A Questão da Origem dos Mandeus, os Últimos Gnósticos

Rosalie Helena de Souza Pereira[*] []

Resumo

Os mandeus são os únicos remanescentes do antigo gnosticismo". Durante séculos viveram no sul do Iraque e no sudoeste do Irã, nas planícies da antiga Mesopotâmia banhadas pela bacia dos rios Tigre e Eufrates. Hoje, depois dos conflitos bélicos na região, correm risco de extinção. A primeira referência europeia a eles data do final do século XIII, início do XIV. Desde então, a questão da origem do mandeísmo intriga missionários cristãos, viajantes e acadêmicos. No século XVI foram identificados com cristãos descendentes do movimento de João Batista, que fugiram de perseguições depois da queda de Jerusalém em 70 d.C. Durante muito tempo prevaleceu a teoria de que, em seu êxodo da Palestina, eles teriam passado pelas montanhas da Média antes de se estabelecer ao sul da Babilônia. Em seu périplo absorveram tradições dos gnósticos e dos persas. Quando finalmente se fixaram na região mesopotâmica dos alagados, incorporaram tradições religiosas autóctones. Contra a teoria da origem palestina, a tendência atual dos especialistas afirma a origem mesopotâmica a partir de achados arqueológicos, que indicam que os mandeus já eram ativos nos séculos II-III d.C.

Palavras-chave: mandeísmo, origem palestina judaico-cristã, origem mesopotâmica, teologia dualista

Abstract

The Mandaeans are the only remnants of ancient Gnosticism. They lived for centuries in southern Iraq, and in southwestern Iran, in the plains of ancient Mesopotamia, bathed by the Tigris and Euphrates basin. Today, after the military conflicts in the region, they run the risk of extinction. The first European reference to them dates from the end of the XIIIth century, beginning of the XIVth. Since then, the question of the origin of Mandaeanism intrigues Christian missionaries, travelers and scholars. In the XVIth century they were identified with Christians descended from John the Baptist’s movement, who fled persecution after de fall of Jerusalem in 70 A.D. For a long time prevailed the theory that during their exodus from Palestine, they had passed through the mountains of Media before settling south of Babylon. During their migration they absorbed Gnostic and Persian traditions. When they finally settled in the Marshes of lower Mesopotamia, they incorporated autochthonous religious traditions. Contrary to the theory of their Palestinian origin, the present tendency of experts is to affirm their Mesopotamic origin based on archeological discoveries that indicate that the Mandaeans were already active in the II-IIIrd centuries A.D.

Keywords: Mandaeanism, Palestinian Jewish Christian origins, Mesopotamic origins, Dualistic Theology.

Introdução

Na região aluvial iraquiana Hour al-Hammār (Lago al-Hammār) onde os rios Tigre e Eufrates dispersam suas águas formando charcos, e no vilarejo Al-Qurnah (A Esquina), ao norte de Al-Basrah, onde os dois rios se encontram formando o canal Shatt al-‘Arab (Costa ou Litoral dos Árabes), que delimita a fronteira com o Irã e deságua no Golfo Pérsico, e nas terras vizinhas, na província iraniana do Khuzistão, ao longo do rio Karūn, afluente do Shatt al-‘Arab, viveram durante séculos os mandeus, únicos remanescentes dos antigos gnósticos. Antes da Guerra do Golfo havia nessa região cerca de 20 mil iraquianos e iranianos que se declaravam mandeus. A estimativa, no entanto, é de que antes da invasão do Iraque, em 2003, houvesse entre 60 e 70 mil mandeus, dispersos na região sul dos alagados e ao longo do Shatt al-‘Arab, na capital Bagdá e em outras localidades ao norte, até em Mosul. No Irã, estima-se que houvesse cerca de 15 mil. Hoje, depois das atrocidades cometidas no Iraque nos últimos anos, não se sabe quantos deles permanecem em solo iraquiano, pois um grande contingente fugiu para os vizinhos Síria e Jordânia, e para a Europa, Canadá, Austrália e Estados Unidos. Já se fala que, na diáspora, as tradições dos mandeus estão fadadas à extinção, em razão da dificuldade de realizarem seus rituais à beira de águas correntes e do desaparecimento dos sacerdotes, guardiões de suas doutrinas.

Quem são esses mandeus, considerados os derradeiros gnósticos?

A origem do mandeísmo é tema controverso, já que sua literatura transmite muito pouco a respeito. Os próprios mandeus se afirmam membros de uma religião primitiva fundada pelo Mundo da Luz e que são descendentes diretos de Adão. Há, porém, alguns indícios que serviram de ponto de partida para a identificação dessa seita.

Epifânio de Salamina (Chipre), Padre da Igreja do século IV, menciona dois grupos com nomes semelhantes, uma seita judaica pré-cristã, os nasaraîoi (= nasareus) e uma seita cristã, nazoraîoi (= nazoreus[1]), e adverte que não devem ser confundidos (Panarion XXIX, 6.1). Os nasaraîoi (= nasareus), que viveram em Gilead e em Bashan, seguiam certas prescrições, como a prática da circuncisão, a observância do Shabbath, a abstinência de alimentos de origem animal. Eles também não aceitavam que o Pentateuco contivesse a Lei divina dada a Moisés, e rejeitavam a astrologia e os sacrifícios de animais. De todas essas práticas, apenas a proibição dos sacrifícios de animais pertence ao mandeísmo. (cf. YAMAUCHI 1970: 60-61). A despeito das diferenças, muitos estudiosos identificaram os mandeus com os nazoreus (e também com os nasareus) mencionados por Epifânio, como veremos em seguida.

A partir do século XIX, os pesquisadores europeus passaram a atribuir a esse grupo o nome mandeu, que significa sapiente, gnóstico, pois deriva da palavra aramaica manda, conhecimento. O termo manda seria, portanto, equivalente ao grego gnôsis. Há, no entanto, duas outras hipóteses: 1) como a área cercada onde se realizam as cerimônias mais sagradas dos mandeus chama-se mandi e contém uma espécie de templo, manda ou bimanda (de bit manda = casa do conhecimento), os mandaiia seriam os que frequentam o manda; 2) a principal figura de salvação no mandeísmo é Manda d-Hiia (Conhecimento da Vida), em que Hiia (Vida) é o epíteto que se refere à divindade suprema, e, assim, mandaiia seriam os que crêem em Manda d-Hiia (cf. LUPIERI 2002: 8-9).

Contudo, a tradição dos mandeus, conhecidos por seus vizinhos árabes como subbā’ ou sabbā’ (sing. subbī’ ou sabbī’[2], derivado de musbattah = imersão), isto é, os que submergem, mergulhadores – logo, batistas –, raramente se refere a eles como mandaiia (gnósticos). No passado, eles se autodenominavam nasuraiia, observantes, iniciados, ou eleitos da justiça (bhirya zidqa) ou raça da vida (shurbta d-hiia) (cf. RUDOLPH 1995: 27). Hoje, eles se distinguem entre os mandaiia, nome dado aos leigos da comunidade, e os nasuraiia, o grupo seleto dos sacerdotes iniciados na nasiruta, a sabedoria secreta, ambas as palavras derivadas da raiz verbal nsr, que significa observar, guardar.

O encontro do Ocidente com os mandeus

Foram os missionários católicos os primeiros europeus a manter contato com os mandeus do Iraque. A mais antiga notícia provém de um manuscrito que, infelizmente, veio à luz somente nos anos 1940. Em 1290, o dominicano Ricoldo da Mantecroce, ou Ricoldo Pennini (ca. 1250-1320), natural da Toscana, visitou os mandeus, “uma gente estranha e peculiar que vive no deserto perto de Bagdá” (apud LUPIERI, 2002: 65). O frade descreveu seu encontro com a seita em suas memórias de viagem, Itinerarium ou Livro das Peregrinações por Regiões Orientais, manuscrito que obteve um considerável sucesso, já que, no século XIV, foi traduzido do latim para o francês e para o italiano. Embora sumarizada, a descrição dos ritos, rica em detalhes, tem sua importância por fornecer dados de primeira mão. E Ricoldo acrescenta que os mandeus, “chamados sabeus [...] são enaltecidos por Muhammad em seu Corão” (apud LUPIERI 2002: 65-66). Lembre-se que os sabeus (pl. sābi’yūn e sābi’īn; sing. sābi’) fazem parte do Povo do Livro (Ahl al-Kitāb) e são mencionados três vezes no Corão: II: 62; V: 69; XXII: 17.

