de Schopenhauer contra a vontade absoluta e isto ele expõe de maneira clara e bem distinta:

O que eu entendo num significado mais restrito por ascetismo, palavra que até agora tenho usado com freqüência, é precisamente o aniquilamento intencional da vontade, obtido com a renúncia de tudo quanto agrada, ou com a procura de tudo aquilo que não agrada, com a prática voluntária duma vida de penitência e de mortificação, com o fim de suprimir sem trégua, o querer. [...] Portanto, são bem poucas as pessoas a quem para negar a vontade basta a inteligência. (Ibid., p. 203, grifo meu).

O Caso Nietzsche

A partir de Nietzsche, a ascese merecerá um outro tratamento. No geral, podemos constatar dois tipos diferentes de ascese: uma afirmativa e a outra negativa. A primeira, uma ascese da vida. A segunda, uma ascese contra esta vida e a favor de uma vida no além, ou, ainda, a favor da metafísica da verdade em detrimento daquilo que o filósofo denomina de aparência, isto é, daquilo que aparece, que se efetiva como relações das forças. Não esqueçamos que força, para ele, é o mesmo que vontade de poder e isto tem a ver com o querer, mas não com o querer subjetivo do homem, porém como aquilo que quer na vontade (Cf. Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 128). O poder que quer mais poder. A vida que deseja mais vida. Nessa perspectiva, Nietzsche ultrapassa Schopenhauer e não coloca a vontade nem como metafísica e nem como algo ruim, mas como aquilo que é o mundo em sua pluralidade: vontade de poder e nada mais (Cf. JGB/BM, 36) ou, se quisermos, forças em relação, uma vez que, para Nietzsche, a força não existe isoladamente.

Quanto ao aspecto da razão, o filósofo a valoriza, ou como ele a denomina: esta pequena razão em uma grande razão, ou seja, a razão como corpo e o corpo como razão. Sua crítica é contra a pretensão antropocêntrica do homem racionalista ao querer ser sujeito em termos de uma abstração e não querer ver sua “alma” como efeito de impulsos nervosos, sobre os quais ele, como um “eu”, não tem o mínimo controle. Impulsos só respondem a impulsos e isso é o pensar. Nesse sentido, o corpo todo pensa. É uma pulsão, uma afetar e ser afetado, um poder de mando e um poder de obediência. O que é o homem, nesta perspectiva, senão centro de forças.

Sendo assim, este homem, aqui e agora, em seu contexto bem imanente, como hierarquia de forças, pode querer aquilo que lhe dá mais vida nesta vida ou aquilo que nega esta vida em prol de uma outra vida, a vida no além. Seja, então, que há vontade afirmativa e vontade negativa. Forças fracas e forças fortes, sendo que estas últimas parecem até uma redundância. Entretanto, isso caracteriza um tipo asceta como afirmativo ou negativo. Para melhor explicar isto, basta tomarmos o que o filósofo denomina de dois tipos de sofredores na vida:

[...] os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida - e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura (FW/GC. V, 370).

Ora, um tipo asceta afirmativo é aquele que sofre de abundância de vida e, por isso mesmo, quer esbanjar aquele querer mais poder, uma vez que necessita sempre de criação, de expansão, de obstáculos para medirem seu grau de resistência, mas não só para resistir, e, sim, também, para ultrapassar tais obstáculos. É neste viés que os obstáculos se transformam em estímulos para este tipo asceta.

