O presente artigo descreve uma polêmica, ainda em curso, entre Howard Gardner, da Universidade de Harvard, psiconeurologista especializado no estudo da inteligência humana e Robert Emmons, da Universidade da California, Davis, neuropsicólogo interessado na investigação da religiosidade humana. O primeiro se tornou mundialmente famoso por sua teoria das inteligências múltiplas. Emmons, por sua vez, tornou-se conhecido por suas investigações sobre psiconeurologia e religião. Tomando as idéias e critérios de Gardner como ponto de partida de um discutido ensaio, ele tentou provar que se pode postular a existência de uma inteligência que ele, sem meias palvras, chama de "inteligência espiritual". A exigüidade do espaço e o objetivo desse artigo não permitem que eu entre na apresentação da teoria das inteligências múltiplas que constitui o pano de fundo da discussão aqui apresentada. Para melhor informação, remeto o leitor/a a dois textos fundamentais a respeito do que aqui será discutido. Ao livro de Gardner sobre as inteligências múltiplas[i] e ao ensaio de Emmons[ii], que deu origem ao debate público entre os dois e chamou vários outros especialista a se pronunciarem. A leitura desses textos, publicados em um número especial da revista "Zygon" me permitiu compreender melhor as razões que levavam Gardner[iii] a ser reticente quanto `existência ou não de uma dimensão "espiritual" da inteligência, mas também porque Emmons e outros, ao contrário, viam o termo "espiritual" como sendo o mais apropriado
Por razões que aparecerão ao longo do artigo, adoto aqui a expressão "inteligência espiritual/existencial". Como pedagoga estou convencida de que o adjetivo "espiritual" - que reconheço como polissêmico e carregado de ambigüidade - tem algo a dizer a quem se preocupa com a educação, pois esse é sempre alguém preocupado com o concreto das vivências dos alunos.
Para efeitos de clareza, dividirei o texto em duas partes principais. Na primeira falarei da proposta de Emmons firmadas em conceitos e propostas que são do próprio Gardner. Na segunda darei a palavra a Gardner que em parte rejeita e em parte aceita o que Emmons sugere.
1.1. No citado artigo [iv], Emmons defende, com cerrada argumentação, que a inteligência tem uma faceta espiritual, que pode e obedece a todos os critérios indicados por Gardnerdeve para ser assumida no espectro das inteligências múltiplas. Na descrição do que seja essa inteligência ele utiliza a expressão inglesa "Ultimate Concern". É uma palavra de difícil tradução. Tem ressonâncias com o que é considerado o supremo, o que está no fim e no fundo, o Último com U maiúsculo. Mas o termo poderia também ser traduzido por " o Primeiro". Algo assim como como o "Alfa" e o "Omega" da Bílbia cristã ou, em versão moderna, de Teilhard de Chardin. Trata-se de um envolvimento existencial denso de sentido e de valor com esse "princípio último". É uma forma inteligente de se posicionar e de se relacionar, teórica e práticamente, com esse Princípio Supremo. Para Emmons essa forma de inteligência possibilita ao ser humano estabelecer um contato íntimo não só com o que as religiões chamam de "o divino", mas consigo mesmo e com o mundo e os fatos da vida, encontrando nisto uma forma de realização cognitiva que merece o adjetivo de "espiritual". A experiência de compreensão da realidade propiciada por essa inteligência permite o estabelecimento de pontes que interligam e integram em um todo "espiritual" as motivações, as emoções e a inteligência.
A inteligência, segundo Emmons, exerce ainda importante importante na formação da personalidade. Esse papel toca três dimensões básicas: a dos conteúdos e sentidos, a da afetividade e a do desenvolvimento da personalidade e da pessoa ao longo da vida. O conhecimento da personalidade de uma pessoa ajuda a perceber como e porque os sentimentos, as aspirações, osobjetivos, os motivos e valores de uma pessoa se estruturam em um sistema hierárquico de pensamento, no qual muitos níveis podem ser ativados, em função das estimulações do ambiente. O nível espiritual faz parte e é central neste espectro aberto.
Assim, usando uma linguagem típica do empirismo, Emmons pensa que a inteligência deve ser definida como sendo o funcionamento da personalidade toda, funcionamento esse passível de avaliação e sempre associado à realização de objetivos culturais atados às condições e contextos e condições bem específicas.
