O mosteiro da Ressurreição na representação de um monge: a história de um mosteiro beneditino na leitura um de seus fundadores

Andréa Mazurok Schactae[*] []

Resumo

Nas três últimas décadas do século XX um maior número de historiadores se voltaram para o estudo de práticas culturais. Entre esses historiadores está R. Chartier, com seus estudos sobre as “representações sociais”. A partir dos conceitos de representação e de apropriação, ele realizou estudos sobre como os grupos representam seus comportamentos e constróem diferentes formas de vida e realidades. Este artigo é uma leitura de uma representação da história do mosteiro da Ressurreição, pertencente a Congregação Beneditina do Brasil. Tal leitura foi realizada a partir de um texto escrito por um dos monges fundadores do mosteiro. A análise do texto que conta uma história do Mosteiro da Ressurreição é uma forma de se identificar uma representação que o grupo construiu de si mesmo. Essa representação é pensada como uma construção coletiva do grupo, que dá sentido a uma realidade, identifica os membros do grupo e é expressa na leitura de um de seus membros.

O mosteiro da Ressurreição, atualmente abadia[1], foi fundado em 1981 na região de Ponta Grossa (cidade localizada aproximadamente 100 km de Curitiba, capital do Estado do Paraná) por um grupo de jovens vindos da abadia de Nossa Senhora da Assunção, na cidade de São Paulo. Esses jovens, então iniciantes na vida monástica[2], pertenciam à Congregação Beneditina do Brasil, cujos primeiros monges chegaram ao Brasil no final do século XVI vindos de Portugal.[3]

A Ordem Beneditina surgiu no século VI com a fundação de um mosteiro, na região de Roma, por Bento de Núrsia. A fim de ordenar seus monges, ele produziu uma regra, a Regra de São Bento, que no final do século XX ainda servia como base para a espiritualidade da ordem beneditina.[4] Nos mais de 1.500 anos de existência da Ordem, as práticas descritas na Regra foram lidas e vividas em diferentes contextos, possibilitando múltiplos significados à condição de monge beneditino. Esses significados resultam das diferentes leituras expressas no cotidiano dentro dos mosteiros beneditinos, que tradicionalmente têm como fundamentos a oração e o trabalho (o estudo, que também faz parte da vida dos monges, pode ser entendido como um trabalho intelectual ou como oração).

Inicialmente, o mosteiro da Ressurreição foi instalado junto ao santuário da “Mãe da Divina Graça”, localizado ao lado do Parque Estadual de Vila Velha. Os monges permaneceram nesse local até 1985, quando se mudaram para o local onde atualmente está o mosteiro, cujo terreno havia sido adquirido em 1983. Em 1984 foi iniciada a construção do edifício nessa área; a comunidade, então, se dividiu – alguns foram para o terreno, para acompanhar as obras, enquanto os demais permaneceram na área de Vila Velha até agosto de 1985, quando a comunidade voltou a se reunir.

a) O mosteiro da Ressurreição não teve um processo de fundação “normal”, segundo as Constituições da Congregação Beneditina do Brasil: “A fundação de um novo mosteiro depende do critério de cada comunidade [...]. Tratando-se de um assunto de suma importância, o plano completo da fundação deve ser amplamente discutido pela comunidade. [...] Resolvida a fundação, cabe ao Abade, consultando o Conselho, escolher o Prior da nova comunidade. Além disso, de acordo com este Superior e ouvindo o Conselho, escolherá os monges que lhe parecerem aptos e interessados em prestar essa ajuda. [...] Os monges da fundação conservam os direitos capitulares no mosteiro de sua profissão até a transferência da própria estabilidade para o novo mosteiro. Para se realizar a fundação, requerem-se preliminarmente: a) - o consentimento do Capítulo (dois terços); b) a autorização do Capítulo Geral ou do Abade Presidente com o seu Conselho; c) o consentimento, por escrito, do Ordinário em cuja diocese venha a localizar-se a fundação.”[5]

O mosteiro da Ressurreição foi fundado por homens que estavam em processo de formação monástica, com uma única exceção: um professo solene[6]. Esse grupo discutiu a fundação do novo mosteiro sem o consentimento do abade do Mosteiro de São Paulo. A fundação é um processo complexo e, depois de fundado, um mosteiro passa por etapas até poder se transformar em abadia, isto é, até alcançar a condição de mosteiro autônomo com condições de fundar outros mosteiros.

