O centenário da imigração japonesa para o Brasil chama a atenção para os múltiplos aspectos da presença nipônica entre nós. No campo das Ciências da Religião, um desses aspectos é o da sobrevivência, encapsulamento ou declínio do chamado “Budismo de Imigração”, profundamente relacionado às gerações mais antigas de nipo-brasileiros. Neste artigo, propomos uma análise do tema tomando por base a observação dos edifícios e da iconografia religiosa de templos de um importante grupo do Budismo de Imigração (Jôdo Shinshu) situados na cidade de Suzano, em São Paulo. O estudo nos permitiu concluir que, nas comunidades que freqüentam esses locais (e que são basicamente formadas pelos próprios imigrantes e por seus filhos mais velhos), a religião assume compromisso com uma identidade “étnica” calcada em valores trazidos e cultivados pelos imigrantes, em especial relacionados aos antepassados, em detrimento de uma abertura à sociedade majoritária.
Palavras-chave: Budismo Étnico, Budismo de Imigração, Imigração Japonesa, Iconografia Religiosa, Jôdo Shinshu.
The centenary of Japanese immigration to Brazil calls attention to multiple aspects of Japanese presence among us. One of these aspects is that of the survival, encapsulation, or decline of "Immigrantion Buddhism", deeply connected to the earliest generations of Japanese-Brazilians. In this article, we analyze the temples and religious iconography of an important Immigration Buddhism group (Jôdo Shinshu) in the city of Suzano, São Paulo. The study concludes that among these communities (comprised essentially of the immigrants themselves and their elder sons), religion assumes a strong commitment with an "ethnic” identity based on the preservation of traditional values, preventing an effective expansion into society at large.
Keywords: Ethnic Buddhism, Immigration Buddhism, Japanese Immigration, Religious Iconography, Jôdo Shinshu.
A presença de imigrantes nipônicos e seus descendentes no Brasil ao longo dos últimos cem anos tem entre seus resultados a disseminação, junto à sociedade local, de correntes religiosas calcadas na religiosidade oriunda do Japão, em especial o Budismo e as chamadas “Novas Religiões Japonesas” (USARSKI 2002; SHOJI, 2002a). Há, evidentemente, casos em que essa disseminação teve maior sucesso, e casos nos quais ela praticamente não se deu – situações em que a corrente ou ritual religioso permaneceram adstritos aos próprios imigrantes e a seus descendentes mais próximos, funcionando mais como elementos de manutenção de uma “identidade nipo-brasileira antiga”[1] do que como “oferta religiosa universal”.
Nosso objetivo, no presente artigo, é observar a existência de uma possível relação entre a configuração física de templos do chamado “Budismo Étnico Japonês” e o papel assumido pelas religiões neles praticadas junto à comunidade étnica.[2] Entendemos que é possível perceber, pela observação das edificações, se as religiões nelas praticadas tendem a “se colocar no mundo”, angariar fiéis e se deixar conhecer pela comunidade circunvizinha ou, então, a atender de forma exclusiva o grupo pré-estabelecido de fiéis, refletindo essencialmente o universo semântico dos mesmos.
Tomamos como objeto de estudo três grupos emblemáticos do Budismo Étnico Japonês - Higashi Honganji, Honpa Hongwanji e Jodo Shinshu Shinrankai, todos pertencentes à Escola Jôdo Shinshu (“Verdadeira Terra Pura”)[3] - da cidade de Suzano (SP).[4] Os pontos focais do nosso estudo são os cenários das manifestações religiosas institucionais (isto é, os templos dos três grupos em Suzano) e a liturgia neles adotada.
Antes de iniciar o estudo, é mister observar que o tema em questão (cenários e iconografia religiosa como índices de uma disposição “universalista” ou “etnocêntrica” da religião, no caso do Budismo Étnico em Suzano) foi desenvolvido, inicialmente, em uma dissertação apresentada ao Departamento de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP.[5] Nela, a observação de cenários e iconografia foi um dos elementos de um ferramental de pesquisa que incluiu entrevistas com praticantes, clérigos e líderes da comunidade nipo-brasileira em Suzano, acompanhamento de cerimônias religiosas por mais de um ano e levantamento de documentos que pudessem indicar como os três grupos religiosos estudados se organizaram.
