Do Mito do Éden a um Novo Jardim: Genética e Responsabilidade Ética

Francisco J. Ayala[*]

Resumo

Os humanos têm órgãos e membros similares àqueles de outros animais. Cuidamos de nossos filhos como outros mamíferos. Osso por osso, há uma correspondência precisa entre os esqueletos de um chimpanzé e de um humano. Mas não é necessária muita reflexão para notar o caráter único de nossa espécie. Há o porte bípede e o cérebro maior. Muito mais visíveis que as diferenças anatômicas são nossos comportamentos expressivos e seus resultados. Os humanos possuem instituições políticas e sociais elaboradas, códigos legais, literatura e arte, ética e religião. Os humanos constroem estradas e cidades, viajam em automóveis, navios e aviões, e comunicam-se por meio de telefones, computadores e televisões. Neste artigo eu primeiro apresento o que atualmente sabemos sobre a história evolutiva dos humanos nos últimos milhões de anos e identifico os traços anatômicos que nos distinguem de outros animais. Depois, destaco dois tipos de herança, a biológica e a cultural. A herança biológica é baseada na transmissão de informação genética, nos humanos quase a mesma que em outros organismos que se reproduzem sexualmente. Mas a herança cultural é distintivamente humana, baseada na transmissão de informação por um processo de ensino e aprendizado, que é em princípio, independente da ascendência biológica. O advento da herança cultural introduziu a herança cultural, que transcende à evolução biológica. Finalmente, eu exploro o comportamento ético como um caso modelar de um traço especificamente humano, e procuro vislumbrar as conexões causais entre a biologia e a ética humana. Minhas conclusões são de que (1) o raciocínio moral, ou seja, a inclinação para fazer julgamentos éticos ao avaliar as ações em termos de bem e mal, é enraizada em nossa natureza biológica. É um resultado necessário de nossa inteligência elevada. Mas (2) os códigos morais que guiam nossas decisões como sendo boas ou más são produtos da cultura, incluindo as tradições religiosas e sociais. Esta segunda conclusão contradiz aqueles teóricos da evolução e sociobiólogos que reivindicam que o moralmente justificável é aquilo que é promovido pelo processo de evolução biológica.

Palavras-Chave: Herança biológica, herança cultural, comportamento ético, responsabilidade ética, história evolutiva, informação genética, genética, evolução humana, singularidade humana, códigos morais, raciocínio moral.

Abstract

Humans have organs and limbs similar to those of other animals; we bear our young like other mammals; bone by bone, there is a precise correspondence between the skeletons of a chimpanzee and a human. But it does not take much reflection to notice the distinct uniqueness of our species. There is the bipedal gait and the enlarged brain. Much more conspicuous than the anatomical differences are the distinct behaviors and their outcomes. Humans have elaborate social and political institutions, codes of law, literature and art, ethics and religion; humans build roads and cities, travel by motorcars, ships and airplanes, and communicate by means of telephones, computers and televisions. I, first, outline what we currently know about the evolutionary history of humans for the last several million years, and identify anatomical traits that distinguish us from other animals. Next, I point out our two kinds of heredity, the biological and the cultural. Biological heredity is based on the transmission of genetic information, in humans very much the same as in other sexually reproducing organisms. But cultural inheritance is distinctively human, based on transmission of information by a teaching and learning process, which is, in principle, independent of biological parentage. The advent of cultural heredity ushered in cultural evolution, which transcends biological evolution. I, finally, explore ethical behavior as a model case of a distinctive human trait, and seek to ascertain the causal connections between biology and human ethics. My conclusions are that (1) moral reasoning, i.e., the proclivity to make ethical judgments by evaluating actions as either good or evil, is rooted in our biological nature; it is a necessary outcome of our exalted intelligence; but (2) the moral codes which guide our decisions as to which actions are good and which ones are evil, are products of culture, including social and religious traditions. This second conclusion contradicts those evolutionists and sociobiologists who claim that the morally good is simply that which is promoted by the process of biological evolution.

Key Words: Biological Heredity, Cultural Heredity, Ethical Behavior, Ethical Responsibility, Evolutionary History, Genetic Information, Genetics, Human Evolution, Human Uniqueness, Moral Codes, Moral Reasoning, Sociobiology

Do Símio ao Homem

A humanidade é constituída uma espécie biológica que evoluiu a partir de outras espécies não-humanas. Para que possamos entender a natureza humana devemos conhecer nossa constituição biológica e de onde partimos, a história de nosso início humilde. Por um século após a publicação de A Origem das Espécies de Darwin, em 1859, a história da evolução foi reconstruída com evidências da paleontologia (o estudo de fósseis), biogeografia (o estudo da distribuição geográfica dos organismos), e do estudo comparativo de organismos vivos: sua morfologia, desenvolvimento, fisiologia e afins. Desde meados de séc. XX temos, em adição a isto, a biologia molecular, a disciplina mais informativa e precisa para reconstruir as relações ancestrais das espécies vivas.

Nossos parentes biológicos mais próximos são os grandes símios, entre eles o chimpanzé, que é mais próximo de nós do que o é em relação ao gorila, e bem mais do que o é em relação ao orangotango. A linhagem dos hominídeos se diferenciou daquela do chimpanzé há aproximadamente cinco a sete milhões de anos atrás (Ma) e evoluiu exclusivamente no continente africano até a emergência do Homo Erectus, um pouco antes de 1,8 Ma. O primeiro hominídeo conhecido, Ardipithecus ramidus, viveu há 4,4 Ma, mas não se sabe ao certo se ele era bípede ou se estava na linha direta de ascendência do homem moderno, o Homo sapiens. O Australopithecus anamensis, recentemente descrito e datado de um período entre 3.9 a 4.2 Ma, era bípede e tem sido colocado na linha de ascendência do Australopithecus afarensis, Homo habilis, H. erectus, e H. Sapiens. Outros hominídeos, não na linhagem direta aos humanos modernos, são o Australopithecus africanus, Paranthropus aethiopicus, P. boiseis e P. robustus, que viveram na África em momentos vários entre três e um Ma, em um período no qual três ou quatro espécies de hominídeos conviveram no continente africano.

