Novas formas de legitimação da economia: desafios para ética e teologia[1]

Prof. Dr. Jung Mo Sung[*] []
PUC-SP

Já é um fato conhecido que o discurso dominante hoje apresenta o capitalismo contemporâneo como um sistema social ao qual não há alternativa. Os neoliberais e outros pensadores pró-capitalistas elaboram as mais diversas teorias para dizerem a mesma coisa: não há alternativa ao sistema de mercado capitalista. Contudo, este tipo de discurso não é novidade na história. Todos sistemas de dominação, seja um império ou um regime autoritário, se apresentam como um modelo social sem alternativa. Isto porque eles seriam uma expressão da vontade divina, da evolução da natureza ou da ordem racional da história, ou simplesmente porque todas outras alternativas seriam inviáveis. O que varia é somente a forma concreta com que um sistema social dominante se legitima como sendo "sem alternativa".

Atualmente, a apresentação do capitalismo, de corte neoliberal, como um modelo sem alternativa se dá em torno da articulação de dois conceitos fundamentais: a auto-organização e evolução. A legitimação e a explicação do sistema de mercado em torno desses dois conceitos não é, na verdade, uma idéia recente. Paul A. Samuelson, por exemplo, no seu livro Introdução à economia - um dos livros-manuais mais influentes e utilizados na formação de economistas do século XX, cuja primeira edição é de 1948 -, diz que "um sistema competitivo é um esmerado mecanismo para a coordenação inconsciente através de um sistema de preços e mercados, um dispositivo de comunicação visando a combinar o conhecimento e as ações de milhões de indivíduos diversos. Sem contar com uma inteligência central, resolve um dos mais complexos problemas que se possa imaginar, envolvendo milhares de variáveis e relações desconhecidas. Ninguém o projetou. Ele simplesmente evoluiu e, como a natureza humana, está sofrendo modificações, mas passa pelo primeiro teste de qualquer organização social: tem condições de sobreviver."[2]

Neste texto, apesar de não serem explicitamente utilizadas, aparecem claramente duas idéias: a de auto-organização e a de evolução. Primeira, a noção de coordenação inconsciente dos conhecimentos e ações de milhões de indivíduos diversos que atuam no mercado remete diretamente à noção de auto-organização, ou à teoria da ordem espontânea, que tem uma longa tradição na história do pensamento social, mas que só adquiriu força a partir da década de 1970. A teoria da ordem espontânea está baseada na noção de que a maioria das coisas que produzem benefícios gerais em sistemas sociais ou que possibilitam a reprodução destas não está sob o controle direto das pessoas ou de planos conscientes.

Segunda, a afirmação de Samuelson de que o sistema de mercado "simplesmente evoluiu e, como a natureza humana, está sofrendo modificações" está vinculada, como é facilmente observável, à teoria da evolução das espécies.

A articulação dessas duas teorias, a da auto-organização e da evolução, isto é, a hipótese de que o sistema de mercado capitalista é um sistema auto-organizativo que evolui como natureza ocupa hoje um lugar central tanto na análise quanto no discurso de legitimação do capitalismo.

I. "Mão invisível" do mercado e a auto-organização.

Paul Krugman, um dos economistas mais influentes no mundo hoje, diz que cientistas sociais normalmente suspeitam, com boa razão, das pessoas que querem importar conceitos da física ou biologia. Entretanto, ele afirma que desta vez há um movimento interdisciplinar muito interessante no qual economistas deveriam participar. Este movimento se dá em torno de conceito de sistemas auto-organizativos - sistemas complexos nos quais a aleatoriedade e caos parecem evoluir espontaneamente para uma ordem não esperada - e tem se tornado nos últimos anos uma idéia cada vez mais influente, ligando pesquisadores de muitos campos diversos, da inteligência artificial a química, da evolução a geologia. Krugman, contudo, reconhece que, por alguma razão, os economistas não têm tomado parte neste movimento e propõe que se veja como essas novas idéias podem ser aplicadas a este imensamente complexo, mas indiscutivelmente auto-organizativo sistema que é chamado de economia[3].

E segundo ele, quando Adam Smith escreveu sobre como o mercado leva os seus participantes, "como uma mão invisível", a resultados que ninguém pretendeu ele não estava descrevendo nada mais do que uma propriedade emergente, uma das características fundamentais de sistemas auto-organizativos. Krugman não é o único que vê na teoria da "mão invisível" de Adam Smith a noção de auto-organização. F. Capra, um pensador bastante crítico da modernidade e do capitalismo, também tem uma posição semelhante. Para ele, "ao longo de toda a história das ciências sociais, numerosas metáforas têm sido utilizadas para se descrever processos auto-reguladores na vida social. Talvez o mais conhecido deles seja a 'mão invisível' que regulava o mercado na teoria econômica de Adam Smith"[4].

Krugman, como muitos outros teóricos que participam do que ele chamou de movimento interdisciplinar em torno do conceito de auto-organização, afirma que "o que liga o estudo de embriões e furacões, de materiais magnéticos e coleção de neurônios, é que eles são todos sistemas auto-organizativos: sistemas que, mesmo quando eles começam de um estado quase homogêneo ou quase aleatório, formam espontaneamente padrões de grande escala"[5]. E conclui esta reflexão dizendo que a economia é, sem dúvida, um sistema auto-organizativo neste sentido. Desta forma, Krugman, como muitos outros autores, não estabelece diferenças qualitativas entre sistemas físicos, biológicos ou sociais ao falar de auto-organização. É como se não emergissem novas propriedades na passagem do nível físico para biológico, e deste para o humano e social que nos obrigassem, pelo menos, a adjetivar ou qualificar o conceito de auto-organização ou de sistemas auto-organizativos para dar conta dessas emergências que nos permitem perceber diferenças entre o nível físico, o biológico e o social.

Um ponto importante a destacar no pensamento de Krugman é que, apesar de não fazer distinção, pelo menos explicitamente, entre os níveis físico, biológico e social, ele não considera a auto-organização como algo necessariamente, ou mesmo presumivelmente, uma coisa boa. Para ele, "auto-organização é algo que observamos e tentamos entender, não necessariamente algo que nós queremos"[6]. Com isso, ele não legitima o mercado como algo bom ou insubstituível pelo simples fato de ser auto-organizativo. Apesar de que no livro Globalização e globobagens[7] ele defende e legitima o sistema de mercado com a afirmação de que todos outros sistemas sociais são piores.

