FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006. ISBN 85-268-0741-2, 368 p.

por Ênio José da Costa Brito[*] []
No período colonial: “Falar da Bahia era falar do Recôncavo, e este foi sempre sinônimo de engenhos, açúcar e escravos”. (Stuart Schwartz)

A percepção da força analítica das novas vertentes abertas pela historiografia atual requer alguns pressupostos, entre eles o de superar a radical ruptura entre a “escravidão” e a “liberdade”. A historiografia até recentemente considerou a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, como divisor de águas, isto é, via nela o fim da escravidão e o início da liberdade para os escravizados.

Estudos recentes têm constatado o nexo entre estratégias, costumes e identidades gestadas no pré-Abolição e projetos individuais e coletivos no pós-Abolição. Laços de solidariedade e redes familiares tecidas entre escravos no período da escravidão são reiterados no pós-Abolição.

Historiadoras e historiadores têm se dedicado a reconstituir “trajetórias” individuais e familiares de libertos para desvendar seus projetos de vida, suas visões de liberdade e do trabalho.

Encruzilhadas da liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), de Walter Fraga Filho, ilustra bem essa tendência. Na apresentação, o autor enfatiza: “sustento que os recursos materiais e simbólicos das comunidades, formados durante a escravidão, foram fundamentais para a concepção de estratégias de sobrevivência após o fim do cativeiro, sobretudo quando os ex-escravos buscaram alargar alternativas de vida dentro e fora dos antigos engenhos” (pp. 25-26).

A obra é composta por oito capítulos, articulados em três núcleos, o primeiro formado pelos capítulos primeiro, segundo e terceiro, que apresentam uma fotografia da população escrava dos engenhos nos últimos anos de escravidão, sinalizando para focos de tensão; o segundo congrega os capítulos quarto, quinto e sexto, nos quais se examinam de perto os conflitos, tensões e negociações que aconteceram no pós-Abolição. O foco das tensões incide nos direitos e recursos dos ex-escravos; os capítulos sétimo e oitavo compõem o terceiro núcleo, no qual se discute as complexas relações entre ex-senhores e ex-escravos que livremente permaneceram nos engenhos.

Tempos de mudanças

Nos últimos anos do século XIX, o Recôncavo Baiano, densamente povoado e até então economicamente sólido graças à presença de inúmeros engenhos, começou a sentir os reflexos da crise açucareira e das mudanças institucionais que ocorriam no país. A região contava com escravos crioulos que, ao longo dos anos, tinham constituído família, tecido uma extensa rede de relações, enfim, criado estratégias de sobrevivência. “Além do trabalho no ganho, na criação, caça e pesca, os escravos podiam produzir a própria subsistência em pequenas parcelas de terras” (p. 42).

Com a diminuição gradativa do número de escravos na região, crescia a preocupação dos senhores. Para contrabalançar, contratavam migrantes, alugavam trabalho escravo e remuneravam o trabalho extra, além de demonstrar generosidade distribuindo alimentos e roupas entre seus cativos.

Entre os “roceiros cativos” cresceu um sentimento de direito sobre as roças, gerador de conflitos e expectativas de liberdade. Na década de 1870 e 1880, o questionamento do domínio senhorial cresceu tanto entre os escravos quanto no campo jurídico. “As leis emancipacionistas que ampliaram as possibilidades de alforria, a perda de legitimidade da escravidão e a crescente influência do abolicionismo combinaram-se e interagiram de variadas e imprevisíveis maneiras com as iniciativas dos escravos”, relembra o autor (p. 56)

O assassinato de João Lucas do Monte Carmelo, frade carmelita calçado, em 14 de setembro de 1882, no engenho do Carmo, ilustra bem as tensões e os embates vividos nos últimos anos da escravidão no Recôncavo Baiano e expõe, também, as pressões exercidas pelos escravos, deslegitimando a configuração hierárquica vigente.

Os depoimentos colhidos de pessoas livres mostram que frei João Lucas, na administração do Engenho do Carmo, pautava-se pela política do domínio senhorial vigente, combinando castigos e negociações. Os depoimentos colhidos dos escravos apontam para outras formas de repressão, como a privação do descanso dominical e a má dieta.

Os escravos envolvidos no assassinato de frei João Lucas foram condenados às galés perpétuas em 23 de março de 1884. A pena, no entanto, durou apenas quatro anos, pois, com a libertação, receberam indulto.