Logo após sua emergência no leste tropical ou subtropical africano, o H. Erectus espalhou-se por outros continentes. Restos fósseis do H. Erectus são conhecidos na África, Indonésia (Java), China, no Oriente Médio e na Europa. Os fósseis de H. Erectus de Java têm sido datados entre 1.8±0.04, e 1.66±0.04 Ma, e os da Geórgia entre 1.6 e 1.8 Ma. Fósseis de H. Erectus anatomicamente distintivos têm sido achados na Espanha, depositados antes de 780 mil anos atrás, os mais antigos na Europa setentrional.

A transição do H. Erectus para o H. Sapiens ocorreu em torno de 400 mil anos atrás, ainda que esta data não seja bem determinada, devido a uma incerteza se alguns fósseis são erectus ou formas “arcaicas” do sapiens. O H. Erectus persistiu por algum tempo na Ásia, até aproximadamente 250 mil anos atrás na China e provavelmente até há 100 mil anos em Java - foi, assim, contemporâneo aos primeiros representantes da espécie descendente, o H. Sapiens. Restos fósseis de hominídeos Neandertais têm aparecido na Europa em terrenos datados de 200 mil anos; esses fósseis persistem em terrenos datados em trinta ou quarenta mil anos. Os Neandertais, como o H. Sapiens, tinham cérebros grandes. Até poucos anos atrás se pensava que eles eram ancestrais dos homens anatomicamente modernos, mas agora sabemos que estes últimos apareceram há pelo menos 100 mil anos, muito antes do desaparecimento dos Neandertais. Além disso, nas cavernas do Oriente Médio fósseis de humanos modernos datados de 120 mil a 100 mil anos têm sido achados, assim como de Neandertais datados de um período que varia entre 60 mil e 70 mil anos, seguidos novamente por humanos modernos de 40 mil anos atrás. Não é claro se as duas formas se sucederam repetidamente em decorrência de migração de outras regiões ou se elas coexistiram em algumas áreas. Evidência genética recente indica que o cruzamento entre o sapiens e o Neanderthalensis nunca ocorreu.

Há uma controvérsia considerável sobre as origens dos humanos modernos. Alguns antropólogos argumentam que a transição entre o H. Erectus e o H. Sapiens arcaico e, mais tarde, para os homens anatomicamente modernos ocorreu simultaneamente em várias partes do Velho Mundo. Proponentes desse modelo “multi-regional” enfatizam evidências fósseis indicando continuidade regional na transição do H. Erectus para o H. Sapiens arcaico e, então, para o moderno. Para dar conta da transição de uma espécie a outra (algo que não pode ocorrer independentemente em diversos lugares), eles postulam que a troca genética ocorreu ocasionalmente entre populações. Assim, as espécies teriam evoluído como um único pool gênico, mesmo que alguma diferenciação geográfica tenha ocorrido e persistido, assim como populações geograficamente diferenciadas existem em outras espécies animais, e como se observa entre os humanos. Esta explicação depende da ocorrência de migrações persistentes e intercruzamento entre populações de continentes diferentes, algo de que não existe evidência direta. Além disso, é difícil reconciliar o modelo multi-regional com a coexistência de diferentes espécies ou formas em diferentes regiões, tal como a persistência do H. Erectus na China e em Java por mais de 100 mil anos depois da emergência do H. Sapiens. Outros cientistas argumentam, em oposição, que os humanos modernos aparecem primeiro na África ou o Oriente Médio pouco antes de 100 mil anos atrás, e de lá se espalharam pelo mundo, substituindo as populações locais de H. Erectus ou do H.Sapiens arcaico.

Alguns proponentes modelo da “substituição Africana” afirmam, além disso, que a transição do arcaico para o moderno do H. Sapiens estava associada a um gargalo bastante estreito, consistindo de apenas dois ou muitos poucos indivíduos que são os ancestrais de toda a humanidade moderna. Tal afirmação, que como vou mostrar é errônea, é suportada pela investigação de uma pequena fração peculiar de nossa herança genética, o DNA mitocondrial (DNAmt). A origem africana (ou médio-oriental) dos humanos modernos, entretanto, é suportada por um rico grupo de evidências genéticas recentes, e favorecida por muitos evolucionistas.

O Mito da Eva Mitocondrial

A informação genética que herdamos de nossos pais é codificada na seqüência linear dos quatro componentes nucleotídeos do DNA (representados por A, C, G, T) da mesma maneira como a informação semântica é codificada na seqüência de letras de um texto escrito. A maior parte do DNA é contida nos cromossomos dentro do núcleo da célula. O montante total de DNA em uma célula humana consiste de 6 bilhões de nucleotídeos, metade em cada conjunto de 23 cromossomos herdado de cada genitor. Um número relativamente pequeno de DNA, em torno de 16 mil nucleotídeos, existe na mitocôndria, organelas celulares fora do núcleo. O DNA mitocondrial (DNAmt) é herdado de uma maneira peculiar, ou seja, exclusivamente ao longo da linhagem materna. A herança do DNAmt é uma imagem especular sexuada da herança de nome da família. Filhos e filhas herdam seus DNAmt das mães, mas apenas as filhas o transmitem para os descendentes, assim como os filhos e filhas recebem seus nomes de família do pai, mas apenas os filhos o transmitem para os seus filhos.

A análise do DNAmt de indivíduos etnicamente diversos tem indicado que as seqüências do DNAmt dos humanos modernos se concentram em uma seqüência ancestral, a “Eva mitocondrial” que teria existido na África há aproximadamente 200 mil anos (WILSON, CANN, 1992). Essa Eva, entretanto, não é a mãe da qual todos os humanos descendem, mas uma molécula de DNAmt (ou a mulher que carregou esta molécula) da qual todo as moléculas de DNAmt descendem.

