Sincretismo afro-católico no Brasil: lições de um povo em exílio

Afonso Maria Ligorio Soares[*] []

Há duas décadas acompanho de perto as lutas da comunidade negra brasileira em busca do resgate de suas tradições e do direito à plena cidadania. O preconceito que ronda as discussões sobre o sincretismo religioso afro-católico é um dos flancos dessa luta secular. Por isso, em tese doutoral recentemente defendida[1], pretendi demonstrar, no cotejo de destacados autores, que mesmo o catolicismo não escapa desse fenômeno. A tal ponto que, de fato, um catolicismo não-popular inexiste; e o que conhecemos é, inevitavelmente, sincrético. Revisitei, também, o caminho dessa questão no mundo científico, mostrando que a palavra sincretismo é hoje bem aceita, desde que esclarecidas algumas distinções internas ao termo.

Depois, confrontando as posições demarcadas no âmbito da teologia cristã, constatei que, mesmo entre os Agentes de Pastoral Negros (APNs), que se alinham na vanguarda cristã, o termo sincretismo continua causando constrangimento. Afinal, após demonstrar que o virtual substituto apontado pela teologia católica – a categoria inculturação – também não resiste ao teste da falseação (Popper), concluí pela sustentação dialética de ambos os termos em disputa, ao menos enquanto não se cria consenso em torno de outra categoria[2].

O presente artigo quer voltar a esse problema, procurando expressar a voz de seus reais protagonistas. Salientarei o contexto em que surge o sincretismo afro-brasileiro e a cosmovisão originária fundante desse processo. No final, será sugerida uma ponte para trabalhos ulteriores.

1. A contribuição afro-brasileira: sincretismo ou sincretização?

Já me detive anteriormente no drama do escravismo brasileiro[3], salientando a dívida social brasileira para com as famílias descendentes de africanos. Entretanto, embora não se possa diminuir em nada a chaga social gerada pelo escravismo brasileiro, é preciso reconhecer a criatividade negra em refazer, a seu modo, a grande família africana. Há todo um caminho promissor, que precisa ser sempre mais trilhado, de redescoberta da contribuição positiva dos descendentes de africanos na gestação da família brasileira.

O candomblé é um dos exemplos (não o único) de que o sentido de pertença a uma comunidade, a um núcleo familiar, permanecerá vivo entre os descendentes de escravos, mesmo quando estes não se conformam plenamente ao modelo familiar branco, sancionado pela Igreja[4]. Aliás, o próprio expediente das confrarias e irmandades de homens pardos e negros, nascido, em grande medida, de idéias segregacionistas[5], é assimilado pela comunidade negra como espaço de liberdade, porque tido como salvaguarda de suas utopias mais legítimas[6].

Este quadro torna ainda mais espinhoso falar de evangelização e missão na América Latina durante o período colonial. Segundo E. Hoornaert, a ideologia de guerra santa que permeia as relações entre colonizadores e seus subjugados (indígenas e africanos) faz com que jamais se tenha uma autêntica e verdadeira missão nas novas terras; apenas conquista e transplante estrutural da religião dominante[7].

Não se trata de julgar e condenar as possíveis boas intenções dos protagonistas daquela época. A Igreja, com efeito, achava-se novamente desafiada por um empreendimento somente comparável àquele do período inicial da Idade Média: a cristianização dos povos bárbaros. Todavia, há um dado nada indiferente a esse respeito: antes, os conquistadores são os bárbaros, e os evangelizadores têm de fazer um mínimo esforço se quiserem penetrar em seu modus vivendi. Uma atitude admirável, embora limitada, no parecer de J. L. Segundo, por uma "pedagogia apressada"[8].

Em solo latino-americano, em vez, poucas iniciativas, tímidas e isoladas, arriscam alguma espécie de estratégia pedagógica[9]. Os africanos e os sobreviventes pré-colombianos terão de, numa fração de tempo, dar o salto (qualitativo?) cristão. E, como se verá, contentam-se com assumir a exterioridade cristã que esconde de fato - e, ao menos no início, de modo consciente - seus arquétipos milenares.

Com respeito ao Brasil a lacuna é ainda maior. Segundo J. O. Beozzo, para os escravos, "não houve na colônia portuguesa, nada semelhante ao esforço dos jesuítas na catequese do índio", por mais fraca que esta última se revele ao historiador moderno. Os missionários quase sempre admitirão a nulidade de uma evangelização que faça do índio um escravo; premissa ausente desde o início em relação ao africano. Inerme diante de tal ambigüidade, "a Igreja acaba praticamente confiando a catequese do negro ao senhor dos escravos"[10].

Que espécie de catequese será ministrada aos escravos? Nada de muito exigente. Bastará um "catecismo abreviado" antes do batismo. Ao escravo boçal (recém-chegado) ou de língua desconhecida a instrução será ainda mais sumária; é batizado sem maiores problemas desde que saiba de memória as respostas corretas para estas perguntas: "Queres lavar a tua alma com água santa? Queres provar o sal de Deus? Jogas fora da tua alma todos os teus pecados? Não pecarás nunca mais? Queres ser filho de Deus? Jogas fora da tua alma o diabo?"[11]

Além dessa superficial catequização, outros fatores impedem a destruição total do substrato cultural africano[12]. Dentre estes, um papel decisivo cabe às Irmandades de africanos e crioulos permitidas pela igreja católica. Uma estratégia catequética e de controle social que acaba por representar um espaço de solidariedade étnica que se tornará o berço do candomblé.

Em igual medida, pode-se assinalar as "sociedades de diversão" aprovadas pelo governo da Bahia com o objetivo explícito de reavivar as diferenças étnicas entre os escravos. Assim, Igreja e Estado são coniventes na criação da seguinte situação, resumida por P. Verger nestes termos: "Todos saíram satisfeitos: o governo por dividir e assim reinar melhor, assegurando a paz do Estado; os escravos por cantar e dançar; as divindades africanas por receber os louvores; os senhores por verem a sua gente com tanto sentimento católico"[13].

Ademais, é preciso levar em consideração que muitos líderes tribais - os umbandas - reduzidos a prisioneiros de guerra entram no Brasil. Gente que nas lavouras de cana de açúcar e, sobretudo, nas áreas urbanas poderá prosseguir, embora camufladamente, as suas funções de mediação sagrada[14].

Mesmo sobrepondo-se à religião africana durante o período colonial, o sistema que lhe cai de pára-quedas da Europa não consegue substituí-la[15]. Assim, algo de não-católico sobreviverá como se o fosse. Constitui até hoje um tema controvertido saber se tais práticas sincréticas serão somente acomodatícias (justaposição dos santos católicos aos orixás africanos), ou, em vez, se haverá uma mais profunda assimilação (modificação do sistema africano no núcleo mesmo de sua experiência interna). Todavia, independente da palavra final dos cientistas da religião, o fato é que o africano encontra analogias, ao menos no nível dos significantes, entre as suas crenças e aquelas portuguesas. Um processo de inculturação às avessas? Pode ser.

F. C. Rolim[16] também partilha da opinião de que a catequese dos negros no Brasil será, nesse período, quase nula. Assim, a visão dicotômica do bem e do mal, cara ao catolicismo, não tem penetração na alma negra, sequiosa de unidade. Os símbolos e ritos católicos são, portanto, reinterpretados pelo dinamismo selecionador da visão de forças vitais do mundo africano. Será o catolicismo a se africanizar, conclui Rolim, e não o contrário.

O processo sincrético, observado do ponto de vista do negro escravizado, se aproxima muito daquilo que L. Maldonado chama, positivamente, de sincretização: a releitura dos significantes originários enriquecendo-os de outros novos, para que o significado não seja perdido. Se não fosse assim, como explicar a presença em seus cultos de somente alguns símbolos católicos? Por que existem estátuas de alguns santos nos templos de vodu e nos terreiros de candomblé, e faltam, em vez, outros símbolos diretamente ligados à missa católica, por exemplo?

Para R. Bastide, o assim chamado sincretismo resulta de três modalidades de relação: estrutural, cultural e sociológica[17]. O africano lerá o panteão católico, transbordante de santos e virgens-marias, a partir da relação entre os orixás intercessores e Olorum, deixando de lado, no entanto, a ideologia[18] católica do "sofre aqui para gozar no além". Portanto, ao menos no início, será a religião africana a purificar o catolicismo quando aceita o culto aos santos.

Bastide não vê o cristianismo como compensação para a desgraça dos escravos, ou sublimação de seus sofrimentos. Explicar dessa forma o complexo fenômeno do sincretismo afro-brasileiro "só tem cabimento para a mentalidade dos brancos e somente é possível aos negros alienados"[19]. A leitura (cultural) dos santos como aqueles que presidem diversas atividades humanas facilita a aproximação com os orixás, também esses dirigentes de um determinado setor da natureza (Xangô, os relâmpagos e trovões; Oiá-Iansã, os ventos e tempestades; Oxum, a água doce) ou protetores das profissões (como Ogum, que protege todos aqueles que trabalham o ferro).