Emmons, conhecedor que é das inúmeras definições emprestadas à "Inteligência", julga que, na acepção a ela dada por Gardner, o elemento central reside na capacidade adaptativa de encontrar soluções para os problemas, assim como esses são colocados pela cultura. Para tanto, a mente humana, dentro do princípio da minimização dos conflitos que podem surgir quanto aos objetivos, aumenta sua habilidade de enquadrá-los bem e de buscar a maior quantidade possível de informações no sentido de encaminhar a melhor solução. Essa é uma das principais razões por que o autor escolheu a Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner, cuja popularidade entre pedagogos é prova de sua praticidade, bem ao gosto dos norte-americanos. Para Emmons, os critérios elencados por Gardner são de fácil compreensão e oferecem pontos de apoio e um um cenário preciso para a discussão a respeito da a possibilidade, viabilidade e definição de uma Inteligência Espiritual.
1.2. Que entende Emmons com a palavra "espiritualidade"? Para ele a espiritualidade é um construto teórico de enorme riqueza e diversidade, que desafia definições fáceis e é de difícil identificação na vida das pessoas. Ele conceitua a inteligência "espiritual" desde dois aspectos distintos muito concretos: um que afirma a existência de um conjunto de habilidades e capacidades associadas à espiritualidade de grande relevância nas operações da mente humana; outro que considera as diferenças individuais dessas habilidades como sendo elementos centrais na constituição e na dinâmica da personalidade. Do acima dito se depreende que Emmons vê a espiritualidade com o mesmo pragmatismo que encontramos em Gardner. A espiritualidade é vista como sendo uma base ou coletânea de informações e conhecimentos que facilitam a adaptação a um ambiente. A inteligência espiritual, nessa mesma linha de raciocínio, conseqüentemente, consiste em um conjunto de habilidades e competências que fazem parte do conhecimento adaptativo que o ser humano tem da realidade que o cerca. O ser humano é um "expert" no pensar, resolver e encaminhar a problemática da vida. A espiritualidade, portanto, tem grande valor adaptativo para o ser humano e é por essa razão que se pode e se deve falar de uma "inteligência espiritual".A formação espiritual, nessa mesma perspectiva, consistiria fundamentalmente na construção de uma base de conhecimentos e informações relacionados ao sagrado. Ela seria uma fonte privilegiada de informações, tanto afetivas quanto cognitivas sobre o "transcendente" e o "divino". É por essa via que o ser humano aprende como seus interesses e aptidões espirituais podem ser processados no sentido de um tal conhecimento que transcende e confere significado. Alguém mais crítico poderia perguntar: É só isso?
Emmons sugere cinco habilidades como sendo os componentes operacionais que caraterizam a "inteligência espiritual" são cinco: a capacidade de transcendência; a habilidade de entrar em estados espiritualmente iluminados de consciência; a capacidade de investir em atividades, eventos e relacionamentos carregados com senso do sagrado; a habilidade de utilizar recursos espirituais para resolver problemas na vida e a capacidade de ser virtuoso e de se comportar efetivamente como tal. Ele busca demonstrar que essas cinco habilidades se inscrevem na linha dos critérios propostos por Gardner como necessários à inclusão de uma inteligência no rol das inteligências múltiplas.
Essa habilidade estaria ancorada em dois componentes centrais: a transcendência e o misticismo, assim como são usualmente definidos na literatura psicológica norte-americana. O núcleo dessa capacidade estaria na habilidade em se comprometer com formas extraordinárias de consciência. Repito, mais uma vez, que não devemos entender a transcend6encia de que fala Emmons a partir de conceitos teológico-filosóficos, o que sem dúvida, pode ser visto como um limite de sua teoria. Para Emmons, a transcendência implica, como diz a etimologia da palavra, um elevar-se acima ou um ir além do mundo físico e do cotidiano, para se colocar em um patamar qualitativamente mais refinado de percepção e de relacionamento com o divino, dentro de um quadro mais elevado da percepção de si próprio e do mundo circunstante.
Talvez para dar um respiro maior à sua linguagem pragmática, Emmons fala do misticismo, entendendo-o como um horizonte e uma experiência mais refinada da percepção da realidade última. A experiência mística tem a ver como uma iluminação sui generis da consciência, pois proporciona à pessoa um senso peculiar e direto de unidade no ser, um movimento de aproximação inefável do sagrado, no qual todas as fronteiras desaparecem e os objetos são plenificados, iluminados e ressignificados em uma totalidade. A pessoa imerge nesse todo inefável como uma parte integrante.
Com base nessas considerações e em suas observações , Emmons afirma que pessoas espiritualmente inteligentes costumam possuir uma habilidade maior para entrar nesses estados elevados de consciência e em outros estados místicos como o da oração contemplativa.
Emmons fala de uma outra característica da transcendência que tem que ver com a santificação. Essa última, para ele, significa colocar-se à parte para um propósito sagrado que tem em si algo de especial. ou divino. A santificação traz uma luz mais profunda para nossas ações, fazendo com que nossos objetivos e procedimentos passem a irradiar a mesma aura sagrada que está em sua origem. Ele propõe que a santificação seja vista não só como um estado de iluminação interior, mas também como especial capacidade que os iluminados ( os santos/as ) costumam desenvolver, no sentido de situar-se em contextos problemáticos, resolvendo os impasses e planejando ações específicas orientadas para soluções eficazes.