Na década de 1880, uma ampla malha comunicativa interligava as freguesias açucareiras do Recôncavo, deixando os escravos a par de tudo o que acontecia na província na esfera sociopolítica. As cidades, especialmente Salvador, viram crescer a participação popular no movimento abolicionista, que se radicalizava a cada dia. A reação dos senhores não tardou: para tentar conter a disseminação do movimento emancipatório e a agitação nos engenhos, eles se utilizaram de estratégias várias, como concessão gratuita ou condicional de alforrias, assim como a desqualificação dos abolicionistas.

Ao longo da década de 1880, a desobediência e a insubordinação cresceram, as fugas se intensificaram a tal ponto que, no final de 1887, aconteceram alforrias coletivas aos montes. “A alforria dos escravos, naquele momento, inseria-se numa estratégia política que buscava evitar o abandono das propriedades após a abolição”, confirma o autor (p. 114).

Os escravos acompanharam de perto os debates em torno do projeto de abolição definitiva da escravidão. A notícia da Abolição foi muito festejada por ex-escravos e abolicionistas, assustando as autoridades e ex-senhores. A leitura da correspondência de senhores de engenho deixa entrever que os inúmeros conflitos ocorridos no Recôncavo logo após a Abolição, envolvendo ex-escravos e senhores de engenho, desvelaram a maneira como os ex-escravos vivenciaram a liberdade e buscaram alternativas para sobreviver longe da grande lavoura, além de desnudar o projeto senhorial de reconduzi-los à condição de trabalhadores dependentes.

Entre os sentimentos e expectativas dos ex-escravos, pode-se indicar o forte desejo de distanciar-se do passado escravista, que se expressava em palavras e ações, consideradas “atrevidas” e “insubordinadas” pelos ex-senhores. Para estes, os egressos do cativeiro estavam contagiados pelo “entusiasmo”, “deslumbramento” e “embriaguez”, além de confundirem liberdade com igualdade. Velhas acusações emergiam contra os libertos, como a de não estarem preparados para a liberdade, de ser inclinados à indolência, à preguiça, aos vícios e às paixões.

Entretanto, “os projetos de liberdade e os esforços que fizeram para se distanciar do passado estavam fundamentados em experiências de lutas travadas contra a própria escravidão”, sublinha Filho (p. 140). Possuir terras era uma das antigas aspirações que lhes daria uma situação estável.

A repressão senhorial à luta dos escravos para se afirmarem como pessoas livres foi cruel, cerceando as atividades dos libertos que possibilitassem certa independência da grande lavoura, negando a posse de terras devolutas e destruindo pequenos assentamentos.

Os conflitos relacionados com os danos provocados pelo gado às lavouras, com a recusa ao trabalho e o cultivo das roças eram os mais comuns. Além disso, furtos e roubos cometidos por libertos, costume antigo do tempo da escravidão, aumentaram significativamente no pós-Abolição, gerando conflitos como o ocorrido no Engelho de Maracangalha, pertencente, desde 1878, a Muniz Aragão.

Enquanto os ex-senhores se preocupavam em garantir as bases da lavoura de cana simplesmente reabsorvendo os ex-escravos como trabalhadores dependentes, os libertos viam na pequena plantação de gêneros a garantia de subsistência e o acesso aos mercados locais, independentes dos controles senhoriais” (p. 203).

Os engenhos do Recôncavo, durante o século XIX, não conseguiram incorporar trabalhadores livres; assim, até às vésperas da Abolição, continuaram dependentes da mão de obra escrava.

Mudanças nas relações cotidianas

A Abolição acelerou os processos de mudança nas relações cotidianas nos engenhos. Os ex-escravos rejeitaram tudo o que relembrava o passado, o tempo de escravidão, como o ritmo de trabalho, a autoridade senhorial, a velha disciplina, as longas jornadas de trabalho, a recepção de rações diárias e o trabalho sem remuneração; os senhores, por sua vez, sentiram-se impotentes para resgatar o controle sobre os ex-escravos e embaraçados para negociar as condições de trabalho livre.

O tempo pós-Abolição foi marcado por intensas negociações voltadas para as novas relações de trabalho. Os ex-senhores jogavam suas fichas, em primeiro lugar, no figurino paternalista, depois nos projetos de imigração de trabalhadores europeus e asiáticos, e por fim nos “braços nacionais” para realizar a transição para o trabalho livre; os ex-escravos, com a experiência do cativeiro, tinham critérios para discernir o “justo” do “injusto” nos contratos de trabalho.