Paulo Guedes, um dos economistas mais influentes hoje no Brasil, é um outro exemplo[8] de como os economistas têm se utilizado cada vez mais de conceitos provenientes da física ou da biologia e que podemos chamar de interdisciplinares, como a de ordem espontânea, auto-organização e evolução. Ele escreveu, na sua coluna na Revista Exame, um artigo com o título: Biologia dos negócios: espécies virtuais incapazes de se adaptar vão desaparecer. Guedes inicia este artigo dizendo: "A grande contribuição de Adam Smith para a compreensão das idéias de competição e mercados foi a percepção de que sistemas extremamente complexos de coordenação poderiam resultar de mecanismos descentralizados de decisão. Biógrafos de Darwin sugerem que a poderosa imagem da mão invisível esculpindo instrumentos complexos de coordenação em ambientes aparentemente caótico de choques de interesses individuais possa ter inspirado o processo de seleção natural como escultor da evolução das espécies. Essa aproximação histórica entre Smith e Darwin sugere analogias adicionais entre biologia e o mundo dos negócios."[9]

Após traçar esta analogia, Guedes traça uma outra entre a "teoria do equilíbrio pontuado" de biólogo Stephen Jay Gould, - teoria que questiona a hipótese da evolução gradual, sem romper com a teoria da evolução - com a "teoria dos ciclos longos da economia" - que diz que períodos de equilíbrio baseados na consolidação de velhas tecnologias são perturbados por uma rápida aceleração de inovações tecnológicas. Após desenvolver algumas reflexões sobre esta analogia, Guedes conclui o artigo dizendo: "As novas tecnologias, como as mutações genéticas, dependem de um processo competitivo de seleção natural para ser aprovadas. [...] Grandes tecnologias em empresas sem governança corporativa eficiente são como animais biomorficamente bem desenhados, mas desprovidos de cérebro e ameaçados de extinção."

II. Dos instintos às instituições do mercado.

Há também um outro movimento nesse "casamento" entre a biologia e a economia, a que vem do campo da biologia em direção à economia. Matt Ridley é um exemplo típico de cientista da área de biologia que faz a ponte para economia. No seu livro, de título bastante sugestivo, As origens da virtude. Um estudo biológico da solidariedade[10], ele diz que "os biólogos, se nada acrescentaram à teoria proposta por Smith, pelo menos a testaram. Smith disse ainda o seguinte sobre a divisão de trabalho na sociedade: que ela aumenta com o tamanho do mercado e que num mercado de determinado tamanho ela aumenta com a melhora dos transportes e das comunicações. As duas máximas se revelaram verdadeiras nas sociedades simples das células" e que "praticamente nada importante sobre a divisão de trabalho foi escrito depois de Smith, seja por biólogos ou por economistas".[11]

A partir de teorias do campo da biologia e da teoria dos jogos, Ridlley afirma que a teoria de Smith de que os benefícios sociais decorrem dos vícios privados é o achado provavelmente menos valorizado de toda a história das idéias e que "há um lindo paralelo entre o que Smith quis dizer e o sistema imunológico do homem. [...] O sistema inteiro é lindamente projetado, de modo que as ambições egoístas de cada célula só podem ser satisfeitas se a célula cumpre seus deveres para com o corpo. Ambições egoístas são subjugadas em nome do bem comum, da mesma forma que indivíduos egoístas são subjugados pelo mercado em nome do bem geral da sociedade."[12] Para ele, "a ordem surge perfeitamente do caos, não porque as pessoas recebem ordens, mas porque reagem racionalmente a estímulos. [...] tudo sem a menor influencia de uma autoridade central"[13] e que "a mente humana contém numerosos instintos para promover a cooperação social e desejar a reputação da bondade. Não somos tão vis a ponto de precisarmos ser domesticados por governos intrusos, nem tão bons que o excesso de governo não desperte o que há de pior em nós, seja como seus empregados, seja como seus clientes".[14]

A partir da biologia, da teoria da evolução e da teoria dos jogos, ele chega a uma "verdade" econômico-social que, se não é o mesmo, é muito próximo da proposta neoliberal: "se queremos recuperar a harmonia e a virtude sociais, se vamos restituir à sociedade as virtudes que a fizeram funcionar, é fundamental reduzirmos o poder e o alcance do Estado. Isso não significa uma guerra violenta de todos contra todos. Significa devolver: devolver o poder sobre a vida do povo à paróquia, às redes de computadores, aos clubes, aos times, aos grupos de auto-ajuda, às pequenas empresas - tudo que é pequeno e local. Significa um grande desmonte da burocracia do serviço público. [...] As raízes da ordem social estão em nossa cabeça, onde possuímos a capacidade instintiva de criar não uma sociedade perfeitamente harmoniosa e virtuosa, mas uma sociedade melhor do que a que temos. Precisamos construir nossas instituições de tal maneira que elas se alimentem desses instintos. Isso quer dizer, principalmente, estimular a troca entre iguais. Assim como o comércio entre os países é a melhor receita para a amizade, a troca entre indivíduos dotados de amplos direitos civis e políticos é a melhor receita para a cooperação. Precisamos encorajar a troca social e material entre iguais, pois esta é a matéria-prima da confiança e a confiança é o alicerce da virtude."[15]

O caminho para a harmonia e as virtudes sociais seria, segundo Ridlley, a diminuição do Estado e a liberalização da economia. A fundamentação desta proposta não é tirada das teorias econômicas, mas sim das ciências biológicas. As raízes da ordem social harmoniosa e de virtudes sociais não estão, segundo ele, na intervenção social consciente ou planejada por parte do Estado e/ou da sociedade civil, mas nos instintos humanos que carregamos em nós. As instituições sociais propícios a implementação de políticas neoliberais seriam instituições que se alimentam dos nossos instintos, instintos esses que nos levariam à harmonia social.