Essa visão instrumental da santidade - outro elemento de cunho cultural norte-americano --não elimina para Emmons as aspirações e estados intencionais que a pessoa tem quanto com os objetivos últimos centrados no divino. Ela pode, por essa razão, ser prática no encaminhamento de soluções dos problemas e experimentar um senso de comunhão, de plenitude e de sentido que lhe permite fruir uma unificação profunda da personalidade.
O quarto componente é a habilidade em utilizar recursos espirituais para resolver os problemas da vida. Situa-se na mesma linha do pragmatismo anteriormente assinalado. Essas habilidades são requeridas especialmente quando objetivos anteriores são abandonados e novos objetivos são adotados.
O quinto componente da inteligência "espiritual" se expressa na capacidade de comportar-se virtuosamente, ou seja, de relacionar-se com os demais e com as tarefas e responsabilidades da vida, da família, da profissão e do cotidiano de modo consistente com atitudes de gratidão, humildade, perdão e compaixão. Essas habilidades são cultivadas por meio de práticas e de iniciações pela via da instrução. São virtudes que possibilitam à pessoa adquirir uma excelência de comportamento e de personalidade que a distingue de outros.
Para qualificar a espiritualidade como uma forma de inteligência, o primeiro passo é verificar se todos os seis critérios elencados pela Teoria das Inteligências Múltiplas são devidamente preenchidos.
Para Emmons a Inteligência Espiritual se funda na evolução biogenética do comportamento e dos sistemas neurais. Ele julga haver uma influência genética hereditária nas atitudes religiosas. Gardner já havia demonstrado que as estruturas especificas do cérebro se conectam a diferentes tipos de inteligência, razão porque cada um desses tipos é isolável, como se observa com pacientes com danos cerebrais. Emmons, referindo-se a essa questão, diz que os cientistas já avançaram na investigação das bases neurais da experiência religiosa e mística, seja em seus substratos neurológicos, seja em suas alterações em casos disfuncionais, mas que resta ainda um caminho longo para ser percorrido. O que já se descobriu é assim suficiente para dizer que a Inteligência Espiritual é sustentável à luz desse critério neurofisiológico.
Outro critério é o da existência de algum suporte psicométrico para a Inteligência Espiritual. Emmons menciona vários e cada vez mais refinados inventários que medem os estados espirituais elevados. Salienta, além disto, que as investigações psicométricas revelam que as medidas da transcendência espiritual e das atitudes religiosas são estatisticamente independentes das medidas de inteligência geral.
Uma nova Inteligência, para Gardner, só pode ser acrescentada ao espectro das Inteligências Múltiplas se apresentar uma história desenvolvimental caracteristicamente definível. Ora, os indícios dessa evolução no caso da compreensão e interpretação religiosa do mundo pelos seres humanos está mais que documentada na história e na pré-história. É algo que se inscreve na própria afirmação e auto-compreensão de nossa espécie.
Outro critério de comprovação de uma nova inteligência é o da possibilidade de ela ser codificada em sistema simbólico. Ora, os sistemas simbólicos sempre exerceram papel absolutamente central nas religiões, seja nas chamadas primitivas, seja nas históricas. A experiência religiosa, em seu sentido profundo, tem nos símbolos seu melhor e talvez mais privilegiado veículo de expressão. Os símbolos e rituais religiosos são socialmente construídos e se distinguem, por sua linguagem e dinâmica psicológica, de outros sistemas simbólicos, exatamente por lidarem com significados últimos do homem.
A Inteligência Espiritual é altamente desenvolvida em certas pessoas. Emmons destaca como exemplos Ibn´Arabi, mestre sufi do século XII e S. Teresa de Ávila e S. João da Cruz, ambos místicos do século XVI. Poderiam ser citados exemplos contemporâneos como os de Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, Papa João XXIII e, no Brasil, da Irmã Dulce ou Chico Xavier.
Esse é o último critério da inteligência postulado por Gardner. Emmons sugere que a humildade típica de quem tem uma vida espiritual cultivada facilita uma avaliação realística de suas forças e fraquezas, sem exageros para cima ou para baixo. A Inteligência Espiritual confere grande habilidade na manutenção e realização dos talentos de alguém. A pessoa espiritualmente inteligente tem adequado senso de auto-aceitação; compreende e aceita suas próprias limitações e imperfeições e está mais livre da arrogância e de seu inverso, a baixa auto-estima. Tal pessoa se mostra flexível na busca de um equilíbrio harmonioso entre autoconceito, auto-integração e auto-regulação, logrando com suas práticas de meditação e contemplação ver-se mais facilmente como um todo.