Alguns divulgadores científicos, e mesmo alguns cientistas, chegaram à inferência de que todos os humanos descendem de apenas uma ou de muito poucas mulheres[1], mas isto é baseado em uma confusão entre genealogias de genes e genealogias individuais. As genealogias de genes se aglutinam gradualmente em torno de uma seqüência ancestral de DNA única (de uma forma similar ao que ocorre entre as espécies vivas, como os humanos, chimpanzés e gorilas, que se aglutinam em torno de uma espécie ancestral). Genealogias individuais, ao contrário, crescem por um fator de dois em cada geração ancestral: um indivíduo tem dois pais, quatro avós, e assim por diante[2]. Aglutinação de uma genealogia de genes em um gene ancestral, originalmente presente em um indivíduo, não desmente a existência coetânea de muitos outros indivíduos, que também são nossos ancestrais, e dos quais nós herdamos os outros genes.

Esta conclusão pode ser ilustrada com uma analogia. O nome de minha família é compartilhado por muitas pessoas que vivem na Espanha, México, Filipinas e outros países. Um historiador de nossa família concluiu que todos os Ayalas descendem de Don Lope Sánchez de Ayala, neto de Don Vela, vassalo do rei Afonso VI, que estabeleceu o domínio (“señorio”) de Ayala no ano de 1085, na província de Alava do agora País Basco espanhol. Don Lopes é o Adão do qual todos nós descendemos na linha paterna, mas nós também descendemos de muitos outros homens e mulheres que viveram no séc. XI, bem como de pessoas que viveram antes e depois disso.

A inferência mais sólida na análise do DNAmt é de que a Eva mitocondrial é a ancestral dos homens modernos na linha materna. Qualquer pessoa tem um ancestral único na linha materna em qualquer geração específica. Assim, uma pessoa herda o DNAmt da mãe, da avó materna, da bisavó materna, e assim por diante. Mas a pessoa também herda os outros genes de outros ancestrais. O DNAmt que herdamos da Eva mitocondrial representa uma parte em 400 mil do DNA presente em qualquer humano moderno (16 mil de 6 bilhões de nucleotídeos). O resto do DNA, 400 mil vezes mais que o DNAmt, herdamos de outros contemporâneos da Eva mitocondrial.

De quantos contemporâneos? A questão acerca de quantos outros ancestrais humanos tivemos no passado tem sido elucidada pela investigação de genes do sistema imune humano (AYALA, 1995). Os genes do antígeno humano leucócito complexo (HLA) existem em múltiplas versões, que forneceram às pessoas a necessária diversidade para enfrentar bactérias e outros patógenos que invadem o corpo. A história evolutiva de alguns desses genes mostra que eles se aglutinam em tono de outros genes ancestrais entre 30 e 60 milhões de anos atrás (Ma), ou seja, muito antes da divergência de humanos e símios (de fato, símios e humanos compartilham muitos destes genes). A teoria matemática da aglutinação dos genes torna possível estimar o número de ancestrais que devem ter vivido em qualquer número de gerações, para dar conta da preservação de tantos genes diversos através de centenas de milhares de gerações. O número efetivo estimado é em torno de 100 mil indivíduos por geração. Este número “efetivo” de indivíduos é uma média mais do que um número constante, mas é uma forma peculiar de média (um “meio harmônico”), compatível com um número bem maior - mas não muito menor - de indivíduos em diferentes gerações. Assim, através de milhões de anos nossos ancestrais existiram em populações que consistiam de 100 mil indivíduos ou mais. Gargalos populacionais podem ter ocorrido em raras ocasiões. Mas a evidência genética indica que as populações humanas nunca consistiram de menos do que vários milhares de indivíduos.

Singularidade Humana

Os traços anatômicos humanos mais distintivos são a postura ereta e o cérebro grande. Somos a única espécie vertebrada com um modo bípede de andar conjugado à postura ereta. Pássaros são bípedes, mas suas espinhas dorsais ficam na horizontal e não na vertical. O tamanho do cérebro é, de modo geral, proporcional ao tamanho do corpo; relativamente à massa corporal, os humanos possuem o cérebro maior (e mais complexo). O cérebro do chimpanzé pesa menos do que meio quilo; o de um gorila, um pouco mais. O cérebro do homem adulto ocupa 1.400 centímetros cúbicos, quase um quilo e meio em peso.

Os evolucionistas costumavam levantar a questão sobre o que veio primeiro, se o bipedismo ou o cérebro grande, ou se eles se desenvolveram simultaneamente. O problema está resolvido agora. Nossos ancestrais Australopihtecus tinham, a partir de quatro Ma, um modo bípede de andar, mas um cérebro pequeno, de aproximadamente 450 cc, menos de meio quilo em peso. O tamanho do cérebro começou a crescer notavelmente como nossos ancestrais Homo habilis, em torno de 2.5 Ma, que possuíam um cérebro de 650 cc e também eram ferramenteiros prolíficos (daí o nome habilis). Entre um e dois Ma mais tarde viveu o Homo erectus, com cérebros adultos de até 1.200 cc. Nossa espécie, Homo Sapiens, possui um cérebro em torno de três vezes maior que aquele do Australopithecus, 1300-1400 cc, ou em torno de 1,4 kg. de massa cinzenta. O nosso cérebro não apenas é muito maior que aqueles do chimpanzé ou dos gorilas, mas também muito mais complexo. O córtex cerebral, onde as funções cognitivas mais refinadas são processadas, é nos humanos desproporcionalmente maior que o resto do cérebro quando comparado com o dos símios.