Alguns ex-senhores, frente ao fracasso da política paternalista e das negociações, adotaram medidas drásticas para manter os ex-escravos nas propriedades e no trabalho na lavoura de cana; outros favoreceram o acesso à terra e a vários benefícios. “Assim, no curso dos anos que se seguiram à abolição, os libertos buscaram ampliar as atividades independentes da grande lavoura de cana, cultivar gêneros de subsistência nas roças e vender o excedente nas feiras locais, diminuir o ritmo de trabalho, negociar melhor remuneração, enfim, forjar condições de vida que os distanciassem do passado de escravidão” (pp. 238-239).

No entanto, o que os escravos obtiveram ficou aquém do que desejavam; além disso, essas conquistas estavam sob ameaça permanente dos que detinham o poder e os meios de produção.

Que razões levaram os ex-escravos a permanecer nas propriedades? Como caracterizar essa permanência? Para responder, o autor recorre a listas de moradores internados no Hospital da Santa Casa de Santo Amaro (1906-1913) e aos registros de nascimento. Constata que, em geral, a mão-de-obra era do lugar, gente egressa da escravidão. Dado idêntico se repete para o Engelho da Cruz.

A compreensão da permanência dos ex-escravos nas fazendas passa pela percepção de uma lógica diferente daquela dos senhores. Para muitos ex-escravos, mudar era começar tudo de novo, deixando para trás vínculos comunitários e familiares, acesso à terra para plantar roças e outros benefícios. “O mundo dos engenhos não guardava apenas a memória dos dias difíceis da escravidão, era também testemunho do esforço incessante para conquistar espaços para cultuar deuses e santos” (p. 251).

Entre as razões de permanência pode-se apontar condições climáticas (a seca de 1888-1889), conjuntura econômica social e preconceito contra indivíduos saídos da escravidão. A permanência, porém, implicava em uma vigilância constante com relação à “proteção” e a ”autoridade senhorial”, que não podiam ser exercidas em bases escravistas; implicava, ainda, num controle das condições de trabalho e numa luta contra os padrões de domínio. “Ao recusarem a velha disciplina de trabalho, ao afirmarem a liberdade de circular à procura de melhor remuneração e de melhores condições de moradia e, principalmente, rechaçar os castigos físicos, os ex-escravos buscaram alargar as alternativas de sobrevivência” (p. 256).

Contudo, os ex-escravos cedo perceberam que a afirmação da liberdade, a luta para ser “bem tratados” e a resistência contra o racismo presente nas práticas cotidianas seria uma constante em suas vidas e nas de seus descendentes. Ao longo do cativeiro, os escravos constituíram suas comunidades lastreadas em relações de compadrio, solidariedade e amizade. A Abolição afetou a vida dessas comunidades.

O autor, ao esquadrinhar os registros de 1871, 1883 e 1887 dos escravos residentes no Engelho de Pitinga, constata a presença de famílias intergeneracionais e demonstra “que suas escolhas e decisões foram norteadas pelas vivências comunitárias e pelos laços familiares penosamente engendrados ao longo da vida escrava” (p. 283).

Tendo como referência essas comunidades, os ex-escravos e seus descendentes procuraram alternativas de sobrevivência. Vários desses núcleos territoriais constituídos por essas comunidades tornaram-se espaços de preservação de tradições culturais e religiosas. Os escravos que permaneceram nos engenhos ou na vizinhança dos mesmos eram associados, por pessoas livres, aos senhores dos engenhos ou ao seu passado escravista, apesar do diuturno esforço dos ex-escravos para se distanciarem do tempo da escravidão. Com o tempo, a terra para cultivar foi sendo dificultada, o que tirou dos mais jovens a condição de moradores, obrigando-os a se transformar em “trabalhadores alugados”.

A inserção dos ex-escravos no meio urbano, especialmente, em Cachoeiras, São Félix e Salvador, foi um dos caminhos percorridos pelos libertos para sobreviver e encaminhar a vida. “Para além dos temores das elites e das preocupações repressivas das autoridades policiais, é necessário pensar a movimentação geográfica do período a partir dos referenciais dos libertos”, observa Filho (p. 314). Os ex-senhores viam essa movimentação como “desorganização do trabalho”; os ex-escravos, como possibilidade de recomeçar a vida.

Registros cartoriais, a relação de entrada e saída do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro (1906-1911) e o livro de Matrículas de Criadas Domésticas de Salvador (1887 e 1893) ajudam o autor a entender as razões e significados dessa movimentação.

O trabalho feminino concentrou-se no setor doméstico, principalmente em Salvador, onde a Câmara, em l886, tomou medidas para regulamentá-lo. Os homens se voltaram para profissões urbanas autônomas e para o comércio ambulante.