A sua proposta de "devolver poder sobre a vida do povo à paróquia, às redes de computadores, aos clubes, aos times, aos grupos de auto-ajuda, às pequenas empresas - tudo que é pequeno e local", é um discurso romântico sobre o passado e sobre o "local". Um discurso, sem dúvida, que está em sintonia com muitos grupos ecológicos de tendência romântica, mas que esconde ou obscurece o eixo fundamental da sua proposta: fazer do "instinto" de troca no mercado livre o critério de tudo e, o mais importante, o alicerce da virtude. Quando a virtude da solidariedade social é buscada somente através do comércio livre, não há mais porque falar em virtudes ou solidariedade. Basta fazer negócios no mercado livre, seguindo os nossos instintos.

III. Hayek e a fé na evolução.

Os autores que vimos até aqui são um exemplo de como as teorias de auto-organização e da evolução ultrapassaram os seus campos científicos específicos ou de origem e estão influenciando cada vez mais o discurso econômico e social. Mas, sem dúvida, o principal autor neste tema é F. Hayek.

Antes de mais nada, é importante ressaltar aqui uma diferença fundamental entre o pensamento de Adam Smith e de Hayek no tocante ao mercado como uma ordem espontânea e produtora de efeitos não intencionais benéficos. Adam Smith e seus seguidores consideravam que o mercado coordenava o interesse pessoal dos indivíduos para produzir um resultado benéfico não intencional para todos. A ênfase é dada na importância da divisão social do trabalho como produtor do progresso econômico e no mercado como produtor de bem-comum a partir do interesse próprio.

Hayek também compartilha da visão sobre o papel da divisão do trabalho no progresso econômico, mas introduz o problema do conhecimento que surge a partir do fato de que as ações de um sistema sócio-econômico amplo estão dispersas entre milhares ou milhões de agentes econômicos. A coordenação da "divisão do conhecimento" passa a ser tão importante como a da divisão do trabalho. Para Hayek, a coordenação deste conhecimento difuso por meio de mercado permitiria usar uma quantidade muito maior de conhecimento do que sob sistemas sociais alternativos conhecidos. Assim, ele fala da coordenação das ações de pessoas necessariamente ignorantes ou com conhecimento insuficiente. Deste modo, a validez da sua teoria da ordem espontânea não depende mais das chamadas suposições "egoístas" da teoria econômica tradicional, porque o problema universal da coordenação persiste independentemente de se as pessoas são motivadas pelo egoísmo ou pelo altruísmo/solidariedade. Em outras palavras, mesmo na hipótese de uma sociedade formada somente por pessoas solidárias e comprometidas com o bem comum, ainda persistiria o problema da coordenação da divisão do trabalho e da coordenação dos conhecimentos necessariamente fragmentados dos agentes econômicos.

Este é um tema importante, porque um dos principais problemas dos marxismos e dos socialismos foi a pressuposição de que a alienação e exploração econômicas eram produtos da propriedade privada dos meios de produção. Com isso, acreditava-se, no início, que o fim da propriedade privada seria o caminho primordial para a superação da alienação e exploração econômicas. Com a implantação de Estados Socialistas, verificou-se que o fim da propriedade privada dos meios de produção não solucionava ou não superava o problema da coordenação da divisão social do trabalho. A solução tentada foi a de planejamento centralizado da economia, buscando um planejamento cada vez mais perfeito do sistema econômico; o que pressupunha a possibilidade do conhecimento perfeito de todos os fatores envolvidos num sistema econômico amplo e complexo; além da possibilidade de um planejamento perfeito a partir deste conhecimento. Coisas humanamente impossíveis.[16]

Além da impossibilidade humana desse conhecimento, um planejamento pressupõe a estabilidade ou a não modificação dos fatores envolvidos por um tempo passível de ser planejado e executado. O problema é que as necessidades materiais humanas são "estáveis" por um período razoável, mas os desejos não. Por isso, as economias socialistas de planejamento centralizado foram e ainda são tão ineficientes na tarefa de satisfazer, pelo menos em parte, os desejos de consumo da sua população. E não podemos esquecer que nós os seres humanos somos seres de necessidade e de desejos; e que os desejos de consumo não são somente desejos por objetos-mercadorias, mas sim por símbolos que têm a ver com o lugar social e o sentido da existência.[17]

Voltando ao Hayek, a tese de que o mercado é a melhor forma possível, se não a única possível, de coordenar as ações de pessoas necessariamente ignorantes levanta um problema: quem e como pode-se chegar a esse juízo? Se essa tese fosse cientificamente comprovada por uma pessoa ou por uma comunidade científica, isto pressuporia um nível de conhecimento que pudesse medir e comparar, desde a exterioridade do mercado e de outros sistemas sociais, todos os fatores envolvidos e chegar a uma conclusão inequívoca sobre a eficiência do mercado e de outros modelos alternativos na função de coordenar a divisão do trabalho e dos conhecimentos.

Hayek tenta argumentar sobre a validade desse juízo não pela demonstração da verdade da sua afirmação, mas através da crítica às desordens econômicas supostamente provocadas pelas intervenções conscientes, isto é, planejadas pelos governos ou por instituições sociais. Em outras palavras, não é uma comprovação direta, no sentido de comprovar a partir do funcionamento do próprio mercado, mas é uma comprovação pela negação de todas as outras alternativas. Simplificando seria mais ou menos assim: não temos como provar que o mercado é a única forma eficiente de coordenar o conhecimento e a divisão social do trabalho, pois isto requer um conhecimento que por si é impossível, mas sabemos que essa tese é verdadeira porque todos os outros modelos de coordenação econômica que pressupõe uma intervenção no mercado experimentam mais desordens econômicas.

Contudo, essas próprias desordens econômicas são explicadas por Hayek como tendo sido causadas por estas intervenções. E não se pode provar isso empiricamente de um modo definitivo, pois isso romperia com a tese de que não se pode conhecer todos os fatores que compõe a economia. Sendo assim, a tese de Hayek de que o sistema de mercado é o melhor modelo econômico está fundada na hipótese de que todas intervenções só podem provocar desordem e prejuízos econômicos, pois se baseiam na pretensão de conhecer o que é impossível. É uma argumentação circular.