A postura ereta e o cérebro amplo não são as únicas características que nos distinguem de primatas não humanos, mesmo que elas sejam as mais óbvias. Uma lista de nossas características anatômicas mais singulares inclui as seguintes (das quais os últimos cinco itens não são detectáveis em fósseis):

Os humanos diferem de modo notável de outros animais não apenas na anatomia, mas também – o que não é menos importante - em seus comportamentos, tanto como indivíduos como socialmente. Uma lista de traços comportamentais distintivamente humanos inclui o seguinte:

Os humanos vivem em grupos que são socialmente organizados, assim como os outros primatas. Mas as sociedades primatas não se aproximam, em termos de complexidade, da organização social humana. Um traço social distintivamente humano é a cultura, que pode ser entendida como um conjunto de atividades e criações humanas não estritamente biológicas. A cultura inclui instituições políticas e sociais, maneiras de fazer coisas, tradições éticas e religiosas, linguagem, senso comum e conhecimento científico, arte e literatura, tecnologia e, em geral, todas as criações da mente humana. O advento da cultura tem trazido consigo a evolução cultural, um modo superorgânico de evolução superposto ao orgânico, e que tem, nos últimos milênios, se tornado o modo dominante de evolução humana. A evolução cultural surgiu por causa da mudança e herança culturais, um modo distintivamente humano de conseguir adaptações ao meio ambiente e transmiti-las através das gerações.

Herança Cultural

Há na humanidade dois tipos de herança - a biológica e a cultural, que podem ser chamadas de orgânica e superorgânica, ou sistemas endosomáticos e exosomáticos de herança. A herança biológica nos humanos é muito parecida com aquelas de qualquer um dos organismos que se reproduzem sexualmente; ela é baseada na transmissão da informação genética codificada no DNA de uma geração para a próxima por meio de células sexuais. A herança cultural, por outro lado, é baseada na transmissão de informação por um processo de ensino e aprendizado, que em princípio é independente do parentesco biológico. A cultura é transmitida por instrução e aprendizado, por exemplo, e imitação, através de livros, jornais e rádio, televisão e filmes, através de obras de arte, e por qualquer outro meio de comunicação. A cultura é adquirida por qualquer pessoa de pais, parentes e vizinhos, e de todo o meio-ambiente humano.

A herança cultural torna possível às pessoas aquilo que nenhum outro organismo pode obter - a transmissão cumulativa de experiência de geração a geração. Os animais podem aprender por experiência, mas eles não transmitem suas experiências, suas “descobertas” (pelo menos, não em larga escala) para as gerações que se seguem. Os animais têm memória individual, mas não possuem uma “memória social”. Os humanos, por outro lado, têm desenvolvido uma cultura porque podem transmitir cumulativamente suas experiências de geração a geração.

A herança cultural torna possível a evolução cultural, ou seja, a evolução do conhecimento, estruturas sociais, ética e de todos os outros componentes que fazem a cultura humana. A herança cultural torna possível um novo modo de adaptação ao meio-ambiente, indisponível a organismos não humanos - a adaptação por meio de cultura. Os organismos em geral se adaptam ao meio ambiente por meio de seleção natural, pela mudança ao longo de gerações de sua constituição genética para atender demandas do meio ambiente. Mas os humanos, e apenas os humanos, podem também se adaptar pela mudança de ambiente para atender as necessidades de seus genes (alguns animais constroem ninhos e também modificam seus meio-ambientes de outras maneiras, mas a manipulação do meio ambiente por espécies não-humanas é trivial quando comparada à da humanidade). Pelos últimos milhares de anos os humanos têm adaptado o meio ambiente aos seus genes com mais freqüência do que seus genes ao meio ambiente.

Para ampliar seu habitat geográfico ou sobreviver em um meio-ambiente em mudança, uma população de organismos tem que se adaptar através da acumulação lenta de variantes genéticas, escolhidas pela seleção natural, às novas condições climáticas, fontes diferentes de comida, competidores diferentes, e assim por diante. A descoberta do fogo e o uso de abrigos e vestimentas permitiram aos humanos se espalharem das regiões tropicais e subtropicais mornas do Velho Mundo para a Terra inteira, com exceção dos desertos gelados da Antártida, sem o desenvolvimento anatômico de pelagem. Os humanos não esperaram por mutantes genéticos promovendo o desenvolvimento da asa. Eles conquistaram o ar de uma maneira algo mais eficiente e versátil pela construção de máquinas voadoras. As pessoas viajam pelos rios e mares sem guelras e barbatanas. A exploração do espaço exterior iniciou-se sem a espera por mutações provendo os humanos com a habilidade de respirar com baixa pressão de oxigênio ou de funcionar na ausência de gravidade. Os astronautas carregam seu próprio oxigênio e vestes especialmente pressurizadas e equipadas. De suas obscuras origens na África, os humanos têm se tornado a espécie mais diversificada e abundante de mamíferos na Terra. Foi o surgimento da cultura como uma forma superorgânica de adaptação que tornou a humanidade a espécie animal mais bem-sucedida.

Adaptação cultural tem prevalecido na humanidade sobre a adaptação biológica porque é um modo rápido de adaptação e porque pode ser dirigida. Uma mutação genética favorável recém surgida em um indivíduo pode ser transmitida para uma parte considerável da espécie humana apenas através de inumeráveis gerações. Entretanto, uma nova descoberta científica ou aquisição técnica pode ser transmitida ao todo da humanidade, pelo menos potencialmente, em menos de uma geração. Além disso, sempre que uma necessidade aparece, a cultura pode ser diretamente guiada para as mudanças apropriadas para fazer face ao desafio. Ao contrário, a adaptação biológica depende da disponibilidade acidental de uma mutação favorável, ou de uma combinação de diversas mutações, no tempo e no lugar que a necessidade surge.

Da Biologia à Cultura

A postura ereta e o cérebro grande são características anatômicas distintivas dos humanos modernos. Inteligência elevada, linguagem simbólica, religião e ética são alguns dos traços comportamentais que nos distinguem de outros animais. O panorama das origens humanas que esbocei acima implica em uma continuidade no processo evolutivo que vai de nossos ancestrais humanos de oito milhões de anos atrás através dos hominídeos para os humanos modernos. Uma explicação científica da seqüência evolutiva deve dar conta da emergência dos traços anatômicos e comportamentais, em termos de seleção natural, junto com outros processos e causas biológicos. Uma estratégia explicativa é enfocar uma característica humana particular e identificar as condições sob as quais ela pode ter sido favorecida pela seleção natural. Tal estratégia pode levar a conclusões errôneas como uma conseqüência da falácia da atenção seletiva: alguns traços podem ter surgido não porque eles próprios sejam adaptativos, mas sim porque estão associados a traços que são favorecidos pela seleção natural.