Em 1555, jesuítas portugueses, missionários no Golfo Pérsico, mencionam a existência de certos “cristãos de São João” (= mandeus) em Hormuz (Irã). Esses missionários, porém, não perceberam que o João dos mandeus não era o Evangelista, mas o Batista.

Alguns anos depois, em 1595, o jesuíta italiano Alessandro Valignano escreveu, em português, um manual de orientação para os missionários e nele menciona a necessidade de cuidar da reeducação dos “armênios, georgianos, caldeus[3], abissínios, gregos e sabeus – os chamados cristãos de São João” (apud LUPIERI 2002: 2) a fim de fazê-los retornar à fé e aos costumes da Igreja Católica Romana, especialmente os sabeus, “de quem se diz que não são batizados ou que não praticam o verdadeiro batismo” (apud ibid.:73). O jesuíta se refere aos mandeus quando menciona os sabeus.

Gerolamo Vecchietti, um viajante italiano, passando em 1604 por um vilarejo entre Bagdá e Basra, encontrou uma comunidade de cerca 60 mil mandeus (sabeus ou cristãos de São João) que falavam português, embora sua língua nativa tivesse sido identificada pelo viajante como sendo o siríaco. Depois, em Basra, no bazar local, o italiano travou conhecimento com ouríveis, que eram mandeus e também falavam português, e concluiu que eles seriam descendentes dos antigos cristãos caldeus, que, perseguidos pelos muçulmanos, perderam suas tradições e costumes. Segundo ele, seria, portanto, fácil fazê-los retornar ao Catolicismo, tal como aconteceu àqueles que foram viver em Hormuz ou em territórios portugueses (cf. LUPIERI 2002: 73-74).

O jesuíta Sebastião Gonçalves foi o primeiro a identificar, em 1614, o João dos mandeus com o Batista, embora tenha acreditado que os mandeus fossem cristãos caldeus, isto é, nestorianos que não observavam a ortodoxia católica.

Em 1652, o missionário carmelita Ignácio de Jesus publicou em Roma um manual (escrito em 1647) para missionários no qual, já no longo título, dava destaque à conversão dos mandeus: Narrativa da origem, dos rituais e erros dos cristãos de São João, seguida de um discurso na forma de diálogo em que são confutados 34 erros desse povo. Com ênfase nos aspectos religiosos, a primeira parte descreve os mandeus e seus costumes. Em seguida são apresentados analiticamente os principais erros da seita, segundo a ortodoxia católica. Para finalizar, Ignácio compõe um longo diálogo em que ele próprio rebate as teses de um sacerdote mandeu, o xeique Bahram, seguindo a mesma sequência em que os erros foram citados. No final do tratado, o sacerdote mandeu é convertido!

Ignácio mantém a convicção de que os mandeus eram, no passado, cristãos da Judeia que emigraram para a Pérsia e Arábia. Como eram devotos de João Batista, o seu túmulo, o rio Jordão e outras tantas coisas relativas ao santo não puderam ser carregadas na fuga deles. Quando, porém, chegaram à Mesopotâmia, passaram a nomear realidades da região com nomes que usavam antes, e, com isso, acreditando que viviam nos mesmos locais de seus antepassados. Para Ignácio, a sua conversão seria, na realidade, um retorno à fé perdida havia cerca de 170 anos, ocasião em que romperam com o patriarcado de Bagdá. Daí vem a ênfase que Ignácio dá aos “erros” de suas práticas. Ignácio também sustenta que os mandeus eram descendentes de cristãos batizados por João Batista, desenvolvendo, portanto, a teoria de seu êxodo do oeste (Palestina) em direção à região dos dois rios, o Tigre e o Eufrates. Segundo o carmelita, a perseguição islâmica, desde os primeiros califados, fez com que eles perdessem livros e igrejas e, consequentemente, a ortodoxia católica.

O tratado de Ignácio mostra uma intensa interação entre os missionários e os mandeus, o que possivelmente contribuiu para que a seita se apropriasse de noções cristãs e da ideia de sua origem palestina. Reelaboradas, essas noções teriam sido apresentadas aos missionários pelos próprios mandeus como sendo originais de sua doutrina (cf. LUPIEIRI 2002: 96).

Em 1649, François de La Boullaye-le-Gouz, vindo da Índia, chegou a Basra. Como era de praxe, os viajantes europeus hospedavam-se na missão da Ordem dos Carmelitas Descalços, onde ele se encontrou com Ignácio. As considerações do francês relativas à seita muito se aproximam das de Ignácio. Foi La Boullaye quem trouxe para a Europa os primeiros quatro desenhos dos mandeus que mostram um sacerdote de barba longa, bigodes e turbante que, em um deles, batiza uma criança, em outro, pratica um ritual com pão, vinho e azeite, e, nos dois restantes, sacrifica uma galinha e faz a oferenda de um carneiro. Esse francês, um católico, menciona a mais recente perseguição aos mandeus: a tentativa de deportá-los para terras controladas pelos portugueses sob a égide dos missionários e com o consenso do paxá local. Mas, continua ele, “a mesma atitude rigorosa em relação aos sabeus já não podia ser vista; os mandeus ou voltaram para a sua antiga religião ou converteram-se ao Islã, e, entre eles, não sobraram sequer quatro cristãos” (apud LUPIERI 2002: 103).

Nos principais relatos provenientes dos missionários, os mandeus foram dados como cristãos de São João ou discípulos de São João Batista, não apenas em razão das semelhanças entre os seguidores de João Batista, em Éfeso, mencionados em Atos 19, mas também porque João Batista é figura proeminente em sua literatura. Para os árabes e persas, os mandeus eram conhecidos como sabbi’. Eles próprios, porém, se diziam mandai Yahya, discípulos ou seguidores de João, talvez porque, como afirma Edmondo Lupieri, “devem ter compreendido de imediato que isto era o que os europeus queriam descobrir” (LUPIERI, 2002: 98). Na língua mandeia, João (Batista) é Yuhanan, e em árabe, Yahya. O uso do nome Yahya não deve, portanto, ser anterior à conquista árabe em 639 d.C., mas a expressão mandai Yahya ou mandaiia d-Yahya não é encontrada em nenhum texto mandeu (cf. LUPIERI 2002: 95-96).

Em 1660, o libanês e sábio maronita Abraão al-Hāqilī, para os latinos Ecchellensis, concedeu um largo comentário aos mandeus, confundindo-os, porém, com os sabeus de Harrã (antiga Carrhae). Com muita perspicácia, porém, descreveu três textos mandeus e foi o primeiro a notar que eles eram gnósticos que seguiam doutrinas de cunho dualista. Seu livro foi publicado pela mesma congregação carmelita que publicara o de Ignácio. Ativo em Roma, Al-Hāqilī criticou o trabalho de Ignácio ao afirmar que os discípulos de João Batista eram circuncidados, praticantes do judaísmo e que nunca se converteram ao cristianismo. Como então poderiam os mandeus ser seus descendentes se abominavam a circuncisão, Abraão e tudo que dizia respeito ao judaísmo?

Outro libanês maronita, que também vivia em Roma, José Simão al-Sim‘āni, criticou em sua obra de 1728 as afirmações de Ignácio, apontando suas contradições. Se de fato os mandeus fossem descendentes de João Batista, não teriam feito parte da Igreja síria, cuja tradição está fundada sobre bases apostólicas, e não na doutrina do Batista. Al-Sim‘āni aponta que Ignácio não dá informações adicionais sobre o cisma que ele mencionara ter acontecido por volta de 1480, “cerca de 170 anos antes de seu tempo”. E se os mandeus algum dia foram “caldeus” ou “sírios (suriani)”, como afirma Ignácio, eles teriam sido nestorianos, mas nada existe da doutrina de Nestório no mandeísmo (cf. LUPIEIRI 2002: 111-112).