Mesmo que possamos ter divergência com a proposta geral de Hayek, devemos aceitar a tese de que não é possível conhecer todos os fatores e relações do mercado, na medida em que este é um sistema amplo e complexo. Entretanto, partindo deste mesmo princípio, podemos chegar a uma conclusão diferente: a de que não podemos, por causa da nossa ignorância em relação ao mercado, saber se o mercado é ou não a melhor forma de coordenação, muito menos chegar à conclusão de que o mercado deve ser deixado intocado, sem nenhuma intervenção ou controle, pois ele produziria o melhor dos resultados possíveis. A própria ignorância em relação ao funcionamento do mercado poderia nos levar à tese de que, por não podermos saber dos resultados do mercado, precisamos estar atentos para a necessidade de efetuarmos correções, isto é, para intervirmos no mercado.[18]

A conclusão de Hayek, e de tantos outros, de que a ordem espontânea do mercado é sempre a melhor possível não é compreensível sem uma teoria mais abrangente do que o conceito de sistemas complexos auto-organizativos. É necessário dar um salto do conceito de auto-organização ou de ordem espontânea para a teoria da evolução. É preciso ligar, conectar, a teoria da ordem espontânea ou de auto-organização com o a teoria da evolução para que juízo necessariamente positivo sobre este processo seja possível e compreensível. Em outras palavras, a ligação entre a teoria da ordem espontânea ou da auto-organização com o juízo sempre positivo do tipo neoliberal sobre o mercado pressupõe um ato de fé, um salto epistemológico indevido, em uma "mão invisível" providencial guiando a evolução das espécies vivas. Vejamos isso com mais detalhes.

Hayek, apresentando o argumento fundamental do último livro da sua vida, diz que "nossa civilização depende, tanto nas suas origens como na sua manutenção, da existência do que só com relativa precisão pode descrever-se como 'uma ampla ordem de cooperação humana', mais conhecido pelo pouco afortunado termo 'capitalismo'. Para captar adequadamente o íntimo conteúdo da ordem que caracteriza a sociedade civilizada, convém advertir que esta ordem, longe de ser fruto de desígnio ou intenção, deriva da incidência de certos processos de caráter espontâneo."[19] Assim, ele apresenta o capitalismo não como uma sociedade ou um sistema de concorrência de todos contra todos, como costuma acentuar os seus críticos, mas sim como "uma ampla ordem de cooperação humana". Mas como ele mesmo precisa, não uma ordem de cooperação fruto de uma solidariedade intencional ou fruto de um acordo social, ou coisas do tipo, mas sim uma ordem de caráter espontâneo. Isto é, a cooperação é resultado de auto-organização do sistema de mercado, não um efeito intencional das ações ou intenções de grupos ou indivíduos.

O fato de não ser fruto da intencionalidade humana não significa que esta ordem não tenha nada a ver com os comportamentos e valores dos seres humanos. Para Hayek, "vivemos em uma sociedade civilizada porque chegamos a assumir, de forma não deliberada, determinados hábitos herdados de caráter fundamentalmente moral, muitos dos quais têm resultado sempre pouco gratos ao ser humano - e sobre cuja validade e intrínseca eficácia nada sabia." Isto é, para Hayek, estes valores e hábitos surgiram e possibilitaram formar sociedades civilizadas sem que os seres humanos envolvidos soubessem do que estava ocorrendo e sem que eles gostassem dos resultados. Em outras palavras, foi um processo não somente inconsciente, mas também contra a vontade dos indivíduos envolvidos. E como o resultado não esperado foi a civilização, podemos deduzir que este processo da geração desta ordem espontânea foi conduzido por uma espécie de "mão invisível/providência".

A prática dessas ações de resultados não prazerosos, pelo menos de modo imediato, e de eficácia desconhecida foi, segundo Hayek, generalizando-se através de processos evolutivos baseados na seleção e facilitou tanto o aumento demográfico quanto um maior bem estar material de aqueles grupos que se resignaram a aceitar este tipo de comportamento. "A não deliberada, relutante e até dolorosa submissão do ser humano a tais normas facilitou a ditos entornos sociais a necessária coesão graças à qual seus membros acederam a um nível superior de bem estar e conhecimentos de diversas espécies, o que lhes permitiu 'multiplicar-se, povoar e encher a terra' (Gn 1,28). Quiçá seja este processo a faceta mais ignorada da evolução humana."[20]

A questão que surge então é: como foi que estas tradições e valores não prazerosos e não compreensíveis foram transmitidas e assumidas? Para tentar explicar isso, Hayek, introduz explicitamente o papel da religião neste processo. Como as qualidades culturais não se transmitem automaticamente como as genéticas, ele levantou a hipótese de que "certas crenças míticas foram talvez necessárias para conseguir esse efeito, especialmente quando se tratava de normas de conduta que chocavam contra os instintos"e que, "gostemos ou não, devemos em parte a persistência de certas práticas, e a civilização que delas resulta, ao apoio de certas crenças das que não podemos dizer que sejam verdadeiras - ou verificáveis, ou constatáveis - no sentido em que o são as afirmações científicas", mas que merecem ser chamadas de "verdades simbólicas" e que "inclusive agora, a perda destas crenças, verdadeiras ou falsas, criaria graves dificuldades[21]."

Crenças míticas, mitos e teologias de caráter sacrificial, são apresentadas como uma das pedras angulares que explicam a evolução das sociedades humanas até às nossas sociedades de sistema de mercado amplo e complexo. E uma das "verdades simbólicas" que surge nesta reflexão é uma noção de Deus ou da providência divina, seja em linguagem religiosa tradicional ou em uma linguagem pseudo-científica secularizada, que estaria por trás desta lei da evolução vista como a sobrevivência do mais forte ou do mais apto nas concorrências do mercado. Uma noção de Deus que se manifesta no vencedor e que é transmitida através de mitos ou teologias sacrificiais.