O cruzamento dos dados obtidos por meio das diversas formas de aproximação em relação ao objeto de pesquisa permitiu à autora chegar à conclusão de que o valor atribuído por clérigos e adeptos a um ethos grupal primitivo ou originário está diretamente relacionado ao crescimento, encapsulamento ou declínio dos três grupos da Jôdo Shinshu em Suzano. Permitiu observar, também, o impasse relacionado à sobrevivência dos três grupos na atualidade, posto que eles se vêem diante de questões como o envelhecimento dos fiéis, o não-crescimento das adesões e o distanciamento entre os seus próprios valores (o ethos grupal primitivo ou originário) e os das gerações mais recentes de nipo-brasileiros.
Como observamos anteriormente, neste artigo vamos nos ater exclusivamente à análise dos cenários das atividades religiosas institucionais. Cremos, porém, que sua apresentação como elemento isolado das demais ferramentas utilizadas na dissertação permite, de per se, a obtenção de resultados dignos de nota. Acreditamos também que uma leitura como a que ora realizamos pode contribuir para aumentar o conhecimento acerca da dinâmica do Budismo de Imigração no Brasil.
A cidade de Suzano possui, atualmente, três Escolas budistas relacionados à comunidade japonesa. São eles Shingon, (com dois grupos), Nichiren (com três grupos) e Jôdo Shinshu, (com três grupos). Nossa opção pelos grupos da Jôdo Shinshu deveu-se, inicialmente, a seu marcado caráter étnico: a tradição é a mais popular dentre as praticadas pelos imigrantes e seus descendentes no Brasil. Deveu-se também à percepção do vigor com que essa tradição busca estreitar seus laços com outras comunidades de mesma orientação religiosa, inclusive do Japão. No caso da Jôdo Shinshu, os três grupos possuem quatro templos. Passemos à descrição de cada um dos grupos e de suas edificações:
O grupo do Higashi Honganji celebra suas cerimônias em dois locais em Suzano: na comunidade denominada Fukuhaku (Vila Ipelândia) e no bairro da Vila Amorim. O templo situado na comunidade Fukuhaku é o primeiro templo Budista de Suzano, tendo sido fundado em agosto de 1949. O templo originou-se com o grupo da Escola Shingon; pela inexistência de reverendos na região à época da Escola Shingon, solicitou-se ao reverendo da Jôdo Shinshu para realizar as cerimônias. Durante um longo período, adeptos de ambas as escolas freqüentavam o mesmo templo. Atualmente não há reverendo no local e as cerimônias são realizadas apenas após solicitação ao reverendo responsável da sede central do Higashi em São Paulo.
A maioria das cerimônias tem como objeto os antepassados, havendo, após a leitura do “Sho Shin Gue” (ou “Shoshingue”, o “Poema da Fé no Nembutsu”)[6], uma palestra realizada pelo reverendo a respeito dos ensinamentos budistas. Há, também, a comemoração do aniversário do Buda Sakyamuni e do mestre Shinran – normalmente, porém, essas cerimônias são realizadas na sede central em São Paulo.
O segundo grupo (da Vila Amorim) surgiu na cidade por uma dissidência entre fiéis e o templo do Honpa Hongwanji em Suzano. O sr. S.H. e a sra. F.H., imigrantes japoneses adeptos do templo Honpa Hongwanji, tiveram uma divergência com o antigo reverendo e decidiram aceitar o convite de um amigo, o reverendo do Higashi Honganji, para a instalação de uma associação em Suzano.
Com a doação e a compra de alguns terrenos, iniciaram a obra. A pedra fundamental foi lançada em abril de 1989, com a inauguração do salão em maio de 1992. Nesse espaço físico é que, desde então e em caráter provisório, se realizam as cerimônias e os eventos do Higashi. Atualmente, os fundadores buscam arrecadar fundos para efetivar a construção do templo – não há, porém, previsão de conclusão das obras.
No salão há um altar para as cerimônias de culto ao Buda Amida, ao mestre Shinran e aos antepassados. As cerimônias são realizadas todas as terceiras terças-feiras do mês pelo reverendo enviado da Matriz de São Paulo. Geralmente há cerca de dez pessoas nas cerimônias, entre elas imigrantes e descendentes com idade já avançada.