A partir da constatação que fizemos dos tipos ascetas a partir de Nietzsche, podemos vê-lo como um asceta, como um tipo afirmativo, como um tipo para o qual a vida não é motivo para lamentações, um tipo que não deseja “mar liso”, um tipo que encara a tragédia não como expiação ou como sublimação para o seu sofrimento, um pessimista, outrossim, um tipo que vê a tragédia como necessária ao seu crescimento vital. O Nietzsche asceta é um nômade, que acompanha o devir da vida e sente, nesta vida deveniente, que está sempre em constante transformação e, por essa razão, está sempre preparado para o inesperado, para a surpresa, para as batalhas que a vida lhe oferece. Esta vida, desse modo, é uma benção para um asceta que deseja ser forte. Nietzsche, podemos dizer, como este tipo asceta é um tipo humano que não espera piedade, que não espera auxílio e que não está em busca de um sentido da vida. É, ele mesmo, um campo de batalhas. Já o seu antípoda, o asceta negativo, espera que, ao menos, lhe seja dado um sentido, inclusive um sentido para o sofrimento (Cf. GM/GM. III, 28). Eis o que o ideal ascético deu ao antípoda de Nietzsche: um sentido para o sofrimento. Quanto isso, literalmente, o filósofo afirma:

[...] no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, ou horror vacui [horror ao vácuo]: ele precisa de um objetivo - e preferirá querer o nada a nada querer. (GM/GM. III, 1).

O tipo asceta afirmativo não vislumbra objetivos, não vive teleologicamente mas o momento, o instante, porque no instante está presente o passado e o futuro. Este tipo asceta quer, porém não quer o nada. Ele quer uma abundância de vida, uma vida forte a ponto de não enxergar, por exemplo, na doença, um empecilho para o viver intensamente esta vida. Deste modo, não é tão difícil imaginarmos porque, mesmo doente, Nietzsche sentia-se tão saudável.

Um asceta do tipo afirmativo não vê seu fatum (destino) a não ser com amor. É por isso que Nietzsche pode afirmar, em seus escritos, e de todo o seu coração aquilo que, verdadeiramente, queria para si: amor fati (Cf. FW/GC. IV, 276). Poderíamos, talvez, afirmar que esse é o maior sinal de fortaleza ao qual alguém pudesse chegar mesmo nos seus estados mais desfavoráveis. Ora, então, enquanto asceta, qual era o exercício predileto do filósofo? Era exercitar-se enquanto um homem além de si mesmo: um exercitar-se constante próprio de um além-do-homem. Exercício como superação de si, como eterna superação de si. Em uma linguagem de metáfora e poética, poderíamos afirmar dionisiacamente que, enquanto houver a música da vida, o homem não pode deixar de ser um dançarino. Por isso, é bem compreensível ver o quanto o filósofo apreciava a música, a dança. Era esse o seu lado dionisíaco, claro que sem desprezar seu teor apolíneo. Nietzsche não era um dualista, como pode parecer ao tratar do apolíneo e do dionisíaco. É um modo que este tipo asceta da afirmação da vida encontrou para expressar o como entendia não o equilíbrio, mas a tensão presente na existência de cada homem em sua plasticidade, em sua aparência, e em sua cadência, seu movimento, seu fluir como música. Uma plasticidade que, ao aprender a andar, pretendeu, daí em diante, a correr e, aprendendo a correr, quis voar. E das alturas o trágico deixou-lhe de ser trágico (Cf. JGB/BM. O espírito livre, 30).

