Política e Religião na Nova Geografia Cultural: O Caso da Criação do Estado do Tocantins

Jean Carlos Rodrigues[*] []

Resumo

A discussão que este artigo realiza gira em torno da temática religião e como esta se relaciona com o fato político em uma produção cultural que possui uma dimensão espacial. Ou seja, pretendemos demonstrar por meio deste trabalho como política e religião se articulam para a produção de um espaço de representação repleto de símbolos e significados que reatualizam a história e demarcam o território. Nosso estudo de caso refere-se à criação do estado do Tocantins e a articulação entre política e religião realizada por atores sociais a fim de construir um espaço de representação tocantinense.

Palavras-chave: Estado do Tocantins, Espaço de Representação, Nova Geografia Cultural.

Abstract

Based on the hypothesis that religion is a political function of the spatial dimension of cultural production, the article discusses how politics and religion interrelate in order to produce a representation of a space full of symbols and meanings that reenact history and demarcate a territory. This dynamics is elaborated with reference to the creation of the state of Tocantins and the relationship between politics and religion due to the efforts of social actors to construct a space of tocantinense representation.

Keywords: State of Tocantins, Area of Representation, New Cultural Geography.

Introdução

A discussão que este artigo realiza gira em torno da temática religião e como esta se relaciona com o fato político em uma produção cultural que possui uma dimensão espacial. Ou seja, pretendemos demonstrar por meio deste trabalho como política e religião se articulam para a produção de um espaço de representação repleto de símbolos e significados que reatualizam a história e demarcam o território. Esta relação é enfatizada por Gil Filho quando este autor afirma que “os atores sociais qualificam e edificam espaços de representação de acordo com motivações coletivas, tanto religiosas como políticas, nas quais o poder é imanente. Em vista disso, o cotidiano se expressa em espaços de representação”. (GIL FILHO 2008:104)

Essa discussão ganhou novos e importantes impulsos a partir da ascensão do que se denomina de Nova Geografia Cultural, ocorrida em princípios da década de 1980. Ela tem como finalidade primordial analisar os aspectos espaciais da cultura, resultantes das ações humanas e de sua organização político-espacial significando o espaço cultural (re)produzido pelo Homem. Partimos do pressuposto de que as atividades culturais humanas projetam-se sobre o espaço social de sobrevivência, reorganizando-o, de forma a esboçar novas representações. Neste sentido, o espaço também possui sua dimensão simbólica, política e cultural, e produz seus distintos espaços de representação. Corrêa (2009) corrobora essa afirmação quando, em conferência realizada no 12º Encontro de Geógrafos da América Latina, em Montevidéu (Uruguai) em abril de 2009, menciona que esta Nova Geografia Cultural interpreta a cultura como um conjunto de significados e representações que diferentes grupos sociais produzem e reproduzem de suas próprias manifestações materiais e imateriais de existência.

Mas essa abordagem com a temática da representação e significação da ação humana e sua projeção espacial é recente. Antes disto, a preocupação com os estudos no âmbito da Geografia Cultural relacionava-se com a identificação e caracterização da área cultural numa associação com os métodos empregados para análise dos aspectos físicos da paisagem. Segundo Sauer, o geógrafo “está acostumado a considerar a gênese das áreas físicas, razão pela qual pode estender o mesmo tipo de observação à área cultural, que tem uma configuração mais simples e mais exata que a área cultural do antropólogo”. (2007:23)

Após fazer estas considerações, Sauer afirma que a área cultural

consiste unicamente nas expressões do aproveitamento humano da terra, o conjunto cultural que registra a medida integral do uso humano da superfície [...] o geógrafo mapeia a distribuição destas marcas, agrupa-as em associações genéticas, descreve-as desde a origem e sintetiza-as em sistemas comparativos de áreas culturais. (2007:23)

Nessa interpretação dos fatos culturais, e a consequente dimensão espacial que Sauer defendia, estava implícito o que o autor entendia como objetivo da disciplina de Geografia que, segundo ele, era “um entendimento da diferenciação da Terra em áreas” (2007:25). Neste sentido, a Geografia Cultural produzida sobre influência de Carl Sauer e da Escola de Berkeley atribuíam valores aos estudos que tinham por finalidade caracterizar as manifestações culturais do Homem em áreas culturais descrevendo-as da mesma forma que se fazia com os estudos sobre as áreas físicas.

A partir da década de 1970, e mais fortemente em 1980, os estudos em Geografia Cultural sofrem uma modificação radical no que se refere aos seus aspectos teórico-metodológicos. Essa interpretação das abordagens culturais na Nova Geografia Cultural sofreu grande influência e contribuição de Cosgrove, quando este autor chamou a atenção no debate para dois termos que colaboraram de forma significativa para a construção e a interpretação das representações e suas consequentes espacialidades produzidas e reproduzidas, criadas e inventadas: são eles imaginação e significado. Entretanto, o autor alerta para o fato de que, que embora a imaginação como categoria central dos estudos em Geografia Cultural nos permitiu ir além dos elementos resultantes da conflituosa relação entre Homem e natureza, ela não resolveu todos os problemas a que tem a intenção de solucionar na difícil tarefa de interpretar o que o mundo significa. Por isso, Cosgrove (2000:38) menciona quatro problemas que considera emergenciais:

  1. as relações entre aa imaginações individuais e as imaginações coletivas e suas resultantes espaciais;
  2. as maneiras de a imaginação aproximar do mundo natural os conflitantes horizontes temporais da ação humana;
  3. o passado e o futuro na imaginação cultural;
  4. a natureza critica da imaginação moderna na qual a percepção do significado da ideologia subverte as sínteses aparentemente inocentes de vida humana e mundo natural.