A associação realiza dois eventos sociais anuais: no mês de março, a Festa do Yakissoba, e, no mês de agosto, a Festa do Sukiake, na qual lanternas (Kentô) com os nomes dos antepassados ou de familiares são confeccionadas e expostas no salão, simbolizando a sabedoria de cada ente querido. Promovidos pelo sr. S.H. e pela sra. F.H. com auxílio dos filhos, esses eventos são uma fonte importante de arrecadação de recursos para as obras do templo. Outros eventos significativos, como a celebração do aniversário de Buda, assim como o estudo da doutrina budista, são realizados na Sede Central do Higashi em São Paulo.
A procura por dados históricos acerca da fundação do atual templo do grupo Honpa Hongwanji em Suzano revelou uma polêmica. Ao conversar com alguns dos imigrantes mais antigos de Suzano, percebemos a existência de duas versões para a fundação. Para parte dos entrevistados, o templo atual está relacionado a um primeiro templo, construído em 1954. Segundo eles, tal edifício teria sido construído por fiéis incentivados pela Sede Central do Honpa Hongwanji em São Paulo. Para outros entrevistados, o primeiro templo – que recebeu o nome de “Associação Budista Brasileira” - não pode ser considerado como pertencente à Honpa Hongwanji, na razão em que foi construído para abrigar um reverendo (Gyonen Yoshida) que pregava a doutrina budista da linha Shinshu de forma independente, criticando divisões institucionais.
Fato é que, em 1970, o então significativo número de fiéis levou a comunidade a construir um segundo templo, que, em função da aposentadoria de Gyonen Yoshida, acabou assumido por um clérigo enviado pela Sede Central da Honpa Hongwanji.[7] O primeiro templo deixou de funcionar e, desde então, a segunda edificação – que é objeto de nosso estudo – passou a abrigar os adeptos identificados com a Honpa Hongwanji.
Atualmente, segundo o reverendo responsável pelo templo, há aproximadamente 120 famílias associadas. A maioria dos membros tem mais de 70 anos; são, em sua absoluta maioria, imigrantes japoneses ou nipo-brasileiros de primeira geração. A presença de não-descendentes é muito pequena – segundo pudemos constatar ao freqüentar as cerimônias, os não-descendentes que participam são casados com nipo-brasileiros e vão ao templo com seus cônjuges.
As cerimônias no templo Honpa Hongwanji de Suzano são realizadas no primeiro sábado de cada mês, e estão centradas no culto aos antepassados. Essas cerimônias podem ser realizadas individualmente ou em grupo. Ao ser solicitado, o reverendo também vai às residências para realizar as cerimônias aos falecidos junto aos familiares. Durante a semana, o templo fica fechado, a não ser ocasionalmente, quando há celebração de alguma cerimônia em atenção ao antepassado de algum associado. Mediante solicitação, o templo também realiza casamentos.
O templo também possui um calendário comemorativo, no qual são celebradas as seguintes datas: em abril, o aniversário do Buda Sakyamuni; em maio, o aniversário do mestre Shinran e, em agosto, a festa do Obon – Dia de Finados, com exposição das lanternas com o nome gravado dos familiares falecidos; há, também, uma Festa do Yakissoba. Durante o ano há um intercâmbio entre as senhoras budistas em congressos realizados no país.
A Jodo Shinshu Shinrankai foi fundada em março de 1958 no Japão por um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, Kentetsu Takamori.[8] Em Suzano, o grupo da Shinrankai já se faz presente há mais de 20 anos, mas não há registro do dia da sua fundação nem do seu fundador. Desde o início, seus membros realizavam as cerimônias na casa de um dos adeptos. Atualmente, se reúnem na casa de um simpatizante do Budismo, onde, duas vezes por mês, missionários vindos do Japão (e hospedados durante alguns meses no templo da cidade de São Paulo) realizam cerimônias e divulgam os princípios budistas.
