A primeira quinzena de abril é a época do desabrochar das belas flores de cerejeira no Japão, uma paisagem que dura somente duas semanas e que é um evento nacional. Muitos japoneses teêm nessa época uma especial predisposição para simultaneamente apreciar a beleza e perceber a efemeridade da vida, como uma saudade futura a ser curada pelo olhar budista sobre a impermanência. Dada essa perspectiva centrada na impermanência, que freqüentemente conduz a um relativismo para fins práticos, qual será o olhar budista para com as pretensões de verdade das outras religiões, especialmente as eternas, que o monoteísmo defende?
Nesse início de abril, em uma agradável noite no Paulus Heim, uma casa em Nagóia que abriga pesquisadores que vêm realizar seus estudos no Instituto para Religião e Cultura na Universidade de Nanzan, realizei uma entrevista sobre o diálogo religioso com Paul Swanson, James Heisig e Terao Kazuyoshi, pesquisadores do Instituto. O Instituto vem já há quase quatro décadas desenvolvendo o diálogo inter-religioso entre o Cristianismo e as religiões japonesas, especialmente o Catolicismo e o Budismo, sendo considerado uma importante referência para essas atividades. Esse relatório tem como objetivo introduzir para o leitor brasileiro essa temática, apontando o extenso material do Instituto disponível na internet e indicando algumas reflexões de pesquisadores no contexto japonês[1].
A estrutura deste texto reflete minha contextualização particular e preliminar do assunto. Pensar o diálogo religioso a partir de uma perspectiva budista envolve uma série de dificuldades, a primeira delas a forma de organizar o assunto. Existem muitos focos possíveis e maneiras diferentes de estruturar o tema: a partir de diferentes regiões geográficas (desde o Sudeste Asiático até o Extremo Oriente, mas podendo incluir até países ocidentais), a partir da relação do Budismo com as diversas religiões, a partir das várias escolas do Budismo, desde os diferentes contextos históricos.
Dado o escopo reduzido deste escrito, o olhar budista aqui buscado será dado pelas reações dos budistas japoneses ao Cristianismo, sendo feitas observações mais gerais somente no final do texto. Como veremos, essa restrição temática não é fortuita: o diálogo entre as religiões universais no Japão é bastante restrito ao Budismo e Cristianismo, e uma atitude de aproximação maior aconteceu somente após o Concílio Vaticano II, que deu fundamento para atividades inter-religiosas e que impulsionou a fundação de institutos como o da Universidade Nanzan. Como pavimentação preliminar desse terreno de diálogo, o final da Segunda Guerra Mundial trouxe para a sociedade japonesa a imposição de uma nova e grande abertura para o mundo ocidental, tendo a anterior sido realizada com o esforço de ocidentalização para absorção da ciência e tecnologia na Era Meiji.
O Budismo originalmente apresenta uma abordagem inclusivista de outras religiões. Na expansão do Budismo isso se mostrou especialmente através de um inclusivismo ou sincretismo histórico, e em termos doutrinais a partir de uma classificação que colocasse alguma escola budista no topo de uma pirâmide de valoração. Em situações específicas, principalmente devido a motivos sociais ou políticos, a atitude inclusivista do Budismo foi abandonada em favor de um exclusivismo ou anti-sincretismo.
No contexto japonês, a abordagem mais geral foi de um inclusivismo e mesmo um sincretismo com as religiões nativas, como o Xintoísmo. Algumas vezes o relacionamento com outras religiões se espelhou na atitude Mahayana com relação a outras escolas budistas, através da criação de uma classificação de quais ensinamentos estariam mais próximos e seriam mais efetivos para a Iluminação. Conforme cita Terao Kazuyoshi, um dos exemplos dessa posição no século XVIII e IX é o famoso monge Kukai (fundador da escola esotérica Shingon no Japão, uma das derivações do Vajrayana ao lado do Budismo Tibetano). No que diz respeito a outras religiões, Kukai buscou reorganizar as religiões em uma hierarquia, tendo o Budismo esotérico no topo.
Essa atitude geral, no entanto, não deve ser vista como um suporte para visão popular do Budismo como uma religião pacifista e sempre oposta a qualquer guerra ou violência. O surgimento das diversas escolas budistas japonesas foi um processo bastante complexo, envolvendo contextos sociais nos quais o Budismo foi mais um elemento político que religioso. No caso da relação entre as religiões, no Japão uma perseguição mais sistemática do Budismo ao Cristianismo foi realizada no século XVII. Monges budistas deempenharam uma presença ativa como inquisidores e posteriormente foram designados pelo governo militar de então como agentes de controle nas vilas, quando cada família deveria estar registrada em um templo budista local.