Para Emmons, portanto, a Inteligência Espiritual satisfaz todos os critérios de Gardner. Complementando, ele assevera ainda que ela é uma forma de inteligência muito positiva, que traz inúmeros benefícios ao ser desenvolvida. Ao mesmo tempo, adverte contra o perigo de ela ser manipulada, tanto para o mal quanto para objetivos considerados nobres, mas eticamente dúbios. É evidente que podem surgir desequilíbrios nas condutas e ações religiosas, especialmente quando deturpadas ou alicerçadas em instabilidades emocionais e falhas de caráter ou na inabilidade em canalizá-las para direções humanamente construtivas.
Quando uma pessoa espiritualmente inteligente é capaz de harmonizar o terreno com o celeste, a Inteligência Espiritual é fator de crescimento positivo das pessoas e da sociedade humana.
Emmons, com seu conceito de Inteligência Espiritual, julga estar ampliando o conceito vigente de espiritualidade, pois lhe agrega, sentidos antes não associados à ela. Ao que tudo indica, como se verá mais adiante, há em Emmons certa ambigüidade conceitual no uso das duas palavras inteligência espiritual e espiritualidade.
Ele julga, no entanto, estar lançando as bases para uma fundamentação científica da espiritualidade, ampliando os campos de estudo da psicologia do desenvolvimento cognitivo e da personalidade, bem como contribuindo para uma extensão da Psicologia da Religião e da Teologia. A Inteligência Espiritual seria um antídoto ao intelectualismo agnóstico ou areligioso predominante nos meios acadêmicos, uma vez que abre perspectivas novas na discussão cientifica e no relacionamento entre fé e razão. A investigação sobre o processo de maturação espiritual traz uma contribuição original para o estudo dos processos e o funcionamento do conhecimento humano. Proporciona, além disto, um prisma novo para o diálogo entre espiritualidade e saúde integral. O entendimento do que é específico no espiritual tem conseqüências psicológicas, físicas e interpessoais. O uso inteligente da informação espiritual, por sua vez, contribui positivamente para o bem-estar emocional e social das comunidades, gerando melhor qualidade de vida para as pessoas.
A espiritualidade é um construto dinâmico. Passa espontaneamente à ação e dá às pessoas um contexto interpretativo que lhes possibilita negociar com vantagem as demandas da vida cotidiana. A espiritualidade está conduzindo a humanidade cada vez mais a uma apreciação positiva de suas expressões transculturais. Ela possui habilidades e competências que podem ser cada vez mais valorizadas nas diferentes maneiras de que se servem as culturas para expressar a experiência espiritual de nossa época.
As competências e as habilidades espirituais, sendo faculdades humanas, podem ser adquiridas, cultivadas e encorajadas. Ponderados sob um ângulo educativo, se deveria dizer, segundo Emmons, que o comportamento virtuoso e a maturidade espiritual têm grande potencial na formação de cidadãos produtivos para a sociedade e para a cultura. Para o mundo desumanizado de hoje, a espiritualidade tem elevado coeficiente de desejabilidade, mesmo que sua prática dependa de esforços estratégicos ainda para serem educacionalmente investigados.
Mesmo que a espiritualidade ainda seja negligenciada nas pesquisas científicas, ela pode ser debatida dentro de padrões de rigor e de objetividade, ao menos do mesmo nível exigido pela meio acdêmico quanto às demais formas de inteligência humana. O conceito de Inteligência Espiritual dá condições de cidadania científica à espiritualidade e suscita questões que possibilitam aprofundamento e enriquecimento especialmente estimulante para várias áreas das ciências da religião.
Emmons conclui, afirmando que uma definição mais precisa da Inteligência Espiritual ainda requer muita pesquisa e debate.
O teórico das Inteligências Múltiplas, como se insinuou antes, tomou posição em relação 1as teses e argumentos do professor da Universidade da california, Davis sobre a Inteligência Espiritual. Ante os argumentos de Emmons, Gardner faz considerações tanto positivas quanto negativas. Ele pensa que não se pode considerar a espiritualidade uma inteligência perfeitamente delineada; para ele é ainda prematuro dá-la como segura, pois as definições e critérios indicados por Emmons, além de ambíguos em pontos essenciais, não possuem suficiente embasamento na pesquisa para serem acatados como suficientemente comprobatórios.
Gardner começa sua apreciação ressaltando que Emmons tende a colocar juntos certos aspectos da espiritualidade e certas facetas da psicologia que deveriam ser considerados separadamente, uma vez que há vantagens em tratá-los como conceitos distintos um do outro[v].