Um Nietzsche asceta, por diversas vezes fala de coisas que soam aterrorizantes, contudo, o que se deve esperar de alguém que, mesmo doente, era saudável? Que sabia tirar proveito até dos momentos mais dolorosos e não para tornar-se um masoquista, mas para ir além da dor a ponto de, em nenhum momento, negar a vida. Mesmo a maior dor não deve servir de motivo para se negar a existência. Um tipo assim passa pelo inferno para construir seu próprio céu, que nada tem a ver com “mar liso”. “[...] O símbolo apavorante da mais antiga e mais nova experiência dos filósofos na terra - todo aquele que alguma vez construiu um 'novo céu' encontrou o poder para isso apenas no próprio inferno [...]” (GM/GM. III, 10). Nietzsche retirou isso do sacerdote ascético, porém sabia o como isso era verdadeiro. Para um asceta da afirmação, também isso é verdadeiro: quando o inferno deixa de ser inferno ou, se quisermos, quando a tragédia deixa de ser trágica. Se Nietzsche atacou o ideal ascético, soube também lhe avaliar os pontos fortes e que, no caso, caberiam aos dois tipos ascéticos: o transcendente e o imanente. Quanto às diferenças, já foram elencadas anteriormente. O que esperar de uma pessoa que estudou filologia, que estudou a Bíblia, que estudou filosofia? Que seja capaz de superar-se, ao menos, no tocante aos desmazelos metafísicos para tornar-se quem se é, ou seja, ser autêntico. Não viver com a experiência de outros, mas das próprias. Mais ainda: saber fazer experiências com o próprio pensar. A dignidade de um asceta está em fazer experiências consigo mesmo, o que equivale a não querer apoiar-se em pressupostos metafísicos sejam de que espécies forem. O ideal ascético engessa as pessoas. A ascese da afirmação, por ser aquela que promove a vida como um baile das forças, não poderia ter outro nome: ascese dionisíaca. Eis o Nietzsche asceta: um asceta dionisíaco. E, neste momento, também para nós, dionisíaco deixou de ter apenas aquela conotação de um desvario, de um êxtase. O dionisíaco torna o homem forte sem deixá-lo rígido. Por que o ideal ascético não é aconselhável para quem deseja viver experiências mais profundas da existência, como, por exemplo, viver sem sentido algum? Porque o ideal ascético torna as pessoas rígidas e essa rigidez as quebra. Já a ascese dionisíaca apresenta ao mesmo tempo a dureza o poder e a flexibilidade.

E longe do que qualquer um poderia achar, sem folhear página por página os escritos de Nietzsche, podemos encontrar que há no Nietzsche asceta uma grandiosa espiritualização dos instintos, ou se quisermos: o domínio de si[6].

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento de si”; - tudo isso pede que se imagine um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, estejam imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectivista, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quando mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade” (GM/GM. III, 12).

Existe a necessidade de deixar-nos ser afetados, sentir os múltiplos afetos que chegam até nós. Quando Nietzsche coloca que precisamos permitir que mais afetos falem sobre uma coisa, creio que podemos entender que ele está falando de sentirmos mais integralmente esta coisa, da qual virá o nosso “conhecimento”. E o que isso tem a ver com a ascese da afirmação? Ora, um asceta dionisíaco é também um asceta perspectivista, uma vez que a ele interessa conhecer as coisas não de outra forma que esta. Destarte, conhecer significaria sentir, ser afetado. Com isso, o conhecimento passa a ser de afeto, uma vez que a própria razão não é outra coisa, neste caso, que relações de afetos. Conhecer é captar a si mesmo e a coisa em uma rede de relações. A partir disso, conhecimento é poder, na medida em que nos deixamos ser afetados, mas que também afetamos, ou, em um dizer nietzschiano: enfiamos sentido nas coisas. Para isso, é imprescindível que estejamos mais próximos delas, vendo-as de múltiplos pontos de vista. Isso já denota que, para um asceta dionisíaco, conhecer não significa, em hipótese alguma, ser algo de alguém sem disciplina, pelo menos de um conhecer mais profundo, mais sentido, mais vivenciado. A ascese da afirmação é, sem dúvida, um disciplinamento do espírito, uma hierarquia conquistada pela espiritualização dos instintos e justamente por este caminho é que se dá o afetar e o deixar-se ser afetado.

Nietzsche, um tipo asceta, é aquele que trabalhou sempre no sentido de espiritualizar seus instintos. E, mais uma vez, podemos perceber que no dionisíaco não há nada de desvario, mas de um aprender com o devir que tudo está em permanente transformação e que as relações entre as forças são relações de mando e obediência e que, por assim ser, o caos tende à hierarquização, porém a “ordem” não é eterna e nem existe uma única ordem. Muito menos pretendemos, aqui, fixar uma hierarquização, uma ordem, uma única perspectiva, mas um só olhar perspectivista, visto que ele já é múltiplo. O mundo é um eterno constituir-se e desconstituir-se de centros de vontade de poder. Como não dualista, Nietzsche asceta é um tipo humano que não deseja fazer como Platão, isto é, expulsar os poetas da cidade, mas também não deseja ser seduzido pela falta de disciplina. Um asceta da afirmação exige de si o que a vida exige dele: firmeza e flexibilidade, domínio de si e não usurpação de sua própria capacidade para a mudança. Eterno não é o imperecível, porque este não existe. Eterna é a mudança, a qual não tem como ser imperecível, pois cada mudança é uma mudança[7].