Os geneticistas têm reconhecido o fenômeno da “pleietropia”, a expressão de um gene em diferentes órgãos ou traços anatômicos. Segue-se que um gene que é mudado por conta de seus efeitos em um certo traço resultará na modificação também de outros traços. As mudanças desses outros traços são conseqüências epigenéticas das mudanças promovidas diretamente pela seleção natural. A cascata de conseqüências pode ser, particularmente no caso dos humanos, bastante longa e longe de ser óbvia em alguns casos. Literatura, arte, ciência e tecnologia estão entre as características comportamentais que podem ter surgido não porque sejam adaptativamente favorecidas na evolução humana, mas porque são expressões das habilidades intelectuais superiores presentes nos humanos modernos. O que pode ter sido favorecido pela seleção natural (seu “alvo”) foi um incremento na habilidade intelectual mais do que cada uma dessas atividades particulares.

Explorarei de maneira breve a ética e o comportamento ético como um caso modelo de como podemos buscar uma explicação evolutiva de um traço distintivamente humano. Seleciono o comportamento ético porque a moralidade é um traço humano que parece remoto dos processos biológicos. Meu propósito é verificar se há uma descrição que pode ser apresentada do comportamento ético como um produto da evolução biológica. Caso seja assim, se o comportamento ético foi diretamente promovido pela seleção natural, ou se surgiu como uma manifestação epigenética de algum outro traço que era o alvo da seleção natural.

Argumentarei que o comportamento ético (a propensão a julgar os comportamentos humanos como bons ou maus) evoluiu como uma conseqüência de seleção natural não porque era adaptativo em si, mas sim como uma conseqüência pleieotrópica da inteligência elevada característica dos humanos. Entretanto, primeiro indicarei que a questão o comportamento ético é biologicamente determinado? pode-se referir tanto a: (1) a capacidade para a ética (ou seja, a propensão de julgar ações humanas como sendo corretas ou incorretas), e que eu indicarei como “comportamento ético”, ou (2) as normas ou códigos morais aceitos pelos seres humanos para guiar suas ações. Trabalharei com a primeira dessas questões e argumentarei que a capacidade para a ética é um atributo necessário da natureza humana, e assim um produto da evolução biológica. Com respeito à segunda questão, afirmarei brevemente minha convicção de que as normas morais são produtos da evolução cultural, não daquela biológica.

Minha tese é baseada no argumento de que os humanos exibem comportamento ético porque sua constituição biológica determina a presença de três condições necessárias e simultâneas para o comportamento ético. Elas são a habilidade para antecipar as conseqüências de nossas próprias ações, de fazer julgamentos de valor e de escolher entre cursos de ação alternativos. Assim, mantenho que o comportamento ético surgiu na evolução não porque é em si adaptativo, mas como uma conseqüência necessária das habilidades intelectuais eminentes do homem, que são um atributo promovido diretamente pela seleção natural. De qualquer forma, mantenho que, ao contrário de muitos evolucionistas distintos, as normas da moralidade são derivadas da evolução biológica. É verdade que tanto a seleção natural como as normas morais coincidem algumas vezes no mesmo comportamento, ou seja, as duas são consistentes. Mas esse isomorfismo entre os comportamentos promovidos pela seleção natural e aqueles sancionados pelas normas morais existem apenas com respeito às conseqüências dos comportamentos. As causas subjacentes são completamente díspares.

Raízes Biológicas do Senso Moral

Eu já havia notado que a questão sobre se o comportamento ético é determinado biologicamente pode se referir a alguns dos seguintes problemas: (1) É a capacidade para a ética - a propensão para julgar as ações humanas como corretas ou não - determinada pela natureza biológica do homem? (2) São os sistemas ou códigos de normas éticas aceitos pelos seres humanos determinados biologicamente? Uma distinção similar pode ser feita com respeito à linguagem. O problema sobre se a capacidade para a linguagem simbólica é determinada por nossa natureza biológica é diferente da questão sobre se a língua particular que falamos (português, inglês ou japonês) é biologicamente necessária.

A primeira questão colocada é mais fundamental. Ela se refere a se é verdade ou não que a natureza biológica do Homo sapiens seja tal que os humanos são necessariamente inclinados a fazer julgamentos morais e a aceitar valores éticos, identificar certas ações como certas ou erradas. Respostas afirmativas a essa primeira questão não determinam necessariamente qual seria a resposta à segunda questão. Independentemente ou não de se os humanos são necessariamente éticos, ainda fica por definir se prescrições morais particulares são, de fato, determinadas por nossa natureza biológica, ou se elas são escolhidas pela sociedade, ou por indivíduos. Mesmo se fôssemos concluir que as pessoas não podem evitar padrões morais de conduta, pode ser que a escolha de padrões particulares usados para o julgamento seja arbitrária. Ou que ela dependa de algum outro critério não-biológico. A necessidade de se ter valores morais não nos diz necessariamente o que estes valores morais devem ser, assim como a capacidade para a linguagem não determina qual linguagem devamos falar.

A tese que eu proponho é que os humanos são seres éticos por sua natureza biológica. Os humanos avaliam seu comportamento como correto ou incorreto, moral ou imoral, como uma conseqüência de suas capacidades intelectuais eminentes, que incluem autoconsciência e pensamento abstrato. Essas capacidades intelectuais são produtos do processo evolutivo, mas são distintivamente humanas. Assim, mantenho que o comportamento ético não é relacionado em termos de causalidade com o comportamento social dos animais, incluindo o pecado e o “altruísmo” recíproco.