Enfim, a já mencionada prática católica das irmandades, com as suas disputas e rivalidades, propiciará um espaço adequado a fim de que se mantenha certa emulação dentre as diversas etnias africanas, contribuindo indiretamente com sua sobrevivência. Assim, conforme P. Verger[20], um angolano ou um congolês se inscreve na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de cor do Pelourinho; um daomeano jeje, na Irmandade de Bom Jesus dos Necessitados e da Redenção dos Homens Negros; um nagô-iorubá, na Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, e assim por diante.

Portanto, não haverá tão-somente uma aproximação entre orixás e santos, mas antes a participação dos membros do candomblé na vida da igreja católica. E isso a tal ponto que, se alguém não for católico, não poderá tomar parte num terreiro. Assim, e com um leve toque de imaginação, os escravos encontrarão nos santos católicos algo que os remeta a seu panteão. Por exemplo, para a analogia entre Oxalá e Jesus Cristo basta a aproximação externa entre a bengala de Oxalá velho e a figura do Bom Pastor com seu cajado.

Com procedimentos desse gênero, os negros reinterpretam inúmeras festas católicas: Exu é festejado no dia de São Bartolomeu; Xangô, no dia de São João; Ogum divide as comemorações com São Jorge; Omolu, com São Sebastião; os Ibejis (orixás da infância), na festa de Cosme e Damião; Oxalá brilha nos festejos do ano novo (na Bahia, na festa do Senhor do Bonfim); e Iansã, no dia de Santa Bárbara[21]. Mas, as datas e as correspondências santo-orixá não são iguais para todas as regiões do Brasil. Xangô é São Jerônimo na Bahia, o Arcanjo São Miguel no Rio de Janeiro, e São João em Alagoas. Exu é o diabo na Bahia (talvez, por causa de seu caráter trickster), Santo Antônio no Rio de Janeiro, São Pedro no Rio Grande do Sul (aqui entendido como porteiro e mensageiro dos deuses).

Além disso, é preciso insistir que tais releituras não são simples justaposições aleatórias. "O sincretismo realiza-se", afirma R. Ortiz, "quando duas tradições são colocadas em contato, de tal forma que a tradição dominante fornece o sistema de significação, escolhe e ordena os elementos da tradição subdominante". O escravo negro efetuou assim uma bricolagem com a tradição católica, integrando-a no seu sistema tradicional africano. O problema, porém, é este: até quando a memória coletiva irá se manter incólume (em relação ao significado original) se continua a se impregnar desde o exterior de novos significantes que, por sua vez, não são neutros?[22]

Não obstante as adversidades todas, a religião africana saberá fazer uma síntese criativa de sua trágica experiência exílica[**]. Para compreender melhor esse processo, pretendo, embora de modo esquemático, propor alguns elementos fundantes, algumas idéias-chaves do substrato religioso do escravo. E para tal esforço, nada mais inspirador do que uma volta às origens, à Mãe África.

2. As Religiões Tradicionais Africanas[23]

Parece haver certo consenso de que as diversas modalidades religiosas da África possuam uma estrutura básica comum, sendo, por isso, possível apresentar alguns de seus elementos e características globais. Isso não quer dizer, porém, que não sejam significativas as particularidades de concepções tão ricas e autônomas como as de bantos e iorubas, por exemplo. Ademais, estou-me referindo às sociedades tradicionais ainda não submetidas à total influência européia, e que se situam sobretudo na África sub-saariana. Um capítulo à parte, em vez, mereceriam as religiões populares africanas contemporâneas (ou "não-tradicionais", como prefere chamá-las K. A. Appiah[24]), em que se está verificando um formidável processo de sincretização entre o moderno, representado, de algum modo, pelo cristianismo e o tradicional[25]. Assumindo, portanto, o postulado dessa matriz estrutural compartilhada, L. Boka di Mpasi propõe três chaves fundamentais a fim de que se obtenha uma noção mais autêntica da simbólica religiosa africana: o nome, o antepassado e a vida[26].

Nas sociedades de cultura oral, a saber, aquelas que se servem de uma "escritura- não-literário-alfabética", o nome assume relevância e complexidade. Por detrás do nome esconde-se a história do clã e da etnia, o seu código ético, a sua suma teológica[***]. Ter um filho e dar-lhe um nome é um ato de culto. O nome é freqüentemente um mote ou o início de sentenças proverbiais - as quais são conclusões morais de uma determinada narração. Assumir um nome é um compromisso ético e, para tanto, se requer um processo iniciático até que o jovem receba seu nome definitivo, sinal/símbolo da maturidade atingida.

Na África, os documentos da religião estão na pessoa e não simplesmente a seu redor. Caso se tencione compreender sua lógica, é preciso adentrar a biblioteca-arquivo da oralidade: o mito, a lenda, a narração, a fábula, a canção, a dança, o provérbio, a adivinhação, o rito. O mito é uma narração fabulosa da atual condição humana, que se projeta nos tempos e espaços primordiais com personagens sobre-humanas; ele possui uma função sociopolítica. A lenda é uma narração maravilhosa, cujas personagens são heróis, pessoas excepcionais, iniciadores e fundadores de algo de valor. O conto é uma narração com personagens e realizações humanas normais. É uma projeção da sociedade assim como ela é vista: as virtudes, os vícios, ou como se comportar, etc. A fábula é uma narração fictícia cujas personagens são animais e coisas personificadas, que escondem pessoas reais, sentimentos a serem exaltados ou condenados. A canção é uma narração ajudada por ritmo e melodia. A dança é pausa narrativa e integração do corpo na personalidade, bem como da pessoa na comunidade. O provérbio ensina e exercita a memória. A adivinhação é um recurso para explorar intelectualmente o corpo, o ambiente e o Deus criador[27].

São os nomes teóforos, por exemplo, que elucidam a relação do africano com Deus, e não a existência de templos, retratos ou calendários litúrgicos. Dentre eles, encontram-se nomes como os seguintes: "Deus é grande", "Lembra-te de Deus", "Deus conforta", "Em Deus não existe tristeza", "Deus te dará de mamar" (este último, dado a um menino cuja mãe morrera durante o parto)[28]. Sob esses nomes descobre-se um Deus criador, pai-mãe, que doa aos seus a segurança, a paz e a justiça. Ele é manancial e plenitude de vida; é bondade, sabedoria e saúde. Portanto, o Deus em que o africano crê, conclui Mpasi, não é, como acreditaram durante muito tempo os observadores estrangeiros, um Deus otiosus (M. Eliade); mesmo quando se afasta de onde o mal intervém, uma vez que Ele é absolutamente inocente. Para aprofundar, porém, essas outras nuanças Boka di Mpasi serve-se de outra chave basilar: o antepassado.

O culto fundamental do africano sub-saariano é a retidão moral[29], a saber, a fidelidade da pessoa à vontade de Deus, a fim de que se mantenha o equilíbrio social e a harmonia cósmica. Conforme a crença iorubana, por exemplo, nossa existência transcorre em dois planos: o universo físico (aiyé) e aquele sobrenatural (orun) que, em tempos imemoráveis, não estavam separados: os orixás habitavam no aiyé e os humanos podiam ir até o orun e retornar vivos. Um erro humano (alguém tocou no orun com as mãos sujas) provocou a interposição, entre os dois planos, do hálito divino de Olorun: o seu ofurufu[30]. Como conseqüência, desencadeia-se, desde então, a contínua luta do ser humano para restabelecer e manter esse equilíbrio ideal.

A solidariedade, a hospitalidade e o respeito são três virtudes fundantes que se concentram na proteção do bem cósmico e do clã. Toda pessoa sabe que pode contar com a outra e com todo o seu grupo; os direitos e deveres de parentesco são, se assim se pode dizer, sagrados. Não se empenhar no cumprimento de tais obrigações pode causar a total ruína do grupo, perturbando o equilíbrio aiyé-orun. Daí a importância do antepassado, pedra angular do clã e mediador - junto aos orixás, no caso iorubano - entre os humanos e o Deus-manancial.

Os antepassados são considerados os melhores dentre aqueles que passaram a outro plano de existência; pois, tiveram sobre a terra uma exemplar conduta de vida. Assim, para se tornar antepassado são requeridas algumas condições. A primeira é a transmissão da vida efetuada através da descendência. Ter um filho já é prestar culto a Deus e, além disso, a garantia de que, no futuro, alguém se recordará de mim e continuarei unido a uma comunidade[31].

Uma segunda condição é saber levar e suportar a vida. O antepassado foi, nesta terra, uma pessoa sempre responsável pela felicidade do clã. Intimamente ligado a isso encontra-se o aspecto sapiencial: alguém pode tornar-se antepassado pelo exemplo; por isso continua, agora de modo invisível e mais eficaz, a proteger e promover os mais altos valores do grupo. Obviamente, conditio sine qua non é a morte, isto é, a prova definitiva da perseverança até o fim. Enfim, o nome do falecido é transmitido a seus descendentes como atestado último de que ele continua vivo e efetivamente unido ao clã, mesmo se em outro plano.

