Os historiadores da religião no Brasil são unânimes em afirmar que vivemos em um tempo fecundo de produção historiográfica nesse campo de estudos. Os anos 1970 marcam o início desse processo de valorização do elemento religioso para a compreensão da História do Brasil, paralelamente ao movimento de renovação historiográfica em curso na Europa da época.
Na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, historiadores europeus ligados, por diferentes motivos, à Igreja Católica, no ambiente pós-Concílio Vaticano II, envidaram seus esforços no sentido de secularizar a História da Igreja, abrindo-a para as Ciências Sociais do mundo moderno. Esse movimento ecoou na América Latina e no Brasil com a criação da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina, a CEHILA, em 1973; do Centro de Estudos e Pesquisas de História da Igreja no Brasil, o CEPEHIB, em 1978, e da CEHILA-Brasil, em 1980. Esses centros contribuíram para aumentar o número de pesquisadores e as obras publicadas sobre a história da Igreja na América Latina e no Brasil, não obstante, os fortes vínculos destes centros com a Igreja Católica, sugerindo muita atenção para com uma nova instrumentalização da História pela Teologia.
Ao longo dos anos 1980 e 1990, as religiões e religiosidades consolidaram “seu” status de objeto historiográfico nas universidades brasileiras com a criação e o fomento de programas de pós-graduação, cursos, grupos de trabalho, seminários e congressos sobre a temática, encampados pelas traduções de trabalhos de referência internacional e pela publicação de parte da consistente e criativa produção historiográfica nacional. Em 1998, a Faculdade de Ciências e Letras de Assis (SP) reformulou o seu programa de pós-graduação em História criando a linha de pesquisa “Religiões e Visões de Mundo”, dando plena cidadania aos estudos históricos das religiões. No ano seguinte, nesse mesmo campus da Universidade Estadual Paulista, foi criada a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), que logo se filiou à International Association of History of Religions, inaugurando um novo tempo e um novo espaço para os historiadores profissionais das religiões. Nos primeiros anos do século XXI, esses desdobramentos continuaram e, hoje, as principais universidades e institutos de pesquisa do país têm um grupo dedicado a produção e a divulgação dos estudos nessa área.
O livro em resenha, Faces do Catolicismo, organizado pelos professores da Universidade Federal de Santa Catarina, Rogério Luiz de Souza e Clarícia Otto, insere-se na atual conjuntura de expansão e fortalecimento dos estudos acadêmicos das religiões. De fato, é esse comprometimento com a reflexão acadêmica que caracteriza os dezessete artigos da obra. O livro apresenta interpretações acerca do Catolicismo no alvorecer do século XX, aproveitando as comemorações ao redor do centenário de criação de várias dioceses em 2008 para discutir os processos históricos e os usos da memória. Mas, o conjunto de artigos não se detém apenas nas primeiras décadas do século XX, extrapola-as, lançando vários olhares sobre o Catolicismo ao longo do século passado e nos primeiros anos do atual. E, ainda que o foco de análise esteja voltado para o Estado de Santa Catarina, não há dúvida de que os artigos demonstram a pluralidade do Catolicismo no Brasil ao mapear suas diversas formas e dinâmicas históricas, rompendo com uma visão monolítica e linear da História da Igreja Católica no país.
Os dois primeiros textos foram escritos, respectivamente, pelos reconhecidos historiadores da Igreja Católica no Brasil, Riolando Azzi e Ivan Aparecido Manoel. Azzi aborda a presença da Igreja na sociedade brasileira e a formação das dioceses no período republicano. Destaca o processo de romanização da Igreja do Brasil, a partir de 1870, empreendido pela Cúria Romana que visava aumentar seu poder junto aos fiéis em um cenário cada vez mais secularizado. Para se fazer presente na sociedade brasileira, a Igreja romanizada ou ultramontana serviu-se da família, da educação e da ereção de dioceses. A fé ultramontana exigiu igualmente novas atitudes de seus adeptos e criou uma nova imagem de padre: a do homem do altar. O texto de Manoel também trata desse contexto e reafirma a ebulição por que passou a Igreja na virada do século XIX para o século XX e suas consequências na sociedade brasileira. Enfatiza que a Igreja assumiu a educação como estratégia para divulgar sua doutrina e como razão de sua existência social. Nesse sentido, assume o ideal educacional típico da modernidade, ainda que combata os ideais laicistas desse movimento. Manoel argumenta, outrossim, que a criação de dioceses e paróquias nas primeiras décadas do século passado era condição sine qua non para o estabelecimento da Ação Católica, daí a urgência em se erigir essas circunscrições eclesiásticas.