Embora as informações iniciais sobre os mandeus tenham vindo principalmente dos relatos de missionários cristãos e de viajantes, o interesse por essa seita começou a tomar impulso a partir da segunda metade do século XVIII, com as primeiras publicações de sua literatura. Estudos sistemáticos, porém, tiveram início somente em 1889, com o significativo trabalho de Wilhelm Brandt, Die mandäische Religion, que em seguida abordaremos. Contudo, a teoria de Ignácio sobre a origem palestina dos mandeus foi retomada no final do século XVIII e periodicamente ainda é defendida por algum estudioso.

A questão da origem do mandeísmo

Os pioneiros

A questão da origem do mandeísmo evidencia uma constante discórdia entre os pesquisadores que por ela se interessaram e ainda hoje se interessam. Embora a literatura dos mandeus seja muito vasta, não há consenso entre os historiadores sobre a origem dessa seita e sua história antiga, isto é, quando e onde nasceu essa religião e de que época data a redação de sua literatura. A querela sobre a origem do mandeísmo no oeste (Palestina) contra a origem no leste (Mesopotâmia) percorre a historiografia dos especialistas, pois alguns defendem a origem palestina, junto ao rio Jordão, e outros, a origem mesopotâmica. Oeste e leste aqui se referem exclusivamente à geografia do Oriente Médio que compreende a Palestina e a Mesopotâmia, sobretudo a baixa Mesopotâmia, a região meridional do atual Iraque e seu prolongamento no sudoeste iraniano.

Até o século XVIII, os relatos sobre os mandeus se distinguem ao atribuir-lhes uma origem ou judaica pós-cristã ou gnóstico-ofita ou caldaica ou ebionita de Nazaré (ou da Galileia) ou nestoriana e outras tantas hipóteses. No final do século XVIII, a universidade europeia, em particular a alemã, com seus especialistas em Teologia, História e línguas orientais, passou a dedicar grande atenção ao mandeísmo.

A partir da publicação pelo acadêmico e viajante sueco Matthias Norberg, em 1781, do principal texto mandeu, o Ginza, surgiram os primeiros estudos mais sistemáticos sobre o mandeísmo. Em sua reconstrução da história dos mandeus, Norberg segue a teoria de Ignácio da origem palestina. Em seus quarenta anos de atividade, Norberg transcreveu uma série de textos mandeus em caracteres siríacos, tornando-os acessíveis aos especialistas, traduziu várias passagens desses textos e verteu para o latim o Ginza completo. O seu trabalho, porém, não recebeu uma crítica favorável de seus pares, pois não condizia com os parâmetros acadêmicos. É preciso, contudo, aceitar que foram seus esforços que ampliaram os horizontes dos estudos mandeístas, impulsionando-os e permitindo o seu acesso a um público maior. Ao comparar o conteúdo de certas passagens mandeístas com o Evangelho de João, Norberg abriu caminho para os estudos do Novo Testamento, mas as analogias por ele apontadas já não são mais aceitas.

O orientalista alemão, Heinrich Petermann, um dos principais críticos de Norberg, traduziu o Ginza para o alemão e editou-o em sua língua original. Essa edição, de 1867, ainda hoje é a mais adotada pelos pesquisadores. Em 1854 Petermann passou três meses no sul do Iraque, onde colheu informações de um sacerdote mandeu e relatou-as numa espécie de diário de viagem, típico da época. À parte esses relatos, Petermann forneceu, em parâmetros científicos, uma descrição do mundo dos mandeus e compreendeu os aspectos gnósticos e sincréticos de suas doutrinas.

Em 1875, foi publicada uma gramática da língua mandeia, realizada por Theodor Nöldeke, que a identificou com um dialeto aramaico oriental. Esse trabalho fundamental impulsionou sobremaneira os estudos mandeístas[4].

Nicolas Siouffi, vice-cônsul francês em Mosul em 1875, foi um entusiasta dos mandeus. Recolheu um material considerável que publicou em Paris em 1880. Ainda que com algumas limitações, o livro oferece informações relevantes sobre a vida dos mandeus, seus rituais, tradições religiosas, regras, lendas, datas e calendário. Preocupado em fornecer uma descrição clara e ordenada do mandeísmo que conheceu, Siouffi não se preocupou em distinguir os aspectos antigos dos mais recentes, que hoje os estudiosos procuram identificar com precisão na reconstrução histórica do mandeísmo. Seu livro sobre a vida dos mandeus, no entanto, marcou época e permaneceu a única referência durante mais de meio século, até surgirem os trabalhos de Lady Ethel Stefana Drower.

No século XIX ganhou relevância a opinião de que os mandeus eram os mesmos nazoreus mencionados pelo heresiólogo cristão Epifânio (Adv. Haer. XIX, 1, 3, 4; XXX, 3), confusão que perdurou no século XX e foi apontada por Edwin M. Yamauchi em seu Gnostic Ethics and Mandaean Origins. Na primeira metade do século XX, Ethel Stefana Drower, que viveu entre os mandeus durante 16 anos e cujas publicações permanecem uma referência das mais importantes em razão do material coletado em observação direta, apoiou inicialmente essa hipótese, mas não a manteve. Mais tarde, chegou a defender quatro outras hipóteses: a da origem persa dos mandeus, abandonada em favor de sua origem nos círculos heréticos judaicos; em outra época, afirmou uma estreita relação entre os mandeus e os elcasaítas e, depois, entre os mandeus e os sabeus de Harrã.

Na passagem do século XIX ao XX, K. Kessler apontou a origem babilônica dos mandeus com base em sua mitologia e cultos. Kessler afirmou que a antiga religião da Babilônia foi o solo em que cresceu a semente da visão de mundo gnóstica, passada para os mandeus (cf. KESSLER 1903:1904).

Wilhelm Brandt, no já mencionado estudo de 1889, Die mandäische Religion, segue a linha da origem babilônica dos mandeus e tece conclusões que ainda permanecem um ponto de partida para as pesquisas. Com base num estudo sistemático do Ginza Rba (Grande Tesouro) – o livro mais importante da literatura mandeísta, pois contém tratados sobre os seus ensinamentos, sua mitologia e, inclusive, hinos poéticos –, Brandt sustenta que o estágio mais antigo da tradição mandeísta é pré-cristão, de conteúdo politeísta, nutrido principalmente de material proveniente de antigas religiões semitas animistas e de uma filosofia caldaica. Os cultos e os rituais contêm predominantemente traços babilônicos. As concepções judaicas, persas, gregas e gnósticas só mais tarde foram agregadas ao estrato primário e, uma vez assimiladas, produziram o variado ideário mandeísta.

O primeiro estágio, fundamentalmente politeísta, segundo Brandt, sofreu alterações com a recepção de novas influências, principalmente as cristãs, dando espaço a um novo modelo, que, embora marcado pelo dualismo de origem persa, foi orientado para uma crença monoteísta. Brandt situa essa segunda fase entre os séculos IV e VII. Com a desintegração da comunidade após a invasão islâmica, no século VII, a casta dos sacerdotes dispersou-se na Mesopotâmia, o que de certa forma impediu a preservação de grande parte da literatura original, contribuindo, desse modo, com o gradativo desaparecimento da dedicação de seus membros à vida espiritual.

Brandt não acredita que os mandeus tivessem uma origem judaica ou cristã. Segundo o pesquisador alemão, há nos textos mandeístas muito pouco do judaísmo, e a influência cristã deu-se indiretamente por meio de gnósticos cristãos e de alguns elementos judaico-cristãos. A influência do cristianismo teria surgido somente no estágio tardio, o da desintegração comunitária. Embora a teoria de Brandt sobre uma possível origem babilônica dos mandeus não tenha prevalecido nas pesquisas que o sucederam, permanecem válidas as suas concepções sobre os ensinamentos do Rei da Luz e o estudo sobre o material que Brandt isolou e chamou de politeísta.