Para Mpasi, o conceito de ancestralidade é análogo àquele dos santos cristãos, mas difere deste num aspecto importante: os santos são pessoas localizáveis no tempo e no espaço; os antepassados, em vez, são pessoas-símbolo que encarnam os ideais e os valores fundamentais do clã. A lembrança dos antepassados é assim diretamente ligada ao bem-estar e à identidade dos próprios descendentes. Portanto, seria melhor "comparar a concepção africana dos espíritos com aquela dos santos, intercessores e protetores a quem os católicos atribuem curas e todo tipo de favor. O recurso a esses santos implica uma crença nos espíritos maus, os demônios, os quais estão em volta unicamente para trazer as mais variadas desordens"[32].

Com respeito a esses ancestrais, é bom fazer ainda duas observações a fim de se evitar possíveis mal-entendidos. A primeira diz respeito à impropriedade do vocábulo culto no contexto africano. A relação com os antepassados é uma relação de comunhão, de respeito devido aos fundadores do clã. "Quando as pessoas oferecem a cerveja e o alimento aos mortos", afirma J-M.Ela, "sabem muito bem que, com isso, não 'prestam um culto' aos defuntos, mas revivem com eles, atualizando-a desde uma situação existencial, uma relação de parentesco". Portanto, aqui se teria uma forma de experiência simbólica em vez de um ato cúltico-religioso. O texto prossegue com uma passagem tirada de J. Mbiti: "quando atos como esses são dirigidos aos mortos-vivos, estes são um símbolo de fraternidade, um reconhecimento do fato de que os falecidos continuam sempre sendo membros de suas famílias, e uma garantia de respeito e de lembrança dada aos mortos-vivos"[33].

A segunda observação já roça a fronteira da terceira chave proposta por Mpasi, a Vida. Os antepassados são mediadores de vida, são elos da corrente que une o cosmos físico àquele espiritual. Dois conceitos-chave reforçam tal convicção: a comunhão de vida, que abarca todos os seres vivos e todas as energias brotadas de Deus; e a idéia de mediação, que, para J-M. Ela, consiste "num traço muito importante da mentalidade africana"; pois, "quando se deve transmitir uma mensagem, ninguém se dirige diretamente à pessoa interessada, mas a uma terceira, mesmo se a pessoa interessada estiver presente". Um hábito que se manifesta também nas coisas menos importantes[34]. O Deus-fonte-de-vida só age "através-de", a saber, governa o mundo por intermédio dos seres humanos (antepassados) e dos espíritos guardiães e defensores. Lendo esse dado da cosmovisão africana com óculos cristãos, pode-se dizer que em nada diminuem a onipotência divina, mas engrandecem-lhe a delicadeza no trato de suas criaturas[35].

O importante de tudo isso é guardar-se de não divinizar a figura dos mediadores, como fizeram alguns observadores no passado, distraídos pelo aparente distanciamento do Senhor-dos-céus. Além disso, graves erros foram cometidos ao se confundir os espíritos com os antepassados[36]. Permanece, em todo caso, problemático, para os estudiosos ocidentais, adentrar este universo simbólico, uma vez que "a tendência a analisar em todos os pormenores a conexão entre Deus e os antepassados, e entre estes últimos e os espíritos, refere-se a um jeito de pensar pelo qual a mente africana não tem uma predileção particular"[37].

Entretanto, apesar dessa advertência de Mpasi, vários estudiosos ligados às religiões ancestrais têm procurado esmiuçar tais conexões. É o caso de J. Elbein dos Santos, que investiga entre os nagôs a complexa distinção das entidades que habitam o plano sobrenatural do orum (os ara-orum ou irunmalê). Há irunmalês primordiais, cujo axé (força vital) foi transmitido diretamente por Olorum; e irunmalês ancestrais. Os primeiros associam-se às origens da criação (estrutura da natureza, do cosmos); os demais, à história dos seres humanos (estrutura da sociedade). Todos os irunmalês dividem-se, da mesma forma, conforme sua pertença à direita ou à esquerda, uma subdivisão que, grosso modo, pretende diferenciar a potência geradora masculina daquela feminina. Assim, há 600 irunmalês primordiais: 400 de direita (= orixá) e 200 de esquerda (= eborá) Os números simbolizam a infinitude do divino. No grupo eborá, além das entidades femininas, reúnem-se também todas as entidades-filiais, resultantes da interrelação entre orixá (a potência fálica) e eborá (algo como ventres fecundados). Os ancestrais são igualmente subdivididos: à direita, os baba-egun (masculinos); à esquerda, as iya-agbá ou iya-mi (femininas). Na linguagem cotidiana, porém, a distinção direita-esquerda acaba omitida por comodidade de expressão e somente se fala de orixá e egun[38].

Aproximando-se, porém, da chave da Vida torna-se imperativa a referência a outros dois círculos interpretativos da realidade africana tradicional: a cultura e a sociedade. As sociedades tradicionais africanas são, para Boka di Mpasi, "um conjunto estruturado de respostas(know-how) correspondente a um conjunto de necessidades sentidas"[39]. Para inserir o leitor nesse sistema, o autor oferece três chaves de leitura: a globalidade, a relação e a comunhão.

Por globalidade entende-se que "tudo é de tudo e está com tudo": os distintos elementos e planos da realidade não são jamais separados. A religião abarca a cultura, o social abarca a política, o invisível está no visível, o profano contém o sagrado. Assim, pretender combater um costume religioso, substituindo-o por outro mais que se pretenda mais civilizado, pode significar um grave dano a toda a estrutura de um povo.

Falando de relação indica-se o fluxo contínuo entre os planos da realidade, entre o Criador e as suas criaturas e a interdependência entre estas últimas. Essa maneira de ver funda a concepção de pessoa do africano. Servindo-se das categorias dos povos bantu, pode-se dizer que a pessoa (mu-ntu = o-ser humano) é centro de relações, cruzamento obrigatório das linhas que vão na direção do invisível, rumo aos demais seres humanos e ao cosmos. "O muntu", afirma Boka di Mpasi, "não é simplesmente relação, e sim, mais propriamente, centro de relações, com uma autonomia consistente (não anônima), irredutível (livre) e misteriosa (inexaurível)"[40]. Por isso, a idéia escolástica do indiviso por si mesmo e separado de todos (o indivíduo) causa mal-estar ao africano tradicional, uma vez que, de um ser assim pensado, não poderia provir a vida.

A perspectiva relacional implica que, por exemplo, uma ofensa feita a Deus retorne, assim, contra a própria pessoa-muntu. E o mesmo vale quando se maltrata o próximo ou a natureza. Daí emerge o imperativo da comunhão étnica, a fim de que seja salvaguardada a sobrevivência espiritual e material do grupo. Três atitudes muito caras ao muntu decorrem desse embasamento: a partilha, a solidariedade e o respeito.

A pertinaz procura da harmonia-equilíbrio, sustentada pela responsabilidade do muntu, apresenta ainda mais nuanças quando se passa ao círculo da cultura, aqui entendida como "conjunto das expressões específicas da personalidade humana de uma determinada sociedade"; conjunto este voltado para a viabilização de seus valores fundamentais. Para se colocar a sua escuta, Boka di Mpasi sugere outras três chaves: a oralidade, o símbolo e o diálogo.

Já que lhes bastava o sistema comunicativo da oralidade, as sociedades tradicionais africanas não desenvolveram a escritura literário-alfabética. Como já foi notado anteriormente, uma vasta biblioteca de narrativas, cantos, danças e ritos funciona como meio de identificação, de expressão e de conservação da bagagem etnocultural. Tomar posse dessa riqueza milenar exige uma arte na qual, desde pequeno, o africano é iniciado através da escola do fogo, ou seja, os habituais encontros sob a luz da lua (modelo mistagógico, experiencial). No caso brasileiro, essa didática ancestral tem sobrevivido, guardadas as devidas proporções, nos batuques de fundo-de-quintal, pagodes, irmandades ou ainda nas tão famosas quanto desconhecidas escolas de samba[41].

Seria preciso um trabalho à parte para tratar suficientemente do tema da Simbólica[42]. Por enquanto, porém, me contento de assinalar a importância dessa chave para adentrar a biblioteca da oralidade. É em seus domínios que se joga continuamente com analogias, alegorias e narrativas míticas que, embasadas nas experiências cotidianas, circundam o mistério.

Motor de todo o círculo, e em estreita relação com as chaves precedentes, está o Diálogo. Assim como se falava de mediação na religião e de relação na sociedade, aqui se constata a relevância do dialogar. O fato mesmo da prioridade do simbólico - desde o princípio uma convenção fruto de prévio acordo[43] - remete ao diálogo. E é precisamente o perito em diálogo, o mestre da palavra, que ensina o aprendiz a se servir dessas chaves. Estou falando do ancião - muito próximo do que são hoje, entre nós, as mães e pais-de-santo. O ancião é, portanto, uma referência vital para o grupo. Na África costuma-se dizer que "todo ancião que morre é uma biblioteca que desaparece". E ninguém duvida de que "o jovem se levanta e vê perto; o ancião se senta e vê distante".

