Assunto ainda pouco investigado nas ciências sociais e das religiões, no plano nacional, o taoísmo é uma religiosidade de origem chinesa (séc. V a.C.) que pressupõe o universo – ou o Tao – como totalidade indivisa e dinâmica, composta por todos os seres e todas as coisas (visíveis e invisíveis) e mobilizada pela alternância entre polaridades opostas yin-yang. Embora muitos termos e noções taoístas, tais como os já citados yin-yang e o equilíbrio de Ch’i, traduzido e reinterpretado como “energia”, venham se popularizando nos meios urbanos ocidentais nas três últimas décadas, sobretudo através da associação entre espiritualidade e saúde, tanto o taoísmo quanto o fenômeno de sua expansão para novos contextos não têm despertado a atenção dos estudiosos de religião.
Nesse sentido, o recém-lançado livro de José Bizerril Neto chega para preencher o vazio de publicações acadêmicas sobre o tema, colaborando para a melhor compreensão das tradições chinesas e sua transplantação para sociedades ocidentais contemporâneas, bem como contribuindo para o estabelecimento de um possível diálogo intercultural entre Oriente e Ocidente. O livro é resultado de doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB), sob orientação do Prof. Dr. José Jorge Carvalho, e faz parte da coleção Movimentos Religiosos no Mundo Contemporâneo, que visa à divulgação de obras etnográficas que discutam o problema religioso atual de modo interdisciplinar e que proponham novas abordagens metodológicas.
Trata-se de excelente etnografia sobre a corrente taoísta desenvolvida por Liu Pai Lin, renomado instrutor chinês de Tai Ch’i Chuan, falecido em 2000, que imigrou para o Brasil na década de setenta e criou uma linhagem própria que até hoje possui inúmeros seguidores. Vale lembrar que duas outras correntes taoístas aqui chegaram: aquela da Sociedade Taoísta do Brasil, fundada no Rio de Janeiro, na década de noventa, pelo também imigrante chinês Wu Chih Cherng, que segue a linha da Ordem Ortodoxa Unitária; e outra, mais próxima da religiosidade popular chinesa, um taoísmo religioso institucional freqüentado apenas por imigrantes chineses e descendentes instalados na capital paulista.
Liu Pai Lin é realmente uma personalidade que faz parte da memória brasileira. Um pioneiro na divulgação do Tai Ch’i Chuan e da cultura chinesa no Brasil, reconhecido no ramo pela honestidade e comprometimento com a manutenção das tradições. A trajetória do mestre chinês e de seus discípulos é apresentada de forma detalhada, através de ricos depoimentos e observações de aulas práticas e teóricas registradas pelo autor, que optou por uma abordagem fenomenológica, tendo ele próprio aderido aos ensinamentos de Liu Pai Lin, enquanto o mestre ainda estava vivo. Além do taoísmo, dois outros assuntos pouco discutidos pela antropologia são abordados no livro: a corporeidade, em especial a do antropólogo, e a posição ambígua do pesquisador que opta pela investigação de grupos com os quais compartilha crenças.
Polêmico, o livro toca em temas que poderiam ser considerados “tabus antropológicos”, sobretudo ao questionar o distanciamento entre sujeito e objeto de pesquisa. Ainda na introdução, Bizerril declara sua insatisfação com o privilégio da tradição intelectual ocidental sobre as outras e apresenta uma proposta de revisão metodológica que percorre toda a obra. Afirma que a melhor forma de fazer antropologia seria a fenomenológica – a antropologia da experiência - em que o antropólogo vivencia todas as dimensões da pesquisa de campo, envolvendo-se integralmente com o objeto. Somente a eliminação da separação entre sujeito e objeto evitaria uma postura etnocêntrica, na opinião de Bizerril, uma vez que a distinção dualista é uma definição cartesiana imposta pelo pensamento ocidental moderno, que não faz sentido para parte significava dos povos estudados.
O pensamento ocidental privilegia a visão (observação) e a razão como instrumentos de conhecimento objetivo, em detrimento dos outros sentidos e do restante do corpo. No taoísmo não há separação entre mente-corpo, natureza-cultura. A análise racional não é enfatizada; o ato de conhecer não é uma ação intelectual, depende da integração do sujeito ao objeto de conhecimento através do corpo, dos sentimentos e das sensações. Dessa maneira, conforme Bizerril, para conhecer o taoísmo faz-se necessária uma abordagem vivencial que propicie o contato do antropólogo com o grupo estudado através da experiência subjetiva. Isso exigiria a criação de um método que ao mesmo tempo possibilite a atividade antropológica, porém sem sucumbir à sobrevalorização da observação e textualização, inerentes à cultura ocidental.
Partindo das idéias de Paul Stoller, o autor propõe uma antropologia exercida através do corpo, de uma abordagem sensorial completa, na prática e na escrita. Escolheu, então, o estilo narrativo, pela afinidade com o estilo taoísta que recusa as formas analíticas. Defende “uma atitude de real credibilidade ao ponto de vista nativo” (p. 21), reconhecendo nele “o mesmo estatuto de verdade atribuído ao conhecimento racional ocidental” (p.19). Portanto, as idéias e crenças taoístas seriam consideradas fenômenos reais, assim como o Tao.