Com base nas informações do historiador e geógrafo árabe Al-Mas‘ūdī (m. 956) (As Pradarias de Ouro, cap. XXI) e do bibliógrafo árabe Ibn al-Nadīm (m. 995) (Kitāb al-Fihrist, cap. IX, seção 1), Brandt chegou a sugerir que os sabeus mencionados três vezes no Corão sejam os mesmos mughtasila do sul do Iraque, isto é, os mandeus que se lavam e lavam toda a sua comida, prática esta que coincide com a mencionada no Ginza quanto à lavagem da carne destinada à alimentação (BRANDT, 1930: 390). Essa mesma identificação já havia sido feita pelo professor russo Daniil A. Chwolsohn em sua magistral obra Die Ssabier und der Ssabismus, publicada em 1856.

Estado da questão sobre a origem dos mandeus

Os trabalhos que sucederam as pesquisas de Brandt tomaram outra direção e se concentraram justamente nos traços judaicos, gnósticos e cristãos negligenciados pelo eminente orientalista. A partir do início do século XX, os estudos mandeístas dividiram-se grosso modo em duas fases: 1) o período entre 1900 e 1950, quando se realizaram estudos com base nas traduções de importantes textos mandeístas realizadas por Mark Lidzbarski e 2) após 1950, quando prevaleceram as posições de Ethel S. Drower, Kurt Rudolph e Rudolf Macuch, que afirmaram a origem palestina dos mandeus. Hoje, contudo, pode-se ainda falar em uma terceira fase com estudos mais recentes que negam a origem palestina.

Na primeira fase, de um lado estão estudiosos, como Richard A. Reitzenstein e Rudolf Bultmann que usaram o material mandeísta então disponível para afirmar a existência de um gnosticismo" pré-cristão; de outro, em razão de uma atribuição tardia à formação da seita mandeísta, especialistas do Novo Testamento descartaram qualquer influência do mandeísmo na elaboração do cânone cristão. Cabe lembrar que F. C. Burkitt, em Church and Gnosis, publicado em 1932, apontou semelhanças entre as doutrinas mandeístas e a versão siríaca da Bíblia, Peshitta, e que o historiador da Igreja, H. Lietzmann, sugeriu que a seita dos mandeus teve início no século VII d.C., contra E. Peterson, que anteriormente opinara que ela fora estabelecida somente no século VIII d.C. Para uma avaliação desses estudos, remetemos o leitor ao livro de Edwin M. Yamauchi, Pre-Christian Gnosticism, já que aqui nos limitaremos a indicar apenas as principais tendências na questão da origem dos mandeus.

No prosseguimento dos estudos mandeístas, Edwin M. Yamauchi e Jorunn Jacobsen Buckley deram novas contribuições, o primeiro com a interpretação dos textos chamados mágicos, e a segunda, com uma reconstrução histórica a partir dos colofãos que acompanham as escrituras mandeístas. A essa nova fase, a última, acrescenta-se o estudo do italiano Edmondo Lupieri, I Mandei: Gli ulitmi gnostici, uma sistemática reconstrução histórica do mandeísmo com novas perspectivas sobre o problema de sua origem.

Como é abundante e variada a historiografia ocidental que trata da origem dessa enigmática seita, passaremos em revista apenas as tendências que mais se notabilizaram.

No início do século XX, o polonês Mark Lidzbarski, filólogo especialista em línguas semíticas, editou novamente o Ginza e outros textos mandeístas[5], acompanhados de tradução alemã, o que deu ao estudo sobre a seita fundamentos mais sólidos. Com base nas pesquisas filológicas e históricas que empreendeu, Lidzbarski defendeu a origem pré-cristã dos mandeus. Para ele, era impossível datar o início da seita numa época em que o cristianismo já era atuante. O mandeísmo teria surgido na Transjordânia, nas cercanias das colinas do Haurān (região no sul da atual Síria), e sua fonte espiritual proviria de círculos heterodoxos judaicos. Os mandeus teriam emigrado no primeiro século da era cristã, possivelmente antes de 70 d.C., quando o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos. Embora esses primeiros mandeus possam ter testemunhado a atividade de João Batista, suas origens não podem ser atribuídas apenas ao santo. Lidzbarski conjectura que os mandeus escolheram habitar na Mesopotâmia em razão de suas práticas batismais em águas correntes. Todavia, algumas de suas práticas, como o pão e a bebida sacramentais, a solidariedade entre irmãos e a generosidade foram introduzidas mais tarde. Os princípios do mandeísmo, Luz e Vida, remontam a concepções semitas e persas. Pouco resta da literatura do período pré-cristão, apenas algumas sentenças isoladas inseridas em composições tardias. Em seu novo lar, os mandeus entraram em contato com os antigos cultos babilônicos de adoração dos astros e o da deusa-mãe, de origem síria. A polêmica anticristã parece ter sido consequência de desentendimentos com as missões cristãs, mas o ódio aos judeus tem raízes mais antigas. O cerne de seus escritos litúrgicos é anterior à chegada do Islã, mas já pertence ao período mesopotâmico. A atividade literária, especialmente a compilação e edição de seus textos sagrados, continuou durante o Império Islâmico.

Da época de Lidzbarski, a mais antiga evidência histórica dos mandeus é um amuleto com 278 linhas escritas numa tira de chumbo e por ele decifradas. Segundo Lidzbarski, o amuleto data do século V d.C., mas Rudolf Macuch afirma que é mais antigo: do século III, ou mesmo do século II. Achados arqueológicos mais recentes confirmam a hipótese de Macuch, isto é, a existência dessa seita na Mesopotâmia já nos séculos II-III d.C.

Nas primeiras décadas do século XX, Wilhelm Bousset e Richard A. Reitzenstein, ambos vultos exponenciais da célebre Religionsgeschichtliche Schule[6] (Escola das Religiões Históricas) de Göttingen, Alemanha, forneceram novos elementos para o esclarecimento da história do mandeísmo. Ambos usaram textos mandeístas para ampliar os estudos sobre o cristianismo e o gnosticismo". Bousset defendeu a teoria da origem dos mandeus nas margens do rio Jordão. Eles teriam emigrado para o baixo Eufrates, onde receberam grande influência do sincretismo persa-babilônico (BOUSSET 1917: 185-205). Reitzenstein foi mais longe ao afirmar nexos entre o mandeísmo e o Evangelho de João, causando certa comoção entre os exegetas do Novo Testamento. Sugeriu também que o cristianismo teria nascido do mandeísmo, pois este teria sido uma seita judaica pré-cristã, e que as mais antigas doutrinas dos mandeus teriam sido proclamadas por João Batista e seus seguidores. Foi seguido pelo célebre teólogo Rudolf Bultmann, da mesma escola alemã, em um notável artigo sobre o significado das recém-publicadas fontes mandeístas e maniqueístas para o entendimento do Evangelho de João (BULTMANN 1925: 100-146). Vários outros estudiosos do Evangelho de João seguiram a exegese desse texto sob a ótica dos escritos mandeístas até a publicação, em 1930, de fragmentos maniqueístas, o que reduziu muito o entusiasmo dos pesquisadores pelo mandeísmo.

A partir dos anos 1940, a produção de estudos sobre o mandeísmo, inicialmente concentrada na Alemanha, estendeu-se a estudiosos de outros países europeus. Depois da Segunda Guerra Mundial, os escandinavos passaram a se interessar pelo tema, destacando-se dois pesquisadores, Torgny Säve-Söderbergh e Geo Widengren, da Universidade de Uppsala, na Suécia. Säve-Söderbergh publicou, em 1949, Studies in the Coptic Manichaean Psalm-book, obra que aponta as influências que o Maniqueísmo recebeu do mandeísmo, como, por exemplo, os Salmos Maniqueístas de Tomé, que seriam adaptações ou traduções dos hinos mandeístas. O mandeísmo, portanto, seria necessariamente anterior ao nascimento da seita de Mani em meados do século III, na Babilônia.