Em novembro de 1981 a Santa Sé deu a permissão para a fundação, ad experimentun, do mosteiro da Ressurreição por três anos. Nesse período a instituição ficou sob a jurisdição do abade presidente da Congregação do Brasil, D. Basílio Penido. Em geral, os mosteiros ficam sob a jurisdição da abadia de onde saíram os fundadores. Assim está escrito nas Constituições: ”O Mosteiro dependente constitui, portanto, uma parte da Abadia, não possuindo, salvo, concessão especial, (...) [as seguintes características]: [...] 1- ser canonicamente ereto como tal pela Sé Apostólica; 2 - não depender, em seu governo, de outro Mosteiro; 3 - ter seu próprio Capítulo, constituído por monges com estabilidade firmada para ele; 4 - ter noviciado próprio; 5 - ser capaz de possuir um patrimônio próprio.”[7].

Em outubro de 1984 terminou o período ad experimentun e o mosteiro da Ressurreição passou à condição de Priorado Simples. Em 1987 alcançou o número de monges exigidos pelas Constituições Beneditinas do Brasil e foi erigido Priorado Conventual. Em 1997 foi elevado ao status de abadia – naquele momento, a mais recente das abadias da Congregação (o mosteiro de Nossa Senhora da Assunção, tornado abadia em 1635) contava com mais de três séculos de existência.[8] Segundo as Constituições Beneditinas, em vigência pós Vaticano II, “quando houver razoável segurança de que a fundação esteja em condições de independência, sobretudo se há consenso sobre o futuro Superior, o Abade fundador dirigirá à Santa Sé petição para a ereção canônica da fundação como mosteiro autônomo quer como priorado, se contar pelo menos com seis monges professos solenes, dispostos a firmar a sua estabilidade para o novo mosteiro, quer como abadia, se o número for no mínimo de doze”[9].

Por coincidência, o último mosteiro da Congregação Beneditina do Brasil a ser elevado ao status de abadia – dentre as quatro abadias existentes no país - havia sido aquele de onde saíram os fundadores do mosteiro da Ressurreição.

O mosteiro de Ponta Grossa ficou conhecido nacionalmente em 1994 com o lançamento, pela gravadora Sony, dos CDs “Magnificat I”, “Magnificat II” e “Lux Mundi”. Os monges gravaram um videoclipe e participaram de especiais produzidos pelas redes televisivas Globo e Cultura[10]. Essa não foi, porém, a primeira incursão dos monges na área de lançamentos musicais: eles haviam lançado dois CDs pela Paulinas, em 1992 e 1993, sem a mesma penetração na mídia. O repertório de todos os CDs foi composto por peças clássicas do Canto Gregoriano, em latim, e por composições dos próprios monges do mosteiro da Ressurreição, com adaptação da melodia gregoriana às letras.

Os monges do mosteiro da Ressurreição fizeram uma leitura da Regra que está expressa na representação, isto é, em uma forma de busca do sentido da realidade[11] construída no processo de vivência do grupo fundador. Trata-se de um processo complexo, com conflitos e contradições. Esse processo foi “lido” por um dos monges fundadores do mosteiro – D. Mateus de Salles Penteado - e expresso em um texto. Esse texto serviu como base para a construção do presente artigo, que focaliza o único mosteiro da Congregação Beneditina do Brasil elevado à condição de abadia no século XX.

O texto, que foi lido na Comissão de Intercâmbio Monástico no Brasil (CIMBRA, RJ, 1998), tem como título ”Mosteiro da Ressurreição: Síntese Histórica e Projeto Monástico”. O autor viveu na Abadia de São Paulo de 1976 até 1981 e sua obra pode ser entendida como uma leitura do processo de fundação do mosteiro que expressa o sentido de uma realidade: a história de um mosteiro que pertence a uma das mais antigas ordens religiosas dentro da Igreja Católica Romana. O referido texto é dividido em três momentos: Origens, O Mosteiro da Ressurreição e Unidade e Pluralismo - a última parte diz respeito ao projeto monástico vivido naquele momento pelos monges.