Esse ritmo original de levar adiante um jeito de ver a sociedade, a cultura, a religião, pode ser encontrado no processo iniciático de uma casa (ilê) de candomblé. Os filhos-de-santo (iyawo), uma vez cientes, mediante os mais variados procedimentos, de seus orixás principais (de cabeça), iniciam o caminho da conformação aos modelos míticos estabelecidos. As primeiras regras dizem respeito ao candomblé de sala (o aspecto externo visto pelo público). Um abiyan (iyawo aprendiz) deve saber que "santo (orixá) de candomblé não fala" (só muito mais tarde isso lhe será permitido), "não abre os olhos", "não vira a qualquer momento", mas tão somente em ocasiões especiais. "Alguns desses momentos são apontados ao iyawo, outros permanecem em sigilo, para observar se 'o santo responde' ou não naquele momento em que seria obrigatório se manifestar"[44].

Para um abiyan, o seu "dono do Ori" (o orixá que manda em sua cabeça) vai sendo revelado gradualmente. O processo de transmissão é refinado: "não se fazem perguntas para se obter respostas; não há respostas, mas antes conhecimento, axé, que chega a seu tempo". Tem-se em vista a "identificação psicológica entre o iyawo e [o arquétipo do] seu orixá", a qual irá conduzi-lo a viver a dimensão mística "como 'algo de seu', de que ele mesmo tem [ainda] pouco conhecimento". Assim, "o sentido mítico dos modelos, normas, expectativas e valores de comportamento, que compõem os rituais, bem como a língua que ali se utiliza, integram um conjunto mítico que vai sendo transmitido ao longo da existência dos iyawo, ekedi e ogan, sem jamais terminar, uma vez que não se trata de informações, mas sim de experiências vividas"[45].

A dança do orixá, desenvolvida durante o transe, possui um papel decisivo no aprendizado e na vida mística do abiyan. O seu "pé de dança", a saber, a "capacidade de executar com maestria os passos, representar corretamente as passagens mitológicas referidas nas cantigas", é uma virtude muito apreciada por todos os membros da comunidade. De fato, além da coreografia, também os gestos (ou atos) e os ilá (ou darin) possuem uma densidade simbólica. Estes últimos são dialetos africanos, pronunciados em alta voz. Eles identificam o santo, seja por referência a alguma passagem de seus mitos ou lendas, seja para explicar o motivo de sua vinda. Em suma, a dança "é uma forma de comunicação entre orixás e membros do culto"[46].

Com relação à expressão corporal na África negra, Boka di Mpasi afirma que "a dança atesta a percepção de uma densidade particular de sentimentos que nenhum outro meio saberia normalmente externar. A intensificação do sentimento de uma união vertical com o além-túmulo repercute na comunhão horizontal na experiência comunitária. A dança sinaliza, pois, o ponto culminante da comunicação entre os seres"[47].

Obviamente, as nove chaves aqui apresentadas não vão além de sua função: são chaves. Entre a abertura da biblioteca e o mergulho nos tesouros ali escondidos, há uma existência inteira. E até que tais minas não tenham sido desveladas para a ignorância ocidental, nossos projetos de diálogo permanecerão como "questão de cortesia pastoral"[48].

Com relação à complexa realidade do Brasil, não era meu escopo demonstrar, e nem mesmo insinuar, uma linha de continuidade perfeitamente configurada entre a cosmovisão africana e a simbólica cotidiana do povo brasileiro. Nem se deve deduzir daí que, nas religiões ditas afro-brasileiras, como o candomblé nagô, por exemplo, a africanidade esteja presente somente de forma residual.

Em todo caso, sejam ou não apenas resíduos esparsos cá e lá, pretendi mostrar que estes provêm não de sobrevivências bárbaras, culturalmente atrasadas, mas antes de um conjunto orgânico e coerente que teria estado em grau de se confrontar em paridade com a tradição católica ibero-portuguesa. Isso, porém, se não o tivessem reduzido ao silêncio de modo quase unilateral.

3. Um novo olhar para o sincretismo religioso

3.1. A decadência da hegemonia católica

Há algumas décadas, Ribeiro de Oliveira constatava o fenômeno da mistura religiosa sincrônica, verificada nas diversas camadas da população brasileira. Para ilustrar a singularidade do fenômeno, o autor apresentava os resultados dos recenseamentos oficiais em relação à religião declarada. Ali se percebia, de fato, que, em 1950, 93,48% dos brasileiros se professa católico; vinte anos mais tarde, a cifra mantém-se em 91,77%. Durante o mesmo período, o número daqueles que se declaravam espíritas chegou até a baixar: de 1,59% em 1950 cai para 1,27% em 1970[49].

Tais dados maravilhavam o referido pesquisador, uma vez que o crescimento dos movimentos religiosos autônomos e do assim chamado "baixo espiritismo" é claríssimo. É o que já indicava, por exemplo, o seguinte quadro, tirado de uma pesquisa realizada há mais de três décadas numa favela carioca:

1937 1500 habitantes 1 capela católica   2 centros espíritas
1952 4513 habitantes 1 capela católica 1 Igreja protestante 4 centros espíritas
1967 30702 habitantes 1 capela católica 9 igrejas protestantes 18 centros espíritas[50]

Sem dúvida, a agressividade apologética dos decênios anteriores ao Concílio Vaticano II sofreu um grave revés. Nada mais fez senão apavorar as pessoas e inibi-las socialmente – o que explicaria porque existe a tendência difusa de se esconder a segunda religião. Segundo Ribeiro de Oliveira, os fautores da ortodoxia tiveram, então, de se render à mistura ritual, a fim de não perder a hegemonia na sociedade civil[51].

Todavia, como foi possível este revival explícito, sobretudo após a década de sessenta, de heranças simbólico-religiosas consideradas praticamente desaparecidas? M. C. Azevedo sugere quatro fatores que poderiam explicar o recente "fenômeno espírita"[52].

  1. Nas últimas décadas verificou-se uma notável reaproximação de populações de origem africana dos cultos e elementos subjacentes à sua cultura. Os portões foram escancarados após a perda da estrutura rural que sustentava a religiosidade popular católica. Contemporaneamente, foi intensificado o processo de descriminalização das expressões culturais afro-brasileiras[53].
  2. O espiritismo responde, além do mais, à necessidade popular do maravilhoso, que uma vez impregnara o catolicismo rural, e que provinha basicamente de determinadas fontes africanas e indígenas. A paróquia católica urbana - CEBs incluídas - não vinha satisfazendo mais esse aspecto[54].
  3. Segundo M. C. Azevedo, com exceção da linha kardecista, os demais espiritismos não têm uma grande bagagem de conteúdos mentais que promovam a pessoa mediante novos conhecimentos - como, por exemplo, faz a Bíblia. Oferecem, em vez, um novo espaço à sensibilidade e à afetividade que supre suficientemente a dimensão lúdica do catolicismo festivo. Creio, porém, que essa consideração seja um tanto redutiva, a saber: Bíblia = conteúdos mentais = conhecimento. O simbólico, a comunidade e o processo de iniciação devem ser considerados como parte integrante do processo do conhecimento. Por outro lado, não se pode dizer que esses outros nada tenham de mais profundo a oferecer. O caso é que nem todos os clientes do que Azevedo chama, genericamente, de espiritismo estão dispostos a enfrentar o longo e exigente caminho iniciático.
  4. Por fim, o espiritismo, nesse sentido lato usado por Azevedo, representaria uma verdadeira ruptura contra dois elementos decididamente caros à igreja: a palavra (Bíblia) e os sacramentos. Todavia, isso não requer - como fazem, em geral, os movimentos religiosos pentecostais - um distanciamento institucional. O católico que o freqüenta não se sente no dever de abandonar a igreja, e procura manter as duas pertenças, uma vez que ambos se complementam na resposta a suas necessidades religiosas.

A alternativa espírita atrai sempre mais o apelo religioso das pessoas. Os ritos católicos de integração da biografia individual já vêm sendo repetidos sem muita clareza e convicção, deixando progressivamente o espaço ao espiritismo. Uma tendência que, no parecer de M. C. Azevedo, poderá reduzir ou eliminar a ambigüidade da prática religiosa das pessoas. O Autor vislumbra a lenta passagem de um catolicismo popular festivo para um espiritismo popular festivo. O espiritismo ritual já deve ter ultrapassado o catolicismo ritual (velas, despachos, devoções a São Jorge, Cosme e Damião, Iemanjá). "Talvez, a própria missa católica - 7º dia, etc. - já esteja situando-se, de modo impreciso, entre a 'convenção social' pura e um confuso 'ritual' passivo e não compreendido"[55].

Não se deve esquecer, porém, de que tanto as igrejas pentecostais quanto o espiritismo têm a vantagem de contar com estruturas acentuadamente aliviadas do peso hierárquico-piramidal, com a conseqüente homogeneização das classes. Daí resulta a crescente aproximação entre membros e lideranças. Soma-se a isso a efetiva rede assistencial que tais organizações têm em mãos, e que fazem estrepitoso sucesso em meio aos milhões de doentes, abandonados pelos órgãos públicos (ir-)responsáveis.

Aliás, é preciso sublinhar o peso da secularização e da modernidade, sempre mais sentido em ambientes uma vez hermeticamente católicos. Os grandes fluxos migratórios em direção aos pólos industriais do sul e a recrudescente penetração do paradigma burguês nos sertões e florestas tiraram da igreja católica seu secular berço-reservatório de cristãos. Tal sociedade patriarcal a poupou, durante um longo período, da preocupação de obter dos fiéis uma resposta cristã adulta, fruto de convicção pessoal, e independente do ambiente[56].