Geo Widengren interessou-se pelo mandeísmo em razão de seus estudos sobre a influência de elementos mesopotâmicos no Maniqueísmo. Tentou conciliar as teorias de Brandt, Lidzbarski e Reitzenstein e apontou três diferentes estágios na evolução das práticas da seita (cf. WIDENGREN 1961:83-101):

  1. O período judaico: o mandeísmo nasceu na Palestina, já que os mandeus crêem ser Jerusalém a sua cidade natal. Pertencem a essa época os elementos essenciais de sua religião, inclusive a veneração a João Batista e a autodenominação nazoreus.
  2. O período mesopotâmico: os mandeus emigraram para a Babilônia e adotaram crenças populares como a redenção, ritos de purificação por meio da água e exorcismos. Muitos termos de sua liturgia têm origem acádica. A linguagem metafórica e os cultos mandeístas são de origem babilônica. Segundo Widengren, há uma transmissão direta do antigo ritual régio da Mesopotâmia para o batismo mandeísta, teoria refutada por pesquisadores posteriores.
  3. O terceiro estágio é o principal. Os mandeus adotaram componentes persas, como certos termos litúrgicos em língua parta da Média (antigo reino no noroeste iraniano, ao sul do Mar Cáspio), que tomaram emprestados dos magos dessa região. Ritos, mitos e linguagem religiosa são de origem persa, principalmente a redenção por meio do dogma do salvador salvado.

Eric Segelberg, também da escola de Uppsala, concluiu que no rito original do batismo mandeísta não havia nem unção nem alimentos. A prática da unção e dos alimentos nos rituais foi adicionada em razão de influências gnósticas, cristãs e persas. O rito do batismo parece ter permanecido inalterado entre os mandeus até o século V d.C., e sua forma entre os atuais mandeus só se desenvolveu após o domínio do Islã, embora a imersão na água seja uma prática que, com toda probabilidade, remonta às tradições do vale do rio Jordão, durante o primeiro século a.C., tradições que refletem aportes judaicos e pagãos (cf. SEGELBERG 1958).

O dinamarquês Viggo Schou-Pedersen defendeu, em 1940, a tese de que o mandeísmo foi, durante um breve período, uma dissidência do cristianismo (SCHOU-PEDERSEN 1940). Os mandeus tomaram emprestado dos cristãos grande parte de suas tradições, como o nascimento miraculoso de João Batista narrado no Livro de João (18; 32). Entre os especialistas, é consenso que os mandeus conheciam os textos cristãos, canônicos e apócrifos, mas, como adverte Jorunn J. Buckley, “a conexão entre as tradições do mandeísmo e dos apócrifos cristãos necessita uma aprofundada investigação” (BUCKLEY 2005:330). Schou-Pedersen aponta que nos textos mandeístas mais antigos não há material anticristão, que, somente mais tarde, surge contra o cristianismo de Bizâncio. Nos textos mandeístas observa-se uma substituição de Jesus pelo ser de luz (‘utra) Anush, o qual realiza milagres em Jerusalém, feitos que o cristianismo atribui a Cristo. Para os mandeus, João Batista é um profeta que não realiza feitos milagrosos, os quais somente os seres de luz estão aptos a realizar. Os mandeus seriam, portanto, originalmente cristãos heréticos, sem qualquer vínculo histórico com a Palestina, e sua presença na Babilônia atesta “o limite extremo do judeo-cristianismo” (SHOU-PEDERSEN 1940:224, apud BUCKLEY 2005: 332).

Em 1937, surgiu o clássico The Mandaeans of Iraq and Iran, de Lady Ethel Stefana Drower. Por ter convivido com a comunidade dos mandeus, Drower teve a oportunidade ímpar de comprar, com exceção de dois, todos os seus manuscritos, hoje conservados na Bodleian Library, em Oxford. Nas décadas seguintes, publicou diversas traduções da literatura mandeísta, entre outras The Book of the Zodiac (Sfar Malwashia) (1949), The Canonical Prayerbook of the Mandaeans (Qolasta) (1959), The Thousand and Twelve Questions (Alf Trisar Shuialia) (1960), The Coronation of the Great Shishlam (1962).

Em 1953, Drower publicou a tradução inglesa do Haran Gawaita, livro mandeu que comenta o êxodo deles, da Palestina em direção à Mesopotâmia, passando pela região montanhosa da Média (Turā d-Madai) (DROWER, 1953). Neste livro, é mencionado o reinado de Ardbān, cujo nome pode ser associado aos reis partas da dinastia dos arsácidas, Artabanus I (216-191 a.C.), Artabanus II (ca. 128-24 a.C.), Artabanus III (12 a.C.-ca. 38 d.C.), Artabanus IV (80 d.C.-81 d.C.) e Artabanus V (ca. 213d.C.-ca. 227 d.C.)[7]. Cabe lembrar que, em um estudo mais recente, Jorunn Jacobsen Buckley observa que já foram confirmados por estudos numismáticos quatro, e não cinco, os reis arsácidas com o nome Artabanus. A lista mais recente começa com Artabanus I (128-124 a.C.) e continua com Artabanus II (11 a.C.-38 d.C.), Artabanus III (79-81d.c.) e Artabanus IV, este último, que corresponde ao Artabanus V anterior, teria reinado em data muito posterior aos eventos narrados no Haran Gawaita (BUCKLEY, 2005: 320; 322) e, portanto, não é considerado personagem dos acontecimentos relativos à história primitiva dos mandeus.

Se o êxodo ocorreu durante o reinado de Artabanus III (ou II na nova lista), foi ainda no tempo de João Batista. Rudolf Macuch acredita que foi nos últimos anos do reinado de Artabanus III (II), após a morte de Jesus, que os mandeus saíram da Palestina (MACUCH, 1957: 401-408). Macuch lembra que, já em 1938, o historiador N. C. Debevoise, autor de A Political History of Parthia, observara que talvez tenha sido no tempo de Artabanus III (II) que os mandeus chegaram à terra dos dois rios, o Tigre e o Eufrates.

À parte seus numerosos artigos, em 1960 Drower publicou The Secret Adam, livro que contém um estudo sobre a gnose mandeísta, com um inteiro capítulo dedicado à conexão entre o “gnosticismo" nazoreu” e as correntes judeo-palestinas. Segundo Drower, o êxodo dos mandeus da Palestina teria ocorrido em época pré-cristã. Em 1963, publicou A Mandaic Dictionary, em parceria com Rudolf Macuch.

Eminente linguista, Rudolf Macuch concentrou seus estudos a partir das tradições relacionadas à língua mandeia. Seguiu a trilha de Lidzbarski e buscou a origem dos mandeus nos círculos heréticos judaicos. Os nazoreus[8] (= mandeus) seriam pré-cristãos e o seu êxodo levou-os de início a Harrã, depois à Média sob a proteção de Artabanus III (II) (ca. 12-38 d.C.), antes, portanto, da queda do Templo de Jerusalém em 70 d.C. Macuch defende a tese de que o principal da literatura mandeísta é pré-islâmico e que o Ginza já tinha sua forma final por volta da segunda metade do século VI.

Certos termos técnicos, mandaiia, nasuraiia e yardna, confirmam as posições de Lidzbarski. Manda (= gnôsis) não é originalmente um termo aramaico, mas importado, ainda em tempos pré-cristãos, do sul da Mesopotâmia. Termo e conceito de manda fazem parte do período mais antigo da tradição mandeísta, mas a derivação mandaiia é posterior.

Yardna, jordão, é um termo genérico para designar água corrente, rio ou piscina com água corrente, a água em que é realizado o principal culto dos mandeus, a ablução ou imersão (masbuta, pronuncia-se maswetta) que, em geral, é traduzido por batismo, termo que pode gerar confusão, pois não tem o mesmo significado que no cristianismo. Alguns estudiosos assumem que o nome é uma reminiscência do rio Jordão, na Palestina. Nos relatos cosmológicos, porém, yardna significa água viva, água reluzente e gloriosa, e não tem qualquer relação com o rio Jordão. O termo é usado especificamente nos cultos e aplica-se a qualquer rio ou piscina de água corrente (cf. DROWER 2002: xxiv). Cyrus H. Gordon observou que, na Bíblia hebraica, o termo equivalente a jordão não é nome próprio e pode ter alguma relação com os rios Iardanus em Creta (Odisseia 3: 291-292) e Iardanus na Grécia continental (Ilíada 7: 135) (cf. GORDON, 1962: 284-285, apud YAMAUCHI 1966: 96).