Desta forma, embora a inserção da imaginação e significado na produção da Nova Geografia Cultural ainda tenha deixado lacunas que precisam ser repensadas, como as quatro elencadas acima, entendemos que ainda assim essas categorias contribuem sobremaneira para uma leitura espacial do fato cultural no qual religião e política se inserem como questões de fundamental importância para a construção de espaços de representações e para trazer o Homem novamente de volta ao debate geográfico. Segundo Gil Filho (2008), o Homem não está somente diante de uma realidade imediata, mas à medida que sua prática simbólica se realiza, ele busca os sentidos e significados da existência. O Homem, como sujeito da produção de um conhecimento simbólico e da prática socioespacial tanto da religião como da política precisa, segundo Gil Filho, ser resgatado na teoria geográfica.

Isso porque a abordagem dos estudos da Nova Geografia Cultural resulta da interpretação dos espaços de representações da identidade cultural que atribuem sentidos e significados à espacialidade e à vida de cada sujeito social inserida num contexto espacial. Neste sentido, resgatar o papel do Homem e de suas práticas sociais simbólicas é um recurso importante para o processo de teorização da Nova Geografia Cultural. Nesta perspectiva, observa-se a dimensão política da cultura mediante o fato de que os espaços de representação demonstram o aspecto político da ação humana e de sua organização e projeção espacial. Para Claval,

a transformação que começa a afetar os estudos culturais conduzidos pelos geógrafos a partir da década de 1970 repousa sobre uma mudança completa de atitudes e nasceu da constatação de que as realidades que refletem a organização social do mundo, a vida dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente materiais. São a expressão de processos cognitivos, de atividades mentais, de troca de informações e de ideias. (CLAVAL 2001:39),

Cosgrove e Jackson ratificam a ideia de pensarmos a dimensão política como fator importante na produção e consequente dimensão espacial da cultura. Segundo os autores “os estudos culturais contemporâneos nos ensinaram a reconhecer, acima de tudo, que as culturas são contestadas politicamente. A visão unitária da cultura dá lugar à pluralidade de culturas, cada uma com suas especificidades de tempo e lugar” (COSGROVE & JACKSON 2000:26). Em recente estudo realizado sobre a criação do estado do Tocantins (RODRIGUES 2008), observamos como o fator político esteve o tempo todo imbricado com a religião na construção de um espaço de representação tocantinense que legitimasse e reatualizasse, entre outros elementos, o discurso fundador dessa nova unidade politico-administrativa da federação brasileira e atribuísse significados e sentidos que dessem significação à formação deste novo Estado.

O caso tocantinense

Foram 179 anos até ser publicada, no artigo 13 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, a criação do Estado do Tocantins, após diversas ações e manifestações que foram realizadas em prol da emancipação do norte do estado de Goiás e da formação de uma nova unidade federativa no país a partir do paralelo 13 do território goiano. O marco histórico considerado como ponto de partida desse projeto foi o ano de 1809, com a publicação do Alvará de 18 de março, que dividiu a Capitania de Goiás em duas comarcas: a Comarca do Sul e a Comarca do Norte. Entretanto, devemos salientar que isso não implica em afirmar que, segundo relata a produção historiográfica, não tenha ocorrido alguma ação em prol da causa tocantinense antes de 1809. A Comarca do Norte recebeu o nome de Comarca de São João das Duas Barras, assim como se chamaria a vila à qual, no encontro dos rios Araguaia e Tocantins, foi dada a ordem para ser criada com esse mesmo nome, para ser sua sede. O ouvidor nomeado para administrar a comarca foi desembargador Joaquim Theotônio Segurado (CAVALCANTE 2003).

De acordo com a história oficial publicada pelo Governo do Estado do Tocantins[1], a Comarca do Norte compreendia os julgados de Porto Real (atual Porto Nacional), Natividade, Conceição, Arraias, São Félix, Cavalcante, Traíras e Flores. O Arraial do Carmo, que já tinha sido cabeça de julgado, perdeu essa condição, a qual foi transferida para Porto Real, julgado que começava a prosperar com a navegação do rio Tocantins. Enquanto não era fundada a Vila de São João das Duas Barras, Natividade seria a sede da ouvidoria. A função primeira de Joaquim Theotônio Segurado era designar o local onde deveria ser fundada a nova vila.

Alegando a distância e a descentralização em relação aos julgados mais povoados, o ouvidor solicitou a D. João VI autorização para a construção da sede da comarca em outro local. No lugar escolhido por Segurado, o Alvará de 25 de janeiro de 1814 autorizava a construção da sede na confluência dos rios Palma e Paranã, a Vila da Palma, hoje cidade de Paranã.

A Vila de São João das Duas Barras recebeu o título de vila, mas nunca chegou a ser construída. Segundo a história oficial, Joaquim Theotônio Segurado, administrador da Comarca do Norte, trabalhou para o desenvolvimento da navegação do rio Tocantins e o incremento do comércio com o Pará. Ele assumiu posição de liderança como grande defensor dos interesses regionais e, tão logo isso se mostrou oportuno, reivindicou legalmente a autonomia político-administrativa da região. O dia 18 de março foi, oficialmente, considerado o Dia da Autonomia pela Lei nº 960, de 17 de março de 1998, por ser a data da criação da Comarca do Norte, estabelecida como marco inicial da luta pela emancipação do Estado do Tocantins.