Por isso, ser católico e ser brasileiro, apesar do anticlericalismo explícito da República Velha (1889-1930), praticamente permaneceu como sinônimo. E, com exceção de solitárias vozes no deserto, a sociedade religiosa instaurada perdeu a oportunidade de ser Eu-angelion. Não foi uma Boa Notícia para os povos cujos cuidados assumira. Não foi, portanto, igreja para eles.

Por conseguinte - eis minha hipótese - fenômenos como os da dupla pertença religiosa, que hoje, se não estiverem mais disseminados, ao menos são mais explícitos, não são propriamente perversões do cristianismo. São, ao contrário, uma crítica, mais ou menos velada, ao cristianismo real (modelo "vale-de-lágrimas", por exemplo) em que as pessoas vivem. É preciso também levar em conta que, durante cerca de três séculos, viveu-se no Brasil o catolicismo possível, ou seja, aquele permitido pelo sistema do padroado. Diversas disposições do Vaticano não foram observadas na Colônia portuguesa, por terem sido vetadas pelo filtro do Estado. Além disso, há na igreja da "primeira evangelização" um equívoco estratégico basilar: insistiu-se cedo demais na sacramentalização. As pessoas, desse modo, somente captaram a idéia de uma "magia mais eficaz" (J. L. Segundo), porque proveniente dos conquistadores.

Após o que foi exposto, é possível considerar essa, ao menos aparente, mistura de significantes religiosos de um ponto de vista mais positivo, muito embora não menos complexo. Não mais como depravação ou apostasia, mas antes como variação legítima que aponta para o Eu-angelion de Deus: o Reino.

Por outra parte, um adepto do candomblé ou do batuque sulino talvez pudesse igualmente afirmar que o sincretismo afro-católico é um desdobramento cabível entre os que sonham a Aruanda futura. Algo como uma recíproca inreligionação, para dizê-lo com a categoria proposta por Torres Queiruga[57]. Seja como for, tal asserção merece ser retomada em seus pormenores em outros trabalhos.

3.2. Todas as religiões são verdadeiras

Um primeiro obstáculo à mencionada mudança de perspectiva reside no arraigado preconceito ainda vigente. Desde o início do século, e com a permissão mais ou menos tácita da hierarquia católica, as casas de candomblé e, posteriormente, as tendas de umbanda foram sistematicamente perseguidas pela polícia. A diversidade político-religiosa era assim fichada e relegada aos dossiês de crimes comuns.

Alguns autores afirmavam, até mesmo, que as religiões de origem africana eram fonte de criminalidade[58]. A nascente psiquiatria nacional rapidamente elencou a umbanda na lista das causas de doença mental - juntamente com a sífilis, o alcoolismo e os males contagiosos. O fenômeno do transe foi mal traduzido como possessão e associado à loucura e a sintomas histéricos.

Embarcada nessa maré de ataques, a igreja católica, em vez do diálogo, preferiu avançar contra "o adversário". Assim lamentava-se o Cardeal Motta, alguns anos antes do último Concílio Ecumênico do Vaticano:

Além do fetichismo dos nossos indígenas e daqueles povos provindos da Ásia e da Europa, nosso povo recebeu esta triste herança oriunda também da África, por intermédio dos antigos escravos negros. Hoje em dia, por uma insensata aberração e falta de espírito, cultiva-se até mesmo a macumba africana com um esnobe pretexto folclorístico. E se presta culto a uma tão bárbara superstição de magia negra justamente em centros que deveriam ser mais representativos da civilização brasileira, como Rio de Janeiro e Bahia. É uma ignomínia a prática de tais abusos entre cristãos... É triste constatar que a marcha do nosso progresso espiritual e cultural seja feita da senzala ao salão, e não do salão à senzala. A macumba é um dos maiores atentados contra a fé, contra a moral, contra os nossos direitos de educação, contra a higiene e contra a segurança. É a atestação alarmante da nossa ignorância religiosa e científica, e da insuficiência da proteção que a polícia nos oferece.[59]

Não é difícil imaginar a reação contrária, igualmente deletéria. A consciência histórica, sempre mais crítica com relação às igrejas cristãs, e a simpatia crescente pelas culturas e convicções religiosas, uma vez massacradas, fazem com que venha à tona uma atitude unilateral - agnóstica e relativista, dirá L. Maldonado[60] - de defesa das tradições populares.

Assim, qualquer tentativa católica de aproximação das religiões cotidianas do povo - mesmo se honestamente disposta a se aculturar - é interpretada, em certos círculos, como intromissão expansionista ou, no mínimo, tal é tido como supérfluo, uma vez que os valores indígenas, da África ou da América, são tidos como absolutos e não devem ser tocados.

Por conseguinte, o que importa é "fazer com que caiam as falsas construções destinadas a operar sugestivas discriminações entre os povos. Não há, nos pretensos desígnios de Deus, nação eleita ou revelação privilegiada, visto que sua revelação é íntegra desde o início e não podia favorecer nenhuma raça"[61].

Semelhante conclusão revela um equívoco logo de partida. Tal raciocínio deixa na penumbra que todo sistema religioso-cultural é uma realidade dinâmica e aberta. E como tal "não pode permanecer imóvel ou se fechar em si mesmo (na sua tradição purista, em seu indigenismo), já que isso equivaleria a cair na endogamia cultural e no etnocentrismo. E, consequentemente, na esterilidade"[62].

O problema reside no dever tal abertura ser feita "de dentro de si mesma, por irradiação e intercomunicação", e não mais mediante "uma força extrínseca, impositiva, coativa"[63]. Por outro lado, é preciso reconhecer que a chegada do cristianismo não significa "preencher de Deus" tradições até aqui vazias de divindade. Esmiuçando a questão, A. Torres Queiruga defende duas idéias fundamentais. A primeira é "a presença real de Deus no centro de toda a realidade e no coração mesmo de toda a história humana"[64]. Resulta, por isso, inadmissível a relação cristianismo-religiões segundo esquemas do tipo: religião/não-religião ou mesmo presença/ausência de Deus.

A segunda idéia propugna a eleição do povo de Israel e, respeitadas as diferenças, aquela dos primeiros cristãos, não mais como um privilégio que separa, mas antes como "um chamado de alguns a fim de que se atinja melhor a todos"[65]. Caducam, assim, os modelos: religião verdadeira/religiões falsas, uma vez que "todo ser humano está numa constitutiva relação sobrenatural com Deus e, portanto, em contato vivo com ele, e as religiões são justamente a tematização de tal relação e desse contato".

Portanto, "todas as religiões são verdadeiras", pois, "nelas se capta realmente, embora inadequadamente, a presença de Deus. Os limites estão no modo e na definitividade"[66]. Queiruga insiste no valor absoluto das religiões "na medida que nelas se joga o destino definitivo de tantos seres humanos" (p. 343). Mas, a presença divina pode aí aparecer obscurecida e deformada, inclusive na religião bíblica (aberrações teóricas e perversões práticas) como preço inevitável pago por Deus para que seu amor salvador penetre na história respeitando a liberdade humana (p. 414).

Quanto a esse pretenso valor absoluto, a questão não é tão pacífica, como se pode ver na crítica feita por M. Fraijó ao teólogo galego. Fraijó questiona se é possível aceitar que o destino definitivo do ser humano esteja ligado à prática de uma religião. "Não depende esse destino, ultimamente - pergunta-se Fraijó - de um Deus que não tem de se submeter necessariamente a nenhuma religião?"[67].

Seja como for, a única dialética autêntica, afirma Torres Queiruga, é esta: verdadeiro/mais verdadeiro; ou ainda: bom/melhor. Jamais: mau/bom[68]. O limite da revelação não é imposto por Deus. Ao contrário, ele "procura de todos os meios se fazer notar, no modo mais rápido e intenso possível, pelo maior número de seres humanos". O limite se encontra "na impossibilidade da criatura"[69].

De qualquer forma, Torres Queiruga pretende demonstrar que a manifestação definitiva de Jesus supera todos os pecados e deformações do processo revelatório. Não se poderia detectar aí, entretanto, certo "favoritismo" por Israel? A troco de quê? Na verdade, assevera o autor, a eleição nada mais é que a "estratégia do Amor" investindo numa determinada tradição cultural-religiosa que se mostrou mais "sensível", para alcançar de modo mais rápido, fácil e pleno a todos os povos. "Não se trata", diz o autor, "do fato de que Deus comece sua manifestação ao ser humano mediante a história bíblica. Ocorre, em vez, que no seio de tal manifestação à humanidade (...) um grupo determinado iniciará um tipo peculiar de experiência [e] por diversas circunstâncias (...) desenvolverá uma especial sensibilidade para captar a 'pressão' religiosa de Deus sobre a consciência da humanidade"[70].