O termo nasuraiia (nazoreus) é certamente o critério mais sólido para determinar a origem e a época da fundação da seita, pois é um nome encontrado na Síria-Palestina pré-cristã. Macuch afirma que “desde o início, o nazorismo significou a separação do judaísmo oficial” (MACUCH 1965:76-191). Seu desenvolvimento seguiu duas formas, a palestina no judeo-cristianismo e a mandeísta-mesopotâmica no nazorismo, embora ambos os movimentos tivessem certa afinidade. Com o êxodo da maior parte dos nazoreus, em direção ao leste da Palestina, formou-se o mandeísmo, e os que permaneceram não resistiram às influências cristãs e foram absorvidos pelo judeo-cristianismo. O grupo que se instalou na Mesopotâmia preservou as crenças do nazorismo, embora tenha incorporado à sua doutrina aportes babilônicos, persas e sírio-cristãos.

A tese de Macuch foi bem aceita por muitos estudiosos do tema. Um de seus principais expoentes, Kurt Rudolph, publicou em 1960-1961 um monumental estudo sobre o mandeísmo em dois volumes com cerca de 800 páginas (RUDOLPH 1960-1961). O primeiro trata de sua origem e cronologia, e o segundo de seus ritos e práticas. Rudolph concorda com Macuch e afirma que a forma atual do mandeísmo é resultado de sua longa permanência na Mesopotâmia. Em um de seus últimos estudos, Rudolph afirma que, em razão das perseguições realizadas pelos judeus ortodoxos, os nazoreus emigraram para os territórios a leste do vale do Jordão no mais tardar durante o século II, já que o Maniqueísmo, seita que surgiu no século III, tem suas raízes no mandeísmo (RUDOLPH 1978:5). Em outro artigo, porém, Rudolph afirma que a melhor solução é aceitar que a migração tenha ocorrido no século III, durante o reinado de Artabanus V, quando os mandeus fugiram para o território persa da Mesopotâmia, passando antes por Harrã e pela região da Média (RUDOLPH, 1995:36[9]). O Haran Gawaita, que menciona o rei Ardbān, parece referir-se a uma tradição que descreve miticamente o possível êxodo de parte da comunidade para o território persa durante o período dos partos, isto é, nos séculos I e II. Possivelmente os mandeus chegaram até Harrã e, mais longe, até as regiões montanhosas da Média (Turā d-Madai) e, depois, estabeleceram-se na região meridional da Mesopotâmia, Mesene/Characene, pois Teodoro bar Konai (ou Koni) (séc. VIII) situa os mandeus nesta região, fazendo-os proceder de Adiabene. Esse êxodo deve ter ocorrido, segundo Rudolph, ainda no século II. Eles depois seguiram para o sul, onde se fixaram entre o Tigre e o Eufrates, no atual Iraque, e às margens do rio Karūn, na província iraniana do Khuzistão (cf. RUDOLPH 1979:188). A forma atual do mandeísmo é resultado de sua longa permanência nessas regiões e consiste de uma mescla de aportes persas em seus cultos, babilônicos em suas práticas de magia e astrologia, além de traços cristãos de origem síria. Os hinos, porém, têm afinidades com o mais antigo gnosticismo" sírio e podem ser de época pré-cristã.

Para Rudolph, o mandeísmo é um ramo batista da corrente gnóstica judeo-síria, que conservou sua língua e modo de vida até nossos dias, principalmente em razão de seu isolamento. Seus documentos conservados permitem, assim, estudar um mundo desaparecido.

Publicado em 1970, o livro de Edwin M. Yamauchi, Gnostic Ethics and Mandean Origins, volta à questão da origem dos mandeus com novas propostas. Yamauchi parte do princípio de que o mandeísmo é uma religião sincrética. Ao contrário de seus antecessores, o problema da origem do oeste contra a origem do leste, ou seja, a origem palestina versus a origem mesopotâmica, não deve ser o ponto de partida das análises, já que a tendência à aceitação da origem palestina prevalece em razão da sobrevaloração dos documentos do oeste, cuja maioria é significativa (YAMAUCHI 1970:80). Os estudos de Yamauchi concentram-se nos textos mágicos dos amuletos e gamelas, as mais antigas evidências históricas.

Yamauchi defende a tese de que os mandeus, originários da Transjordânia, não eram judeus. Às vésperas da guerra contra Roma, em 66 d.C., os judeus atacaram as regiões ao sul e sudoeste do Mar da Galileia forçando os mandeus a emigrar para Antioquia, onde, já na passagem do primeiro ao segundo século de nossa era, adotaram concepções gnósticas, como a imortalidade da alma alcançada por meio do batismo, que não é parte da tradição mesopotâmica. Ao procurarem uma região “livre de dominação”, como relata o Haran Gawaita, continuaram seu êxodo em direção ao leste e, depois de passar por Harrã, fixaram-se na região de Adiabene, as montanhas da Média mencionadas em seus textos. Com o fortalecimento do cristianismo em Edessa e em Arbela, e com a notável presença dos judeus em Nísibis, procuraram refúgio nas regiões dos alagados no sul da Mesopotâmia, onde adotaram práticas mágicas e cultos locais. A essas crenças autóctones foram incorporados os componentes gnósticos adquiridos durante o seu périplo, cujo resultado foi a criação de uma nova religião que, talvez, já estivesse estabelecida no final do segundo século de nossa era.

Yamauchi descarta qualquer origem pré-cristã do mandeísmo, contra a tese de Kurt Rudolph, que afirma a sua origem numa dissidência do judaísmo oficial. A essência do mandeísmo, para Yamauchi, não está na sua teologia e mitologia gnósticas, “embora seja isto o que mais nos atraia em razão de nossos interesses pelo judaísmo, cristianismo e gnosticismo"” (YAMAUCHI 1970:88), mas nas antigas crenças nos princípios da vida e da fertilidade, ou seja, nos componentes mesopotâmicos de sua religião.

Para Yamauchi, o mandeísmo é uma seita gnóstica, única no gênero. A ética mandeísta, que não pode ser derivada de sua cosmologia e que enfatiza a purificação ritual e sexual, não corresponde à de outros grupos gnósticos. A ética mandeísta é anterior à dos grupos gnósticos conhecidos e pode ser explicada como “uma assimilação das ideias gnósticas do oeste pela mitologia do leste, acompanhada da reinterpretação de um culto mesopotâmico autóctone” (YAMAUCHI 1973:140). Se essa fusão, como afirma Yamauchi, resultou na criação do mandeísmo, não foi em razão dos aportes gnósticos palestinos, mas “pode bem ter acontecido por meio de uma catalização de poucos indivíduos” lá mesmo na Mesopotâmia. Em razão do modo como se apresentam os componentes dessa fusão que caracterizam o mandeísmo, não é possível atribuir-lhe uma origem do oeste, já que a especificidade do mandeísmo, com seus componentes mesopotâmicos, só poderia ter se realizado na própria região dos dois rios. Yamauchi prefere afirmar que foram componentes proto-mandeístas do oeste e proto-mandeístas do leste que criaram a religião dos mandeus. Esses componentes protomandeístas, no entanto, têm certas características do oeste, isto é, palestinas, que são as seguintes:

  1. Os mandeus não eram judeus, embora a Bíblia hebraica lhes fosse familiar;
  2. Talvez tenham se tornado antagonistas dos judeus;
  3. Falavam um dialeto aramaico e talvez estivessem familiarizados com a escrita nabateia;
  4. Habitavam a Transjordânia e talvez adorassem o deus de Haurān (Síria);
  5. Se conheceram, ou não, João Batista e foram seus seguidores é uma questão que permanece em aberto;
  6. É quase certo que não conheceram diretamente os primitivos cristãos (cf. YAMAUCHI 1973: 141).

Não foi pela superioridade de sua teologia que os mandeus sobreviveram até os dias de hoje, mas por sua persistência em manter seus cultos e hábitos. Sua possível extinção não se dará por uma eventual conversão ao cristianismo ou ao Islamismo, mas “pelo avanço da civilização ocidental que, cada vez mais, tornará difícil, até mesmo impossível, o seu modo de vida” (YAMAUCHI 1970:89).