O terceiro texto é de Rogério Luiz de Souza, acerca da criação da diocese de Florianópolis em 19 de março de 1908. Pelo viés de uma história das sensibilidades, de inspiração foucaultiana, o autor problematiza as fontes e a historiografia pertinentes a partir da noção de “desejos”. Os poderes civil e eclesiástico da capital catarinense comungavam dos mesmos desejos de civilidade e de ser moderno. Esses projetos comuns do Estado Republicano e da Igreja Romanizada se encontraram no processo de escolarização. A Igreja, em sua face europeizada e mais próxima da população, recebe o aval do Estado em seus empreendimentos a ponto deste último fechar escolas públicas que colocavam em xeque as propostas dos colégios católicos. De fato, como assevera Élio Cantalício Serpa no texto seguinte, “combatendo a chamada ’ignorância religiosa’, o clero estava eliminando obstáculos à incorporação de homens e mulheres pobres às novas relações capitalistas de produção” (p. 83). Em sua análise das relações entre Igreja e Poder na Primeira República, Serpa retoma o contexto político da romanização do Catolicismo no Brasil e explicita os novos formatos e as novas modalidades de alianças entre o Estado e a Igreja nas primeiras décadas do século XX.
O quinto artigo, de Clarícia Otto, segue a direção dos dois trabalhos precedentes. Otto pretende investigar o papel dos franciscanos na história da educação em Santa Catarina, concentrando-se na primeira metade do século passado. A autora enfatiza que os franciscanos tiveram tanta relevância na história da educação no Brasil quanto os jesuítas, apontando para a significativa presença dessa congregação em território catarinense, sobretudo no limiar do século XX, quando a educação mediou os enlaces e os combates entre o Estado, a sociedade civil e a Igreja. O estreitamento de laços entre a elite catarinense e a elite eclesiástica engendrou uma série de subsídios estatais a escolas católicas e ao estabelecimento oficial do ensino religioso nas escolas públicas em 1919. Além disso, Otto discute duas temáticas pouco abordadas: a da disputa entre escolas católicas e escolas de imigrantes, e, a da imposição do celibato para as professoras por parte da Igreja e do Estado em Santa Catarina.
Os três artigos seguintes tratam do que ficou consagrado como “Catolicismo popular”. Assim, Paulo Pinheiro Machado aborda as relações entre a Igreja, o Estado e os participantes do movimento do Contestado (1912-1916). Após caracterizar a religião da população catarinense da época, enfatizando ser o líder do movimento, João Maria, mais uma legenda do que um sujeito, destaca que apesar da presença dos franciscanos na região - o que impede a argumentação de um messianismo que brota da ausência do clero como na Canudos de Antônio Conselheiro -, desenvolveu-se, em razão da divergência de práticas e de discursos religiosos entre franciscanos e fiéis da região, um conflito simbólico e físico que teve um final trágico para os seguidores de João Maria. Na sequência, Sara Nunes trata da construção da crença nos “Irmãos Canozzi” na Serra Catarinense. O culto iniciou-se após a trágica morte de Ernesto Canozzi e de seu empregado Olintho Pinto Centeno na estrada que liga Lages a Porto Alegre. Como se nota, os dois não eram irmãos, contudo, as representações e as práticas devocionais locais, somadas à oralidade e à tradição popular, engendraram a crença no poder miraculoso dos “Irmãos Canozzi” cuja santidade advinha da morte trágica. O oitavo artigo do livro, de Michelle Maria Stakonski, analisa a expulsão de Salustriano Fernandes Nolasco, em virtude de emprestar alfaias litúrgicas a maçonaria, da Irmandade do Rosário de Florianópolis, em 1901. Stakonski serve-se do “caso Nolasco” para explicar as transformações na Igreja Católica com o recrudescimento do poder da Cúria Romana sobre as práticas religiosas no Brasil, estabelecendo um novo imaginário e impondo uma disciplinarização ímpar.