Com a "parábola de Tetragrammaton" e, pouco adiante, com o exemplo do professor que investe no aluno de destaque da turma, ele defende que "cultivar intensamente a um só é o melhor meio de alcançar mais rapidamente a todos" (p. 277). O fato, explica o teólogo galego, é que as respostas judaico-cristãs tornaram-se possíveis graças a uma confluência de fatores históricos, ambientais, etc., aliados à inventividade humana. Respostas concernentes às necessidades sentidas, ratificaria Boka di Mpasi.

Desse modo, banhado na cultura religiosa do Antigo Oriente, Israel forjou, com uma sensibilidade sem precedentes, um caminho/tradição original de acolhida/captação da presença divina em seu caráter pessoal e histórico. Foi, então, "possível a aparição de personalidades religiosas que iam captando cada vez mais clara e intensamente a palavra viva e a ação livre de Deus (...) e, ao mesmo tempo, iam enriquecendo as possibilidades dessa tradição" (p. 415). Deus se aproveitou dessas possibilidades (de fato, sustentadas por ele) para oferecê-las também aos demais povos. Foi um modo encontrado por seu amor-sem-fronteiras para tocar o máximo possível a toda a humanidade. "Fazendo avançar até a plenitude [Jesus Cristo] o phylum mais maleável e propício de Israel, [Deus] podia oferecer a todos, desde sua própria história externa, os frutos desses avanços" (Ibid.).

A religião bíblica apresenta-se, portanto, qual um oferecimento maiêutico diante das outras religiões, como a possibilidade para que cheguem à "plenitude de si mesmas". Torres Queiruga pretende, assim, resgatar o sentido da eleição bíblica enquanto missão a favor dos demais; nunca privilégio exclusivista. Daí a importância do diálogo com as religiões: a) para descobrir melhor a presença do Deus que é de todos e a todos se manifesta; b) porque esse "oferecimento maiêutico" apóia-se não na excelência de nossa própria tradição religiosa, mas na "coisa mesma": o Deus que quer ser "dado à luz" na consciência de toda a humanidade; c) porque assim todas têm algo a oferecer; pois, se, de fato, nós estamos situados no phylum da manifestação definitiva, tal não significa que já a realizemos plenamente em nossa acolhida. Se oferecermos o nosso avanço, certamente também receberemos dos demais elementos que só se dão, ou se dão melhor, em suas religiões. Afinal, todos damos e recebemos porque nada é nosso; tudo é graça destinada a todos (p. 416).

Certamente é louvável o esforço dialogal de Torres Queiruga. Mas, como era de se esperar, o desconforto permanece; pois, tudo indica que não possamos abrir mão da convicção de que se tenha alcançado "a plenitude definitiva - dentro do que cabe na história - somente em Cristo, que em sua insuperável comunhão com o Pai culmina a tradição bíblica" (p. 351). Seria esse o limite do (macro-)ecumenismo e da inculturação da fé? Afinal, é impensável que as demais religiões se submetam a essa normatividade definitiva de Cristo.

As objeções de M. Fraijó dão uma idéia da agudez e dramaticidade do problema[71]. No seu modo de ver, o enfoque de Torres Queiruga não consegue romper o círculo do etnocentrismo. Não é o caso, diz ele, de recordar a Israel sua condição de "melhor aluno da classe". Aliás, seria mesmo uma "estratégia do amor" dedicar-se intensamente a um só para chegar mais rápido aos demais? E se pergunta se "não seria mais pertinente reconhecer que não sabemos por que Deus elegeu a Israel, se é que Deus existe e elege? É possível medir [quantificar] a maturidade religiosa de um povo? Não seria possível que existissem culturas, anteriores a Israel, com mais sensibilidade e elevação religiosa do que o 'povo eleito'? (...) Não seria 'mais genuinamente religioso' se contentar com uma universalidade restrita, renunciar a pretensões absolutas, competir fraternalmente pela verdade e deixar ao Deus único que, no final de todos os percalços históricos, revele, se considerar oportuno, que religião, que forma de buscá-lo, foi 'mais verdadeira'?"[72].

Poder-se-ia, é claro, replicar a Fraijó que não é possível entrar neutros nesse mar, se se quiser evitar a confortável posição das ciências da religião. Mesmo assim, suas questões merecem, sem dúvida, uma atenta reflexão.

Pois bem, retornando à problemática principal deste trabalho - o sincretismo afro-católico - como se poderia articular em tal contexto o esquema verdadeiro/mais verdadeiro? De que modo e com que grau de definitividade este sincretismo consiste numa presença reveladora de Deus? As pessoas envolvidas em tais situações seriam simultaneamente pré-cristãs e cristãs? Que papel caberia às igrejas cristãs nesse processo?

3.3. Dupla religião, único catalisador

Enfrentar o problema partindo do papel correspondente à igreja não é um empreendimento fácil. Se a igreja, ao longo da história do Brasil - e independentemente da boa vontade dos indivíduos - foi pouco evangélica e/ou evangelizadora, como se confrontar hoje com o povo "católico-de-candomblé" que a circunda? Como reapresentar hoje, num contexto de mixagem religiosa, a sua "necessária função salvífica" (LG 14)? A devida deferência com relação às culturas autóctones não deveria, de uma vez por todas, fazê-la abdicar do anúncio do modelo eclesial romano? Que significa, na prática, respeitar o ritmo e os tempos de nosso povo sincrético? Qual é esse ritmo e como age, ao longo da história, a sua acolhida da oferta gratuita de Deus?

Poder-se-ia perguntar, além disso: quem, como e a qual preço, deve assumir hic et nunc a tarefa da (nova) evangelização? Admitindo que seja a igreja local o agente evangelizador do povo sincrético, quem seriam os parceiros concretos neste diálogo: os teóricos de tais religiões, os testemunhos do fiel comum (católicondomblezeiro) ou os arrazoados dos teólogos cristãos? Todos os três?

De fato, não é o mesmo pedir explicações aos intelectuais da emergente umbanda e depois escutar a palavra de seus adeptos. Existe continuidade e descontinuidade entre os dois níveis - um terceiro nível abrange os clientes ocasionais. E é justamente esse fenômeno que permite o tráfego de um sistema religioso a outro. Tanto as respostas umbandistas quanto as católicas - em princípio descontínuas entre si – acomodam-se a certo esquema mental e o reforçam. Na prática, porém, este não é substancialmente modificado (ao menos, não a ponto de tornar plausível uma conversão propriamente dita).

Se alguém continua a freqüentar a missa e os sacramentos sem abdicar dos passes contra malefícios e dos despachos nas encruzilhadas, isso pode significar que a sua leitura pragmática reconhece a eficácia de ambos os rituais, o católico e o do candomblé, por exemplo[73]. Tal atitude deixa perplexos os próprios mestres-dirigentes do candomblé[74]. A percepção instrumental da religião, freqüente nos clientes e, às vezes, notada mesmo entre os abiyan (os futuros filhos de santo), é reiteradamente censurada pelas mães e pais-de-santo. "Isso não é problema de santo", dizem, assim "indicando que o filho tem uma perspectiva equivocada da religião, quando a imagina capaz de preservá-lo de todos os dissabores cotidianos. Ainda mais, quando imagina 'o santo' como 'algo' que lhe seja exterior ou estranho"[75].

Portanto, a mixagem e a busca mágica do sobrenatural desconcerta ambos os sistemas religiosos. Parece que, tanto para o cristianismo quanto para o candomblé, a separação entre o mágico e o mí(s)tico seja feita por um fio demasiadamente tênue. Em suma, uma constante antropológica que não deve ser esquecida em discussões teológicas ulteriores. Sim, porque agora seria preciso definir a pertinência teológica de nosso tema: em que deveria consistir uma teologia do sincretismo afro-brasileiro? Esta, entretanto, já é tarefa para outro artigo.

Bibliografia

ANCHIETA J. de, Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões(1554-1594), RJ

Civilização Brasileira, 1933.

APPIAH K. A., Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, RJ, Contraponto, 1997.

ASETT, Identidade Negra e Religião: consulta sobre cultura negra e teologia na América Latina, RJ- S. Bernardo, CEDI-Liberdade, 1986.

ATABAQUE-ASETT, Teologia afro-americana: IIª consulta ecumênica de teologia e culturas afro-americana e caribenha, SP, Paulus, 1997.

AZEVEDO M. C. de, Comunidades Eclesiais de Base e Inculturação da Fé, SP, Loyola, 1986.

BASTIDE R., As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações, v. I-II, SP, Pioneira, 1971.

________, Estudos Afro-Brasileiros, SP, Perspectiva, 1973.

________, As Américas Negras, SP, Edusp-Difel, 1974.

BEOZZO J. O., "A família escrava e imigrante na transição do trabalho escravo para o livre. A Igreja Católica ante os dois tipos de família", em MARCILIO M. L., Família, mulher, sexualidade e Igreja na História do Brasil, SP, Loyola, 1993, p. 29-99.

BOKA DI MPASI L., "Libertação da expressão corporal na liturgia africana", em Concilium 16/2 (1980) 95-108.

_______, "A propós des religions populaires d'Afrique subsaharienne", em Téléma, Kinshasa, 18/2 (1979) 19-50.

_______, "Per una pastorale familiare africana", trad. do orig. em Telema 26/2 (1981) 29-51.

_______, Religioni e Cultura in Africa, PUG-Roma, 1988/89.

COSTA N. M., "O misticismo na experiência religiosa do Candomblé", em VÁRIOS, Religiosidade Popular e Misticismo no Brasil, SP, Paulinas, 1984, 94-120.