Normalmente, as reuniões atraem 25 pessoas, entre imigrantes e descendentes. De modo geral, os descendentes são os filhos mais velhos dos imigrantes e seus cônjuges. Em Suzano, não há participação regular de brasileiros não-descendentes de japoneses – como pudemos observar, eles vão às cerimônias sempre na condição de convidados e não na de adeptos.[9]
Muitas vezes, após a entoação do hino “Shin Shu Shu Ka” e a leitura do Sho Shin Gue, a doutrina é apresentada em japonês, na forma de “aula”, pelo clérigo visitante ou, então, por meio de uma fita de vídeo que mostra uma palestra do fundador, Kentetsu Takamori. A vídeo-palestra – também em japonês - não pode ser vendida nem emprestada aleatoriamente, sendo de apresentação exclusiva nas cerimônias. Em caso de necessidade, as falas são traduzidas para o português por um dirigente. Quando há eventos significativos – dentre os quais, uma cerimônia coletiva anual de culto aos antepassados -, o grupo vai para a Sede Central da Jodo Shinshu Shinrankai em São Paulo.
A premissa fundamental de que partimos para analisar os templos do Budismo Étnico Japonês em Suzano é de que a configuração física dos locais de prática religiosa institucionalizada permite observar disposições da comunidade religiosa (compreendida como a soma entre fiéis e clérigos) em relação ao cenário não-religioso (a vizinhança não conectada ao Budismo) no qual está inserida e em relação ao próprio papel da religião. Na razão em que os edifícios religiosos e os locais de prática religiosa também funcionam como interface entre fiéis e não-fiéis, é possível perceber, com base em uma leitura cênica/iconográfica, se esses ambientes se voltam “para fora” (expressando um esforço de atração de novos simpatizantes ou, pelo menos, uma “receptividade passiva”) ou “para dentro” (visando exclusivamente a comunidade de fiéis e o reforço de sua identidade).
Em nossa análise, estabelecemos elementos de observação que permitem identificar tendências de “aproximação” ou de “afastamento” dos grupos estudados em relação à comunidade não-étnica (ou que não domina o código semântico) na qual eles estão inseridos. Tais elementos estão representados nos seguintes campos:
a) Localização, acesso e visibilidade dos estabelecimentos;
b) Grau de domínio das comunidades sobre os imóveis ocupados;
c) Adequação dos ambientes internos;
d) Sinais externos de identificação dos locais de prática religiosa.
e) Iconografia religiosa.
A seguir, faremos uma “leitura” de cada um dos locais de prática dos grupos pesquisados com base nos critérios acima definidos.
Os grupos budistas da Jôdo Shinshu em Suzano apresentam diferentes padrões de apresentação em suas instalações físicas. Dos três grupos, apenas o Honpa Hongwanji possui uma estrutura física de fácil acesso - o centro de prática funciona em um imóvel no Centro da cidade. A primeira associação pertencente ao Higashi Honganji (Vila Ipelândia), por sua vez, está localizada em um bairro afastado, onde a presença nipônica é claramente perceptível; a área não é, porém, de grande circulação de pessoas, e o edifício-sede é pouco visível – fica atrás de um estabelecimento comercial. A segunda associação do Higashi Honganji (Vila Amorim) também tem sua sede fora da área central, em um local de difícil acesso e pouca visibilidade (por ocasião de nossa pesquisa, os trabalhos eram realizados em um salão também locado para outras atividades).
Já a Associação Jodo Shinshu Shinrankai realiza suas cerimônias em uma residência particular localizada no Centro da cidade, local de fácil acesso e bastante visível. As três instituições não estão em áreas predominantemente étnicas.
Os espaços físicos do Honpa Hongwanji e do Higashi Honganji pertencem às comunidades religiosas das respectivas instituições. A Jodo Shinshu Shinrankai não possui imóvel próprio - a casa que ocupa foi cedida por um integrante da colônia nipo-brasileira da cidade –, mas seus coordenadores observam uma filiação à sede central (e ao edifício por ela ocupada) na cidade de São Paulo.
O imóvel do Honpa Hongwanji possui em sua estrutura interna um ambiente especialmente reservado para cerimônias e festividades anuais. Além disso, conta com dependências específicas para habitação do reverendo responsável pela coordenação dos trabalhos. O espaço exterior é utilizado para a entrada dos fiéis, possuindo uma garagem pequena e um portão separando o ambiente da rua.