No longo período em que a psicologia sustentou o valor e eficiência dos testes de inteligência, a maioria dos psicólogos considerava como válida a afirmativa bem conhecida de E. G. Boring, de que "a inteligência é aquilo que o teste afere". Assim, a inteligência seria uma capacidade inata e singular (geralmente identificada como o fator "g") e por isso de difícil alteração. Os psicólogos, portanto, poderiam medi-la desde o início da vida de um sujeito, por meio da administração dos chamados testes e do QI.
Nas duas últimas décadas, esse tranqüilo consenso foi rudemente rompido pelas inovadoras investigações no campo da neurociência, da ciência cognitiva, da antropologia e da própria psicologia. Aliem-se a tais fatores as pressões sociais que puseram a nu a insuficiência de tais conceitos.[1]
Para Gardner, a proposta de Emmons é razoável e é abordada de maneira plausível. Por isto, a sente-se na necessidade de retomar os principais pontos da análise de Emmons, indicando os aspectos com os quais concorda ou discorda.
Em primeiro lugar, considera muito útil distinguir bem as três conotações do conceito de "espiritual", indicado por Emmons. A habilidade em alcançar certos estados físicos, como na meditação e em outros experimentos de controle da consciência, envolve claro comprometimento fisiológico. Esses estados, contudo, dizem respeito ao controle sobre o próprio corpo e assim deveriam ser vistos como expressões corporais, ou seja, como pertencentes à inteligência cinestésica, uma das oito inteligêcnias múltiplas já analisadas por Gardner.
Um segundo aspecto da espiritualidade apontado por Emmons seria o de atingir ou alcançar alguns estados excepcionais de consciência. O indivíduo espiritual, nesse sentido, pode sentir-se "um" com o universo ou se perder em um estado oceânico, experimentando uma ligação especial com Deus. De novo, Gardner não duvida de que tais estados sejam genuínos, mas prefere que experiências "sentidas" não deveriam ser incluídas na definição de uma inteligência.[2]
Um terceiro aspecto é o da capacidade de levar adiante certos tipos de avaliaçõs comparativas ou computações. Foi essa capacidade que levou as distintas inteligências a evoluírem através dos milênios devido à desejabilidade de tais habilidades.
Ora, mesmo dando como válidos alguns argumentos de Emmons, Gardner, prefere chamar a de " inteligência existencial" aquilo que Emmons batiza de "inteligência espiritual". No mínimo isto evita equívocos.
"Parece-me que um aspecto, ou módulo, da mente pode ter evoluído para executar computações sobre elementos que transcendem a percepção sensória normal, talvez por serem muito grandes ou muito pequenos para serem diretamente apreendidas. Nomeei essa forma de inteligência de "existencial" porque ela parece aliada ao fato de nossa existência como indivíduos no cosmos e à nossa capacidade de nos estarrecermos diante de tal fato."[3]
Para justificar essa sua posição, ele acrescenta:
"A inteligência existencial se qualifica bem como uma inteligência à luz do oitavo critério, pois jovens de todo o mundo levantam as questões fundamentais sobre a existência - Quem somos? De onde viemos? Do que somos feitos? Porque morremos? E estas questões são capturadas em sistemas simbólicos tais como o mito, a arte, a poesia, a filosofia e a religião. Alguns indivíduos parecem precoces em suas capacidades de colocar tais questões cósmicas onde outros se prende às coisas mais mundanas. Há pouca evidência de tendências existenciais em primatas não humanos, mas nossos próprios antecedentes evolutivos, tais como os neandertalenses, evidenciam sinais de preocupação, se não "preocupações últimas", em seus rituais fúnebres."[4]
Ressalte-se, no entanto, que Gardner não esconde certa hesitação em proclamar essa nona inteligência, principalmente pela falta de evidências convincentes sobre estruturas e processos cerebrais dedicados a tal forma de computação.
Gardner[5] concorda com várias das propostas de Emmons, admitindo mesmo que essas enriqueceram seus conhecimentos. Destaca a sugestão de que o campo espiritual pode fornecer às pessoas um recurso útil à "solução de problemas", que é algo central na conceituação de inteligência em sua teoria das Inteligências Múltiplas. A noção de que as considerações espirituais podem "facilitar a solução de problemas" é para ele uma noção nova e provocativa; mas deixa algumas interrogações: quais são as formas pelas quais se pode mostrar que os recursos espirituais estão sendo descritos? Como são descritos esses elementos espirituais? Eles levam necessariamente a uma resolução de problemas melhor ou mais rápida, ou podem ser enganadores? Qual ou quais recursos podem substituir os espirituais? De uma forma breve, pode-se oferecer uma explicação computacional ou processual da invocação de recursos espirituais na formulação ou solução de problemas?
