Editorial - REVER junho, ano 8, 2008

Religiões entre o Brasil e o Japão

Introdução

Essa edição especial da REVER, comemorativa dos cem anos da imigração japonesa no Brasil, faz parte de um esforço para a consolidação das religiões japonesas e nipo-brasileiras como uma área de pesquisa sólida no Brasil. Pelo esforço na realização dessa edição, gostaria de agradecer em nome da REVER a todos que estiveram indiretamente ou diretamente envolvidos na sua realização. Essa edição comemorativa só foi possível porque pode contou com o trabalho em grupo e a dedicação que caracteriza os homenageados no centenário.

Aqui buscarei introduzir a área para um público acadêmico mais geral, destacando as atividades do Programa de Ciências da Religião da PUC-SP nesse contexto. A variedade de movimentos religiosos japoneses transplantados para o Brasil, desde escolas budistas tradicionais até novas religiões japonesas, passando por grupos xintoístas, representa um caso importante de aculturação de uma religiosidade étnica, além de serem uma porta de acesso ao estudo das religiões orientais. A mais nova fase do fluxo migratório quase contínuo entre o Japão e o Brasil, o movimento decasségui (ida ao Japão para trabalho temporário), está trazendo o pentecostalismo brasileiro para a Ásia, e tem o potencial de transformar o Cristianismo no Japão em termos quantitativos e qualitativos.

1. Japoneses no Brasil

Até os anos 1990 poucos pesquisadores demonstraram interesse nas religiões japonesas no Brasil ou na conversão dos nipo-brasileiros ao Cristianismo. As contribuições em muitos casos se resumiam a teses, artigos esparsos e algumas publicações em japonês. O esforço dos pesquisadores pioneiros na área, muitos deles trabalhando sobre condições adversas e iniciando a área, certamente fornece um exemplo de dedicação e merece louvor. No entanto tenho a impressão de que por terem sido poucos os pesquisadores, infelizmente poucos trabalhos tiveram um impacto intelectual mais significativo.

Do ponto de vista quantitativo, no campo mais tradicional das religiões japonesas no Brasil, estima-se que 214.873 pessoas sejam adeptas do Budismo e 158.912 de outras religiões orientais, entre os quais a Igreja Messiânica aparece em destaque, com 109.310 adeptos (Censo de 2000 do IBGE). A separação entre novas religiões japonesas e budistas é na realidade algo difuso, já que novas religiões japonesas também podem ser movimentos budistas e o entrevistado oferece uma resposta subjetiva, identificando-se em categorias não distintas. Para efeitos de comparação, no entanto, observe-se que esses valores são comparáveis ao número de praticantes declarados do Candomblé (127.582) e da Umbanda (397.431). Em termos do relacionamento entre etnicidade e religião, o Candomblé tem inclusive um número menor de praticantes declarados se for feita uma comparação direta com o Budismo. Pode-se argumentar que existe um grande número de praticantes de religiões afro-brasileiras que não se identifica como tal no censo, mas o mesmo vale para as religiões nipo-brasileiras. A Seicho-no-ie por exemplo tem cerca de 27.000 adeptos segundo o IBGE, mas estima ter mais de um milhão de praticantes que entendem o ensinamento como “filosofia de vida” e não uma religião, podendo por isso ser praticada em conjunto com outras crenças. Um número de afiliados bem maior é certamente algo de se esperar quando se analisa o número de instituições e quando se constata a popularidade da Seicho-no-ie, que inclusive tem um programa de televisão.

Como as religiões afro-brasileiras contam com um número significativo de estudos e um campo de pesquisa bem mais consolidado, também o estudo das religiões japonesas e nipo-brasileiras tem o potencial de evoluir a ponto de produzir estudos de impacto mais geral para o estudo das religiões no Brasil. Para isso é preciso pensar nesse tema com a dedicação que ele merece. O campo das religiões japonesas e nipo-brasileiras é complexo porque existem muitas crenças e perspectivas filosóficas por trás de estruturas hierárquicas em estreita conexão com o Japão. Uma análise em profundidade de sua transplantação no Brasil é um esforço que somente o mundo acadêmico pode empreender, exigindo um trabalho contínuo de investigações de campo e novas perspectivas teóricas.

Os estudo das religiões japonesas no Brasil implica em uma familiaridade com as religiões no Extremo Oriente e algum esforço antropológico e filológico referente ao Japão e aos imigrantes japoneses no Brasil. O primeiro requisito é na verdade uma condição para o estudo da Ciência da Religião, como uma área que se propõe a estudar a variedade de religiões existentes no mundo, e o último é uma condição para os Estudos Japoneses no Brasil. O fato dessas duas áreas terem pouca presença e identidade intelectual nas universidades brasileiras ajuda a entender a relativa ausência de especialistas. A idéia do povo brasileiro como sendo fruto do encontro de três grandes grupos – brancos, negros e indígenas – também afastou esse estudo de grande parte dos programas de História, Antropologia e Ciências Sociais.