A área interna do primeiro templo do Higashi Honganji possui um local de cerimônias, um salão (refeitório) e outras dependências utilizadas atualmente pela caseira. De fora, observa-se um grande corredor de entrada para as pessoas e os carros. Já o local de prática do segundo grupo do Higashi Honganji possui várias dependências, entre elas uma cozinha e um grande salão com palco onde são realizadas as cerimônias mensais. O espaço externo possui uma área de bom tamanho, que é utilizada para o estacionamento dos carros; essa área também possui um portão. O grupo da Jodo Shinshu Shinrankai utiliza uma sala do imóvel cedido para as atividades. O lugar é destinado à prática do Budismo e ao desenvolvimento do projeto “Qualidade de Vida”, realizado durante a semana com sessões de atividades físicas e palestras para mulheres idosas. Além dessa sala, o imóvel conta com outras dependências não-relacionadas à atividade religiosa e também com uma garagem e um portão.
O prédio do Higashi Honganji da Vila Ipelândia não apresenta sinais que o identifiquem como local de prática religiosa (vale lembrar sua localização, atrás de um prédio comercial). No caso da associação da Vila Amorim, há uma inscrição na parte lateral do salão, junto à entrada: “Central Nambei Honganji” (Fig. 1). Em função da localização do imóvel no terreno, porém, tal inscrição não é visível da rua (Fig. 2).
A estrutura física do Honpa Hongwanji é a única que fornece elementos identificadores claros. Guarda características que, para a maioria das pessoas, pertencem ao “templo japonês típico” ou, pelo menos, à “arquitetura oriental”: as pontas do telhado são ligeiramente erguidas (como nos pagodes chineses), as janelas e o portão possuem recortes característicos (Fig. 3). Também é visível, no alto da fachada, um símbolo que, aparentemente, poderia identificar uma instituição religiosa. Em uma parede lateral do prédio, sobre a porta de acesso, está o nome da instituição: “Templo Honpa Hongwanji de Suzano” (Fig. 4) e, ao lado, uma placa escrita com ideogramas japoneses. No lado esquerdo da porta de entrada, defronte ao portão de entrada, há uma lousa que é utilizada para deixar recados em japonês.
A associação Jodo Shinshu Shinrankai não possui qualquer identificação externa em seu imóvel. É possível que essa ausência esteja relacionada à sua condição precária de instalação (em um imóvel cedido por terceiro, cuja função essencial é de moradia).
No templo do bairro Ipelândia há um altar fixo, com as imagens e símbolos representando a Escola - a figura central do Buda Amida e, ao lado, a figura dos mestres Honen e Shinran. No lado esquerdo, na parede, há um retrato do atual casal imperial japonês (imperador Akihito e imperatriz Michiko), em uma foto oficial do final dos anos sessenta. Ainda que esse retrato inspire questionamentos a respeito da manutenção de uma afiliação dos adeptos da Higashi Honganji de Suzano a um culto remanescente do Xintoísmo de Estado, não nos aprofundamos o suficiente na pesquisa para chegar a uma resposta definitiva.[10] Ainda assim, cremos que tal afiliação existe: conversando com imigrantes e descendentes de primeira geração, percebemos que prevalece um profundo respeito pela figura do imperador, principalmente por parte dos primeiros. Eles não admitem críticas à pessoa imperial e se cercam de cuidados ao tratar de assuntos que envolvam o tema.[11]
No caso da associação situada no bairro da Vila Amorim, não há um altar fixo, mas uma estrutura preparada para montagem do altar nos dias da cerimônia. O altar é constituído com a figura central do Buda Amida e, nas laterais, estão dois painéis com ideogramas. Completando o cenário estão flores, castiçais, incensos, velas e objetos que fazem parte do cerimonial budista (Fig. 5).