Como diz Normam Barry, um defensor das idéias liberais, a crença de Hayek na evolução espontânea e o aspecto evolucionista da sua teoria de ordem espontânea fazem dele um autor que se "distingue de outros escritores nessa tradição (por exemplo, Menger), que não descartam o uso da razão na avaliação crítica dos resultados de um processo não desenhado"[22].

O fato de reconhecermos que sistemas sociais e econômicos amplos e complexos são sistemas auto-organizativos não quer dizer que este sistema seja bom ou desejável somente por causa deste fato. Vimos acima como próprio Krugman, um defensor do sistema capitalista, também reconhece isso. O problema é que uma simples constatação analítica desse tipo não gera motivação suficiente para manter o sistema social funcionando de modo razoavelmente coeso. Para isso é necessária crença. Segundo S. Moscovici, "pouco importa que essa crença seja sustentada por um mito, uma ideologia ou uma ciência, desde que exista, os homens sentem a vitalidade do laço que os une, a força única de sua convicção e o ímã da finalidade que os faz agir em conjunto"[23]. E devemos reconhecer, é esta crença na evolução-providência que dá firmeza, força política e certos aspectos messiânicos aos adeptos de neoliberalismo.

Esta última crítica não pode nos levar ao equívoco de considerarmos toda tese de Hayek como totalmente infundada e equivocada. Não podemos negar que sistemas complexos funcionam de fato de modo auto-organizativo, ou pelo menos as evidências parecem mostrar isto. Além disso, Hayek faz uma distinção correta entre o nível micro-social e o macro-social. Ele diz: "se pretendemos aplicar as rígidas pautas de conduta próprias do microcosmo (isto é, a ordem que caracteriza a convivência no pequeno bando ou manada, e inclusive na própria unidade familiar) ao macrocosmo (isto é, à ordem própria da sociedade civilizada em toda sua complexidade e extensão) - como tão reiteradamente nos recomendam nossas próprias tendências profundas -, poríamos em perigo a esse segundo tipo de ordem. E se, ao inverso, pretendêramos aplicar a normativa própria da ordem extensa a essas agrupações mais reduzidas, acabaríamos com a própria coesão que as aglutina. É, pois, inevitável que o homem permaneça submetido a essa realidade dicotômica[24]."

O problema é que ele mantém esta dicotomia de uma forma tão rígida que chega a afirmar que "a ordem extensa nunca teria chegado a surgir se não tivesse sido ignorada a recomendação de que todo semelhante seja tratado com o mesmo espírito de solidariedade que se dedica a quem habita o entorno mais próximo. [...] integrados na ordem extensa saímos beneficiados de que não se trate a todos com idêntico espírito de solidariedade; a todos interessa que nossas relações interpessoais se ajustem a essa outra normativa que correspondem à ordem aberta, isto é, a esse conjunto de normas que regulam a propriedade plural e o respeito aos pactos livremente estabelecidos e que ao largo do tempo foram paulatinamente substituindo a solidariedade e o altruísmo[25]." Com isso ele não somente nega a noção de solidariedade no âmbito macro-social, mas como chega a dizer que propor solidariedade neste âmbito é colocar em risco o futuro da humanidade.

IV. Desafios à ética e à teologia.

Esta nova forma de legitimar o sistema de mercado e de se opor ao reclamo da solidariedade no âmbito macro-social nos traz sérios desafios à teologia e à reflexão ética. Eu quero apontar aqui apenas algumas questões.

A primeira diz respeito ao conceito de auto-organização, conceito que não pode ser ignorado nas reflexões éticas e teológicas hoje e que coloca em xeque a teoria da causalidade que, de um modo ou outro, está presente na maioria das nossas reflexões teológicas e éticas[26]. Conceitos como "sujeito histórico", individual ou social que "construiriam" uma nova sociedade ou conformariam a história a partir das suas ações conscientes, ou análises sociais que buscam a determinação das causas exatas e dos responsáveis pela exclusão social, por exemplo, são profundamente questionados pela teoria de auto-organização aplicada a sistemas sociais.

Hugo Assmann é um dos autores que repensou profundamente as suas reflexões teológicas e éticas a partir da teoria da auto-organização. Ele, que nos anos 70 era conhecido pela sua negação radical ao mercado, nos apresenta hoje uma posição no mínimo interessante e polêmica: "entre as coisas inegáveis, no terreno das interações humanas em sociedades complexas, está a existência e a funcionalidade de sistemas dinâmicos parcialmente auto-reguladores, no que se refere aos comportamentos humanos. Na economia, essa questão tem um nome, que para muitos setores de esquerda mal adquiriu a densidade até hoje: o mercado[27]."

Ele reconhece como inegável, não somente a existência dos sistemas dinâmicos auto-reguladores, mas também o mercado como o nome deste mecanismo na economia. O que não quer dizer que ele não critique mais o sistema de mercado capitalista, mas afirma - correndo o risco de ser mal-entendido por muitos da "esquerda" - que é preciso "aceitar, crítica, mas positivamente, o mercado, sem desistir de metas solidárias" e que isto "exige uma reflexão nova sobre a própria concepção do sujeito ético, individual e coletivo. (...) Trata-se de pensar conjuntamente as opções éticas individuais e a objetivação, material e institucional, de valores, sob a forma de normatização do convívio humano com fortes conotações auto-reguladoras."[28]

Este repensar ética passa necessariamente pelo repensar o sujeito ético: "na prática, o sujeito ético, numa economia-com-mercado, está sempre, por um lado envolvido pelos níveis de auto-regulação efetivamente existentes (na economia, na política, na cultura, na educação, etc.), ou seja, pela normatizações que se cumprem no plano objetivo; e, pelo outro, supõe-se que, apesar das injunções objetivas, sobreviva nele algo (talvez não muito) de livre autodeterminação subjetiva." E, para ele, "esta subjetividade está configurada pela unidade inseparável entre necessidades e desejos. É como feixe de paixões e interesses, e não sem eles, que pode impregnar-se de sensibilidade para semelhantes.Cabe, portanto, perguntar: nessas circunstâncias, a que nos referimos propriamente quando falamos em opção/ação ética? Exclusivamente ao aspecto subjetivo (por exemplo, à volição intencional), ou conjuntamente, à intencionalidade ética subjetiva enquanto inserida em processos objetivos de (parcial) auto-regulação?"[29]