A superação desses obstáculos e de estereótipos é algo que cabe exatamente a universidade e ao mundo acadêmico, responsável por expandir as fronteiras do conhecimento, mas só recentemente as religiões japonesas tem se consolidado como uma área de pesquisa viável no Brasil, com grupos de pesquisa e especialistas sendo formados. Um maior interesse nas religiões orientais no Brasil a partir da década de 1990 se deu por um conjunto de fatores, mas uma importante causa do ponto de vista empírico foi a expansão das religiões japonesas entre brasileiros. Como um todo as religiões japonesas no Brasil praticamente não se expandiram numericamente na década de 1990, mas a proporção étnica se alterou, com a diminuição proporcional de amarelos sendo balanceada pela filiação de brasileiros sem descendência oriental.

2. Brasileiros no Japão

Apesar da expansão das religiões japonesas entre brasileiros ter começado antes, ele também foi impulsionado pelo movimento decasségui. Esses dois processos guardam um grau de relacionamento, já que a imigração de uma parcela dos nipo-brasileiros para o Japão implicou em mudanças na liderança e ênfase na adaptação em alguns grupos religiosos. Algumas novas religiões japonesas intensificaram a substituição da ideologia e orientação missionária a partir da colocação de líderes brasileiros no lugar dos que foram para o Japão. O fato do Budismo ter tido um declínio na década de 1990 teve três causas principais: o falecimento dos mais idosos na colônia, o movimento decasségui e o pouco esforço das escolas tradicionais em termos de se tornarem atrativas para os brasileiros sem ascendência japonesa. Mesmo os decasségui que não permanecem definitivamente no Japão trazem na bagagem uma nova imagem desse país, incluindo a revaliação de sua própria identidade nipo-brasileira e de suas crenças.

Além de ter um impacto nas religiões japonesas no Brasil, o movimento decasségui trouxe um eixo de pesquisa ainda pouco investigado. Da mesma forma como se pode falar em “religiões japonesas no Brasil” hoje se pode falar em “religiões brasileiras no Japão”, no qual o Catolicismo e o Pentecostalismo assumem o papel de uma religiosidade étnico-brasileira e o surgimento de uma geração de jovens brasileiro-japoneses (alguns destes com pouca fluência no português) são temas emergentes. Nesse sentido as religiões entre os decasségui no Japão trazem o potencial de expandir os estudos sobre os nipo-brasileiros para um contexto transnacional bastante dinâmico e se associar ao estudo dos brasileiros no exterior.

3. CERAL

O Programa de Cîencias da Religião da PUC-SP, através do CERAL (Centro de Estudos de Religiões Alternativas), um grupo de pesquisa registrado no CNPq e dedicado a pesquisas no campo de religiões orientais, tem buscado contribuir ativamente para a evolução da área, juntando-se aos esforços de outros. O grupo teve origem em 1998 com a fundação do GEBAL (Grupo de Estudos do Budismo na América Latina), motivado por uma pesquisa conjunta sobre o Budismo no Brasil, buscando realizar um levantamento quantitativo e uma pesquisa de campo extensa sobre a situação dos grupos budistas no Brasil. Em 2000 foi publicada uma coletânea de artigos sobre o tema “Budismo no Brasil” e na sequência diversas publicações e dissertações de mestrado e doutorado foram produzidas por componentes do grupo sobre esse tema.

Em 2004 o grupo decidiu expandir seu campo de pesquisa, atraindo estudantes e pesquisadores interessados em diversos fenômenos e abordagens relacionados a religiões orientais no Brasil, ao mesmo tempo fortalecendo uma rede de contato com outros centros e pesquisadores internacionais interessados no tema. A REVER certamente ajudou nesse processo: além da publicação de artigos e entrevistas sobre outras religiões orientais, foram publicados no intervalo de 2001 a 2007 por volta de 12 estudos relacionados a novas religiões japonesas ou ao Budismo na América Latina. Também vale destacar o intercâmbio com a Universidade Nanzan, em Nagóia, com o apoio da Fundação Japão e do governo japonês, que vem estimulando uma internacionalização das pesquisas, tanto em termos de extensão do campo empírico como pela publicação de resultados em inglês.

O ano de 2008 é um ano importante nessa trajetória, e não por acaso também é um ano especial para a colônia japonesa no Brasil. Com a edição dos coordenadores do CERAL foi publicada uma edição especial do Japanese Journal of Religious Studies, sobre as religiões japonesas no Brasil. Em agosto de 2008, também comemorando os 30 anos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, será realizado o congresso “Japanese spiritual heritage in Brazil – modalities of religious transplantation and cultural adaptation since 1908”, com o apoio da Fundação Japão e a presença de importantes pesquisadores internacionais no campo.

Por último, mas não menos importante, a presente edição da REVER vem contribuir com a publicação de artigos de especialistas na seção temática e intercâmbio. Na seção intercâmbio, são oferecidos artigos com material das mais recentes dissertações de mestrado do grupo no campo das religiões do Extremo Oriente. Na seção temática o Prof. Geraldo Paiva, da Universidade de São Paulo, nos apresenta as religiões japonesas a partir de estudos baseados em entrevistas com convertidos, oferecendo um panorama da aplicação da psicologia da religião nesse contexto. O Prof. Peter Clarke, da Universidade de Oxford, escreve sobre as mais recentes transformações nas novas religiões japonesas no Brasil e recupera a categoria do sincretismo nesse contexto, com especial destaque para a Soka Gakkai e suas estratégias de harmonização no Brasil. Por fim eu busco contribuir com observações de campo sobre as religiões entre os brasileiros no Japão, oferecendo um panorama da sua inserção em um novo contexto de demanda e oferta religiosa.


Rafael Shoji