A perseguição do governo japonês realizada com o apoio dos budistas pode ser entendida, em grande parte, como uma reação ao perigo de colonização estrangeira e ao exclusivismo católico defendido nesse período. O Catolicismo foi introduzido no Japão em 15 de agosto de 1549 através do desembarque, em Kagoshima, dos jesuítas liderados por Francisco Xavier. Tolerado por Oda Nobunaga, em parte com a intenção de enfraquecer rebeldes budistas, esse foi o início de um esforço missionário que viria ter sucesso durante as nove décadas seguintes e que resultou na conversão de centenas de milhares de japoneses ao Cristianismo, especialmente na região de Nagasaki. Com a unificação do Japão no sistema de xogunato e a pacificação e secularização do Budismo, o Cristianismo como religião estrangeira começou a ser considerado um risco para a estabilidade então conquistada. Inicialmente censurado por Toyotomi Hideyoshi, o Cristianismo viria a ser considerado uma religião proibida nas primeiras décadas do século XVII, com o isolamento do Japão, a expulsão dos jesuítas e a perseguição dos cristãos japoneses.
Uma atitude de exclusivismo crítico ou somente uma fria aproximação, tanto por parte de budistas quanto cristãos, durou pelo menos até a Segunda Guerra Mundial, especialmente na Era Meiji. Na Era Meiji especialmente as escolas de Nichiren criticavam o conceito cristão de um Deus criador e da imortalidade da alma. Naturalmente diferentes contextos sociais e históricos influenciaram esse exclusivismo e separação, que se desenvolveu inclusive no interior das próprias escolas budistas do Japão (ao contrário do Budismo na China, onde, por exemplo, Zen e Terra Pura são praticados nos mesmos templos, no Japão essas escolas não só se separaram e se dividiram ainda mais, mas mesmo hoje não existe algo relevante em termos do diálogo ecumênico intra-budista). Um exemplo de uma atitude exclusivista pode ser encontrado nos escritos de Nichiren, que em seus textos do século XIII atacou incisivamente outras escolas budistas, muitas vezes promovendo um nacionalismo através da busca de um Budismo genuinamente japonês.
As outras escolas budistas, no entanto, não deixaram de participar de um nacionalismo que rejeitava o Cristianismo como uma religião estrangeira e em desacordo com os princípios racionais (mesmo o Cristianismo japonês foi aos poucos cedendo à tentação de se enquadrar no nacionalismo crescente da Era Taisho). Na Segunda Guerra, professores budistas de várias universidades (incluindo a prestigiosa Universidade de Tóquio) defendiam e propagavam posições a favor da guerra. Conforme informa o Prof. Paul Swanson, professores pertencentes às escolas da Terra Pura, por exemplo, propagavam a idéia da ida para a Terra Pura em caso de morte no campo de batalha.
O interesse de filósofos japoneses pela filosofia européia e pela mística cristã ajudou a formar uma escola que teve um significativo impacto no diálogo religioso futuro entre budistas e cristãos. Iniciada por volta de 1913 com Nishida Kitaro (1870-1945), esse escola até hoje tem seus adeptos, concentrados no departamento de filosofia da Universidade de Kyoto. A Escola de Kyoto refere-se a um grupo de filósofos especialmente dedicados a repensar o pensamento budista (especialmente o Zen) a partir da Filosofia e Teologia ocidental (especialmente as escolas filosóficas fenomenológicas e existencialistas e a mística echkartiana). Ainda que a Escola de Kyoto seja um movimento filosófico e não religioso, muitos dos intelectuais que pertencem a essa escola ajudaram a dar base para grande parte do diálogo intelectual entre Budismo e Cristianismo.