ELA J-M., "Os antepassados e a fé cristã: um problema africano", em Conc. 13 (1977): 63-86.

FERNANDES G., Xangôs do Nordeste, Rio, Civilização Brasileira, 1937.

FRAIJÓ M., Fragmentos de esperança, SP, Paulinas, 1992.

FREYRE G., Casa Grande & Senzala, 23 ed. RJ, José Olympio, 1984.

FRISOTTI H., Passos no diálogo: igreja católica e religiões afro-brasileiras, SP, Paulus, 1996.

HOORNAERT E., Formação do catolicismo brasileiro: 1500-1800, Petrópolis, Vozes, 1974.

__________, "Formação do catolicismo guerreiro no Brasil: 1550-1800", REB 132 (1973): 854-885.

KLOPPENBURG B., "Os afro-brasileiros e a umbanda", em CELAM, Os grupos afro-americanos, SP, Paulinas, 1982, p. 185-211.

LAFONT G., História teológica da igreja católica, SP, Paulinas, 2000.

LADURIE M.LE ROY, Paques africaines, Paris, Mouton, 1965.

LUKAMBA A., Evangelização. Encontro vivo na cultura umbundu de Angola, SP, Loyola, 1987.

MAGALHÃES A. C. de M., "Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica", em Estudos de Religião, UMESP, n. 14 (1998): 49-70.

MALDONADO L , Introducción a la religiosidad popular, Santander, Sal Terrae, 1985.

MATTOSO K. Q., Ser escravo no Brasil, 2ª ed. Ed. Brasiliense, SP, 1988.

MBITI J. S., African religions & philosophy, 2ed. Oxford, Heinemann, 1990.

MULAGO V., Simbolismo religioso africano: estudio comparativo con el sacramentalismo cristiano, Madri, BAC, 1979.

O'COLLINS G., Para interpretar a Jesus, trad. espanhola. Madrid, Paulinas, 1986.

ORTIZ R., A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes, Petrópolis, Vozes, 1978.

_______, A Consciência Fragmentada: ensaios de cultura popular e religião, RJ, Paz e Terra,1980.

REHBEIN F., Candomblé e Salvação. A religião nagô à luz da teologia cristã, SP, Loyola, 1985.

RIBEIRO DE OLIVEIRA P., "Coexistência das Religiões no Brasil", em VOZES 71/7 (1977): 35-42.

ROLIM F. C. "Religiões Africanas no Brasil e Catolicismo. Um Questionamento", em África. USP-FFLCH, Rev. do CEA, 1978(1): 41-62.

SCARANO J., Devoção e Escravidão, SP, s/ed., 1976.

SANTOS J. E. Os Nagô e a morte - padé, asesé e o culto egun na Bahia, 3ed. Vozes, 1984.

SEGUNDO J. L., Ação Pastoral Latino-Americana: seus motivos ocultos. SP, Loyola, 1978.

_________, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I: Fé e Ideologia, SP, Paulinas, 1985.

_________, O dogma que liberta: fé, revelação e magistério dogmático. 2 ed. SP, Paulinas, 2000.

_________, Que mundo? Que homem? Que Deus? SP, Paulinas, 1995.

SETILOANE G. M., Teologia africana: uma introdução, S. Bernardo, EDITEO, 1992.

SILVA A.A. da (org.), Existe um pensar teológico negro?, SP, Paulinas, 1998.

SOARES A.M. L., Negros: uma história de migrações, 2 ed. SP, CEM., 1996 (1ª ed.: 1988).

_______, Le religioni afrobrasiliane e l’inculturazione della fede, Roma, PUG, 1990.

______, "O eclesial das comunidades de base e a mistura religiosa: um desafio para a inculturação da fé", em ESPAÇOS , SP, ITESP, 1/1 [1993]: 55-70.

______, "APNs: Pastoral específica e CEBs", em VÁRIOS. Agentes de Pastoral Negros 10 anos: conscientização, organização, fé e luta. SP, Atabaque-Asett, 1993: 42-49.

______, "Os deuses também migram: a presença africana na cultura brasileira", em Diálogo, SP, Paulinas, 2, ano 1 (1996): 27-32.

_______, "Candomblé, sincretismos e cristianismo: um diálogo com J. L. Segundo", em Juan Luis Segundo - uma teologia com sabor de vida. SP, Paulinas, 1997, 121-144.

______ , "A dívida para com as famílias negras", em V. C. de SOUSA JR., Uma dívida, muitas dívidas: os afro-brasileiros querem receber, SP, Loyola, 1998, 9-22.

_______ , Sincretismo e inculturação: pressupostos para uma aproximação teológico-pastoral às religiões afro-brasileiras, buscados na epistemologia de Juan Luis Segundo. S. Bernardo-SP, UMESP, 2001.

SOUZA L. de M e, O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial, SP, Companhia das Letras, 1999.

T’ÒGÚN A., Elégùn: iniciação no candomblé – feitura de ìyàwó, ogán e ekéjì, 2ed. RJ, Pallas, 1998.

TORRES QUEIRUGA A., A revelação de Deus na realização humana, SP, Paulus, 1995.

______ , O diálogo das religiões, SP, Paulus, 1996.

______, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus: por uma nova imagem de Deus. SP, Paulinas, 2001.

TRINDADE L., Conflitos sociais e magia, SP, Hucitec-Terceira Margem, 2000.

VÁRIOS, História da Igreja no Brasil, 2 vol., 3ed. Petrópolis, Vozes/Paulinas, 1983.

Notas

[*] Assistente-Doutor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e membro do Grupo Atabaque de Teologia e Cultura Negra. Licenciado em Filosofia pela PUC-PR e bacharel em Teologia pelo ITESP, é Mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana e Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Endereço eletrônico:

[**] O leitor saberá ser condescendente com meus óculos judaico-cristãos em expressões como esta: exílica.

[***] De novo, um lapsus oriundo do jargão teológico ocidental.

[1] A. M. L. SOARES, Sincretismo e inculturação: pressupostos para uma aproximação teológico-pastoral às religiões afro-brasileiras, buscados na epistemologia de Juan Luis Segundo (UMESP, 2001).

[2] Tenho minha própria sugestão a respeito, a categoria "fé sincrética", que é objeto de outros artigos. Cf., por ex., A. M. L. SOARES, "Candomblé, sincretismos e cristianismo: um diálogo com J. L. Segundo", em Juan Luis Segundo - uma teologia com sabor de vida, p. 121-144.

[3] Cf.: A. M. L. SOARES, Negros, da col. Cadernos de Migração e Idem, "A dívida para com as famílias negras", em V. C. de SOUSA JR., Uma dívida, muitas dívidas: os afro-brasileiros querem receber, p. 9-22.

[4] Cf., dentre outros, K. Q. MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 125; J. O. BEOZZO, "A família escrava e imigrante...", p. 53.

[5] Foi o que apurei no Livro-tombo da atual Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca (São Paulo, capital), originalmente gerenciada pela Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Homens Brancos (s. XVII).

[6] J. SCARANO, Devoção e Escravidão, p. 130; R. BASTIDE, As Religiões Africanas no Brasil, I, p. 79; E. HOORNAERT et alii, História da Igreja no Brasil, II/1, p. 383-401.

[7] E. HOORNAERT, "Formação do Catolicismo Guerreiro no Brasil: 1500-1800", em REB, 132 (1973): 854-885.

[8] J. L. SEGUNDO, El dogma que libera, p. 259-266.

[9] E.HOORNAERT, "Os grandes missionários", em Vários, História da Igreja no Brasil, v.II/1, p. 104-124.

[10] J. O. BEOZZO, "A Igreja e a Escravidão", em Vários, História da Igreja no Brasil, v.II/2, p. 263-264.

[11] "Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707)" apud J. O. BEOZZO, em Vários, História da Igreja no Brasil, v. II/2, p. 271.

[12] Cf. por exemplo: F. REHBEIN, Candomblé e Salvação. A religião nagô à luz da teologia cristã, p. 81-89; B. KLOPPENBURG, "Los afrobrasileños y la Umbanda", p. 155-178.

[13] P. VERGER, apud F. REHBEIN, Candomblé e Salvação, p. 84, n. 142.

[14] B.KLOPPENBURG, "Los afrobrasileños y la Umbanda", p. 163.

[15] R.BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, v. I, p. 181-189.

[16] F. C. ROLIM, "Religiões Africanas no Brasil e Catolicismo. Um Questionamento", em África. USP-FFLCH, Rev. do CEA, 1978(1): 41-62.

[17] R. BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, v. II, p. 362-380.

[18] Uso aqui o termo ideologia na acepção sugerida por J. L. Segundo (O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré).

[19] R. BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, v. I, p. 202. De fato, Bastide não fala de uma "purificação" do catolicismo efetuada pelos negros, mas antes de seu desgarramento.

[20] P. VERGER, apud F. REHBEIN, Candomblé e Salvação, p. 84.

[21] R. BASTIDE, As religiões africanas, v. II, p. 376-380.