É importante reafirmar aqui, para evitar possíveis mal-entendidos, que Assmann não está defendendo o sistema de mercado capitalista vigente, mas uma "economia-com-mercado" convivendo com metas sociais, o que é muito diferente

A segunda questão tem a ver com a diferença qualitativa entre o âmbito micro e o macro-social. É verdade que normas e práticas que funcionam no âmbito de pequenos grupos sociais não funcionam do mesmo modo em um âmbito macro-social. Isto porque a passagem de um nível para outro não se dá de modo linear, mas neste processo emergem novas propriedades que modificam o funcionamento do sistema. É a emergência destas novas propriedades que nos permite perceber que passamos de um nível para outro. Sendo assim, práticas de solidariedade que funcionam nas pequenas comunidades não funcionam de mesma forma ou simplesmente não funcionam no âmbito da sociedade, da mesma forma como práticas eficientes em pequenas comunidades religiosas de base se tornam ineficientes ou impraticáveis no âmbito das instituições religiosas de grande porte. É óbvio que refugiar-se no âmbito das pequenas comunidades para fugir deste problema não é solução, na medida em que hoje não é mais possível viver em uma comunidade sem estar ao mesmo tempo dentro da sociedade, com tudo que isso implica.

O grande desafio é que as nossas noções de solidariedade (e muito das sabedorias teológicas ou éticas), foram, em grande parte, forjadas em experiências de pequenas comunidades ou grupos sociais, para não dizer em sociedades pré-modernas, e elas não funcionam bem nas atuais sociedades amplas e complexas.[30]

A terceira questão tem a ver com o conceito de providência. Talvez aqui esteja um dos desafios mais fundamentais para a teologia comprometida com a vida dos pobres. Como vimos antes, a teoria de auto-organização permite duas abordagens. Uma que simplesmente constata o funcionamento auto-organizativo de sistemas complexos, e a outra que, além disso, afirma que as ordens espontâneas que emergem são expressões de um processo de evolução biológico-humano-social. Este juízo está baseado em um ato de fé, uma adesão à metáfora da providência divina, uma "mão invisível" que governaria a história, quiçá toda a evolução do universo, uma metáfora tão presente no mundo Ocidental.

Por ser um assunto bastante complexo e difícil, que está além do que se propõe este artigo, vamos somente apresentar de modo abreviado algumas reflexões problematizadoras.

Leonardo Boff é, sem dúvida, na América Latina, um dos autores do campo da teologia e da reflexão ética que mais tem assumido e trabalhado com conceitos provenientes das novas teorias da física e da biologia, ao mesmo tempo em que professa um profundo otimismo em relação ao futuro, sem negar a dramaticidade do presente. Como um exemplo do seu profundo otimismo, tomemos o seguinte texto: "A tendência global de todos os seres e do universo inteiro, como físicos quânticos como W. Heisenberg observam, é realizarem a tendência que possuem rumo a sua própria plenitude e perfeição. A violência está submetida a esta lógica benfazeja, apesar da magnitude de sua misteriosidade."[31]

De onde ele fundamenta a sua fé nesta "lógica benfazeja" que orienta toda a evolução? Ele busca este fundamento tanto na ciência quanto na teologia. Ele diz: "há uma minuciosa calibragem de medidas sem as quais as estrelas jamais teriam surgido ou eclodido a vida no universo. Esta compreensão supõe que o universo não seja cego, mas carregado de propósito e intencionalidade. Mesmo um conhecido astrofísico ateu como Fred Hoyle reconhece que a evolução só pode ser entendida na pressuposição de que exista um Agente supremamente inteligente. Deus, o nome para este Agente supremamente inteligente e ordenador, está umbilicalmente implicado no processo evolucionário e cosmogênico."[32]

Segundo L. Boff, o mundo físico nos mostraria como este mundo está carregado de propósito e intencionalidade do Agente ordenador que é Deus, e que a lei ou a intencionalidade que rege a expansão do universo é a mesma que rege o processo evolucionário. Na verdade, o que supõe que o universo seja carregado de intencionalidade não é o mundo físico como tal, mas como ele mesmo diz é "esta compreensão" sobre o universo e o surgimento da vida.

Adiante na sua reflexão, ele diz que "no espírito humano o Espírito mesmo molda o seu templo. Não obstante a diversidade, o universo não deixa de ser uno, constituindo uma totalidade orgânica, dinâmica e harmônica. Ele se revela como motor do processo cosmogênico, como seta do tempo, carregada de propósito e como convergência na diversidade."[33] Mais, "a evolução precisa atingir certa convergência, alcançar um ponto ômega. Só então faz sentido o discurso da encarnação como o entendem os cristãos e permitir a passagem do crístico ao cristológico. É aqui que entra a fé cristã, ponta de lança da consciência cósmica. A fé vê no ponto ômega da evolução o Cristo da fé, aquele que é crido e anunciado como a cabeça do cosmos e da Igreja, o meeting point de todos os seres. Se o que a fé proclama não é mera ideologia nem pura fantasia inconsciente, então isso deve de alguma forma se mostrar no processo evolutivo do universo."[34] Como conclusão desta argumentação, podemos citar: "Eco-espititualmente a esperança nos assegura que, apesar de todas as ameaças de destruição que a máquina de agressão da espécie humana montou e utiliza contra Gaia, o futuro bom e benfazejo está garantido porque este Cosmos e esta Terra são do Espírito e do Verbo."[35]

São realmente palavras otimistas. Mas, um otimismo tão cheio de certeza nos levanta uma pergunta: se necessariamente o universo está guiado por uma lógica benfazeja, onde se encaixam as mortes e sofrimentos dos inocentes nesta evolução? Seriam apenas as dores do parto? Se sim, não é exatamente isso, ou quase isso, que diz Hayek e outros que apresentam as mortes dos pobres e dos fracos como dores necessários, resultados não prazerosos do processo de uma evolução sempre benfazeja? Esta visão providencial da evolução não é uma outra forma de resgatar as metanarrativas da história da modernidade, que próprio L. Boff critica? Nesta visão da história marcada pela "necessidade" de um futuro bom, onde fica a contingência, a liberdade humana e o pecado?