Em função das peculiaridades envolvidas na criação do Estado do Tocantins, as discussões que ora apresentamos podem ser consideradas como um desafio de interpretação de uma realidade socioespacial constituída por meio de discursos, símbolos e significados que tinham como objetivo final a formação de uma nova unidade federativa do Brasil, de um espaço de representação denominado Estado do Tocantins. Esse objetivo começou a se tornar realidade em 01º de junho de 1988, mediante a aprovação, em primeiro turno, de um projeto de lei pela Assembleia Nacional Constituinte.

Pode-se demarcar três momentos importantes para a emancipação do estado do Tocantins: 1821-1823, 1956-1960, 1985-1988 (CAVALCANTE 2003).

No primeiro momento, 1821-1823, a oposição do norte ao centro-sul de Goiás estava na questão da cobrança de impostos de captação de ouro. As minas do norte possuíam valores mais elevados a serem pagos aos cofres públicos do governo que o das minas de Goyazes, no centro-sul. Segundo a historiadora Cavalcante (2003:202-203), percebe-se nas falas dos protagonistas de 1821 que a configuração daquele momento político apontava para duas direções para a sustentação do Governo Independente do Norte: a) ele poderia tanto estar articulado ao movimento de Independência do Brasil, ou b) aliar-se às Cortes de Lisboa. A posição de Joaquim Theotônio Segurado foi a de manter-se fiel a Portugal, entretanto com uma administração independente do capitão-general Sampaio, instalado no Centro-Sul de Goiás.

Já em relação ao segundo momento, 1956-1960, a autora faz alusão ao projeto de expansão do Estado brasileiro em direção ao interior como uma das razões que fundamentaram a emancipação do Norte de Goiás em relação ao Centro-Sul do referido estado. Segundo Cavalcante (2003:203-204), isso se tornava possível pelo fato de o momento político nacional da segunda metade da década de 1950 ter sido marcado pelos projetos de expansão e integração do território nacional. Esses projetos acabaram por se configurar promissores nas falas dos nortenses, que recriaram o discurso autonomista do norte goiano, alimentadas nas diretrizes políticas do Governo Federal, as quais eram voltadas para a ocupação dos espaços vazios interioranos. Isso, posteriormente, foi possível de ser percebido com a construção de Brasília no planalto central goiano por iniciativa do governo Juscelino Kubitschek, voltado para a interiorização das políticas de planejamento. Era preciso ocupar o Brasil e o Centro-Oeste de Goiás havia sido encampado nesse propósito.

Em relação à terceira etapa da luta emancipatória do Estado do Tocantins, a autora salienta que o discurso de 1985-1988 era pautado, sobretudo, nas diferenças culturais e econômicas entre o Norte e o Sul de Goiás. Para Cavalcante (2003), enquanto o Centro-Sul goiano evidenciava uma sólida integração econômica com o mercado da região Sudeste do Brasil, acentuavam-se as diferenças internas entre o norte e o sul do estado, devidamente criadas com esse propósito. A expressividade dessa diferença foi tomada na construção do discurso autonomista regional a partir das peculiaridades que identificariam, diferentemente, o Estado do Tocantins e o Estado de Goiás. Dessa forma, observa-se que cada momento histórico, caracterizado por diferentes contextos, produziu suas argumentações que justificassem a formação do Estado do Tocantins.

Para atender aos objetivos deste artigo, o referencial teórico adotado aqui para uma melhor interpretação acerca da realidade socioespacial e da investigação da articulação entre política e religião para a criação do Estado tocantinense foi o das representações sociais e o espaço de representação resultante dessas ações simbólicas. De acordo com Jovchelovitch (2000), as representações sociais representam, simbolicamente, o espaço do sujeito social, daquele que luta para atribuir um sentido, interpretar e construir o mundo vivido em que ele se encontra. Além disso, elas oferecem a possibilidade do novo, do estar por vir, da autonomia do inexistente, mas que poderia existir. Por meio delas torna-se possível uma relação com o ausente e com o que poderá vir-a-ser.

Assim, os espaços de representação constituem-se como espaços determinantes de processos de manifestação de representações simbólicas e políticas da vida cotidiana. Para Jovchelovitch, as reuniões públicas, os cafés, as ruas, os meios de comunicação e as instituições tornam-se o locus de cristalização e transmissão destas representações. Segundo a autora, “é no encontro público de atores sociais, nas várias mediações da vida pública, nos espaços em que sujeitos sociais reúnem-se para falar e dar sentido ao quotidiano que as representações sociais são formadas” (2000:40).

Analisar o papel das representações sociais na articulação entre política e religião para a criação do Estado tocantinense envolve, num primeiro momento, fazer uma breve discussão em torno da questão que trata da definição do que vêm a ser as representações sociais e a delimitação de suas dimensões culturais, haja vista que estes são os dois pontos centrais de análise desta proposta de trabalho. Entendemos que não é possível dissociá-las, uma vez que as relações e as ações humanas pressupõem representações e elas estão inseridas em diversos contextos, como o espacial e o cultural. Para Claval, “a construção das identidades esta intimamente ligada à organização territorial e à maneira como é percebida por quem é responsável por essa organização ou a experimenta” (2001:66). De certa maneira, a articulação entre política e religião contribui, para além da justificação discursiva, para a criação de uma nova unidade politico-administrativa da federação brasileira: seu raio de atuação alcançou, também, processos que resultaram na formação da identidade cultural do Estado do Tocantins.