Gardner dá razão a Emmons quanto à possibilidade de serem ajuntadas as várias facetas da espiritualidade. Sugere que essa conjunção parece uma característica das inteligências. De fato, cada uma delas realiza operações centrais que são separáveis. São operações que, dada a natureza da experiência humana, tendem a florescer e a se organizar como totalidade. Assim, a inteligência musical transfere a sensibilidade à harmonia, ao ritmo, ao timbre e à composição geral; a inteligência interpessoal compreende o entendimento da motivação, a habilidade em trabalhar de forma cooperativa e a interpretação dos objetivos dos outros. Em cada caso, inicialmente, os indivíduos podem apresentar um aproveitamento maior em somente um desses componentes centrais; mas o funcionamento prolongado de cada uma tende a levar a um trabalho sempre mais conjugado desses componentes centrais.
Outra sugestão de Emmons, endossada por Gardner[6], é a que vê o campo das religiões como sendo construído de maneira que se concatenem as muitas facetas que constituem a espiritualidade. Acrescenta, ainda, que a atenção ao sagrado e a capacidade de demarcar certos aspectos da vida como sagrados, é aspecto importante, mas negligenciado no estudo da psicologia humana.
Gardner discorda de Emmons quanto à linha divisória entre o descritivo e o prescritivo. Emmons focaliza habilidades, como a humildade, sem levar em conta que certos indivíduos, que parecem ter tido forte Inteligência Espiritual, eram francamente anti-sociais, psicopatas ou, para usar uma palavra da moda antiga, maus.[7]
Outro ponto digno de crítica é para Gardner a argumentação usada por Emmons quanto à genética comportamental.[8] Traços da religiosidade, como a humildade, aparecem como sendo, em certa extensão, hereditários e isto é usado indevidamente para concluir pela existência de uma base cerebral e genética da espiritualidade. Há aqui, segundo Gardner, um salto indevido dos dados a conclusões sem fundamento.
Gardner julga esclarecedor que na discussão em torno da Inteligência Espiritual se faça uma distinção entre inteligência[9] e domínio[10]. Tal distinção ajudaria a analisar melhor os contextos em que se dá o sagrado. Tais contextos são diferenciados entre si, uma vez que os processos meditativos, que as religiões põem à disposição dos indivíduos para o exercício dessa suposta inteligência espiritual são muito diversificadas de cultura a cultura. Só raramente um indivíduo pode criar seu próprio domínio. Em uma análise mais detalhada, seria necessário considerar todos os vários domínios que cada cultura[11] põe à disposição dos sujeitos e sondar a extensão em que as várias inteligências são ou não trazidas à luz, na medida em que um indivíduo entra em contato e se aperfeiçoa em dado domínio. Quando se está atento a essa distinção, está-se menos propenso a confundir o que é modo de processamento com o que é atividade criativa do homem.
"A religião não se torna a característica definitiva da inteligência espiritual, mas ao invés, um de muitos domínios nos quais tal forma de inteligência pode ser usada. Fortes sentimentos existem no tópico geral da questão se há ou não uma inteligência espiritual; e, se é assim, melhor para delineá-la; nada indica que isso será facilmente alterado. Alguns desses fortes sentimentos provavelmente refletem profundos sistemas de crença. Eu sugeriria, no entanto, que as diferenças podem também refletir preferências pessoais de estilo."[12]
correlaciona com a rubrica espiritualidade: comportamento virtuoso, preocupação com o Gardner se define no campo intelectual como um "separador": não só gosta de fazer distinções, como acredita que o progresso intelectual se dá por meio de distinções corretas. Implicitamente ele está dizendo que vê em Emmons uma tendência oposta à sua, a de ser um "ajuntador", alguém propenso a descobrir relações entre itens que se situam em posições distanciadas.
Gardner se confessa surpreso com a grande quantidade de pontos que Emmons princípio último, intimidade com o divino, aspirações pessoais, visão de longo alcance, humildade e integração do conceito de si. São conceitos díspares e se todos se referem a um mesmo conceito central, então é preciso tratar de cada um em separado.
Outro ponto que causa perplexidade a Gardner é o termo inteligência em si. Esse conceito pertence mais propriamente ao campo da cognição e é correntemente conectado às formas de processamento de informação. Emmons, no entanto, escreve Gardner, é promíscuo no uso desse termo.
"Na medida em que fui lendo suas páginas de abertura, notei que ele vê a inteligência como ligada à motivação, às emoções, à personalidade e à moralidade."[13]
São conceitos que não devem ser descartados de uma discussão científica, mas é importante associá-los mais adequadamente entre si. Essa é uma empreitada impossível para quem busca apagar as distinções entre essas variadas dimensões psicológicas. O alargamento excessivo do termo inteligência e a não consideração de suas ligações primárias com a cognição o torna um cognato da psique humana e o transforma em guarda-chuva para todas as fantásticas dimensões da psique.