Nossa intenção é fazer uma análise da representação construída pelo grupo fundador em torno do processo histórico do mosteiro onde o mesmo vive. Tal representação, de certa forma, expressa o que é ser monge no mosteiro da Ressurreição. Sendo ela uma construção coletiva, foi lida por um dos fundadores, D. Mateus, e expressa em sua obra[12]. Contudo esse monge se constituiu, enquanto tal, na vivência com o grupo. Mesmo sendo a leitura uma ação individual, é realizada a partir de referências constituídas na relação entre o indivíduo e o grupo social a que pertence – assim ele é, ao mesmo tempo, construído e construtor da representação do grupo.[13]

Uma leitura de uma representação

A crise dos paradigmas tradicionais nas Ciências Sociais, nas décadas de 1970 e 1980, permitiu aos pesquisadores lançarem “novos olhares” sobre suas fontes. Entre os historiadores surgiu uma maior preocupação com o estudo das culturas[14]. Para abordar esse tema, eles recorreram ao auxilio da Sociologia, da Antropologia e da Lingüistica. Os estudos de R. Chartier, por exemplo, estão relacionados a essa diferente construção da História.

É dentro dessa perspectiva que realizamos uma análise do texto de D. Mateus, que deve ser entendido como uma leitura da representação do processo de fundação e que expressa o que é ser monge no mosteiro da Ressurreição. Ora, sendo as representações construções coletivas[15] a partir das quais se fundam as identidades dos grupos que as construíram, mesmo tendo uma história individual o monge se constitui, enquanto tal, dentro das relações com o grupo. Sendo assim, a representação de um indivíduo é compartilhada pelo grupo no qual ela foi forjada e pode ser entendida como uma “representação coletiva”.

Para R. Chartier “não há práticas ou estruturas que não sejam produzidas pelas representações [...] pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é deles”[16]. Desta forma, algumas das prática existentes no mosteiro da Ressurreição (oração, trabalho, estudo e silêncio) são significadas pela representação que o grupo constrói de si e de sua história. A partir delas surge uma identidade coletiva que passa a identificar o grupo fundador e os indivíduos que fazem parte deste mosteiro.

Os indivíduos que não fizeram parte do grupo fundador, ao ingressarem na vida monástica, precisaram se adaptar às práticas existentes, pois é no conjunto das mesmas que eles se identificam como monges beneditinos do mosteiro da Ressurreição. Para se tornar um monge do mosteiro da Ressurreição o noviço deve construir uma imagem que represente o ser monge neste mosteiro. Suas práticas deverão expressar a forma de vida a que ele se propõe. Aceitar as normas e a forma de vida desta comunidade é tornar-se outro, de forma a reproduzir a imagem da coletividade à qual pertence.[17]

Representação é a construção de um sentido para uma realidade, entendendo-se “realidade” como um processo de construção social que se dá dentro de cada grupo. A sociedade é composta por uma multiplicidade de realidades[18] resultante de diferentes formas de representação. As práticas de cada grupo “visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo,”[19] - as que resultam da representação que o grupo constrói de si conferem uma identidade coletiva, a partir da qual cada indivíduo passa a ser reconhecido.

A oração, o trabalho e o estudo, realizados pelos monges, em um local onde o silêncio é tido como um dos elementos centrais da vida monástica, são algumas das práticas que identificam os monges beneditinos do mosteiro da Ressurreição. Elas estão presentes na Regra de São Bento, nas Constituições Beneditinas do Brasil e no Costumeiro do Mosteiro da Ressurreição.

O capítulo 48 da Regra de São Bento aborda o trabalho manual, a leitura e o oração. Entenda-se por oração os Ofícios Divinos, também chamados Liturgia das Horas, isto é, os oito momentos de orações diários (vigílias, matinas, prima, terça, sexta, noa, vésperas e completas), citados no capítulo 16 da Regra de São Bento[20]. No Mosteiro da Ressurreição são realizados sete momentos de oração, mais a lectio divina, leitura e meditação comunitária, da Bíblia.[21]

