SHAHAR, Meir
The Shaolin Monastery – History, Religion, and the Chinese Martial Arts, Honolulu - Havaí: University of Hawai’I Press, 2008, 281 p., ISBN 978-0-8248-3110-3

por Rodrigo Wolff Apolloni[*] []

Situado na Província de Henan, na área central da China, o mosteiro de Shaolin é, provavelmente, um dos mais famosos complexos budistas do mundo. Surpreendentemente, porém, é mais conhecido e reverenciado por praticantes de artes marciais e amantes da “cultura pop” do que pelos próprios budistas – isso, apesar de ser considerado o berço do Budismo Chan, local que, segundo a tradição, abrigou o patriarca indiano Bodhidharma por volta do século V.[1]

A razão do sucesso junto a um público aparentemente tão desconectado do caminho do Dharma – e da baixa popularidade junto à comunidade budista – está na figura dos monges boxeadores, personagens que há séculos povoam o imaginário chinês e que, com o sucesso do cinema de Kung-Fu (a partir do final da década de 1960), ganharam o Ocidente.[2] Que caminhos levaram um centro de difusão do Budismo – religião que tem na não-violência o primeiro de seus preceitos[3] – a se colocar no âmago de uma das mais famosas tradições guerreiras do mundo? De que forma seus monges lidaram com o conflito entre o pacifismo e a prática marcial? Como as autoridades religiosas budistas e os governantes chineses encaravam esses personagens?

Partindo de questões como essas, o historiador israelense Meir Shahar publicou, há pouco mais de seis anos, um artigo no qual, com base em pesquisas epigráficas, consultas a trabalhos de scholars chineses e japoneses e a documentos oficiais das dinastias Ming e Qing, apresentava algumas interessantes respostas.[4] O trabalho mostrou, por exemplo, o papel da política no primeiro engajamento militar dos monges (na passagem das dinastias Sui para Tang) e a importância da desagregação institucional Ming para o surgimento de uma tradição marcial sistematizada em Shaolin. Indicou, também, as formas encontradas pela comunidade monástica de Shaolin para legitimar teologicamente o próprio uso da violência e, com isso, escapar de uma grave contradição em relação ao seu cânone religioso.

Em janeiro deste ano, Shahar voltou ao tema ao publicar, pela editora da Universidade do Havaí, o livro “The Shaolin Monastery – History, Religion, and the Chinese Martial Arts”. A obra traz informações valiosas não apenas para a compreensão do fenômeno dos monges guerreiros chineses, mas chama a atenção para questões interessantíssimas relativas, por exemplo, à iconografia budista (por que o Budismo, apesar de seu apelo à não-violência, possui tantas divindades armadas e de aparência feroz?), à estrutura organizacional dos mosteiros budistas na China (qual o papel das comunidades “semi-monásticas” que cresciam ao redor dos monastérios?) e às relações entre o governo imperial chinês e os clérigos (por que os monges de Shaolin se tornaram “modelo de virtude” para muitos governantes? Como eles ganharam o status de “heróis fundadores” do movimento subversivo político chinês, do Kung-Fu e até da moderna máfia chinesa?).

Em relação ao artigo de 2001, o livro faz um importante aprofundamento histórico. Se naquele trabalho não havia informações a respeito dos cerca de setecentos anos decorridos entre a participação dos monges nos combates que culminaram com o advento da Dinastia Tang e as campanhas militares-monásticas anti-pirataria do período Ming tardio, neste há uma parte específica – a segunda, intitulada “Systemizing Martial Practice (900 – 1600)” – na qual o tema é amplamente abordado.

A obra é dividida em três partes. A primeira - “Origins of a Military Tradition (500 – 900)”, dividida em dois capítulos - abrange o ingresso do Budismo na China, as disputas iniciais entre budistas e taoístas pelos loci sagrados (as montanhas) e o florescimento da religião de Buda em Henan (que, nos primeiros séculos da Era Comum, durante a Dinastia Sui, se tornou um dos mais prósperos centros budistas do mundo); traz, também, informações sobre o episódio que envolveu os monges na luta pelo poder imperial durante a Dinastia Tang e selou o “destino marcial” de Shaolin; por fim, mostra como, já em seus primeiros séculos de existência, o mosteiro via-se às voltas com questionamentos relativos à autorização do uso da violência, e como os monges apelaram a uma iconografia centrada em divindades ferozes como o bodhisattva Vajprapani (Jingang)[5] para legitimar sua atividade guerreira.

A segunda parte (“Systemizing...”, dividida em dois capítulos), como já vimos, aprofunda informações sobre a marcialidade no mosteiro entre os séculos X e XVII, e também traz informações a respeito de como, a partir das técnicas de bastão, monges e intelectuais confucionistas interessados nas artes marciais populares iniciaram a sistematização dos modernos “estilos de Kung-Fu da família Shaolin”. Nessa parte, Shahar retoma e aprofunda um dos assuntos mais interessantes de seu trabalho anterior: aquele relativo à produção, pelos próprios clérigos, de um mito legitimador de suas atitudes, no caso, o da divindade armada Jinnaluo, que combatia os inimigos do Dharma com fenomenais golpes de bastão.