As representações sociais pressupõem a construção de uma historiografia do lugar. Ao elaborar as representações do recém-criado Estado do Tocantins, o recurso à história foi imprescindível para, a partir daí, elaborar novas representações que servissem aos objetivos de quem as estava construindo (RIBEIRO 2001). Com o passar do tempo, os velhos heróis foram sendo substituídos por novos a fim de legitimar, constantemente, o passado para as novas e futuras gerações, como foi o caso tocantinense. Para Moscovici, “para se compreender e explicar uma representação, é necessário começar com aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu” (2007:41).

Compreender os elementos intrínsecos na construção das representações sociais nos permite observar a dimensão que ela alcançou ao longo do processo de construção de uma realidade espaçocultural tocantinense e de que atribuiu um sentido de pertencimento cultural à nova unidade de federação brasileira, o Estado do Tocantins.

De acordo com Moscovici, as representações sociais são partilhadas, penetram e influenciam a mente de muitos, entretanto, sem ser pensadas por eles. Elas apenas são re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas. Se tomarmos a questão sobre a formação do Estado do Tocantins a partir desse ponto levantado pelo autor, observamos que o discurso autonomista tocantinense elaborado a partir de sua historiografia atua neste sentido proposto: a história tocantinense, bem como a luta heróica de seus personagens históricos, é recontada ao longo de gerações, reatualizada e reapresentada a cada momento, num tempo cíclico, no qual os símbolos do nascente Estado recontam a saga heróica de seus personagens a todo o momento. Segundo o autor, “eu quero dizer que elas [as representações sociais] são impostas sobre nós, e são o produto de uma sequência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações” (MOSCOVICI 2007:37).

Entretanto, mais do que recontar a história e colocar os fatos na ordem de quem a está criando por meio da elaboração das representações sociais, é possível estabelecer um jogo de poder e controle social. Isso porque a historiografia elaborada a partir dos fatos de um passado de luta – foram 179 anos buscando a autonomia do Estado do Tocantins, conforme Siqueira Campos[2] destacou em diversos momentos em seus discursos tanto na Assembleia Nacional Constituinte como na Câmara dos Deputados – legitima a dominação e o controle da realidade socioespacial de hoje. Isso se torna claro quando observamos o slogan da campanha de Siqueira Campos para ser o primeiro governador do Estado pelo PDC[3], em 1988: “Quem criou merece”. Ele toma para si a responsabilidade pela criação do Estado e utiliza esse argumento para ser o primeiro governador do Tocantins. Posto na condição de criador, no centro do mundo como diria Eliade (1999), Siqueira Campos reveste-se de uma dimensão sagrada na qual articula o fato político com o fato religioso para reivindicar a posição de governador do Estado.

No processo de construção das representações sociais, Moscovici (2007) trabalha com dois mecanismos que considera criadores das representações. São eles: a) ancoragem; e b) objetivação. O primeiro, segundo o autor, tenta ancorar ideias estranhas e alheias e torná-las categorias e imagens comuns a partir de sua inserção em um contexto familiar. O segundo procura objetivar, ou seja, trazer os elementos abstratos para algo quase concreto, que passe a existir no mundo físico, um monumentum aere perennius, como diria Cassirer (2003). Trazendo a discussão para o caso tocantinense, verifica-se que tanto ancoragem como objetivação fizeram parte de um processo de construção de representações sociais no Estado, cujo esforço permitiu a construção de mentalidades que, inclusive, apoiassem tal objetivo.

Para Moscovici, ancorar é “classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras” (2007:61). Dar nomes a coisas ou seres, portanto, nos permite classificá-los dentro de um conjunto de valores que carregamos conosco e torna o estranho, o não-familiar, em algo conhecido, familiar podendo, inclusive, reproduzi-lo dentro de um universo de valores por nós elaborados.

Para Franco, “a ancoragem consiste no processo de integração cognitiva do objeto representado para um sistema de pensamento social preexistente e para as transformações, histórica e culturalmente situadas, implícitas em tal processo”. (2004:175) No processo de ancoragem, a classificação que elaboramos do desconhecido é uma tentativa, segundo Moscovici, de inseri-lo num conjunto de categorias, comportamentos e regras que determinam o que é ou não é permitido em relação a um conjunto de indivíduos pertencentes a uma determinada classe. Além da classificação, a categorização também faz parte deste processo de ancoragem. Trata-se de “escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele” (MOSCOVICI 2007: 63).

Para Moscovici, o ato de classificar algo, dentro da ancoragem, implica também em nomeá-lo:

é impossível classificar sem, ao mesmo tempo, dar nomes. Na verdade, essas são duas atividades distintas. Em nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma coisa ou em alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador, para dotá-lo de uma genealogia e para incluí-lo em um complexo de palavras específicas, para localizá-lo, de fato, na matriz de identidade de nossa cultura. (2007: 66)

Isso porque o anonimato ou o que é anônimo dificilmente pode tornar-se uma imagem comunicável ou ser ligado a outras imagens. É o estranho. Por isso, surge a necessidade da associação entre a palavra e a coisa a fim de representá-la e inseri-la num mundo de conceitos e paradigmas que nos permite identificá-la.