[22] R. ORTIZ, "Do Sincretismo à Síntese", em Idem, A Consciência Fragmentada, p. 102-103.

[23] Esta seção depende principalmente de L. B. DI MPASI (Religioni e Cultura in Africa, PUG-Roma, 1988/89).

[24] K. A. APPIAH, Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, p. 155-192.

[25] L.BOKA DI MPASI, "Sulle religioni popolari dell'Africa...", p. 20-32.

[26] Idem, Religioni e Cultura in Africa, anotações pessoais. Para os antepassados, ver também J-M.ELA, "Os antepassados e a fé cristã: um problema africano", em CONCILIUM, 13/2 (1977): 63-86.

[27] Para Boka di Mpasi, o rito não é o que M. Eliade entendia ser uma repetição no tempo, horizontal, de um fato originante; mas antes uma relação encarnatória (que atualiza) do invisível no visível, do espírito no corpo; é, portanto, vertical desde sempre (Cf. Religioni e Cultura in Africa).

[28] M.LE ROY LADURIE, Paques africaines, Paris, Mouton, 1965, p. 163s.

[29] Entretanto, é preciso ter cuidado para não aproximar sem mais essa moralidade descrita por Mpasi da concepção ético-moral de corte cristão.

[30] J. E. dos SANTOS, Os Nagô e a morte: padé, asesé e o culto egun na Bahia, p. 53-60.

[31] J-M.ELA, "Os antepassados e a fé cristã...", p. 67.

[32] L.BOKA DI MPASI, "Sulle religioni popolari dell'Africa...", p. 14.

[33] J-M.ELA, "Os antepassados e a fé cristã...", p. 72.

[34] Ibidem, p. 76.

[35] Cf. J. L. SEGUNDO, Que mundo, que homem, que Deus?, cap. 5 e 11 sobre o dogma da providência divina.

[36] Para uma crítica aos erros cometidos na África, pode-se ver, dentre outros, J-M.ELA, "Os antepassados e a fé cristã...", p. 70-76.

[37] L.BOKA DI MPASI, "Sulle religioni popolari dell'Africa...", p. 13.

[38] J. E. dos SANTOS, Os Nagô e a morte, p. 72-129.

[39] Idem, Religioni e Cultura in Africa.

[40] Ibidem. Sobre o muntu, ver Idem, "Liberação da expressão corporal...", p. 98-100.

[41] Cf. clássicos como G. Freire, Câmara Cascudo, e contemporâneos como R. Da Matta, M. Sodré, etc.

[42] Será preciso retomar, em outra ocasião, a questão da simbólica, isto é, da linguagem icônica como desembocadura indispensável da teologia (Cf. A. M. L. SOARES, Sincretismo e inculturação, cap. III e V).

[43] Não confundir símbolo com sinal. Este último é uma convenção muito mais artificial. A. LUKAMBA (Evangelização: encontro vivo na cultura umbundu de Angola) trabalha o tema quando analisa o sinal e o símbolo na cultura umbundu (p. 23-41) e descobre convergências antropológicas com a pesquisa atual do sinal (p. 43-54).

[44] N. M. COSTA, "O misticismo na experiência religiosa do Candomblé", em Vários, Religiosidade Popular e Misticismo no Brasil, p. 98. Para uma descrição pormenorizada dos ritos de iniciação, ver, dentre outros: A. T’ÒGÚN, Elégùn: iniciação no candomblé – feitura de ìyàwó, ogán e ekéjì.

[45] N. M. COSTA, art. cit., p. 100 e 108.

[46] Ibid., p. 100-101.

[47] L. BOKA DI MPASI, "Liberação da expressão corporal na liturgia africana", p. 102.

[48] G. O'COLLINS, Para interpretar a Jesus, p. 252.

[49] P. A. RIBEIRO DE OLIVEIRA, "Coexistência das Religiões no Brasil", p. 39.

[50] C.A. DE MEDINA & L.VALADARES, Favela e religião - um estudo de caso.

[51] O leitor veja a crítica de Ribeiro de Oliveira no artigo supramencionado. Pelo que diz respeito à progressiva tolerância à Umbanda por parte da Igreja católica, remeta-se a R. ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 178-192.

[52] M. C. AZEVEDO, Comunidades Eclesiais de Base e Inculturação da fé, p. 140-144. Todavia - o próprio autor o reconhece - o termo espiritismo é aqui utilizado num sentido muito lato, abrangendo a pluralidade das religiões afro-brasileiras (Ibid., p. 140, n. 10).

[53] Na década de vinte são liberadas as Escolas de Samba. Depois de 1932, o (futuro) ditador populista Getúlio Vargas concede a liberdade também à capoeira, com a condição de que esta se tornasse uma arte marcial nacional. Privilegiava, assim, o aspecto de competição esportiva, descartando seus fundamentos culturais. A Nova Constituição de 1946 concedeu a liberdade religiosa de culto.

[54] O atual surto do catolicismo neopentecostal (vide Renovação Carismática Católica) investe nessa demanda do público católico.

[55] M. C. AZEVEDO, Comunidades eclesiais de base e inculturação da fé, p. 142, n. 13.

[56] J. L. SEGUNDO, Ação Pastoral Latino-Americana - seus motivos ocultos, p. 26-29.

[57] Torres Queiruga cunha o termo inreligionação para dar conta de um novo paradigma da teologia católica que aceite as religiões como autênticos caminhos de salvação e que, portanto, se disponha a conservá-las, enriquecendo-as. "Assim como, na ‘inculturação’, uma cultura assume riquezas de outras sem renunciar a ser ela mesma, algo semelhante ocorre no plano religioso: (...) no contato entre as religiões, o movimento espontâneo em relação aos elementos que lhe chegam de outra deve ser o de incorporá-los em seu próprio organismo, que, desse modo, não desaparece, mas, pelo contrário, cresce. Cresce a partir da abertura ao outro, mas na direção do mistério comum" (A. Torres Queiruga, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 333-334).

[58] G. FERNANDES, Xangôs do Nordeste (1937). Apud R. ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 179-180.

[59] Card. MOTTA, "Combate ao Espiritismo", em Boletim Eclesiástico, Arquidiocese de São Paulo (julho de 1953), p. 302. Apud R. ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 182.

[60] L. MALDONADO, Introducción a la religiosidad popular, p. 49.

[61] G. MOREL, apud A.TORRES QUEIRUGA, La revelación de Dios..., p. 316, n. 6.

[62] L. MALDONADO, Introducción a la religiosidad popular, p. 49.

[63] Ibid., p. 49.

[64] A.TORRES QUEIRUGA, La revelación de Dios ..., p. 385 (principalmente: p. 161-242).

[65] Ibid., p. 385; e: p. 314-333.

[66] Ibid., p. 385 e 480. Grifos do autor.

[67] M. FRAIJÓ, Fragmentos de esperanza, p. 206.

[68] A.TORRES QUEIRUGA, La revelación de Dios ..., p. 386.

[69] Ibid., p. 325 e 323 respectivamente.

[70] Ibid., p. 287-295 e 327.

[71] Cf. M. FRAIJÓ, op. cit., sobretudo as p. 217-226.

[72] Ibidem, p. 224-225.

[73] Com relação ao candomblé, nagô ou de Angola, há três níveis ou modalidades de experiência religiosa e mística: a) aquela dos iyawo: o transe místico com a devida iniciação ou não; b) aquela dos ogan e ekedi: estes, em geral, não "entram em transe"; c) a experiência dos clientes, freqüentadores e observadores (N. M. COSTA, art. cit., p. 96). Em rigor, não se pode falar de uma mentalidade simplesmente mágica no candomblé. Demonstram-no as pesquisas de J. E. dos Santos, P. Verger, N. M. Costa, e tantos outros. Todavia, o pensamento mágico é facilmente localizável entre os clientes: "O Candomblé é percebido como meio para se alcançar um objetivo (...) A busca de uma solução [para as mazelas cotidianas] não significa a aceitação do conteúdo mítico, mas somente de seus resultados. São os efeitos benéficos que os incentivam a voltar ao Candomblé (...) O 'cliente' não assume a dimensão mística da religião, [mas somente] algumas exterioridades comunicáveis; não obstante isso, enfrenta as exigências implícitas nas obrigações 'para que tudo seja feito bem', somente por seu apelo mágico" (Ibid., p. 107-108).

[74] Pode ser que tal fenômeno cause menos problema aos dirigentes da umbanda, haja vista sua defesa de uma solução eclética de todas as correntes religiosas no Brasil. Segundo a convicção de B. Kloppenburg, a umbanda não é um culto afro-brasileiro e nem mesmo a soma de todos eles. A umbanda "é sobretudo um movimento espírita, às vezes sincretista, que assimila sem nenhuma preocupação com a coerência ou a lógica interna tudo aquilo que das demais religiões considera popular ou capaz de atrair as massas. É um 'populismo' religioso sem escrúpulos" (B. KLOPPENBURG, "Los Afrobrasileños y la Umbanda", p. 166). Para um ponto de vista menos amargo, veja R. ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, sobretudo os Capítulos VI e IX.

[75] N.M.COSTA, art. cit., p. 113.