Possui um altar fixo com as imagens do Buda Amida e dos mestres Honen e o Shinran; na parede lateral do lado esquerdo há quadros com figuras representando a história do Buda Sakyamuni. Compõem ainda o cenário incenso, flores, alimentos e placas votivas de madeira com o nome dos fiéis falecidos. Abaixo do altar há uma mesa com incenso para queima na hora da cerimônia e os livros dos ofícios religiosos para a recitação do “Sho Shin Gue” e dos hinos entoados na cerimônia. Há também um aparelho de som para a reprodução dos hinos, assim como um microfone. Um suporte de madeira também está ao lado da porta de entrada da sala de cerimônia; nele são colocados os nomes (escritos em ideogramas japoneses) dos antepassados a serem cultuados em determinadas ocasiões. No salão onde os freqüentadores tomam chá após a cerimônia há uma lista com as contribuições financeiras de seus associados (Fig. 6).
Também não possui um altar fixo para a celebração das cerimônias; o altar é montado a cada cerimônia, junto com a colocação de cadeiras e, algumas vezes, de um tapete para aqueles que preferem se sentar no chão. Há também duas lousas para o uso durante as palestras. Quando a cerimônia é realizada com utilização de vídeo-palestra ou filme a respeito da doutrina, utiliza-se um projetor (Fig. 7).
Os dados levantados na observação do locus religioso dos grupos da Jôdo Shinshu em Suzano nos permitem chegar a algumas conclusões:
a) De modo geral, os edifícios onde funcionam os locais de culto da Jôdo Shinshu em Suzano não são os mais indicados à propagação da fé budista: por sua configuração, eles não cumprem, de forma adequada, um papel de atração de novos fiéis. Não são atraentes aos olhos, não “se apresentam” a possíveis interessados. Parecem mais – como veremos na conclusão deste trabalho – atender apenas a uma “demanda interna” que não inclui, entre seus elementos, a necessidade de dividir o espaço com novos adeptos.
Dos quatro edifícios investigados, apenas um – o do Honpa Hongwanji – traz indicações estéticas de pertencer a uma religião “oriental” ou “japonesa”. Aparentemente, essa valorização estética pode indicar um vigor institucional comum a períodos mais recuados da história do Budismo em Suzano, quando a população imigrante era maior e a coesão grupal na comunidade nipônica local era mais intensa.
Vale observar, porém, que os edifícios de Suzano – mesmo o do Honpa Hongwanji, com seu estilo “oriental” – não são idênticos os edifícios religiosos do Budismo no Japão. A arquitetura, técnicas construtivas e materiais utilizados são diferentes e indicam, no caso brasileiro, uma adaptação às condições estruturais e econômicas locais - uma “tropicalização” que implica em um produto que não se configura como “brasileiro” ou “japonês”, mas como típico de uma visão nipo-brasileira centrada no olhar imigrante mais antigo.
b) As estruturas utilizadas para a realização das cerimônias – observada a exceção apontada no parágrafo anterior, do Honpa Hongwanji – não apenas “escondem” os trabalhos, como também parecem desestimular a chegada de novos adeptos:
c) A presença de sinais externos de identificação da atividade religiosa também aponta para uma atividade voltada “para dentro”, isto é, exclusivamente a um grupo de sujeitos que dominassem previamente o código semântico relacionado à atividade religiosa. O símbolo no alto da fachada do templo Honpa Hongwanji, conquanto relacionado à fé propagada, dificilmente será compreendido como “budista” pelos passantes não-pertencentes ao grupo de religiosos. Os próprios nomes em português dos grupos dificultam a identificação, na razão em que nenhum deles expressa claramente a afiliação budista (um bom exemplo aparece na Fig. 1: é possível relacionar o nome “Central Nambei Honganji” a uma série de atividades além da religiosa).
d) De todos os itens analisados, o que mostra menor dificuldade é, sem dúvida, o que se refere à iconografia religiosa presente nos salões de prática religiosa, que segue um padrão “budista japonês” em todos os casos examinados. Para um leigo, porém, haveria alguma dificuldade em compreender o significado de elementos como as placas votivas consagradas aos antepassados falecidos e escritas em japonês – um entrave sanável por uma simples consulta a um devoto disposto a dar explicações. Em relação a este item, porém, vale observar que a iconografia dos salões de prática é “guardada” pela estrutura externa; a ela chegam apenas os interessados que não se deixaram vencer pela falta de elementos indicativos externos.