Os principais expoentes dessa escola foram Hajime Tanabe (1885-1962), Keiji Nishitani (1900-1990), Masao Abe (1915-2006) e Shizuteru Ueda (1926-). Eshin Nishimura, da Universidade Zen de Hanazono, apesar de não ser considerado um componente da Escola de Kyoto, foi um dos que também contribui intelectualmente pelo diálogo do Zen com o Cristianismo, tendo estudado diretamente com os quacres nos Estados Unidos. A exposição do pensamento desses intelectuais foge do escopo do presente escrito, mas existe já uma extensa bibliografia em línguas ocidentais sobre o tema[2]. Ainda que restritas ao contexto acadêmico, essas iniciativas de intelectuais motivaram a criação de sociedades de estudos cristãos-budistas e um interesse maior, a partir da Ciência da Religião no Japão, pelo diálogo inter-religioso. Como resultado, o diálogo inter-religioso tem sido aceito academicamente como uma área de pesquisa na Ciência da Religião no Japão, simultaneamente estimulando sua realização dentro dos grupos religiosos.
Em um contexto mais institucional, uma das principais mudanças a favor do diálogo ocorreu com o Concílio Vaticano II. O Cristianismo no Japão (especialmente o Catolicismo) sempre teve a imagem popular de uma espécie de elite cultural, muitas vezes devido à intensa atuação das Igrejas no sistema educacional (com diversas escolas e universidades de excelente qualidade) ou na sua atuação social (por exemplo, a partir de hospitais). O Concílio, no entanto, definiu uma nova direção para o diálogo inter-religioso e especialmente as universidades de Sofia e Nanzan foram chamadas a atuar nessa questão, com a criação de institutos dedicados a essas atividades. Ainda que do ponto de vista da sociedade japonesa uma maturidade para o diálogo já pudesse ter surgido depois da Segunda Guerra Mundial, para os cristãos a grande motivação para uma mudança de atitude surgiu com o Concílio.
No contexto da Universidade Nanzan, essa mudança se traduziu em uma constante busca de formas de diálogo com os budistas, algo que encontrou diferentes graus de ressonância. De fato, quando se busca contextualizar o diálogo atual dos budistas japoneses com outras religiões, um dos primeiros cuidados que se deve ter é observar que existem atitudes bastante diferenciadas envolvendo as mais diversas escolas budistas, e que não existem escrituras canônicas que possam delinear uma atitude mais ou menos unificada. No contexto do Instituto em Nanzan, por exemplo, as escolas de Nichiren foram menos receptivas, enquanto que o Rinzai Zen foi bastante propenso a encontros conjuntos[3].
Atualmente, o diálogo religioso tem se tornado algo comum e a fundamentação desse intercâmbio tem sido buscada no interior de praticamente todas as escolas budistas. Nas escolas japonesas mais tradicionais a troca a partir da prática monástica e de atividades acadêmicas já é bastante comum. As novas religiões japonesas tiveram inicialmente pouco interesse no diálogo religioso (exceto a Rissho Kosei-kai, principalmente através da figura de Nichiko Niwano, que desenvolve diversas atividades inter-religiosas). Conforme informa o Prof. James Heisig, nos anos 70 e 80 o principal interesse dos grupos nos encontros conjuntos era saber como o Cristianismo se estruturava organizacionalmente e financeiramente, uma preocupação administrativa mais fruto de seu crescimento como instituição. Em anos mais recentes, no entanto, também as novas religiões têm sido despertadas pela necessidade de diálogo e troca intercultural que se estabeleceu com a globalização.
No século XX pode-se constatar que no Japão a iniciativa dos cristãos para o diálogo foi bem mais intensa em comparação com a atuação e resposta dos budistas, que muitas vezes suspeitaram da interação como um interesse missionário. Prof. James Heisig defende que provavelmente não existiria muito do diálogo religioso atual caso ele não tivesse sido buscado depois do Concílio Vaticano II. A Segunda Guerra Mundial empurrou o Japão para o diálogo com o Ocidente, mas essa interação chegou ao nível das instituições religiosas somente a partir do Concílio Vaticano II, e muito a partir de uma iniciativa promovida pela Igreja Católica.
Por outro lado, existe uma crescente percepção dos budistas de uma necessária fundamentação para o relacionamento e atuação conjunta com outras religiões, principalmente devido a globalização. Como resultado dessa percepção, novos grupos tem se inserido em atividades conjuntas, especialmente as novas religiões (mesmo a Soka Gakkai, que tradicionalmente tem uma postura exclusivista, tem se mostrado mais aberta para um intercâmbio). Seguindo uma percepção geral, a tendência é o avanço na construção de um corpo de conhecimento que poderia ser rotulado de budologia das religiões, e que diz respeito ao como se pode justificar doutrinalmente a atitude dos budistas com relação a outras religiões. Por diversas razões essa é uma tarefa que ainda está muito atrás da Teologia das religiões (que representa a visão cristã), mas a tarefa tem sido levada a cabo por budistas e cientistas da religião.