Edmondo Lupieri, professor na Universidade de Udine, Itália, publicou em 1993 I Mandei. Gli ultimi gnostici, livro que foi traduzido para o inglês em 2002 e que talvez seja a melhor introdução às tradições religiosas dos mandeus. Na segunda parte, Lupieri desenvolve um trabalho pioneiro ao apresentar, com base em documentos, o encontro dos mandeus com os primeiros missionários católicos na Mesopotâmia, que os identificaram com cristãos desviados da ortodoxia católica. Essa parte serve de fundamento para a tese de Lupieri sobre a origem dos mandeus.

Em sua tentativa de reconstruir a História antiga do mandeísmo, Lupieri examina a variedade das tradições mandeístas que foram preservadas e observa que, nessa literatura, aparecem informações contraditórias sobre a região da origem da seita que ora mencionam o Egito, ora a Palestina, e ainda o Ceilão. Ao argumentar contra a hipótese da origem palestina, a mais aceita, Lupieri afirma que essa teoria é fruto das primeiras atividades missionárias de ocidentais, que consideraram os mandeus cristãos desviados do Catolicismo e descendentes do movimento de João Batista, o que não pode ser historicamente comprovado. Um dos argumentos que mais pesa contra a teoria da origem palestina é o silêncio de Flávio Josefo, historiador judeu que demonstra conhecer os fatos concernentes a João Batista e sua morte e à queda do templo de Jersualém. Dificilmente o historiador, que viveu nessa época, teria omitido a perseguição e o êxodo dos seguidores de João Batista, a quem ele dedica um par de páginas em sua obra. Se os mandeus fossem descendentes do movimento de João Batista, questiona Lupieri, por que tudo o que dizem sobre o Batista é derivado do cristianismo, algumas vezes até mesmo com datas de vários séculos posteriores ao Novo Testamento?

A História é sempre contada do ponto de vista dos vencedores e, sobre os mandeus, não há registro de vitórias, mas somente de derrotas. Em suas lendas abundam narrativas de perseguições e fugas, embora com um final de salvação em algum paraíso terrestre em míticas e inacessíveis montanhas ao norte. Durante mais de treze séculos na terra dos dois rios, os mandeus sofreram periodicamente a dominação de um e outro conquistador. Persas, árabes, mongóis e turcos alternaram-se no domínio da região, sem contar as missões católicas que chegaram a deportar uma parcela da população mandeia para a Índia, a fim de ser catequizada pelos portugueses.

Embora no mundo antigo houvesse uma grande mobilidade de povos, Lupieri não aceita a migração em massa de uma população, particularmente a dos mandeus. Os historiadores que seguem essa linha de pensamento, afirma ele, nada mais fazem do que fabricar mitos históricos que não correspondem à História real. Quando se instalam num novo lugar, os que chegam são gradualmente integrados ao contexto sócio-cultural que os acolhe, o que permite uma transformação cultural que faz surgir novas ideias, novas palavras e novos costumes. Entre as diferentes realidades ocorre, portanto, um sincretismo, que também pode realizar-se por meio de sermões de um pregador, da fundação de uma colônia ou do estacionamento de tropas, fatores que muitas vezes contribuem para a transformação cultural de um povo.

Para Lupieri, o marco decisivo da história dos mandeus é a invasão islâmica em 639 d.C., data que nos permite falar de um antes e um depois. Entre eles, permanece ainda viva a memória da invasão dos árabes, mas os registros da história da seita, anterior à invasão, são poucos e as lendas dão informações muito controversas, tais quais a existência de um reino mandeísta situado em algum lugar ao norte chamado Tura d-Madai (Montanha da Média), uma espécie de paraíso terrestre para onde fugiram os que escaparam das perseguições e lá se instalaram. Essa região de montanhas inacessíveis é geralmente localizada não longe da cidade de Harrã. Há lendas que relatam que os mandeus eram egípcios liderados por dois reis, Faraó e Artabanus, e outras que narram a perseguição em Jerusalém, depois da morte de João Batista. Tradições orais mais recentes, recolhidas no século XX, apontam a ideia de que os mandeus vieram do Ceilão. Jerusalém, muitas vezes, está às margens do Eufrates e, segundo Lupieri, tem significado simbólico. João Batista foi adotado pelos mandeus em sua polêmica contra os cristãos. Há no mandeísmo a convicção de que, desde o Dilúvio, os mandeus foram periodicamente extintos e milagrosamente reviveram graças a uma intervenção divina.

O professor italiano defende a origem da seita na Mesopotâmia, particularmente no sul, na antiga região de Mecene, mais tarde chamada Characene (de Charax, a capital), uma encruzilhada de rotas comerciais que ligava o Oriente Médio ao Extremo Oriente. O mandeísmo teria nascido numa época após o surgimento do cristianismo, mas antes do final do império dos arsácidas, no século II d.C., período em que já florescia o gnosticismo" de matriz cristã. Lupieri atribui a Zazai d-Gawazta a fundação da seita, pois ele é a figura histórica mais antiga do mandeísmo. Teria sido Zazai quem compôs um texto sagrado, o que forneceu as bases para que o mandeísmo se estabelecesse como religião independente, embora, do ponto de vista teológico, seja uma religião eterna revelada por Adão e que não aceita um fundador histórico. Por isso, Zazai, que viveu numa época anterior à queda do rei arsácida Artabanus V, em 224 d.C., passou à tradição mandeísta como escriba divinamente inspirado.

Segundo Lupieri, os mandeus compõem um grupo “étnico-religioso” natural da Mesopotâmia que, para manter a sua identidade preservada ao longo da História, viu-se compelido a lutar contra perseguições, massacres, epidemias e tentativas de deportação de sua população. A complexidade de sua literatura, ou melhor, as contradições de suas lendas, as discrepâncias cronográficas de sua história, as datas tardias dos manuscritos, os relatos de mandeus contemporâneos e o fato de eles serem um povo “vencido” apontam para as tentativas de interação do grupo com judeus, cristãos, muçulmanos, persas, egípcios e indianos a fim de garantir a sobrevivência de sua doutrina. Os mandeus teriam, portanto, incorporado à sua literatura tradições desses diferentes povos para garantir a sua permanência, não apenas física, mas religiosa.

Jorunn Jacobsen Buckley, pesquisadora norueguesa e uma das mais recentes especialistas do tema, sugere que os antigos mandeus eram parte da população judaica da Babilônia. Abandonaram o judaísmo em razão dos levantes que ocorreram nessa região durante os anos 30 d.C., e, protegidos por Artabanus II (reinou ca. 11 d.C.- 38 d.C.) – o rei Ardbān mencionado no Haran Gawaita –, fugiram para a Média, onde então compilaram suas tradições orais na literatura conhecida. Quanto a tratar-se do rei Artabanus II, e não de Artabanus III, como querem outros pesquisadores, Buckley segue a tese de Macuch, mas com diferentes argumentos: o reinado de Artabanus III foi muito breve (79 d.C.-81 d.C.) para que o rei se interessasse pelos mandeus, tão distantes do território persa, caso se admita a origem palestina da seita. Cabe lembrar que Macuch defende a origem judeo-palestina dos mandeus e acredita que eles fugiram em razão dos eventos que resultaram na destruição do Templo de Jerusalém, em 70 d.C. Kurt Rudolph acredita tratar-se de Artabanus IV, mas, como argumenta Buckley, uma vez aceita a tese da origem judeo-palestina do mandeísmo, pergunta-se o que estaria este rei fazendo na Palestina, tão longe de seus domínios.

Os mandeus, de acordo com Buckley, teriam abandonado o judaísmo antes de seu êxodo para a Média, pois no Haran Gawaita lê-se que essa região foi escolhida por tratar-se de “um lugar onde estamos livres da dominação de outras raças[10]. Em meados dos anos 30 d.C., a comunidade judaica da Babilônia estava dividida e houve revoltas como as das cidades de Selêucia e de Neerda no Eufrates. Que os mandeus tenham sido judeus, o próprio Haran Gawaita atesta ao informar que eles adoravam Adonai até o surgimento do cristianismo. Mas, se eventualmente tiveram qualquer contato com os cristãos, foi breve e deles logo se afastaram. É possível que, nessa época, ideias gnósticas e cristãs já circulassem na Babilônia, mas se o gnosticismo" ainda não era manifesto, é plausível que os mandeus ajudaram a desenvolvê-lo nesses territórios onde viviam, a leste da Palestina. Se os mandeus tiveram contato direto com João Batista, foi possivelmente logo após a sua morte que fugiram da Palestina, mas não houve interesse por parte deles em relatar a sua execução, tal como é narrada nos Evangelhos canônicos.