A partir dos aspectos físicos e elementos iconográficos identificados é possível estabelecer um parecer sobre a relação entre a configuração dos templos budistas étnicos japoneses da Jôdo Shinshu em Suzano e a finalidade principal da religião neles praticada. Em nossa avaliação, a prevalência é de uma atitude institucional expressamente ligada aos interesses de uma comunidade pré-estabelecida e que dispensa manifestações externas de presença religiosa. Isso é confirmado pela presença de uma iconografia mais elaborada nos locais de verdadeira importância religiosa, a saber, os salões cerimoniais – lá, onde os praticantes se reúnem ombro a ombro, é que importa a presença dos elementos relacionados à fé.
A ausência de fatores de atração pode indicar tanto um desinteresse na afirmação da própria fé “para fora” quanto uma oposição aberta (mas não verbalizada) ao ingresso de novos fiéis – principalmente daqueles que não pertencem ao grupo-padrão de imigrantes ou de nikkei tradicionalistas. Tal pertencimento ao grupo-padrão, vale observar, não passa necessariamente por uma “afinidade genética” (é muito arriscado abordar a questão do preconceito racial em um estudo não voltado especificamente ao tema), mas pelo domínio do idioma (tanto falado quanto escrito) e dos códigos de sociabilidade cultivados pelos imigrantes ou pelos nikkei tradicionalistas.
O papel central do culto aos antepassados nas cerimônias das comunidades estudadas também parece ser um elemento essencial para o isolamento desses grupos em relação à comunidade “exterior”. O caráter personalíssimo desse culto possui dupla implicação: a) faz com que os praticantes identifiquem a religião como algo pessoal, familiar, que não deve ser mostrado ou compartilhado com pessoas “de fora”; b) faz com que as pessoas “de fora” não tenham interesse, na razão em que a oferta religiosa tem como leitmotiv algo que não lhes interessa.
Esse “cuidado em não ter cuidado” com a propagação da fé fora de um círculo de pessoas muito específico também parece denotar um compromisso institucional estrito: a finalidade precípua da religião não seria levar conforto espiritual ou uma determinada mensagem ao maior número de pessoas, a “todos os seres”, mas promover e garantir a sobrevivência de elementos de identidade do grupo originário de fiéis. Uma identidade cultural nascida da interação entre a cultura do Japão da época da imigração e a sociedade brasileira e que, aparentemente, está se extinguindo por conta do desaparecimento das gerações mais antigas.
Acreditamos que constatações como as tecidas neste artigo podem realçar um aspecto da presença nipônica do Brasil que merece atenção: o da extinção de determinados valores culturais “tipicamente imigrantes” japoneses entre os nipo-descendentes e na própria sociedade brasileira. Um estudo mais amplo, de campo, sobre práticas japonesas de corte “étnico” que vão das danças folclóricas à cerimônia do chá (e passam pela religião), seguramente traria informações preciosas sobre a faixa etária dos participantes, sobre a presença de nipo-descendentes entre os praticantes e sobre como se dá a transmissão desses valores. Permitiria sugerir, enfim, uma resposta à questão relativa ao futuro desse patrimônio cultural: em quinze ou vinte anos, quando mesmo a primeira geração de nipo-brasileiros (os “primeiros filhos” dos imigrantes) tiver desaparecido, que práticas caracterizarão de forma mais “tradicional” a identidade nipônica no Brasil?
GONZAGA, E. 2006 “Buda de Casa faz milagre? Estudo sobre o conflito entre tradição e modernidade em grupos da escola Jôdo Shinshu em Suzano”, São Paulo, dissertação de mestrado, Departamento de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião. PUC-SP.
HARDACRE, H. 1991 Shinto and the State 1868 – 1988, Princeton, Princeton University Press, primeira edição
KAWANAMI, H. 2001 “Japanese Nationalism and the Universal Dharma”, in HARRIS, I. (ed.), Buddhism and politics in Twenty-Century Asia, Londres, Continuum Universal Publishing Group: 105-126.
SHOJI, R. 2002a “Uma perspectiva analítica para os convertidos ao Budismo Japonês no Brasil”, REVER, São Paulo, ano 2, n. 2: 85-111.