Embora admita que não é possível abdicar do gênero do discurso na atividade antropológica, o autor expõe os limites da linguagem textual para compreensão e narrativa da tradição taoísta, pautada na transmissão oral e no treinamento corporal. Os fundamentos da tradição são encarnados na figura do mestre, cujo exemplo de sabedoria, longevidade e realização deve ser seguido. “O mestre personifica a tradição como experiência coletiva” (p.179). Essa tradição resguardada pela fronteira lingüística (Pai Lin não falava em português), é traduzida através dos discípulos de forma autorizada. Passa por atualizações, mas que ainda assim representam a continuidade do processo de transmissão do ensinamento vivo. Nesse caso, diz Bizerril, a textualização restringe a função do pesquisador a um tradutor de terceira ordem. Dessa forma, opta por um relato etnográfico de “como os taoístas narram” , um “diálogo sobre diálogos”, já que “as trajetórias narrativas da etnografia e da transmissão taoísta são quase irreconciliáveis” (p. 203).
O autor almeja encontrar um novo jeito de fazer antropologia em que “o reconhecimento e a gratidão às gerações de autores que assinalaram a trilha não se confundam com um culto aos ancestrais” (p. 13). Assim, questiona a continuidade dos clássicos antropológicos, contrapõem-se ao estruturalismo, à teoria da Eficácia Simbólica de Levi-Strauss e ao olhar distanciado sugerido por Geertz, afirmando que o distanciamento do objeto é sempre uma postura que ratifica a idéia de superioridade das vias de conhecimento ocidentais. Apoiado na filosofia de Merleau-Ponty e de Dhilthey, e principalmente em autores que seguem a Antropologia da Experiência - como Vitor Turner, Paul Stoller e Michael Jackson, que propõem abordagens fenomenológicas de práticas corporais - Bizerril prossegue, ao longo do livro, procurando um denominador comum entre taoísmo e antropologia, mas o que encontra são descontinuidades.
O primeiro capítulo, Orientalizações, é dedicado à discussão da precariedade das definições de Ocidente e Oriente, baseadas em perfis pré-concebidos e caricaturais, que não abarcam a heterogeneidade das culturas e que não bastam para a compreensão do caso brasileiro. O autor rejeita o termo orientalismo e a idéia de orientalização do Ocidente, essa última proposta por Colin Campbell, por ainda reafirmarem a visão dualista e racional ocidental que opõe Ocidente/Oriente. Propõe uma releitura do termo orientalização, assim denominando tanto o deslocamento de saberes e especialistas em tradições espirituais asiáticas para novas regiões geográficas - fator que teria propulsado um questionamento do pensamento racionalista ocidental, conforme o autor - quanto a re-interpretação dessas tradições nos contextos ocidentais. Ainda nesse capítulo, são abordados brevemente temas como a diversidade do campo religioso brasileiro e o desenvolvimento de novas formas de religiosidades individualizadas, de um estilo de espiritualidade mais compatível com o taoísmo. Porém, o autor prefere não se aprofundar na articulação das artes corporais e tradições orientais com os Novos Movimentos Religiosos, Movimento Nova Era e milieu holístico, por compreender que a linhagem Liu Pai Lin, embora dialogue com esses movimentos, não pode ser confundida com eles, constituindo-se como universo à parte, de transmissão de tradição viva e dinâmica. O argumento é que o taoísmo Pai Lin é essencialmente anti-utilitarista, e embora apropriado não se concilia com o espírito consumista que caracteriza esses movimentos.
Em seguida, na narrativa etnográfica propriamente dita, são apresentadas valiosas entrevistas com discípulos e alunos de Liu Pai Lin, interessantes informações sobre o processo de adesão ao taoísmo, as relações com o mestre, a constituição da linhagem e a manutenção dessa tradição taoísta no Brasil. O autor busca compreender como os corpos e o estilo de vida são reconfigurados no aprendizado do Tai Ch’i Chuan e do taoísmo, que requerem profunda disciplina e ao mesmo tempo entrega à espontaneidade natural. O corpo seria um elo na cadeia de transmissão da tradição, pois nele ficam inscritos os mesmos movimentos realizados pelos “ancestrais de linhagem” (p.162). O corpo taoísta, que inclui o visível e o invisível, é, sobretudo, um projeto de vida. O treinamento corporal não visa apenas à longevidade e saúde, mas principalmente alcançar a integração com o Tao.
O desenvolvimento de uma estratégia corporificada de investigação antropológica - ou seja, a integração do próprio corpo e subjetividade do antropólogo na pesquisa - é o assunto abordado a partir do quarto capítulo. O autor argumenta que o “retorno ao corpo , como lócus de conhecimento e instrumento de pesquisa de campo, implica uma recusa da metáfora do olhar clínico” (p.135), que equivale à uma “recusa da objetificação do outro e do corpo” (p.135). Por fim, são retomadas as críticas aos textos clássicos “consagrados” pela antropologia e a proposta de performance fenomenológica como método que atualize a tradição antropológica.