Com relação ao silêncio, São Bento escreveu no capítulo 6: “raramente seja concedida aos discípulos perfeita licença de falar, por causa da gravidade do silêncio, [...] falar e ensinar compete ao mestre; ao discípulos convém calar e ouvir”; mais adiante no capítulo 42: “os monges devem, em todo tempo, esforçar-se por guardar silêncio, mas principalmente nas horas da noite. [...]; saindo das Completas, não haja mais licença para ninguém falar o que quer que seja. [...]; exceto se sobrevier alguma necessidade da parte dos hóspedes ou se, por acaso, o Abade ordenar alguma coisa a alguém. [...]”. No “Costumeiro”, um livro de regras específico do Mosteiro da Ressurreição, há várias referências sobre o silêncio. Os “lugares regulares” (Capela, Claustro, Biblioteca, Refeitório, Sacristia, Capítulo, Corredores das Celas) “são os lugares comuns onde se mantêm mais rigorosamente o silêncio”.[22] No mesmo documento são dedicadas duas páginas (8 e 9) às explicações sobre o silêncio, que é classificado como “o grande silêncio e o silêncio usual no Mosteiro”.[23]

O trabalho manual é reconhecido por São Bento como um elemento que identifica os verdadeiros monges. Sobre o tema, ele escreveu: “são verdadeiros monges se vivem do trabalho de suas mãos, como também os nossos Pais e os Apóstolos.”[24] No mosteiro da Ressurreição, segundo o Costumeiro, o “trabalho comum, é dividido em dois perídos: pela manhã, das 9:00hs à 12:00hs e à tarde, das 15:00hs às 17:00hs”.

As práticas que expressam a representação construída pelo grupo de monges do Mosteiro da Ressurreição são uma leitura das práticas presentes na Regra de São Bento e das práticas existentes na Ordem Beneditina, o que possibilita a construção de diferentes significados. A oração, o trabalho e o estudo são significados pelo contexto, isto é, pelo grupo, pela forma com que este se representa e pelo momento histórico da fundação do mosteiro. Diferentes significados resultam em práticas com diferentes sentidos, que possibilitam uma transformação no modo de ser monge. Busca-se no passado uma justificativa para o presente; o sentido, porém, esta preso ao seu tempo histórico.

Em uma representação estão presentes diferentes temporalidades, segundo Spink: “o tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização - o território do habitus, das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social.”[25]

O texto de D. Mateus expressa três temporalidades: a longa duração, quando se refere às práticas existentes nos mosteiro do século VI e na Congregação Beneditina do Brasil; a história vivida, isto é, como os fundadores se apropriaram destas práticas; e a necessidade de se construir uma representação, na qual a longa duração e o vivido se constituem em identidade do grupo, significando que as suas práticas resultam de um processo relacional, que ocorre entre a construção de uma representação e as necessidades do grupo. Elas são uma representação construída pelo grupo fundador, da qual os homens que passam a fazer parte do mosteiro se apropriam[26] e passam a expressar.

Uma representação, uma história

“Começo com uma constatação: a experiência mostra que a vida monástica nunca nasce por geração espontânea - como aliás, qualquer gênero de vida. Para haver vida, é preciso haver geração por parte de outros, que por sua vez também foram gerados. As tentativas de auto-geração monástica, via de regra, estão fadadas ao fracasso. É verdade que uma vida autenticamente gerada também pode fracassar, adoecer e morrer. Mas para morrer é preciso antes estar vivo. No caso da auto-geração a vida nem sequer é produzida. Não há propriamente morte, uma vez que jamais houve nascimento. Só monges geram monges, assim como só cristãos geram cristãos. Nenhum cristão chegou sozinho à fé em Jesus Cristo: essa fé, de algum modo, foi anunciada por outros e nós a ela aderimos. É da Igreja que recebemos a fé. Não nos batizamos a nós mesmos, mas recebemos o batismo pelas mãos de outros, ministros da Igreja. Analogamente, nenhum monge se auto-proclama monge, mas é revestido do estado monástico (notar a voz passiva). Recebemos o hábito das mãos de um pai, que, na Igreja, nas gera para a vida monástica - não nos vestimos sozinhos em algum recanto solitário. São Bento recebeu o hábito do monge Romano. Antes dele, São Pacômio foi gerado para o monaquismo por Palamon; São Basílio foi discípulo de Eustácio de Sebaste; Cassiano foi feito monge em Belém, amadurecendo pois sob tantos mestres no Egito. O próprio Pai do monaquismo por antonomásia, Santo Antão, foi também gerado por um mestre: é histórica e teologicamente falso dizer que Santo Antão “inventou” o monaquismo cristão. O Mosteiro da Ressurreição não nasceu do nada. É herdeiro e protagonista de uma Tradição viva. Os fundadores vieram todos do Mosteiro de São Bento de São Paulo, onde nasceram para a vida monástica. No monaquismo são essenciais os exempla maiorum (cf.RB 7,55), que nunca faltaram - numerosos - em São Paulo, graças a Deus. O Mosteiro de São Paulo, por sua vez, assumira a tradição beuronense a partir da Restauração iniciada em 22 de setembro de 1900, muito embora dizer isso seja uma pequena simplificação, dada a complexidade da obra restauradora.”[27]