Nesse recorte reflexivo, se para o asceta da afirmação da vida não há a contemplação pela contemplação, não há o “em si”, não há o transcendente, o que, então, um Nietzsche como asceta dionisíaco entende pela beleza da vida, visto que para este asceta a arte dionisíaca enquanto música é necessária como aquele perpassar pelos centros de vontade de poder para que nada se enrijeça, para que nenhum centro pretenda constituir-se para sempre. Enfim, como se dá o “equilíbrio” entre o sentir, o ser afetado pelas coisas e o domínio de si? Como acontece aquele a mais de vida tão próprio das forças, mas como acontece isso em nós enquanto seres humanos e no próprio filósofo como não diferente de nós? Onde, em meio a tudo isso na vida, Nietzsche enxergou o belo na existência e, portanto, com um asceta da vida, para a vida e pela vida?

A sensação de euforia e êxtase correspondente de fato a um a mais de energia: mais forte no período reprodutivo das espécies: novos órgãos, novas habilidades, cores, formas... O embelezamento como conseqüência necessária da elevação de energia, embelezamento como expressão de uma vontade vitoriosa, de uma coordenação potenciada, de uma harmonização de todos os desejos fortes, de um infalível peso gravitacional perpendicular. (GM/GM. III, 6).

Certamente, esse é o tipo asceta dionisíaco em que a harmonização dos desejos nada mais é que a espiritualização dos instintos, um ser forte no sentido daquele a mais de energia e, conforme destaque: de tornar-se uma coordenação potenciada. Este é o tipo de “contemplação” mais apropriado para um asceta dionisíaco.

Conclusão

Se levarmos em consideração que não há homem que não seja asceta, teremos que levar também em consideração que cada homem é uma singularidade e, ao mesmo tempo, uma multiplicidade de “almas” (Cf. JGB/BM. Dos preconceitos dos filósofos, 19). Por isso, dentro dos tipos ascetas delineados, devem existir gradações e superações e é neste sentido que todo homem é asceta. Também é necessário ficar claro que, ao tratarmos do ideal ascético e da ascese dionisíaca, não estamos no campo da oposição de valores, que é o campo da metafísica. Estamos, sim, afirmando um tipo dionisíaco que sofreu desvirtuamento de sua virtú, de sua força, pela predominância dos homens do ideal ascético. Mas, como é impossível que uma constituição queira se firmar contra essa vida dionisíaca, até os tipos humanos de visão mais míope podem terminar por se questionarem sobre seus próprios valores. Não tendo mais como referência o além-vida, mas esta vida, poderão notar que a vida aqui é sagrada para nós porque guarda conosco uma relação bem íntima. Além disso, que é possível também um questionamento para os estudiosos de Nietzsche que enxergaram no dionisíaco a destruição infinita posta justamente pela força “extática” desta postura vital. Nietzsche como um niilista, um destruidor. Sim, a destruição é parte do dionisíaco, porém também a criação. O fluxo contínuo do devir engloba criação e destruição. Deste modo é que para um asceta dionisíaco caberia uma filosofia dionisíaca e não mais, simplesmente, uma filosofia.

Nietzsche, um tipo asceta, não é mais que uma provocação aos ascetas metafísicos de prontidão. É também uma provocação aos ditos nietzschianos, quando não enxergaram uma ascese no filósofo, justamente porque ele atacou veementemente o ideal ascético e, em especial, na sua III Dissertação da GM/GM. Quem sabe, inclusive, não estaria embutido em tal tipo ascético um filósofo do futuro, um criador de valores que vem quebrando as velhas tábuas de valores.