Para Moscovici (2007), o ato de nomear as coisas ou pessoas dá ensejo a três consequências: a) em primeiro lugar, a nomeação permite que uma coisa ou uma pessoa seja descrita e adquira certa característica ou tendência; b) essa nomeação permite que a coisa ou a pessoa se torne distinta de outras coisas ou pessoas a partir dessas características e tendências que ela adquire; c) a nomeação também permite que a coisa ou a pessoa se torne um objeto de convenção partilhado por aqueles que adotam essa mesma convenção, essa mesma linguagem. Portanto, mais do que dar nomes, o processo de nomeação torna esses elementos conhecidos e inseridos em um padrão, ou convenção, partilhados por outras coisas ou pessoas, e os transfere do mundo desconhecido para o universo de semelhantes. Deixa de ser o estranho para se tornar o familiar.

Ao tornar familiar o não-familiar por meio da classificação e da nomeação de coisas ou pessoas, atribui-se ao ente nomeado uma identidade, ou seja, um conteúdo que permite ao sujeito se reconhecer e reconhecer ao outro enquanto ser-no-mundo, produtores de uma espacialidade própria que lhe permitem estabelecer relações com o espaço que ocupam permitindo, desta forma, problematizarmos a dimensão espacial da cultura por meio da identidade. Para Gil Filho, “quando tornamos algo não-familiar em algo familiar, fazemo-lo como representação social, ou seja, quando dotamos um espaço de familiaridade e sentido, transformamo-lo em lugar” (2008:120).

Entretanto, a formação dessa identidade perpassa por relações de poder mediante o fato de que foi elaborada por distintos atores sociais numa relação muitas vezes conflituosa na produção do fato simbólico. Isto nos faz retomar Castells (apud GIL FILHO 2008: 84) quando este autor menciona as formas de construção da identidade, a saber: identidade legitimada, introduzida por atores sociais dominantes; identidade de resistência, pertencente aos atores sociais que resistem às determinações identitárias da classe dominante; e a identidade projetada, uma nova identidade produzida por atores sociais a partir de uma redefinição de papel e posição social. Estas identidades implicam na produção e reprodução de formas espaciais a partir de sua materialidade enquanto lugar do sujeito. Essa identidade socioespacial criada a partir da nomeação permite ajustar coisas e pessoas a uma representação social predominante. A partir disso, com base em Moscovici (2007), pode-se entender que a ancoragem possui como dois aspectos: a classificação e a nomeação. Isso provoca duas consequências na teoria das representações sociais.

A primeira delas é que a teoria das representações sociais exclui a ideia de pensamento ou de percepção que não possua ancoragem, ou seja, que não permita classificar e nomear. A segunda é que sistemas de classificação e de nomeação não são meios de rotular pessoas ou objetos. Para Moscovici, “seu objetivo principal é facilitar a interpretação de características, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas, na realidade, formar opiniões”. (2007: 70) Isso porque, para podermos interpretar ideias ou algo não-familiar, são necessárias categorias, nomes, referências, a fim de que o que está sendo nomeado possa ser integrado a um universo cognitivo familiar.

No caso especifico do Estado do Tocantins, suas representações sociais foram elaboradas a partir de um processo de ancoragem que permitiu a classificação e nomeação de seres e fatos. A primeira delas refere-se à construção da historiografia do Estado. A elaboração da história tocantinense procura nomear e classificar os bandeirantes paulistas no momento da ocupação do até então Estado de Goiás.

Naquela ocasião, os bandeirantes paulistas foram comparados a demônios, atribuindo-se a eles todo o peso do significado desse termo num contexto religioso e, sobretudo, cristão. Ao tomar emprestado esse termo para se referir aos bandeirantes, a historiografia nomeou e classificou esses personagens atribuindo-lhes um significado que foi de fundamental importância para a construção de uma identidade tocantinense. De um lado, os jesuítas no norte (atual Estado do Tocantins), e de outro os bandeirantes, os demônios no sul (atual Estado de Goiás).

Verifica-se, portanto, como os elementos religiosos foram manipulados para nomear e classificar o desconhecido, o não-familiar, e inseri-lo em um conjunto de valores demoníacos, com todo o peso que isto possa significar no contexto de uma sociedade majoritariamente cristã. Isso serviu como um dos elementos utilizados na construção de uma identidade social tocantinense e a construção de seu espaço de representação. Mas não é apenas isso.

A religião, por meio da instituição religiosa, se manifestou em diversos momentos favorável à emancipação do norte goiano e criação do Estado do Tocantins. Quando questionamos um de nossos entrevistados do alto clero católico que atuou na região entre as décadas de 1970 e 1990 sobre se a Igreja Católica apoiou a emancipação do norte do Estado de Goiás para a criação do Estado tocantinense, ele respondeu que a emancipação da região favorecia as comunidades distantes que não tinham, por exemplo, assistência médica. Nesse sentido, a Igreja lutou e batalhou pela divisão para facilitar a comunicação do povo do interior com o povo da cidade na assistência à saúde e educação. Segundo ele, “nós entramos dando apoio aberto. Criticando, às vezes, certas injustiças, mas, sobretudo apoiando o progresso” (D.C.P.A., entrevista, 07/02/2008, Goiás).