O nono artigo da obra em revista também é da autoria de Rogério Luiz de Souza. Retomando o objeto de sua dissertação de mestrado, defendida em 1996, Souza examina o papel da Igreja no “processo de nacionalização” entre 1930 e 1945. Após discorrer sobre o golpe de 1930 liderado por Getúlio Vargas, Souza afirma que os arcebispos D. João Becker, de Porto Alegre, e D. Joaquim Domingues de Oliveira, de Florianópolis, bem como o Cardeal do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, figuram como importantes personagens na legitimação do governo golpista e na execução das políticas decorrentes do novo regime. Enquanto o cardeal Leme sempre é lembrado e alocado no primeiro plano desse processo, os outros dois arcebispos sulistas são relegados. De fato, o historiador José Oscar Beozzo já apontara para esse fato em texto clássico no qual considera que D. Becker foi mais importante para a consolidação do golpe de Vargas do que o próprio D. Leme, afinal, foi D. Becker que garantiu à Cúria Romana e aos órgãos internacionais que a ruptura constitucional efetivada por Vargas não tinha índole comunista. Souza, por sua vez, investiga as ações de D. Joaquim Domingues de Oliveira. Para Souza, esse prelado foi um verdadeiro arauto da nacionalização. De mãos dadas com o poder estatal, D. Joaquim proibiu os padres de sua paróquia de utilizarem idiomas estrangeiras e manifestarem apoio a quaisquer ideias que colocassem em perigo a ordem social. Por outro lado, a ajuda aos seminários, locais de formação dos sacerdotes, foi considerada uma atitude patriótica. Nas cerimônias religiosas era comum esperar o bispo com a bandeira nacional em punho, dando vivas à Igreja e à Nação. Por fim, afirma que a brasilidade foi, em grande parte, engendrada pelas balizas morais do tradicionalismo cristão.
No décimo artigo, Souza continua a discutir o papel da Igreja na sociedade brasileira, agora se detendo no período de 1945 a 1964. Ele problematiza as relações entre a ética católica e o capitalismo no meio rural de Santa Catarina. No contexto do “desenvolvimentismo” brasileiro, a Igreja Católica se envolve na questão agrária, legitimando seu lugar social e atuando segundo a perspectiva da moralidade do homem do campo em contraposição ao ateísmo ou indiferentismo do homem da cidade. Nesse processo, urge destacar que o governo estadual confia à Igreja o trabalho de implantação de projetos de modernização do campo em virtude de os trabalhadores rurais confiarem mais nas pessoas da Igreja do que nas do Estado, enquanto a Igreja procura estabelecer o seu modelo católico de desenvolvimento agrário baseado na doação estatal de terras e de subsídios agrícolas, como aconteceu em Missal, no Paraná, sob a égide de D. Geraldo Sigaud, bem diferente do Movimento de Natal.
A seguir, Alceu Kaspary avalia o discurso da Igreja em Florianópolis contra João Goulart na conjuntura do golpe militar de 1964. Por adotar uma política independente dos EUA, defender reformas sociais e aproximar-se do povo, o governo Goulart representou uma ameaça para as elites civis e eclesiásticas. O discurso do “diabo do comunismo” recrudesceu e foi ativamente utilizado pela Igreja. Em Santa Catarina, a Arquidiocese de Florianópolis encampou ações semelhantes às marchas pela Família e Propriedade, como a da Campanha da Mulher pela Democracia. Nesta, as mulheres saíam às ruas com terços, rezando e anunciando o perigo iminente do comunismo. Essas ações sacralizaram a oposição a Goulart e preparam o caminho para a execução e a aceitação do golpe de 31 de março de 1964.