Na terceira parte – “Fist Fighting and Self-Cultivation (1600 – 1900)”, dividida em três capítulos –, o autor aponta outros desenvolvimentos marciais em Shaolin (a passagem das técnicas de bastão para as de mãos livres e de uso de armas como lanças e espadas); mostra, também, as aproximações entre arte marcial monástica e medicina tradicional chinesa, e como elas podem ter contribuído para a transformação de Bodhidharma em “patriarca do Kung-Fu”; aponta, enfim, os caminhos que levaram Shaolin a ocupar, em nossa época, o posto de “berço de todas as artes marciais”. O mosteiro, vale observar, foi integralmente restaurado pelo governo chinês nos anos 1980 e recebe, atualmente, cerca de um milhão de turistas por ano.[6]

Ainda que não tenha adentrado, em sua pesquisa, à evolução de Shaolin durante o século XX – o autor faz questão de observar isso logo na Introdução do trabalho, afirmando que o tema “vai requerer a atenção do especialista em História Moderna da China”[7], Shahar volta várias vezes a atenção ao atual monastério para tentar compreender aspectos de seu passado. Citando o medievalista Marc Bloch, ele observa que “o conhecimento do presente é necessário para a compreensão do passado”[8]. De fato, foi através da observação da atual “sociedade de Shaolin” e de sua comparação com referências de períodos históricos mais recuados que ele pôde propor respostas a alguns questionamentos centrais. É o caso, por exemplo, daquele que envolve a profunda devoção marcial e o abandono dos preceitos dietários por muitos dentre os “monges boxeadores”. Sendo a vida clerical budista em um mosteiro Chan tão cercada de afazeres instrumentais e religiosos (que vão de obter alimentos a meditar), como muitos clérigos encontravam tempo para praticar, sistematizar e ensinar técnicas de combate? Que tipo de permissão tinham vários desses monges, que se viam desobrigados do regime vegetariano-abstêmio tão caro ao Budismo chinês? As explicações estão na estrutura social do mosteiro, que – hoje, como no século XVI - abrange uma comunidade não-monástica, e nas diversas classes de monges e “semi-monges” que transitam na fronteira geográfico-simbólica entre o “sagrado” e o “profano”: Shaolin registra não apenas clérigos ordenados que residem em suas instalações, mas monges itinerantes (formados nas tradições religiosa e marcial, mas que vivem fora do mosteiro), professores de artes marciais que “tomaram emprestado o hábito” (para melhor vender seu serviço profissional) e alunos que aprenderam a combater lá e que circulam por suas instalações, mas que permanecem na laicidade.

Trata-se, enfim, de uma obra importante, que lança luz sobre temas interessantíssimos, caros não apenas aos estudiosos do Budismo e das Ciências da Religião, mas do próprio Kung-Fu. E faz isso na razão em que, ao se debruçar sobre a História de Shaolin, “dessacraliza” alguns assuntos – como, por exemplo, a relação entre Budismo e violência – e fornece, no caso especial dos praticantes de Kung-Fu, informações documentais que permitem uma leitura crítica dos inúmeros “mitos de academia” que, misturando tradição oral chinesa e produtos da indústria cultural, povoam o imaginário marcial do Ocidente.[9]

Notas

[*] Rodrigo Wolff Apolloni é mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP, doutorando em Sociologia pela UFPR e professor de arte marcial chinesa em Curitiba.

[1] Informações sobre Bodhidharma e a chegada do Budismo Chan (Zen) à China em WATTS, A., “O Budismo Zen”, 4ª. ed., Lisboa: Editorial Presença, 1999, 249 p., p. 109 e ss.

[2] O cruzamento entre cultura marcial chinesa e cultura pop é magistralmente analisado por HUNT, L., em "Kung Fu Cult Masters - From Bruce Lee to Crouching Tiger", 1ª ed., Londres: Wallflower, 2003, 229 p.

[3] Os Cinco Preceitos são enumerados e explicados em inúmeros trabalhos relacionados à teologia e à ética no Budismo. A título de sugestão, relacionamos o artigo “Buddhist Ethics”, publicado pelo portal Dharmanet e disp. em http://www.buddhanet.net/e-learning/budethics.htm (c. 07.03.08).

[4] SHAHAR, “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”, art. publ. no Harvard Journal of Asiatic Studies, vol. 61, n.2, dez/2001 (p. 359-413). O artigo foi por nós traduzido e publicado. Cf. Shahar, Meir: Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming, REVER, número 4 - Ano 3 – 2003, pp. 93-144.

[5] Uma descrição iconográfica detalhada de Vajrapani pode ser encontrada na obra de FRÉDÉRIC, L., “Buddhism – Flammarion Iconographic Guides”, 1ª. ed., Paris: Flammarion, 1995, 358 p., p. 211.

[6] SHAHAR, “The Shaolin Monastery...”, op. cit., p. 9. Sobre o turismo em Shaolin, ver, ainda, CHINA DAILY, “Pilgrimage to Mecca of Kung-Fu”, art. publ. 10.08.2003 e disp. em http://www.china.org.cn/english/TR-e/39125.htm (c. 07.03.08).

[7] SHAHAR, “The Shaolin Monastery…”, op. cit., p. 5.

[8] Idem.

[9] Quando da produção desta resenha (primeiro semestre de 2008), o livro de Shahar sobre Shaolin estava disponível apenas em inglês. Em julho de 2008, graças a uma autorização especial concedida pelo autor, os pesquisadores Rodrigo Borges de Faveri (doutorando em Letras/Lingüística pela UFPR) e Rodrigo Wolff Apolloni, iniciaram sua tradução para o português. O livro deve ser publicado no segundo semestre de 2008 pela Editora Perspectiva.