Eis a conclusão final de Gardner:
"Sou simpático a seu interesse em promover o estudo acadêmico da religião e acredito que seu próprio artigo contribui para esse valioso fim; no entanto o desejo de estimular uma linha de estudos não permite que se confunda análise com advocacia. É válido estudar a espiritualidade como uma inteligência, mas dizer apenas que tal enfoque pode iluminar sua natureza, encorajar mais estudos sobre a religião ou melhorar o lugar da religião no mundo não é, para mim, um argumento apropriado. Sei do que falo, pois meu próprio trabalho sobre múltiplas inteligências tem sido freqüentemente usado como justificativa para a educação artística. Acontece que sou um ferrenho advogado da educação artística, mas tive freqüentemente que explicar que não há tal coisa como uma inteligência artística."[14]
Em seu último livro encontra-se o último e mais definitivo posicionamento de Gardner quanto a uma forma de inteligência, que ele chama de existencial. Ela pode ser assim resumida.
Gardner se diz propenso a aceitar que se continue a discussão em torno de uma possível inteligência espiritual/existencial, mas não reconhece as razões até aqui aduzidas como suficientes para convencê-lo de sua existência. Ele escreve:
"Embora seja interessante pensar numa nona inteligência, não vou acrescentar à lista uma inteligência existencial. O fenômeno é suficientemente desconcertante e a distância das outras inteligências suficientemente grande para ditar prudência - pelo menos por ora. No máximo, estou querendo brincar, no estilo de Fellini, sobre as 8 ½ inteligências".[15]
Quanto aos tipos de vida espiritual Gardner reconhece três deles: o espiritual enquanto preocupação com questões cósmicas ou existenciais; o espiritual como a conquista de um estado; o espiritual enquanto efeito nos outros.
Aplicando seus critérios à inteligência do espiritual, Gardner diz que:
"a preocupação com questões primordiais parece ser o campo menos ambíguo do espiritual [...] se esta forma for aprovada, podemos legitimamente falar de uma inteligência existencial; do contrário torna-se desnecessária uma reflexão sobre a área da espiritualidade".[16]
Gardner vê como a qualidade essencial dessa inteligência:
"A capacidade de se situar em relação aos limites mais extremos do cosmos - o infinito e o infinitesimal - a capacidade afim que é a de se situar em relação a elementos da condição humana como o significado da vida, o sentido da morte, o destino final dos mundos físicos e psicológicos e experiências profundas como o amor de outra pessoa ou a total imersão numa obra de arte [...] (que aqui se valoriza) [...] é o potencial de uma espécie para se envolver com preocupações transcendentais, uma capacidade que pode ser despertada e desenvolvida sob determinadas circunstâncias."[17]
Do acima exposto pode-se concluir que há entre os dois autores muitos pontos em comum, mas que ambos têm estilos intelectuais diversos: um é um "separador" inveterado, enquanto outro é um ávido "ajuntador". O objetivo final de ambos, porém, guarda semelhança. Os dois desejam que as investigações sigam adiante e que seja revigorada a discussão subseqüente desse assunto.
Gostaria de concluir reafirmando o que tentei comprovar em minha dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, defendida na PUC-SP. Não tenho como reproduzir aqui toda minha argumentação que o leitor/a poderá encontrar no texto da disssertação a ser brevemente publicado. Sinto-me pessoalmente inclinada a julgar que, no fundo, o "Existencial" de Gardner tem tudo que ver com o que outros chamam de "espiritual". Donde minha propensão a designar essa forma de inteligência como sendo "espiritual/existencial". Mais que um ajuste entre posições conflitantes, o que busco com essa designação é dizer que, no fundo, o que os "religionistas" dizem ao aceitar o adjetivo "espiritual" em, no que é fundamental, muito - não tudo ! -- a ver com que os cientista "naturalista" chamam de "existencial. A questão apresentada nesse artigo nem de longe chegou ao fim. Mas um início de acordo parece já existir. Por sua importância o debate merece ser acompanhado. Talvez nunca chegaremos a um acordo definitivo popis, por baixo, há outras questões de ordem epistemológica, hermenêutica, existencial e - last but not least - religiosa que ultrapassam o que os psicólogos da religião podem iluminar desde sua ciência.