E, para finalizar este texto, como conceber uma ascese enquanto instrumento da vontade de poder? Ao que parece, podemos concebê-la assim se tomarmos a vontade de poder como nós mesmos e, novamente frisando, a capacidade das forças destinada ao mando e à obediência. Seja, então, deste modo, que possamos entender uma ascese como instrumento da vontade de poder, porque ela proporciona a hierarquia e a espiritualização dos instintos como domínio de si.

No domínio de si, na espiritualização dos instintos, Nietzsche concebe seu corpo como laboratório, faz experimentos com o seu pensar. Eis, pois, a retomada de ascese como exercício em um corpo inteiro que pensa, já que pensar não é mais que a ação de afetos respondendo a afetos. O afeto afeta e também é afetado por outro afeto. Daí, a importância das relações entre as forças na concepção de uma ascese dionisíaca, que está posta na vida como deveniente, que possibilita o “ser”, mas o ser que nasce sobre as correntezas de um rio e que é capaz de elaborar “conceitos”, “conhecimento”, e que se entende como ser em devir, uma vez que entende que mais que “natureza humana” ele é natureza. E que o mundo não é outra coisa que vontade de poder.

Eis o contexto em que se dá a ascese dionisíaca de Nietzsche, um tipo asceta.

Siglas de referência para as obras de Nietzsche citadas no texto

AC/AC - Der Antichrist (O Anticristo).

FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência).

GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Para a Genealogia da Moral)

JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de Bem e Mal).

Bibliografia

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Tradução de António M. Magalhães. Porto: Rés Editora, s/d.

NIETZSCHE, F.W. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

_______________ Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 2ª edição e 2ª reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

_______________. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 4ª reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

_______________. O anticristo: anátema sobre o Cristianismo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tradução e prefácio de Heraldo Barbuy. 3ª edição. São Paulo: Edições e Publicações Brasil Editora S.A., 1963.

Notas

[*] Dr. em Filosofia, mestre em Ciências da Religião e especialista em História pela PUC-SP.

[1] Aqui há, embutida, a forte crítica de Platão à arte como imitação da imitação.

[2] Não teria Nietzsche explorado essa concepção, ainda que não metafisicamente?

[3] Schopenhauer pessimista: não é por acaso quando toma de empréstimo esta citação de Pedro Calderón de La Barca, importante dramaturgo espanhol. Uma vez nascido dentro da vontade cega e absoluta, o homem é aquele que, como fenômeno casual com consciência, assume sobre todo julgamento de seus atos e pensamentos.

[4] Isso não significa desprezo pelo Cristianismo. Pelo contrário, Schopenhauer citava os místicos cristãos como exemplo de vida ascética necessária contra a vontade.

[5] Na p. 149 de O mundo como vontade e representação, encontra-se uma postura pró-Oriente e, mais especificamente, pró-Índia. Era muito grande a admiração dele pelos Upanishad, a quem atribui o adjetivo de “povo mais inteligente do planeta”. Podemos questionar esta posição de Schopenhauer, mas o modo como ele utiliza a filosofia oriental, isso é deveras sensato e de uma sensatez bastante sólida, por conhecer muito bem tanto o Ocidente como o Oriente. O que, também, chamou muito a atenção de Nietzsche.

[6] Isto significa que não existe centro de forças sem hierarquia e que, por isso, as forças devem saber mandar e devem saber obedecer. Assim, um homem, deve saber fazer estas duas coisas: mandar e obedecer e, acima de tudo, saber mandar em si mesmo. Deste modo, a pequena razão não é antropocêntrica, mas consegue entender-se com a grande razão a ponto desta indicar para aquela o que precisa ser dominado, ou seja, quais instintos precisam ser espiritualizados. As forças trabalham em relação, pois, como já vimos, não existe nenhuma força isolada.

[7] Neste viés, é possível até lembrar Deleuze quando ele trata do devir no plural: devires.