Uma segunda tese em que avanço é que as normas morais com que avaliamos ações particulares como moralmente boas ou ruins (assim como as razões que podem ser usadas para justificar as normas morais) são produtos da evolução cultural, não da biológica. As normas de moralidade pertencem, nesse caso, à mesma categoria de fenômenos como as linguagens faladas por diferentes povos, suas instituições políticas e religiosas, e as artes, ciências e tecnologia. Os códigos morais, como estes outros produtos da cultura humana, são de modo geral consistentes com as predisposições biológicas da espécie humana, disposições que podemos até certo ponto compartilhar com outros animais. Mas essa consistência entre normas éticas e tendências biológicas não é necessária ou universal: não se aplica a todas as normas éticas em uma dada sociedade, muito menos em todas as sociedades humanas.

Códigos morais, como outras dimensões de sistemas culturais, dependem da existência da natureza humana biológica, e devem ser consistentes com ela no sentido de que eles não podem ignorá-la sob risco de promover a própria impossibilidade. Além disso, a aceitação e a persistência de normas morais são facilitadas sempre que elas são consistentes com comportamentos humanos biologicamente condicionados. Mas as normas morais são independentes de tais comportamentos no sentido de que algumas normas não podem favorecer, e até podem atrapalhar, a sobrevivência e a reprodução do indivíduo e seus genes, que são os alvos da evolução biológica. As discrepâncias entre regras morais aceitas e a sobrevivência biológica são, entretanto, necessariamente limitadas em escopo, ou seriam de outra forma conduzidos à extinção os grupos que aceitassem tais regras discrepantes.

Argumento que a questão sobre se o comportamento ético é ou não determinado por nossa natureza biológica deve ser respondida no afirmativo. Por “comportamento ético” entendo a referência ao impulso de se julgar ações humanas como boas ou ruins, não sendo o mesmo que “bom comportamento” (ou seja, fazer o que é percebido como bom, ao invés do que é percebido como mau). Os humanos exibem comportamento ético por natureza porque suas constituições biológicas determinam a presença, neles, de três condições necessárias e suficientes para o comportamento ético. Essas condições são: (a) a habilidade para antecipar as conseqüências das próprias ações; (b) a habilidade de fazer julgamentos de valores; e (c) a habilidade de escolher entre cursos de ação alternativos. Examinarei brevemente cada uma destas habilidades e mostrarei que elas existem como uma conseqüência da capacidade intelectual eminente dos seres humanos.

A habilidade para antecipar as conseqüências de nossas ações é a mais fundamental das três condições requeridas para o comportamento ético. Apenas se pudermos antecipar que puxando o gatilho a bala será disparada, a qual por sua vez atingirá e matará meu inimigo, pode a ação de se puxar o gatilho ser avaliada como nefasta. Puxar o gatilho não é em si uma ação moral; ela se torna como tal em virtude de suas conseqüências relevantes. Minha ação possui uma dimensão ética apenas se pudermos antecipar estas conseqüências.

A habilidade para antecipar as conseqüências de nossas ações é relacionada de perto com a habilidade de estabelecer a conexão entre os meios e os fins; ou seja, aquela de ver um meio precisamente como um meio, como algo que serve a um fim ou propósito particular. Esta habilidade para estabelecer a conexão entre meios e seus fins requer a habilidade de antecipar o futuro e formar imagens mentais de realidades não presentes ou ainda não existentes.

A habilidade para estabelecer a conexão entre os meios e fins parece ser a capacidade intelectual fundamental que tornou possível o desenvolvimento da cultura e tecnologia humanas. As raízes evolutivas dessa capacidade podem ser localizadas na evolução do modo de andar bípede, que transformou os membros anteriores de nossos ancestrais, de órgãos de locomoção em órgãos de manipulação. As mãos, assim, gradualmente se tornaram órgãos próprios para a construção e uso de objetos para a caça e outras atividades que aumentaram a sobrevivência e a reprodução, ou seja, que aumentaram a adaptação reprodutiva de seus portadores.

A construção de ferramentas, entretanto, depende não apenas da destreza manual, como também em percebê-las precisamente enquanto ferramentas, como objetos que auxiliam a realizar certas ações, ou seja, como meios que servem a certos fins ou propósitos: uma faca para cortar, uma flecha para caçar, uma pele de animal pra proteger o corpo do frio. A hipótese que estou propondo é que a seleção natural promoveu a capacidade intelectual de nossos ancestrais bípedes porque a inteligência desenvolvida facilitou a percepção das ferramentas como tal, e assim sua construção e uso, com a decorrente melhoria da sobrevivência e reprodução biológicas.

O desenvolvimento das habilidades intelectuais de nossos ancestrais teve lugar há dois ou mais milhões de anos atrás, aumentando gradualmente a habilidade de conectar meios com seus fins e, portanto, a possibilidade de se fazer ferramentas mais complexas servindo a propósitos remotos. A habilidade para antecipar o futuro, essencial para o comportamento ético, é, portanto associada de perto com o desenvolvimento da habilidade de construir ferramentas, uma habilidade que tem produzido as tecnologias avançadas das sociedades modernas e que é responsável em larga escala pelo sucesso da humanidade como uma espécie biológica.

A segunda condição para a existência do comportamento ético é a habilidade de se fazer julgamentos de valor, de perceber certos objetos ou atos como mais desejáveis do que outros. Apenas se eu conseguir ver a morte de meu inimigo como preferível à sua sobrevivência (ou vice-versa) pode a ação que leva à sua derrota ser pensada como moral. Se as conseqüências alternativas de uma ação são neutras com respeito a valor, a ação não pode ser caracterizada como ética. A habilidade para fazer julgamentos de valor depende da capacidade para a abstração, ou seja, da capacidade de perceber ações ou objetos como membros de classes gerais. Isso torna possível compararem-se objetos ou ações uns com os outros e perceber alguns como mais desejáveis que outros. A capacidade para abstração, necessária para se perceber objetos ou ações individuais como membros de classes gerais, requer uma inteligência avançada tal como a que existe nos humanos e, aparentemente, apenas neles. Assim, vejo a habilidade de se fazer julgamentos de valor primariamente como uma conseqüência implícita da inteligência mais elaborada, favorecida pela seleção natural na evolução humana. Mesmo assim, atribuir valor a certos objetos ou ações e escolhê-los entre suas alternativas pode ser uma conseqüência biológica. Fazer isto em termos de categorias gerais pode ser benéfico na prática.