Os últimos seis artigos contemplam múltiplos aspectos do Catolicismo em Santa Catarina na passagem do século XX para o século XXI. O décimo segundo, de Altamiro Antônio Kretzer, aborda as práticas disciplinadoras do seminário de Azambuja, em Brusque. Interrogando os regimentos do seminário pelo referencial de Bourdieu, Certeau e Foucault, Kretzer propõe uma interpretação da formação seminarística, em seus ritos e espaços, como formação disciplinadora de pensamentos e gestos segundo as tensões vividas pela Igreja em determinado contexto. No artigo seguinte, Camilo Buss Araújo trata das relações entre trabalhadores e Igreja no período 1945-1992. Destaca, outrossim, que os estudantes de Serviço Social de Florianópolis, entre os anos 1950-1970, elaboravam seus planos conforme os princípios do Serviço Social e da Doutrina Social da Igreja, que via nos pobres não sujeitos, mas objetos de caridade dos mais abastados. Aborda os diferentes significados e projetos da Igreja e da comunidade acerca das questões sociais e do movimento popular. Já José Adilçon Campigoto examina, no décimo quarto artigo, a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santa Catarina, em novembro de 1977. Campigoto reitera que a criação da CPT pode ser considerada um divisor de águas na história da Igreja Católica em Santa Catarina na medida em que extrapola as balizas teológicas clássicas ao enfatizar as questões estritamente sociais e ao conceber a Igreja como servidora dos pobres. Era o momento forte de implantação da concepção libertadora do Catolicismo em Santa Catarina que fez com que vários posicionamentos da Igreja, como em Contestado, fossem revisitados e repensados.
Os artigos de Caroline Jaques Cubas e de Clarice Bianchezzi avaliam o papel das mulheres na Igreja. O texto de Cubas trata da vida religiosa feminina a partir das experiências de formação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Cubas destaca as transformações do papel social e religioso das freiras ao longo do século XX. De fato, no início do século passado as freiras deixaram de ser apenas contemplativas e enclausuradas para assumir o apostolado, sobretudo na área da saúde, em hospitais, asilos etc. Nas últimas décadas, as religiosas passaram a viver uma encruzilhada profissional em virtude da necessidade de se especializarem na área de atuação e na espiritualidade de sua congregação. Uma situação que desafia a Igreja e revela os destinos mistos do papel das freiras e das mulheres na sociedade brasileira. Ainda nessa direção, Bianchezzi examina a ruptura efetivada por um grupo de freiras das Irmãs da Divina Providência, que criou uma nova comunidade, a Fraternidade Esperança, com o intuito de executar ideais evangelizadores mais consoantes com os tempos atuais, isto é, de abertura ao outro, de apostolado, sem a reclusão e o autoritarismo conservador das superioras. Por fim, o décimo sétimo artigo do livro em resenha, de Rangel de Oliveira Medeiros, analisa, pelo viés da teoria do mercado religioso, um campo de disputas em Santa Catarina envolvendo os pentecostais e os carismáticos. A partir de duas histórias de vida, Medeiros retoma os percursos desses grupos religiosos no Estado e aponta para a relevância destes no processo de subjetivação dos fiéis.
Poder, escolarização, dominação, libertação, subjetivação, ruptura, continuidade, acordos, disciplina, desejos, enfim, vários temas e motes são apresentados e examinados ao longo dessa obra que valoriza a dimensão plural do Catolicismo em suas várias formas e dinâmicas históricas, desde uma séria reflexão acadêmica sobre a Igreja Católica no Brasil.
[*] Mestre e doutorando em História: Religiões e Visões de Mundo pela UNESP/Assis. Docente de História do Brasil e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em História das Religiões na Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus Jacarezinho.