[1] A neurociência demonstrou a natureza modular da organização do cérebro (e presumivelmente também da mente); a ciência cognitiva investigou a natureza do conhecimento 'expert' em diferentes domínios; estudos inter e trans-culturais revelaram atitudes e análises da inteligência bem diferentes que se desenvolveram pelo planeta; os psicólogos desenvolveram teorias competitivas da inteligência; a crítica social das possíveis induções embutidas dentro dos instrumentos psicométricos colocou a "Instituição Inteligência" na defensiva, talvez pela primeira vez no século.
[2] Para Gardner tais sentimentos submetem, não são intrínsecos à inteligência atual. Três indivíduos podem manifestar exatamente a mesma proficiência na área da matemática. O primeiro descreve um sentimento de unidade com o cosmos; o segundo relata sentimentos de ansiedade e dor, seguidos de um momento de relaxamento quando uma prova é atingida; o terceiro não relata qualquer sentimento distintivo, seja qual for. Na minha análise, todos os três estão expressando sua inteligência matemática equivalentemente; eles se diferem nos estados de sentimento, os quais são mais bem considerados fora do campo intelectual.
[3] Cf Gardner H., Commentary: A Case against Spiritual Intelligence, in: The International Journal For The Psychology Of Religion, Volume 10, number one, 2000, p .6
[4] Ibid. p .6
[5] Ibid. p .10
[6] Ibid. p .11-12.
[7] Cita o livro Pés de Barro, onde ao autor Anthony Storr, ilustra a dificuldade sem e distinguir entre aqueles que usam sua inteligência espiritual de uma forma criativa, em oposição aos que a utilizam de maneira destrutiva.
[8] A genética comportamental, diz Gardner, deveria ser invocada com o maior cuidado no campo humano. As técnicas de genética comportamental são valiosas só quando lidam com dados obtidos sob condições estritamente controladas, como é o caso do estudo de plantas ou de gerações de animais. No entanto, tais estudos são proibidos com seres humanos. Até os estudos mais confiáveis com humanos - aqueles que comparam gêmeos idênticos com gêmeos fraternos, ou gêmeos idênticos mantidos juntos com gêmeos idênticos separados - não satisfazem a necessidade de experimentos controlados.
[9] Uma inteligência é um potencial biológico para analisar certas formas de caminhos, e estas são ativadas ou não, dependendo da cultura onde se vive e do sistema de valores que se tem.
[10] domínios, ou disciplinas, ou campos, são atividades organizadas na cultura onde se pode graduar os indivíduos em termos de suas capacidades relativas.
[11] desde o judaísmo até o xamanismo e a yoga
[12] Cf Gardner, A case against Spiritual Intelligence, in: The International Journal For The Psychology Of Religion, Volume 10, number one, 2000, p.12
[13] Ibid. p.13
[14] Ibid. p.13-14
[15] GARDNER, H. Inteligência: Um Conceito Reformulado. Editora Objetiva. São Paulo - SP, 2000 p. 85
[16] Ibid., p. 79.
[17] Ibid., p.80
[i] Gardner, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Rio de Janeiro, editora Objetiva, 1995.
[ii] Emmons, Robert A. Is Spirituality an Intelligence? Motivation, Cognition, and the Psychology of Ultimate Concern. In: The International Journal For The Psychology of Religion, Volume 10, number 1, 2000. p. 3-25.
[iii] A abertura de Gardner a esse tema passa por uma certa evolução. O espiritual da inteligência é simplesmente ignorado em seus escritos anteriores aos anos 90. Em dois livros de meados daquela década [O Verdadeiro, O Belo e o Bom. Os princípios básicos para uma nova educação. Rio de Janeiro, Objetiva, 1999 e Inteligência. Um conceito Reformulado, Rio de janeiro, Objetiva, 2000] ele mesmo toma a iniciativa de abordar a questão em primeira pessoa, mostrando o percurso e o raciocínio teóricos que o levaram a ser cautelosonesse ponto que ele não ignorava, mas em relação ao qual tinha dúvidas. Em 1999 foi editado um outro livro de Gardner [Mentes Extraordinárias: perfis de quatro pessoas excepcionais e um estudo extraordinário em cada um de nós. Rio de Janeiro. Editora Ciência Atual/Rocco, 1999] no qual o autor faz alusões diretas sobre o assunto, falando sobre " a extraordinariedade espiritual"de personagens históricos famosos (cf p.133ss.)
[iv]
[v] Aqueles aspectos da espiritualidade que tem a ver com a experiência fenomenológica ou com valores e comportamentos desejáveis deveriam, segundo Gardner ser avaliados externamente à esfera intelectual. Um resíduo concernente à capacidade de lidar com assuntos existenciais poderia se qualificar como uma inteligência. O empreendimento geral de Emmons é, para Gardner, plausível. Levanta assuntos intrigantes como, por exemplo, o da sacralidade, o da resolução de problemas, o do potencial unificante da religião e outros que merecem investigações posteriores.