Minha opinião é que sem essa budologia das religiões o diálogo corre o risco de se tornar muito dependente da Teologia liberal cristã, o que resultaria em uma relação assimétrica na qual a maior parte dos budistas são mais espectadores do que participantes ativos. Atualmente o diálogo religioso para os budistas japoneses significa algum relacionamento com o Cristianismo; praticamente nenhuma interação parece existir com o Islã, o Judaísmo ou mesmo o Hinduísmo. No contexto japonês, mesmo religiões locais como o Xintoísmo e muitas novas religiões não são considerados parceiros no diálogo religioso.
Adicionalmente, uma budologia das religiões seria uma contribuição para a pacificação de conflitos atuais. No panorama asiático mais geral, o diálogo com o Islã é essencial para buscar aliviar as tensões nacionalistas e os conflitos entre budistas e muçulmanos separatistas no sul da Tailândia, mas até o presente momento pouco foi desenvolvido no diálogo entre Budismo e Islã. Mesmo no que diz respeito ao Hinduísmo, que foi a base de que o Budismo partiu e que teve posteriormente uma influência determinante na formação do Vajrayana japonês e tibetano, não existem muitas atividades em termos de uma fundamentação e atuação comum, algo que, por exemplo, seria um elemento importante para a pacificação dos conflitos entre budistas e rebeldes separatistas tamil no norte do Sri Lanka.
Recebido: 18/06/2007
[*] Atualmente Fellow pela Fundação Japão, pesquisador visitante no Instituto para Religião e Cultura (Universidade de Nanzan, Nagóia). As atividades aqui relatadas fazem parte de um dos projetos que desenvolvi em conjunto com Frank Usarski. O tema diz respeito ao diálogo entre as religiões universais a partir de uma perspectiva budista, algo que além, de uma pesquisa bibliográfica, foi concretizado através do contato com monges budistas e especialistas japoneses no assunto.
[1] O Instituto para Religião e Cultura da Universidade Nanzan tem diversas publicações on-line disponíveis, das quais se destacam o Japanese Journal of Religion Studies (http://www.nanzan-u.ac.jp/SHUBUNKEN/publications/jjrs/jjrsMain.htm) e o Bulletin of the Nanzan Institute for Religion and Culture (http://www.nanzan-u.ac.jp/SHUBUNKEN/publications/Bulletin_and_Shoho/Bulletin.htm). Diversas publicações relacionadas a livros editados e projetos realizados também se encontram disponíveis para acesso no site principal.
[2] Prof. James Heisig é um dos filósofos mais engajados no sentido de avaliar a importância da Escola de Kyoto para a filosofia, simultaneamente disseminando os resultados de filósofos japoneses em línguas ocidentais e estabelecendo um diálogo a partir de uma perspectiva cristã. Nesse sentido, consultar os ensaios disponíveis em línguas ocidentais em http://www.ic.nanzan-u.ac.jp/~heisig/Downloads_in_Western_languages.html. Sobre a Escola de Kyoto, consultar Philosophers of Nothingness: An Essay on the Kyoto School (Honolulu: University of Hawai‘i Press, 2001) e sobre uma visão mais crítica, especialmente no que diz respeito ao nacionalismo japonês presente no Zen e na Escola de Kyoto, ver Rude Awakenings: Zen, the Kyoto School, and the Question of Nationalism (Honolulu: University of Hawai‘i Press, 1995). Em português, sobre o diálogo inter-religioso, foi publicado Diálogos a uma polegada acima da terra: Recuperação da fé num mundo inter-religioso (Rio de Janeiro: Edição Loyola, 2004).
[3] O Instituto para Religião e Cultura da Universidade Nanzan realizou diversos encontros para a realização do diálogo religioso, algumas vezes com um tema específico, outras vezes com uma particular tradição budista. Além do Zen e do Jodoshinshu, algumas das principais escolas participantes foram o Shingon (1985), a escola Tendai (1987) e o ramo Jodoshu (Terra Pura) em 1989. Consultar http://www.nanzan-u.ac.jp/SHUBUNKEN/publications/Bulletin_and_Shoho/Bulletin_hyperlinked.pdf para relatórios relativos a esses e outros encontros. Os temas em geral tiveram mais uma preocupação de mútua exposição doutrinal do que a discussão de questões sociais ou formas conjuntas de atuação dentro da sociedade japonesa.