O modo como a Igreja apoiou a criação do Estado do Tocantins não foi, segundo D. C. P. A., na forma de um compromisso público por meio de um abaixo-assinado, por exemplo. Entretanto, ele afirma ter ido algumas vezes a Brasília (DF), junto com o prefeito de Porto Nacional da época e uma comitiva, para conversar com o senador Mauro Borges e pedir a ele que apressasse a criação do Estado do Tocantins. Além disso, ele não nega ter usado as celebrações com o propósito de trabalhar em prol da causa tocantinense. Segundo o entrevistado, “documento assim aberto também não houve não. Foram mais conversas, como celebrações” (D.C.P.A., entrevista, 07/02/2008, Goiás).

Em outro momento, já na década de 1980, Siqueira Campos também utiliza a ancoragem por meio da nomeação e classificação de seus desafetos políticos. Constantemente, em seus discursos na Assembleia Nacional Constituinte e na Câmara dos Deputados Federais, o ex-deputado refere-se a eles como os inimigos do povo ou os inimigos do Tocantins. Ao nomeá-los e classificá-los dessa forma, eles estão sendo inseridos dentro de um conjunto de valores e ideologias que acaba excluindo-os da sociedade da qual fazem parte.

Dessa forma, verifica-se que a ancoragem, por meio da classificação e nomeação, desempenhou um papel importante nesse processo de construção de uma representação social do Estado do Tocantins. Mais do que isso, ao ser elaborada pelos detentores de poder e manipuladores dessas representações, ela legitimou o discurso de criação do Estado, nomeando e classificando o que estava de acordo com tal propósito.

A objetivação, por sua vez, “une a ideia de não-familiaridade com a de realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade. Percebida primeiramente como um universo puramente intelectual e remoto, a objetivação aparece, então, diante de nossos olhos, física e acessível” (MOSCOVICI 2007:71). Dessa forma, observa-se que a objetivação possui como função materializar uma abstração, de transformação “de uma ideia, de um conceito, ou de uma opinião em algo concreto” (FRANCO 2004:172).

Segundo Moscovici (2007: 71), a objetivação tem sido muito utilizada por políticos e intelectuais que possuem como pretensão transformar uma representação em uma realidade, mesmo que discursiva, fazer a palavra que substitui alguma coisa na coisa que substitui a palavra. Dessa forma, a imagem contribui com a objetivação das representações haja vista que por meio dela é possível atribuir sentido e significado a uma realidade construída e significada. Para Gomes, “o valor das imagens não se encontra na conformidade possível com uma pretensa realidade que elas espelham, mas, sim, no universo de significações que se exprime através delas” (2008: 94).

Portanto, mais do que provocar uma reflexão sobre a realidade, as imagens têm por finalidade atribuir sentidos e significados a um contexto socioespacial construído e reconstruído por determinados atores sociais na produção de seus espaços de representação. Se a imagem denuncia os significados da realidade socioespacial na qual está inserida, então se entende que ela exprime por meio de suas significações as representações de atores sociais que a elaborou e, nesse sentido, a imagem também possuem atribuições políticas.

Na objetivação trabalhamos, portanto, com a formação de imagens na qual o percebido substitui o concebido. Para Moscovici, “se existem imagens, se elas são essenciais para a comunicação e para a compreensão social, isso é porque elas não existem sem a realidade” (2007: 74). O processo de construção de heróis é algo que também faz parte da objetivação das representações sociais. A intenção disso é tornar as palavras em corpos e as ideias em poderes naturais. A projeção da imagem ou da figura do herói é a materialização de um conceito cujo objetivo é o de tornar concreto aquilo que antes estava na abstração. Implica também uma estreita relação com a construção dos modernos mitos políticos, conforme nos alerta Cassirer (2003).

A objetivação das representações sociais também fez parte da construção de um conjunto de representações para a criação do Estado do Tocantins. A materialização da ideia de que Siqueira Campos era o pai do Estado assemelha-se bastante à figura do herói apresentada anteriormente. O ex-deputado coloca-se como o pai fundador dessa unidade da federação e se sente na condição de considerar os habitantes da nova unidade da federação como o meu povo ou a minha gente, conforme se verifica em seus discursos. É o mito do herói povoando as mentes e objetivando representações culturais do novo Estado haja vista que podemos interpretá-lo como sendo “um conjunto de valores e crenças relativos a uma cultura e serve como grade fundamental de significação de imagens e discursos” (Gomes 2008:196).

Se, para Cosgrove, “todas as culturas humanas têm mitos sobre suas origens” (2000:45), encontramos em Siqueira Campos a personificação de um mito criacionista que dá origem a uma nova produção cultural tocantinense a partir da emancipação política com o Estado de Goiás. Ou seja, a partir do momento em que o Estado do Tocantins foi desmembrado do Estado de Goiás, criou-se uma nova lógica no que diz respeito à produção e reprodução da identidade cultural tocantinense. A interpretação do espaço de representação da identidade cultural tocantinense é uma forma de identificar as espacialidades culturais da mais nova unidade politicoadministrativa da federação brasileira bem como as rugosidades do período antes da emancipação com o Estado de Goiás. É por isso que não entendemos a produção e reprodução do espaço de representação da identidade tocantinense como uma ruptura, mas como uma continuidade, sendo necessário compreendermos as novas espacialidades atreladas às antigas na qual já é possível perceber a articulação entre política e religião nos próprios discursos que legitimam esta nova dimensão cultural do Estado.