Para Buckley, foi na Média que o mandeísmo recebeu a sua primeira sistematização. A interpretação das inscrições em moedas e rochas encontradas nessa região corroboram essa hipótese. As tradições mandeístas, com aportes judaicos, cristãos e pagãos, teriam se desenvolvido na Média, onde vigorava o Zoroastrismo. Buckley sugere que os mandeus viveram ao longo de rotas comerciais ligadas à Rota da Seda, sendo incontestável que eles se disseminaram em mais regiões do Irã ocidental que nas que hoje habitam. Sem dar respostas conclusivas, a autora não descarta a possibilidade de o mandeísmo ter sido um movimento judaico sectário, seguidor de João Batista. Mas, com base em evidências de sua doutrina, no relato do Haran Gawaita e na reconstrução histórica a partir dos colofãos, Buckley acredita que os mandeus estejam entre os primeiros gnósticos, já em meados do primeiro século de nossa era (BUCKLEY 2005: 297-341).

Sem que chegassem a um acordo, as diversas hipóteses sobre as origens do mandeísmo podem resumir-se ao seguinte:

  1. A origem pré-cristã em círculos judaicos heterodoxos sírio-palestinos;
  2. O mandeísmo nasceu do judaísmo ortodoxo, na região do rio Jordão;
  3. A tradição dos mandeus contém componentes do judaísmo;
  4. Naturais das cercanias do rio Jordão, os mandeus emigraram para o sul do Iraque, onde receberam aportes sincréticos, babilônicos e persas;
  5. Doutrinas e rituais mandeístas remontam a João Batista e seus seguidores;
  6. Os mandeus emigraram para a Babilônia e absorveram antigos cultos planetários e o culto sírio à deusa-mãe;
  7. Inicialmente, o mandeísmo teria tido um estágio judeo-cristão, mas consolidou-se como seita cristã herética;
  8. A seita dos mandeus surgiu quando já florescia o gnosticismo", em época anterior à do domínio da Igreja;
  9. O prólogo do Evangelho de João seria um hino mandeísta originário de círculos batistas, teoria rejeitada, porém, pelos estudiosos do Novo Testamento;
  10. Os mandeus seriam cristãos heréticos, cujas ideias derivam da Peshitta, a versão siríaca da Bíblia;
  11. Vários pesquisadores atribuem o surgimento tardio do mandeísmo, a saber, nos séculos VII e VIII d.C.;
  12. O mandeísmo seria uma seita pré-maniqueísta, anterior, portanto, ao século III.
  13. O mandeísmo é uma religião sincrética. Seus membros, que originalmente viviam na Transjordânia, não eram judeus, fugiram em direção ao norte, para Antioquia, e depois ao leste, para a Média. Nesse percurso absorveram ideias gnósticas. Seu périplo levou-os a fixarem-se no sul da Mesopotâmia, onde incorporaram crenças autóctones, formando a religião definitiva por volta do final do século II d.C.;
  14. Os mandeus são originários da Mesopotâmia, que, perseguidos ao longo da História, incoporaram tradições de outras religiões a fim de garantir a sua sobrevivência.
  15. Os mandeus eram judeus que fugiram da Palestina para a Babilônia, onde, no primeiro século da era cristã, abandonaram o judaísmo e criaram a sua própria religião, absorvendo aportes de um gnosticismo" ainda incipiente no século I d.C.
  16. Os mandeus são judeus originários das terras babilônicas e fugiram para a Média onde sistematizaram a sua religião.

Considerações finais

Achados arqueológicos confirmam a presença dos mandeus já nos séculos II e III d.C. Foram encontradas moedas com inscrições na região que corresponde ao antigo reino de Mersene/Characene (sul da Mesopotâmia) e inscrições em rocha no território que corresponde à antiga Elimais (sudoeste iraniano). As letras dessas inscrições em moedas e rochas são semelhantes às do alfabeto mandeu e suas datas vão do século II ao III d.C. Lidzbarski determinou que quatro moedas de Characene pertencem ao período do rei Ibignai, possivelmente entre 150 d.C. e 224 d.C. As outras são mais tardias, uma delas com o nome Mani, fundador do Maniqueísmo no século III d.C. (cf. YAMAUCHI 1970: 6-7).

No sítio arqueológico de Tang-e Sarvak[11], situado no sudoeste iraniano, na antiga região de Elimais, foram encontradas inscrições em rocha, que possivelmente datam do século II-III d.C., cujas letras aramaicas são semelhantes às do alfabeto mandeu. O achado em Tang-e Butān, na área de Shīmbār, de mais cinco moedas com inscrições da mesma época completou o alfabeto elimeu de 23 letras, que pode ser comparado ao mandeu, embora Yamauchi afirme que apenas 15 letras elimeias têm correspondência com o alfabeto mandeu (YAMAUCHI, 1970: 6-7). O mais importante, porém, é que essas descobertas determinaram o terminus a quo da origem dos mandeus ao menos no terceiro século de nossa era.

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Notas

[*] Doutora em Filosofia (IFCH-UNICAMP), atualmente em estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-SP.

[1] Não é o mesmo que “nazareno”, nativo da cidade de Nazaré, mas vem do grego nazoraîoi, os membros da seita mencionada por Epifânio em Adv. Haer. XIX, 1, 3, 4; XXX, 3, cujo nome é derivado do talmúdico nazīr que significa “observante”, isto é, observante da Lei revelada (cf. KEAPLING, 1929: 215-216).

[2] Termo coloquial árabe que corresponde à raiz mandeia sba e significa “mergulhar, imergir, submergir”; tem também o significado metafórico de submergir num banho de tintura, como no ritual da imersão (masbuta): quem mergulha negro, emerge branco, quem mergulha poluído, sai purificado e envolto na luz (cf. DROWER, 2002: 16, nota 1).

[3] Nessa época, “caldeus” se referia a todos os cristãos cuja língua nativa era o siríaco; hoje, o termo se refere aos cristãos de expressão siríaca, originalmente nestorianos e depois convertidos ao catolicismo no século XVI (cf. LUPIERI, 2002: 72, nota 20).

[4] Sobre a bibliografia inicial relativa ao mandeísmo, ver KRAELING, 1926: 49-55.

[5] LIDZBARSKI, Mark. Das Johannesbuch der Mandäer. 2 v. Giessen: Töpelmann, 1905-1915; _____. Mandäische Liturgien mitgeteilt, übersetzt und erklärt. Berlin, 1920; _____. Ginzā, der Schatz oder das grosse Buch der Mandäer übersetz und erklärt. Göttingen, 1925.

[6] Escola comparatista alemã do início do século XX, que se destacou por seus estudos sobre as religiões.

[7] Nos trabalhos dos especialistas, essas datas nem sempre coincidem. Aqui seguimos YAMAUCHI, 1966: 91-92.

[8] Macuch combina os nasareus e nazoreus mencionados por Epifânio e não duvida da origem comum dos “judeo-cristãos nazoreus” e dos mandeus, cf. YAMAUCHI, 1970, p. 61-62.

[9] A publicação italiana desse artigo de Rudolph deve ser tomada com precaução, pois contém erros nas datas históricas dos reis partas da dinastia dos arsácidas. Ver RUDOLPH, 1975: 120; este artigo assume que o êxodo dos mandeus aconteceu durante o reinado de Artabanus V (213- ca. 227 d.C.).

[10] Edição Drower, Haran Gawaita, 3.

[11] Tang-e Sarvak (Desfiladeiro dos Ciprestes) é um sítio arqueológico situado numa região montanhosa a 1200 m. de altitude e a 50 km. ao norte de Behbahān, na província iraniana do Khuzistão, antiga Elimais. Considerado o mais importante santuário dos elimeus, o sítio data do século I ao século III d.C.