Julgamentos morais são uma classe particular de julgamentos de valores. Ou seja, aqueles nos quais a preferência não é ditada pelo interesse ou vantagem de alguém, mas por se importar com os outros, o que pode causar benefícios para indivíduos particulares (altruísmo), ou levar em consideração os interesses de um grupo social ao qual alguém pertence. Os julgamentos de valor indicam preferência para o que é percebido como bom e a rejeição do que é percebido como ruim; bom e ruim podem se referir a valores monetários, estéticos ou de todos os outros tipos. Os julgamentos de valor dizem respeito a valores de certo ou errado na conduta humana.

A terceira condição necessária para o comportamento ético é a habilidade de escolher entre cursos alternativos de ação. Puxar o gatilho pode ser uma ação moral apenas se eu tiver a opção de não fazê-lo. Uma ação necessária para além de nosso controle não é uma ação moral: a circulação do sangue ou a digestão de comida não são ações morais.

A questão sobre se há ou não livre-arbítrio tem sido muito discutida por filósofos e este não é o lugar apropriado para resenhar os argumentos. Adiantarei apenas duas considerações baseadas na nossa experiência do senso comum. A primeira é nossa profunda convicção pessoal de que a possibilidade de escolha entre alternativas é mais genuína do que apenas aparente[3]. A segunda consideração é que quando confrontamos uma dada situação que requer uma ação de nossa parte, somos capazes de mentalmente explorar cursos de ação alternativos, estendendo assim o campo dentro do qual podemos exercitar nosso livre-arbítrio. Em todo caso, se não há livre-arbítrio, não haveria comportamento ético; a moralidade seria apenas uma ilusão. O que desejo enfatizar aqui, entretanto, é que o livre-arbítrio é dependente da existência de uma inteligência bem-desenvolvida, a qual torna possível explorar cursos de ação alternativos e escolher ou um ou outro em vista de conseqüências que podem ser antecipadas.

Em suma, minha proposta é de que o comportamento ético é um atributo da configuração biológica dos humanos e é, neste sentido, um produto da evolução biológica. Mas não vejo evidência de que o comportamento ético se desenvolveu porque, por si próprio, era adaptativo. Para mim é difícil vislumbrar como avaliar algumas ações como boas ou más (não apenas por escolher algumas ações e não outras, ou avaliá-las com respeito às suas conseqüências práticas) promoveria a adequação reprodutiva dos que avaliam. Nem vejo como poderia haver alguma forma de comportamento ético “incipiente”, que seria então posteriormente desenvolvido pela seleção natural. As três condições necessárias para que haja o comportamento ético são manifestações de habilidades intelectuais avançadas.

Parece, ao contrário, que o alvo provável da seleção natural pode ter sido o desenvolvimento dessas capacidades intelectuais avançadas. Esse desenvolvimento foi favorecido pela seleção natural porque a construção e o uso de ferramentas reforçaram a posição estratégica de nossos ancestrais bípedes. Uma vez que o bipedismo evoluiu e o uso e a manufatura de ferramentas tornou-se possível, aqueles indivíduos que eram mais eficientes nessas funções tiveram uma probabilidade maior de sucesso biológico. A vantagem biológica provida pelo desenho e uso de ferramentas durou o suficiente para que essas habilidades intelectuais continuassem a se desenvolver, eventualmente dando lugar ao desenvolvimento superior da inteligência que é característico do Homo Sapiens.

Observações Conclusivas sobre Códigos Morais

Há muitas teorias referentes aos fundamentos racionais para a moralidade, tais como teorias dedutivas que procuram descobrir os axiomas ou princípios fundamentais que determinam o que é moralmente correto com base na intuição moral direta. Também há teorias, como o positivismo lógico ou o existencialismo, que negam fundamentos racionais para a moralidade, reduzindo os princípios morais a decisões emotivas ou a outras raízes irracionais. Desde a publicação da teoria da evolução de Darwin pela seleção natural tanto filósofos quanto biólogos têm tentado encontrar no processo evolutivo a justificação para as normas morais. O terreno comum a todas essas propostas é que a evolução é um processo natural que atinge objetivos que são desejáveis e, portanto, moralmente bons; de fato, ela produziu os humanos. Os proponentes dessas idéias reivindicam que apenas os fins evolutivos podem dar valor moral à ação humana: se um ato humano pode ou não ser correto, isso depende de se ele promove direta ou indiretamente o processo evolutivo e seus objetivos naturais.

Herbert Spencer (SPENCER, 1993) foi talvez o primeiro filósofo que tentou encontrar os fundamentos da moralidade na evolução biológica. Tentativas mais recentes incluem aquelas de evolucionistas eminentes como J. S. Huxley (HUXLEY, 1947; 1953), C. H. Waddington (WADDINGTON, 1960) e E. O. Wilson (WILSON, 1975; 1978), fundador da sociobiologia como uma disciplina independente engajada na descoberta dos fundamentos biológicos do comportamento social. Argumentei em outro lugar (AYALA, 1987) que as teorias morais propostas por Spencer, Huxley e Waddington estão enganadas e falham em evitar a falácia naturalista[4]. Esses autores argumentam, de uma ou outra forma, que o padrão pelos quais as ações humanas são julgadas como boas ou más deriva da contribuição que as ações fazem ao avanço ou progresso evolutivo. Uma falha dessa argumentação é que ela é baseada em julgamentos de valor sobre o que é ou não progressivo na evolução (particularmente a humana) (AYALA, 1982). Não há nada objetivo no processo evolutivo como tal que faça do sucesso das bactérias, as quais têm persistido por mais de três bilhões de anos e em enorme diversidade e número, menos “progressivo” que aquele dos vertebrados, mesmo que os últimos sejam mais complexos (GOULD, 1996). Nem são os insetos, dos quais existem mais de um milhão de espécies, menos bem-sucedidos ou progressivos do ponto de vista puramente biológico de que humanos ou outras espécies de mamíferos. Além disso, os proponentes de códigos morais baseados na evolução falham em demonstrar porque a promoção da evolução biológica, por si própria, deveria ser o padrão para medir o que é moralmente adequado.