A presença do nome de Siqueira Campos em um dos símbolos do Estado, como o Hino do Tocantins[4], junto ao de Joaquim Teothônio Segurado[5] é a objetivação de sua imagem, que, atrelada ao nome de um dos personagens da luta pela criação do Estado, trabalha a memória e o imaginário de uma coletividade e atribui significado e sentido à ideia de criação do Estado por Siqueira Campos, como o redentor de uma saga histórica que resultou na formação do Estado tocantinense. Para Moscovici,

nossas representações, pois, tornam o não-familiar em algo familiar. O que é uma maneira diferente de dizer que elas dependem da memória. A solidez da memória impede de sofrer modificações súbitas, de um lado e de outro, fornece-lhes certa dose de independência dos acontecimentos atuais (2007:78).

Mas Cosgrove vai um pouco além nesta leitura ao entender que a atribuição de significados é uma forma de produzir sentidos a uma imaginação coletiva. Para o autor “ao atribuir significado ao mundo do presente, a imaginação constrói narrativas que juntam o passado e o futuro numa forma de síntese” (2000:48). Entendemos que a aproximação dos universos simbólicos existentes em torno de Joaquim Teothônio Segurado e Siqueira Campos seja uma forma de construir as narrativas que reatualizam o passado e legitimam os discursos criacionistas de um presente marcado pela articulação entre política e religião na formação de um novo espaço de representação: o espaço de representação tocantinense, agora emancipado do Estado de Goiás.

Mas qual o lugar das representações sociais em uma sociedade? Se a ancoragem e a objetivação atuam no sentido de construir as representações sociais, que lugar elas ocupam após sua formação? Moscovici (2007) explica que esse lugar era determinado pela distinção entre uma esfera sagrada e outra profana. Enquanto a primeira se restringia ao campo da veneração, distante das atividades humanas, a segunda dizia respeito às atividades triviais e utilitaristas da sociedade humana. Entretanto, esse quadro mudou. Agora, a distinção que implica apontar os lugares das representações sociais em nossa sociedade divide-se em universos consensuais e universos reificados.

No universo consensual, o ponto central e de convergência das representações sociais é o ser humano. Ele é o centro do universo, o ponto comum entre todas as coisas. Para Moscovici, no universo consensual a sociedade caracteriza-se por ser uma criação visível e contínua repleta de sentidos e finalidades que possuem uma voz humana e que tanto age como reage como um ser humano. No universo reificado, por sua vez, a sociedade atua como sistema de entidades sólidas e invariáveis que se caracterizam por serem indiferentes às individualidades e não possuírem identidades. E o autor vai além disso: pelo fato de essa sociedade no universo reificado ignorar a si mesma e às suas criações, ela os observa apenas como simples objetos isolados, sem uma aproximação ou mesmo relação, como pessoas, ideias, ambientes e atividades. Entretanto, ambos os universos referem-se a diferentes modos de produção do conhecimento e ocupam um lugar diferenciado no processo de construções e atribuições de significados à coletividade.

Segundo Moscovici,

o contraste entre os dois universos possui um impacto psicológico. Os limites entre eles dividem a realidade coletiva, e, de fato, a realidade física, em duas. É facilmente constatável que as ciências são os meios pelos quais nós compreendemos o universo reificado, enquanto as representações sociais tratam com o universo consensual. A finalidade do primeiro é estabelecer um mapa das forças, dos objetos e acontecimentos que são independentes de nossos desejos e fora de nossa consciência e aos quais nós devemos reagir de modo imparcial e submisso (...) As representações, por outro lado, restauram a consciência coletiva e lhe dão forma, explicando os objetos e acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a qualquer um e coincidem com nossos interesses imediatos. (2007: 52)

Dessa forma, fica clara a distinção entre esses dois universos que definem os lugares das representações sociais em uma sociedade: a perspectiva consensual estabelece uma sociedade formada por grupos de pessoas iguais e livres com competência, inclusive, de falar em nome do grupo. Entretanto, isso implica um conjunto de normas estabelecidas que devem ser preservadas e cumpridas por todos. O fato de cada um poder expressar suas posições implica a utilização de discursos, de conversações, realizados em locais públicos de encontro, no qual cada um (seja político armador, educador, sociólogo, entre outros) pode expressar suas próprias opiniões, revelando seus pontos de vista acerca de uma dada realidade O universo consensual é institucionalizado em clubes, associações, bares, igrejas, na rua, enfim, lugares nos quais se pode atribuir uma realidade sonora àquilo que pensamos e que nos aproxima dos demais por meio da fala, da construção de uma linguagem comum a todos.

A criação do Estado do Tocantins habita, de certa forma, o universo simbólico dos sujeitos. Por meio das falas, da objetivação dos pensamentos através da linguagem, identifica-se a construção e a institucionalização de um discurso que atribui a Siqueira Campos o papel do criador do Estado, do legitimo herdeiro de uma luta iniciada 179 anos atrás. Sua condição de criador do Estado expressa os meios pelos quais ele personifica em si mesmo a figura do Estado e, por meio dela, elabora um espaço de representação no universo consensual do imaginário popular, onde se articulam os mitos políticos com o discurso criacionista de uma nova unidade da federação brasileira e constitui um amplo cenário no qual a identidade cultural tocantinense e seu consequente espaço de representação torna-se um objeto complexo a ser analisado em sua totalidade.