A obsessão pela extinção do distanciamento acaba por revelar-se como a grande fragilidade de “O retorno à raiz”, cujo valor etnográfico é indiscutível. Sendo assim, algumas críticas e várias perguntas emergem da leitura dessa obra. Em primeiro lugar, o autor prefere desconsiderar a existência de outras possibilidades de fazer antropologia de forma não etnocêntrica, sem, contudo, necessitar da adesão total ao objeto estudado. Um antropólogo pode e deve ter um compromisso profundo com sua pesquisa, mas o respeito ético e o esforço para entender o objeto de dentro do seu mundo nunca o tornarão um igual, ainda que haja “conversão”. Entre as funções da antropologia está a tradução de um conjunto simbólico para que possa ser compreendido em outros meios culturais, isso sempre incluirá uma reinterpretação do sujeito no “tráfego entre dois mundos”, como coloca o próprio Bizerril. É fato que o tradutor-pesquisador pertence ele próprio a um grupo com valores pré-estabelecidos, além disso, sua subjetividade estará implicitamente definindo uma perspectiva de observação e um recorte. Porém, o exercício antropológico requer justamente a observação e o trânsito - entrada e saída - ou seja, é necessário um distanciamento dos dois mundos: o de origem e o outro. Enquanto ciência, a Antropologia depende da existência de um outro, ainda que esse outro seja próximo. É mais difícil observar-se e traduzir-se a si próprio, por isso o distanciamento crítico é um axioma antropológico. Isso não impede o livre arbítrio do antropólogo para aderir pessoalmente a quaisquer convicções e crenças, que, no entanto, não devem interferir objetivamente na pesquisa. Evidentemente, isso não ocorre sem custos emocionais para o pesquisador, mas, afinal, esses são os “ossos do ofício do antropólogo”.
Para usar uma metáfora cara ao autor - a analogia entre taoísmo e antropologia - poderíamos dizer que a total neutralidade científica é algo tão impossível de alcançar quanto é o Tao, porém, nem por isso deixa-se de praticar o Tai Ch’i Chuan. Do mesmo modo, é necessário continuar exercitando o distanciamento crítico, ainda que algo de subjetivo do antropólogo sempre esteja presente na pesquisa. À semelhança do taoísmo, a antropologia possui regras específicas; ambos podem ser considerados jogos simbólicos. Então cabem algumas perguntas: ao mudarmos drasticamente as regras de um jogo, não estaríamos criando um jogo inédito? O que aconteceria se introduzíssemos o elemento racional e analítico no taoísmo? Ainda seria taoísmo? Assim também, se introduzíssemos o elemento irracional na antropologia, ainda seria antropologia?
Em segundo lugar, a exposição do novo método não é suficientemente clara. Embora o autor afirme não ser essa a intenção, sua proposta de integração entre sujeito e objeto (antropologia da experiência) soa como inversão de valores, como substituição do racionalismo intelectual pelo irracionalismo afetivo-corporal-religioso. Enquanto a tradição antropológica é questionada em suas bases estruturais, para evitar um “culto aos ancestrais”, a tradição taoísta, especialmente a figura do mestre, segue mitificada e inquestionável, protegida pela noção de inseparabilidade entre sujeito e objeto. Possíveis conflitos são muito pouco explorados, bem como a reinterpretação do taoísmo no cenário brasileiro das religiosidades contemporâneas. A justificativa para uma opção pessoal perante as instâncias científicas, através do viés fenomenológico, perpassa a obra, isentando o autor de maiores confrontos.
A opção pela fenomenologia é legítima, mas no estudo de religiões passa a ser problemática caso o engajamento do pesquisador acabe por implicar em tentativa de hibridismo entre ciência e crenças religiosas. Se poderíamos dizer que a arte presente na antropologia é aquela de aproximar o distante e distanciar-se do próximo, como ensinam os velhos mestres, no que se refere ao estudo das próprias crenças religiosas é imperativo um afastamento crítico por parte do pesquisador para que as duas coisas não se confundam. Da mesma forma que yin e yang são polaridades opostas que preservam a harmonia do universo taoísta, no Ocidente ciência e religião são áreas distintas, uma funciona como baliza e limite para a outra, e é desejável que assim seja, para a manutenção do equilíbrio entre poderosas forças da humanidade.
De todo modo, os comentários acima não invalidam a leitura da obra, que tem o mérito de ser pioneira no estudo do taoísmo no Brasil, no âmbito acadêmico. Além disso, traz à tona temas importantes e questionamentos que abrem espaço para um saudável e bem-vindo debate sobre a própria tradição científica. Inestimável registro histórico da linhagem Liu Pai Lin, “O retorno à Raiz” é um livro recomendado, sobretudo, para interessados em antropologia da experiência e estudantes de taoísmo e Tai Ch’i Chuan.