O esforço mais recente e sutil para fundamentar os códigos morais no processo evolutivo emana dos sociobiólogos, em particular de E. O. Wilson (WILSON 1975; 1978). Este começa por propor que “os cientistas e humanistas deveriam juntos considerar a possibilidade de que o momento é adequado para a ética ser temporariamente tirada das mãos dos filósofos, e biologizada” (WILSON, 1975: 562). O argumento dos sociobiólogos é de que nossa percepção de que a moralidade existe é uma manifestação epigenética de nossos genes, que manipulam os humanos de modo a fazê-los acreditar que alguns comportamentos são moralmente “bons” e, assim, as pessoas se comportam de formas que são boas para os seus genes. Os humanos não perseguem esses comportamentos de outro modo (o altruísmo, por exemplo, porque seu benefício genético não é aparente exceto aos sociobiólogos após o desenvolvimento de sua disciplina) (RUSE 1986a; 1986b; RUSE, WILSON, 1986).

Como indiquei em outro lugar, a descrição dos sociobiólogos da evolução do senso moral é mal direcionada (AYALA 1987; 1995). Como argumentei acima, fazemos julgamentos morais como uma conseqüência de nossas habilidades intelectuais eminentes, não como um modo inato de se obter um ganho biológico. Além disso, a posição dos sociobiólogos pode ser interpretada como uma abertura para a premissa que deveriam ser consideradas supremas aquelas normas de moralidade que alcançassem o maior ganho biológico (genético) (porque é por esta razão que, na visão deles, o senso moral acabou por evoluir). Isto, por sua vez, iria justificar preferências sociais, incluindo o racismo e mesmo o genocídio, que muitos de nós (incluindo os sociobiólogos) julgamos moralmente obtusos e mesmo hediondos.

A avaliação de códigos morais ou ações humanas deve levar em consideração o conhecimento biológico, mas a biologia é insuficiente para determinar quais códigos morais são, ou deveriam ser, aceitos. Isso pode ser revisto ao retornar-se para a analogia com as linguagens humanas. A nossa natureza biológica determina os sons que podemos ou não podemos emitir e também restringe a linguagem humana de outras formas. Mas a sintaxe e o vocabulário de uma linguagem não são determinados por nossa natureza biológica (ou então não poderia haver uma multidão de línguas), mas são produtos da cultura humana. Da mesma forma, normas morais não são determinadas pelos processos biológicos, mas por tradições culturais e princípios que são produtos da história humana.

Bibliografia

AYALA, Francisco 1982 "The evolutionary concept of progress." In: G.A. Almond et al., eds., Progress and Its Discontents. Berkeley: University of California Press, pp. 106-124.

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GORE, Rich 1997 "Tracking the First of Our Kind" In: National Geographic 129(3):92-99, September.

GOULD, Stephen J. 1996 Full House. The Spread of Excellence from Plato to Darwin. New York, NY: Harmony Books.

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WILSON, Edward O. 1978 On Human Nature. Cambridge, MA: Harvard University Press.

_________________ 1975 Sociobiology: the New Synthesis. Cambridge, MA: Harvard University Press.

Recebido: 05/12/2006
Aceite final: 12/02/2007

Notas

[*] Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva, Universidade da Califórnia, Irvine.

[1] Lee Berger, um paleoantropólogo da Universidade de Witwatersrand em Johannesburg, ao anunciar que duas pegadas humanas fósseis tinham sido descobertas ao longo do lago Langebaan (cem quilômetros ao norte de Capetwon), assim afirmou: “Quem quer que tenha deixado estas pegadas tem o potencial de ser um ancestral de todos os humanos modernos. Se fosse uma mulher, ela talvez até tenha sido Eva”. É claro, ele estava se referindo à “Eva mitocondrial” e não à Eva bíblica (GORE, 1997). Outros exemplos são citados em Ayala (1995).

[2] O número teórico de ancestrais para qualquer indivíduo se torna enorme após algumas dezenas de gerações, mas alguma endogenia ocorre: após algumas gerações, os ancestrais aparecem mais de uma vez na genealogia.

[3] Confúcio assim o colocou: “Alguém pode tirar de uma armada seu comandante chefe, mas não pode tirar do homem mais humilde seu livre-arbítrio”. The Analects of Confucius, translation and notes by Simon Leys, New York: Norton (1996)

[4] A “falácia naturalista” consiste em identificar o que “é” com o que “deve ser” (G.E. Moore, Principia Ethica, Cambridge University Press, 1903). Esse erro já havia sido apontado por Hume: “Em cada sistema de moralidade que eu tenho encontrado, tenho sempre percebido que o autor procede por algum tempo com um modo comum de raciocínio . . . daí com surpresa encontro que, ao invés das vinculações usuais de proposições, é e não é, não encontro proposição alguma que não seja conectada com um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível; mas é, entretanto, de importância duradoura. Pois como deve e não deve expressa alguma nova relação ou afirmação, é necessário que ela devesse ser observada e explicada; e ao mesmo tempo uma razão devesse ser dada, pois o que parece de todo inconcebível é como essa nova relação pode ser uma dedução de outras, que são inteiramente diferentes dela” (D. Hume, Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press [1740], 1978).