Isto porque os universos simbólicos difundidos pelos homens em suas relações cotidianas para dar sentido à existência por meio de gestos, palavras, mitos e símbolos recorrem aos fatos culturais para serem produzidos e reproduzidos constantemente no imaginário social de uma coletividade e são produtores de suas identidades culturais e delimitam seus territórios de existência. Nesta perspectiva, Claval destaca a importância da análise da ação do Homem no processo, seus universos cognitivos e o papel de suas representações que resultam na produção de seu próprio universo cultural e de seus espaços de representação. Segundo o autor,

isto implica que se leve em consideração o papel do corpo e dos sentidos na experiência humana, os recortes da realidade física e social pelas pessoas, a riqueza da imaginação que dá sentido às geografias as mais diversas – a experiência do espaço, e que se explore a maneira pela qual se constituem as identidades e os territórios. (CLAVAL 2001: 43)

A perspectiva do universo reificado nos apresenta uma sociedade vista como sistema de diferentes e distintos papéis e classes que expressam as desigualdades inerentes a ela mesma. O Estado em si, enquanto instituição, atua como um universo reificado. Essa reificação encontra-se nos discursos oficiais e nos monumentos instaurados com a intenção de construir um espaço de poder. Sua natureza nos impõe uma fronteira de ação que nos limita em termos de atuação no interior dessa sociedade. As competências que adquirimos são as que nos habilitam a atuar em setores determinados da sociedade, como o médico, o professor, o comerciante, e assim por diante, e o trânsito de uma para a outra é extremamente complexo.

No universo reificado, a sociedade transforma-se em sistemas de entidades solidificadas que não permitem uma referência à individualidade nem tampouco a construção de uma identidade. O que importa é a exterioridade das instituições com relação à subjetivação dos indivíduos: ciência, política e religião são formas exteriores ao sujeito, que se torna acessível à eles apenas pelo universo consensual. Tanto o universo consensual quanto o reificado nos delimitam em termos de lugares a ocuparmos nas atividades humanas e na produção de conhecimentos e projeta sobre as realidades vividas diferentes representações sociais elaboradas pelos atores políticos.

Considerações Finais

Continuamos fabricando deuses, mitos e novos heróis. Evidentemente, os mitos modernos são elaborados sob novos olhares e perspectivas, contando com a contribuição dos recursos tecnológicos que a humanidade produziu até então e percorrendo as epopeias do mundo da arte plástica, cinematográfica, teatral, musical, científica, entre outras. Esses são apenas alguns exemplos de como essas manifestações alimentam o imaginário coletivo a partir de seus recursos simbólicos, os quais são capazes de produzir um capital e estabelecer relações de poder.

No caso tocantinense, essas relações ficam bem evidenciadas. A partir do recurso dos elementos discursivos, política e religião se misturaram na construção de um espaço de representação tocantinense. Nesse processo, a comunicação tem um papel decisivo. Sob diversos olhares e interpretações, as diferentes leituras foram sendo construídas e as representações criadas, alimentando um imaginário coletivo no qual se misturaram mitos e verdades, cada qual contado de uma forma diferente.

Desse modo, verificamos algumas possibilidades de objetivação do espaço de representação tocantinense:

  1. o espaço de representação tocantinense pode ser objetivado pelo universo consensual dos sujeitos por ser um espaço simbólico, o qual é alimentado por sua historiografia e suas re-atualizações;
  2. a objetivação desse espaço simbólico de representação também está na comunicação e nos discursos oficiais elaborados, estes últimos, por Siqueira Campos, que atribui a si mesmo o ato heróico de criação do Estado;
  3. a objetivação também se manifesta na edificação de monumentos. Compreendemos que a criação de Palmas, como uma referência à lendária Vila da Palma de Joaquim Theothônio Segurado, foi pensada como sendo o ato final da luta pela criação do Estado do Tocantins, a chave de ouro com a qual se encerrava a histórica luta libertária à moda da Revolução Francesa de 1789. O Palácio Araguaína, sede oficial do Governo do Estado, possui uma Via-Crucis pintada em azulejos, retratando a formação do Estado do Tocantins e apresentando Siqueira Campos como o grande mártir da epopeia tocantinense.

Alguns sujeitos se manifestam e dizem que, politicamente, Siqueira Campos abafou a participação de outros personagens e instituições nessa campanha pela criação do Estado do Tocantins e concentrou apenas em si o ato heróico que resultou na formação da mais nova unidade administrativa do país. Denominamos isso de uma contrarrepresentação, que merece um pouco mais de atenção.

Dessa forma, consideramos que a formação do Estado do Tocantins foi um exemplo de como podemos observar as construções de espaços de representações em torno de um ato político no qual o universo simbólico religioso contribuiu ao ter os seus recursos discursivos, imaginários e sagrados manipulados e utilizados em torno do objetivo que era criar uma nova unidade da federação. Uma obra surreal!

Bibliografia

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Notas

[*] Prof. Adjunto I do Curso de Geografia da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Campus Universitário de Araguaína (TO).

[1] Ver: http://to.gov.br/tocantins/criacao-da-comarca-do-norte---1809/69 (capturado em 07 jun 2009).

[2] Foi um dos principais articuladores pela criação do estado do Tocantins. Atuou na Comissão dos Estados da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, época em que ainda era Deputado Federal pelo estado de Goiás. Foi eleito o primeiro governador do Estado do Tocantins.

[3] Partido Democrata Cristão.

[4] Ver: http://to.gov.br/tocantins/hino-do-estado/744 (capturado em 07 jun 2009).

[5] Foi o primeiro ouvidor da Comarca do Norte (atual Estado do Tocantins), criada em 1809.