L. Boff faz do ponto ômega da evolução, no qual a fé cristã veria o Cristo da fé, o sentido da evolução do Cosmo e das espécies vivas. Uma evolução que confirmaria que "não obstante a diversidade, o universo não deixa de ser uno, constituindo uma totalidade orgânica, dinâmica e harmônica". Isto é, uma ordem por trás de tudo. Mesmo que o mundo físico e biológico constituísse esta totalidade orgânica e harmônica, - que é também discutível - , isto é garantia de que há uma ordem que move as consciências humanas e a sociedade rumo a este mesma harmonia? Será que com o surgimento da consciência humana, não há emergência de novas propriedades que não permitem esta aplicação linear de teorias do campo da astrofísica ou da biologia ao campo humano-social?

Para Freeman Dyson, a tirania ou a determinação dos genes sobre os organismos durou 3 bilhões de anos e só foi precariamente derrubada nos últimos 100 mil anos com o surgimento do Homo sapiens, que desenvolveu a linguagem simbólica e a cultura. Com isso, "nossos padrões de comportamento são agora, em grande medida, determinados culturalmente e não mais geneticamente. Podemos optar por manter um gene defeituoso em circulação porque nossa cultura não permite que deixemos as crianças hemofílicas morrerem. Roubamos de nossos genes a liberdade de fazer escolhas e de cometer erros."[36] O que significa dizer que as supostas leis que regeriam a expansão do Cosmos e a evolução das espécies vivas não determinam mais ou perderam sua força na determinação dos comportamentos e, por isso, do futuro da humanidade.

É esta nossa capacidade de produzirmos símbolos e culturas que nos deu a possibilidade da liberdade (pequena, mas liberdade) e, com isso, a capacidade de sonharmos e desejarmos uma realidade ainda não existente. É isso que nos permite sentir indignação ética diante do que está dado, diante do mundo como está. Somos capazes até de desejarmos e sonharmos com coisas e relações que não somos capazes de realizarmos, que estão além da possibilidade humana. Esta liberdade, é claro, também nos dá a possibilidade de errarmos, de fracassarmos e, portanto, ela nos lembra que não temos garantido um futuro necessariamente harmonioso e pleno. A não ser que esta (parca) liberdade seja apenas uma ilusão, e a história humana seja apenas uma farsa que simplesmente reproduz um enredo pré-estabelecido por um ser superior.

A indignação ética que contesta as injustiças e os males do mundo nasce de uma aposta, de um ato de fé que rompe com a noção de destino - seja um destino maléfico ou benfazejo - , com a lógica do sistema vigente e com o processo de "evolução" que tem guiado a sucessão de culturas, civilizações e impérios.

Para J. Comblin, a tradição bíblica difere da filosofia grega que buscava em Deus o fundamento da ordem e pensava que o ser humano realizava o seu destino ocupando o seu lugar na ordem cósmica, submetendo-se à ordem universal estabelecida e movida por Deus. "Na Bíblia, todavia, tudo é diferente porque Deus é amor. O amor não funda ordem, mas desordem. O amor quebra toda estrutura de ordem. O amor funda a liberdade e, por conseguinte, a desordem. O pecado é conseqüência do amor de Deus."[37]

Quando a Bíblia diz que Deus é amor, está afirmando que a vocação humana é a liberdade, que esta é mais do que uma qualidade ou um atributo do ser humano, mas é a própria razão de ser da humanidade, o eixo central de toda a existência humana. Pois, "que Deus é amor e que a vocação humana é a liberdade são as duas faces da mesma realidade, as duas vertentes do mesmo movimento".[38]

Segundo esta forma de ver a Deus e o sentido da existência humana, Deus, que era todo-poderoso, tornou-se impotente diante do ser humano livre, e vem ao mundo, não no seu poder onipotente para impor a sua vontade na história humana, mas como alguém que "esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana" (Fl 2,7).

Como não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal (eticamente falando) e do pecado, Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, Comblin retoma um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo, "Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo" (Ap 3,20) e diz: "se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar."[39]

Num texto mais recente, L. Boff continuou professando otimismo e certeza, ao mesmo tempo em que abriu espaço para dúvida. De um lado ele diz: "queiramos ou não, já se está anunciando o dia em que a mundialização não será somente econômica. Ela se fará também sob o signo da ética, do sentido da compaixão universal, do descobrimento da família humana e das pessoas dos mais diferentes povos [...] Todos estaremos sob o mesmo arco-íris da solidariedade, do respeito e da valorização das diferenças e movidos pela amorização que nos faz a todos irmãos e irmãs. Será a era ecozóica, como alguns já o formulam".[40] Este "queiramos ou não" revela a sua concepção de uma história marcada pela necessidade, um encaminhamento necessário que independe da vontade, adesão ou práticas dos seres humanos. Provavelmente é uma concepção marcada profundamente pelo seu desejo de um mundo harmonioso.

Mas, por outro, ele também afirma neste mesmo artigo que "esta é a grande lição que devemos tirar: ou mudamos ou perecemos. Ou transitamos o caminho de Emaús do compartilhar e da hospitalidade com todos os habitantes da nave-espacial Terra, ou experimentaremos então o caminho de babilônia, da tribulação e da desolação. Esta vez não nos é permitida a ilusão acerca da gravidade da situação atual. Não obstante, fortalece em nós uma indescritível esperança."[41]

Esperança não é mesma coisa que otimismo. Nós somos otimista "por causa de", isto é, temos razões científicas ou religiosas para o nosso otimismo. Por outro lado, nós temos esperança "apesar de", isto é, sem motivos para otimismo. Esperança nasce de um ato de fé.

Uma solução a este nó apresentado - seja a partir da ciência ou da teologia - está muito além das minha capacidade e do escopo deste artigo. Apresentei aqui duas posições possíveis somente com a finalidade de nos colocar o desafio de repensarmos temas teológicos fundamentais como a providência divina, a encarnação e o significado do Cristo na história frente às novas formas de legitimação do capitalismo contemporâneo.