Convite à reflexão

O leitor de Encruzilhadas de Liberdade é reiteradamente convidado a pensar nas experiências da escravidão e da liberdade dos ex-escravos. Reflexão que o leva a superar inúmeros equívocos, silenciados por estudos historiográficos, pautados por uma concepção que divide a história da escravidão em antes e depois da Abolição, estabelecendo um fosso, uma ruptura entre esses dois momentos.

Entre os muitos equívocos pode-se apontar o de que os ex-escravos estavam despreparados para a liberdade, que não possuíam aspirações próprias e eram incapazes de planejar ações mais orgânicas. Além disso, ao emergirem da escravidão sem freios morais, sem a noção de propriedade e sem vontade de trabalhar, entregaram-se à vadiagem.

Filho, com base numa consistente e rica documentação, retrata minuciosamente uma realidade diferente da citada acima. Percebê-la, no entanto, requer que o leitor abandone a lógica senhorial e adentre, pelos menos um pouco, na lógica dos libertos. Só assim será possível constatar que as percepções e expectativas eram diferentes entre libertos e ex-senhores.

Os libertos alimentavam uma esperança, tão presente na memória de seus descendentes, de recomeçar a vida podendo trabalhar onde, quando e quanto desejassem. Dispunham, para essa empreitada, de recursos materiais e simbólicos arduamente amealhados ao longo do cativeiro. O autor demonstra que “a experiência da escravidão e as expectativas de liberdade foram decisivas para os libertos definirem os limites do que julgavam condizente com a nova condição” (p. 229). Era o começo de uma permanente luta para os libertos e seus descendentes, luta que permanece atual, mesmo com os avanços realizados ao longo do século XX[1].

Encruzilhadas da liberdade acumula inúmeros méritos, o primeiro de trabalhar com uma quantidade de fontes primárias, que deixa o leitor fascinado. O autor sabe extrair delas o melhor e, o que é importante, apresentá-lo de modo cativante.

O segundo, de apresentar - implicitamente, pois não é essa sua intenção - um modelo para analisar esse momento constitutivo do país, o da passagem do trabalho escravo para o livre. Ao cobrir a ampla gama de expectativas e estratégias de libertos e ex-senhores, oferece as indicações necessárias para outros pesquisadores analisarem essa passagem em outras áreas do Império.

Filho deixa o convite, pois, está convencido de que “os movimentos sociais que ocorreram após a abolição estavam impregnados de sentidos e expectativas forjadas nos embates antiescravistas. Estranhamente, esse aspecto das tensões sociais do período ainda não foi objeto de estudos sistemáticos” (p. 351).

O terceiro mérito, de deixar entrever a diversidade que caracterizou a agricultura escravista no Recôncavo, sem, contudo, abrir a discussão. Diversidade visibilizada nas intensas relações entre uma agricultura volta para o abastecimento local e a de exportação. Questão examinada minuciosamente por Bert J. Barickman, no caso do Recôncavo, e por Manolo Florentino e João Fragoso para o Sudeste[2].

Nas palavras de Barickman, seu livro “investiga e analisa como a escravidão e a agricultura de exploração moldaram a produção e o comércio de gêneros de primeira necessidade no Recôncavo” (p. 30), demonstrando a presença de uma desenvolvida economia interna na Bahia.

O quarto mérito é o de contribuir com a consolidação de uma visão historiográfica sensível à diversidade e à alteridade, que desemboca numa revisão de certezas historiográficas tão arraigadas no imaginário nacional. Méritos que têm lastros teóricos e empíricos.

Ler Encruzilhadas da liberdade é ter o privilégio de reviver esperanças, dificuldades e lutas de homens e mulheres protagonistas do recomeço de uma nação que sonhou e ainda sonha com uma cidadania plena para todos os seus filhos e filhas.

Notas

[*] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e líder do Grupo de Pesquisa O Imaginário Religioso Brasileiro.

[1] O jornal “Folha de São Paulo” traz uma reportagem no Caderno Dinheiro em 01.02.2009 intitulada Corte de vagas afeta mais mulheres, jovens e negros. O desemprego, em tempo de crise, revela, sem a menor cerimônia, sua face preconceituosa. “No retrato do desemprego, cabe ainda um recorte por cor e raça: pretos e pardos, segundo o IBGE, eram a maioria ao final de 2008 - 52,4% dos 1.606 milhão de desocupados nas seis principais regiões metropolitanas em dezembro de 2008” (cf. Folha de São Paulo, Dinheiro, B 3).

[2] Ver BARICKMAN, Bert J. Um contraponto baiano. Açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2003; FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 - c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim Editora 1993.