Interessante observar as mudanças de perspectiva e de prognósticos experimentadas pelas teorias que se preocuparam em analisar as transformações vividas pelas sociedades convencionais nos últimos decênios, seja em seu centro, seja em suas margens. Cientistas sociais, filósofos da cultura, psicólogos e também teólogos - partindo, quase sempre, do pressuposto da existência de um generalizado processo de secularização - tendiam a assumir como irreversível a decadência das religiões estabelecidas. Em conseqüência, previam a proliferação de grupos menores e mais à margem, quando não em franca oposição ao centro.
Hoje, ao que tudo indica, as hipóteses a esse respeito já não são tão unânimes e seguras. Há indícios de que as religiões convencionais continuam ativas e até retomam fôlego. Resistiram ao assalto dos grupos espontâneos e libertários que nos anos 60 e 70 pareciam ter escapado inteiramente ao seu controle. Os grupos e movimentos de base não desapareceram, mas dão mostras de paradas, parecendo assumir novas configurações. A "reflexidade" exigida pela pós-modernidade -- para usar uma expressão de A. Giddens -- modificou as condições de elaboração de sua identidade. Até para poder sobreviver eles precisam de se ver e se situar no todo social. Seja como for, o fato é que o tema da relação entre as religiões tradicionais e os grupos espontâneos, situados à margem do establishment religioso, continua sendo um assunto atual que está longe de ter sido esclarecido. É a este tema que o presente número de REVER está dedicado. Daí seu título: "Religiões marginais em tensão com a sociedade convencional".
A Comissão Editorial de REVER pensa que essa questão continua sendo de importância no âmbito das Ciências da Religião. Sua compreensão pode ajudar a situar melhor fenômenos religiosos tão diferenciados como o neo-conservadorismo, a retomada da subjetividade, o fundamentalismo, o retorno da mística, o caráter emocional da coesão interna dos grupos religiosos, etc. Além de repropor uma questão de fundo que está longe de ter sido suficientemente esclarecida: a da validade maior ou menor da tese secularização/dessecularização da sociedade e das próprias religiões.
Os artigos escolhidos para compor o índice do presente número de nossa revista apontam para duas direções: dois deles são escritos em uma perspectiva mais européia. São da pena de pesquisadores que analisam fenômenos da marginalidade religiosa mais típicos de países de velha tradição cristã. Um terceiro artigo é da autoria de um professor e pesquisador brasileiro.
O fenômeno religioso enfocado por Graham Harvey - o do satanismo - pode surpreender o leitor, mas tem importância heurística para a compreensão da problemática que REVER estuda neste número. O sociólogo inglês estuda formas modernas de satanismo, referindo-se a algumas que encontramos em notícias da imprensa brasileira. No Brasil, devido à uma novela atualmente apresentada pela TV Globo - alusiva ao vampirismo - existe no grande público curiosidade e interesse em relação ao mundo artificialmente misterioso deste mito tão pouco brasileiro, mas tão atraente no mundo inteiro. Harvey o estuda desde duas perspectivas: a dos próprios adeptos de tais cultos e a dos que os observam desde fora. No artigo é defendida a posição de que o satanismo constitui, no fundo, uma religião do self e revela, ao mesmo tempo, os temores da própria sociedade que o produz.
Andreas Grünschloss escreve sobre um outro assunto também ele muito freqüente no cinema. Parece ser um fenômeno em crescimento. Verifica-se em grupos culturais (nem sempre religiosos, no sentido usual desse termo ) que a mídia acompanha com certo estardalhaço. Quem não ouviu falar de certas "seitas" que recebem mensagens de extraterrenos e alienígenas portadores de mensagens em geral apocalípticas e de forte teor messiânico? Grünschloss aproxima estes episódios contemporâneos a um outro que os antropólogos chamam de "cargo-cults". São reações religiosas de populações nativas da Nova Guiné que mantinham seus primeiros contatos com o mundo europeu. Ao verem os carregamentos ("cargo") trazidos nos navios europeus os nativos julgavam estar sendo roubados, supondo que aquela carga valiosa era um presente enviado a eles por seus antepassado, mas interceptados pelos brancos. Criaram movimentos e cultos nos quais, em linguagem religiosa, procuravam apossar-se destes bens que viam como seus. Crenças em UFOs, expectativas coletivas quanto à chegada eminente de naves espaciais, encontros com civilizações avançadas, fantasias sobre segredos tecnológicos, etc, presentes nos grupos mencionados por Grünschloss, são por ele equiparados às manifestações do "cargo-cult" melanesiano.
O artigo de Afonso M. L. Soares, professor da PUC-SP, toca um tema que nos é familiar, o das religiões afro-católicas. Partindo da cosmovisão originária destes cultos – católicos, mas encarados com suspeita pela Igreja oficial – o autor defende não só que eles têm uma contribuição própria a oferecer, como mostra que, aos poucos, saem de sua posição marginal e adquirem certa autonomia dentro do pensamento e das práticas católicas no Brasil.
Para a seção Intercâmbio reservamos dois artigos. Um é de Edin Sued Abumanssur, antropólogo, também ele da PUC paulista. A Comissão Editorial o pensou principalmente para nossos leitores estrangeiros – que aumentam a cada dia. Por essa razão, está escrito em inglês. Nele pode-se encontrar um excelente resumo da crise que as estruturas convencionais das Igrejas cristãs no Brasil experimentam em virtude das transformações trazidas pela chamada globalização. Para Abumanssur a crise representa uma oportunidade para uma correta compreensão do fenômeno religioso contemporâneo no Brasil, seja em suas estruturas, seja em sua dinâmica e relações.
O outro se deve a membros do CERPS (Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis) da UFMG. Trata de uma questão cada vez mais relevante na atual pesquisa científica sobre o campo religioso brasileiro. Partindo de duas pesquisas quantitativas, os autores instauram uma reflexão autocrítica sobre questões de metodologia relativas à complementação entre o quantitativo (mais raro entre nós) e o qualitativo (mas abundante e aparentemente mais fácil). Trata-se de um texto estimulante que mostra uma via de reflexão que faz falta no Brasil.
Auguramos aos que acessam nossa revista uma boa leitura!
A Comissão Editorial