É possível entender a fé na encarnação de Cristo como o fundamento de uma visão otimista do desenrolar da história rumo ao ponto Ômega, mas também podemos entender a encarnação como ato de "esvaziamento da divindade", isto é, a entrada de um Deus sem poderes divinos no interior da história humana. Uma encarnação que revela a solidariedade de Deus para com as vítimas da história, mas não garante nem a vitória dos pobres nem a evolução - no sentido de um caminhar para a plenitude ou desenvolvimento qualitativo - da história. Pois estas pressupõem uma força divina que Cristo "esvaziado" já não possui mais.

Uma idéia final. A racionalidade teológica ou ética são importantes na fundamentação de uma nova cosmovisão ou de um novo conjunto de valores éticos e morais. Contudo, elas não são suficientes para "mover multidões", para mudar a direção em que está movendo a nossa sociedade e a nossa civilização. Precisamos de pessoas e grupos que encarnem estes valores nas suas vidas e práticas religiosas e sociais e que, desta forma, sirvam de modelos de desejo, como atratores de novos movimentos sociais e religiosos. Pessoas que não fazem da certeza e nem da vitória a razão principal das suas ações solidárias, pessoas que simplesmente vivem a sua liberdade humana respondendo ao apelo de solidariedade que vem dos rostos das pessoas.

Notas

[*] Jung Mo Sung. Pós-doutorado em Educação e doutor em Ciências da Religião. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e da UMESP. É também pesquisador do IFAN-USF. Autor de diversos livros, entre eles, Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança, 2ª. ed., 2001,Vozes (em co-autoria com Hugo Assmann); Desejo, mercado e religião, 3ª. ed., 1998, Vozes; Teologia e Economia, 2ª. ed., 1995, Vozes.

[1] Texto apresentado no I Simpósio Teológico Internacional promovido pela Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP, em Recife, no dia 08/05/2001.

[2] SAMUELSON, Paul A. Introdução à análise econômica. vol. 1, 8ª.ed., Rio de Janeiro: Agir, 1977.p.45. O grifo é nosso.

[3] Cf. KRUGMAN, Paul. The Self-organizing Economy. Malden-Oxford: Blackwell, 1996. O Santa Fe Institute é hoje, provavelmente, um dos centros mais importantes no estudo da aplicação das teorias da complexidade e de auto-organização ao campo da economia. Vide por ex., The Economy as an Evolving Complex System II: Santa Fe Institute Studies in the Sciences of Complexity, 1997.

[4] CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1997, p.64

[5] KRUGMAN, P. op.cit., p. 3.

[6] Idem. ibidem, p.6.

[7] Rio de Janeiro: Campus, 1999. (orig. ingl. The Accidental Theorists, 1998)

[8] Alguns outros exemplos: John Henry Clippinger (Editor). The Biology of Business: Decoding the Natural Laws of Enterprise, 1999; Kevin T. Kelly. Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems and the Economic World, 1995; Ken Baski. Corporate DNA: Learning from Life, 1998; Pierre N. V. Tu. Dynamical Systems: An Introduction with Applications in Economics and Biology, 1998; Gary F. Bargatze. Exploring Corporate DNA: A Business Handbook for the New Millennium, 1999.

[9] Exame. n. 279, 13/12/2001, São Paulo, p. 36. Citação seguinte é também deste artigo.

[10] RIDLEY, Matt. As origens da virtude. Um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000.

[11] Idem. ibidem, pp. 53-54.

[12] Idem. ibidem, pp. 56-57.

[13] Idem. ibidem, p. 269.

[14] Idem. ibidem, p. 296.

[15] Idem. ibidem, p. 298.

[16] Sobre este problema, vide o livro fundamental de Franz Hinkelammert. A crítica da razão utópica. São Paulo: Paulinas, 1985; especialmente o capítulo 3, dedicado à análise do modelo soviético.

[17] Sobre o tema do desejo, necessidade, economia e teologia, vide: Jung Mo Sung. Desejo, mercado e religião. 3ª.ed., Petrópolis: Vozes, 1998.

[18] George Soros, o mega-investidor/especulador no mercado financeiro mundial, defendeu, a partir de uma releitura de Popper, idéias semelhantes no seu livro A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

[19] HAYEK, F. La fatal arrogancia: los errores del socialismo. Madri: Unión Editorial, 1990, p.33.

[20] Idem. ibidem, p. 33.

[21] Idem. ibidem, pp. 212-213.

[22] BARRY, Norman. La tradición del orden espontáneo. Revista Acta Acadêmica, nov/1997. Disponível na internet: http://www.uaca.ac.cr/acta/., jul/2001.

[23] MOSCOVICI, Serge, A máquina de fazer deuses. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 27.

[24] HAYEK, F. op. cit., pp. 50-51.

[25] Idem. ibidem, pp. 43-44.

[26] Vide, por ex., SEGUNDO, Juan Luis. ¿Qué mundo? ¿Qué hombre? ¿Qué Dios?. Santander: Sal Terrae, 1993.

[27] ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: Unimep, 1996.p.64.

[28] Idem. ibidem, p. 64.

[29] Idem. ibidem, p. 66.

[30] Sobre este tema, vide por ex., ASSMANN, H. & SUNG, J. M. Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança. 2ª. ed., Petrópolis: Vozes, 2001, especialmente a Parte I.

[31] BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995. p.41

[32] Idem. ibidem, p. 226.

[33] Idem. ibidem, p. 259.

[34] Idem. ibidem, p. 273.

[35] Idem. ibidem, p. 306.

[36] DYSON, Freeman. Infinito em todas as direções. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 120-121.

[37] COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, são Paulo: Paulus, 1996, p.65.

[38] Idem. ibidem, p. 67.

[39] Idem. Ibidem, p.66.

[40] BOFF, L. El pecado capital del ecocidio y del biocidio. Em: DUQUE, José & GUTIÉRREZ, Germán. Itinerário de la razón crítica: homenaje a Franz Hinkelammert en sus 70 años. San José (Costa Rica): DEI, 2001, pp. 213-227. Citado da p. 225.

[41] Idem. ibidem, p. 227.