SHOJI, R. 2002b “O Budismo étnico na religiosidade Nikkey no Brasil: aspectos históricos e formas de sobrevivência social”. REVER, São Paulo, ano 2, n. 4: 47-80. Disponível em http://www.pucsp.br/rever/rv4_2002/t_shoji.htm (acesso em 31.01.08).
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______________ 2004 “O dharma verde-amarelo mal-sucedido: um esboço da acanhada situação do Budismo”, in Estudos Avançados: dossiê religiões no Brasil, v.18, n. 52 (dez.): 303-320.
Recebido: 15/03/2008
Aceite final: 21/05/2008
[*] Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP.
[**] Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
[1] Adotamos a expressão “identidade nipo-brasileira antiga” porque acreditamos que ela melhor identifica o comportamento e a visão de mundo dos próprios imigrantes e de seus filhos mais velhos. Essa identidade não é, de fato, “nipônica”, na razão em que o próprio Japão mudou significativamente depois da imigração. Não nos parece, porém, que seja genericamente “nipo-brasileira”, posto que nos parece possível localizar outros perfis identitários nipo-brasileiros, como o dos descendentes que cultivam laços com a cultura japonesa por meio de aproximações com a cultura pop (música, anime e mangá, moda). Muitas vezes, o “olhar nipo-brasileiro” das novas gerações é bastante distante do de seus avós.
[2] Por Budismo étnico japonês entende-se, no presente contexto, a religião (em suas diferentes correntes) que chegou com os imigrantes ou, então, que foi trazida por clérigos/pregadores japoneses e incorporada muito cedo pela comunidade nipônica em terras brasileiras. Está profundamente relacionado ao culto aos antepassados e à coesão grupal. O conceito é aprofundado por SHOJI (2002b).
[3] Neste trabalho, adotamos as transliterações dos nomes dos grupos religiosos tal como realizadas pelos imigrantes japoneses que os instalaram em Suzano. Tais transliterações apresentam diferenças entre si e em relação a uma transliteração padrão, ainda que os termos originais em japonês sejam os mesmos. Isso ocorre em “Jôdo” (padrão Hepburn), transliterado sem a vogal longa pelos fiéis do grupo “Jodo Shinshu Shinrankai” e em “Hongan-ji” (padrão Hepburn), transliterado pelos grupos estudados principalmente nas formas “Hongwanji” e “Honganji”.
[4] Os primeiros imigrantes japoneses chegaram a Suzano em 1921. Em 2001, quando a colônia local completou 80 anos, 8% do total da população da cidade era de imigrantes e descendentes; nos anos 40 do século 20, eles chegavam a representar 37% da população. Atualmente, segundo o vereador Luiz Higashi, de Suzano, a cidade abriga uma população de 23 mil nipo-descendentes. Cf. GONZAGA (2006).
[5] GONZAGA (2006). Todos os dados relativos à história dos grupos em Suzano citados neste trabalho foram obtidos por meio de pesquisas de campo, análise de fontes primárias e entrevistas realizadas pela autora durante a produção da dissertação de mestrado.
[6] Texto do Sho Shin Gue em http://www.shurendo.org/budismoshin/hinos/shoshingue.htm; explicações sobre sua entoação ritual em http://www.terrapuradf.org.br/fundamentos/shoshingue.asp
[7] Sua aposentadoria teria sido motivada pela pressão, por parte de vários fiéis, para que ele optasse por uma das duas linhas do Budismo Shinshu. Cf. GONZAGA (2006).
[8] Sobre a fundação da Jodo Shinshu Shinrankai no Japão, ver KAWANAMI (2001: 118).
[9] Na Sede Central do Grupo em São Paulo, porém, há adeptos não nipo-descendentes.
[10] Descrição do Xintoísmo de Estado em HARDACRE (1991).
[11] Em Suzano, por ocasião de nossa pesquisa de campo, um tema bastante discutido entre os imigrantes era o tratamento dado aos decasséguis pela atual sociedade japonesa. Informações sobre desrespeito a essas pessoas chocavam e entristeciam os integrantes mais idosos da colônia. A idéia de escrever uma carta e endereçá-la ao imperador por ocasião das comemorações do centenário da imigração japonesa ao Brasil abordando o assunto chegou a ser aventada por um grupo de nisseis, mas acabou abandonada diante da desaprovação dos imigrantes.