Em um primeiro momento o autor se refere ao surgimento da vida como uma herança: “para haver vida, é preciso haver geração por parte de outros”. Seguindo o mesmo argumento, se refere ao ser monge como algo adquirido por intermédio de alguém, “nenhum monge se auto-proclama monge, mas é revestido do estado monástico”. Remete, então, à memória da Ordem Beneditina, citando o fundador da Ordem Beneditina, que viveu na Roma do século VI, São Bento. Indo além, cita nomes de monges que viveram antes de Bento. Demostrando que o processo coletivo de ser “revestido” monge é de longa duração, nos leva à formas de vida monástica antecedentes ao século IV. O Mosteiro da Ressurreição é, então, o resultado de toda uma construção coletiva, com mais de 1.500 anos de existência.

O texto de D. Mateus foi estruturado de forma cronologicamente linear: o monaquismo no primeiros séculos do cristianismo; o mosteiro de São Paulo; e o mosteiro da Ressurreição. No entanto, essas temporalidades não se fecham em si: o monaquismo do tempo de São Bento vem sendo transmitido de geração a geração até os dias de hoje, sendo vivido de forma diferente por cada geração. Dessa forma, o autor procura demostrar que as práticas existentes no mosteiro da Ressurreição estão ligadas ao primeiros monges cristãos.

Ele demonstra que as práticas que caracterizam o ser monge beneditino, tradicionalmente identificadas como oração e trabalho (Ora et Labora), estão ligadas à história do monaquismo cristão: ”Em todo caso, Beuron valorizava a vida conventual, a clausura, o silêncio, a celebração da liturgia e o trabalho - inclusive o manual. Possivelmente por causa dessa tradição, que poderia chamar - sem falsos escrúpulos - contemplativa”.[28] A permanência de algumas práticas não significa a manutenção do passado, pois o sentido pertence ao contexto em que esta se realiza, isto é, ser monge beneditino e viver em um mosteiro rural no Paraná são elementos que contribuem para construir um diferente sentido às práticas descritas na Regra de São Bento e nas Constituições da Congregação Beneditina do Brasil. Os monges do Mosteiro da Ressurreição constróem uma representação coletiva a partir da qual passam a dar sentido a suas práticas, que são legitimadas por um processo histórico milenar.

A continuidade do monaquismo dos tempos de Bento se dá pela permanência de algumas práticas entendidas pelo grupo como tradicionais, isto é, os sete momentos de oração diárias, o trabalho manual, o estudo e outras. As práticas que buscam a manutenção do passado “são reações a situações novas”[29], não estáticas, mas dinâmicas. Estão ligadas ao passado porque foram inventadas em um determinado momento histórico e, algumas vezes, é difícil de identificar este momento. Sendo assim, toda tradição é inventada e, “na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coerção grupal.”[30] Dessa forma, a tradição, isto é, o conjunto de práticas que fazem parte da realidade vivida pelos monges do mosteiro da Ressurreição, é legitimada pela história da Ordem Beneditina, mas só é mantida por significar o presente. Viver em um mosteiro rural pode ser algo relacionado ao contato com a natureza, com uma vida saudável, longe do barulho e da poluição dos grandes centros urbanos; da mesma forma, pode estar relacionado com o que significa “ser monge” para os fundadores da instituição.

O ser monge beneditino é identificado por práticas ancestrais diretamente ligadas a Regra de São Bento. A Regra, contudo, remete a uma tradição anterior a Bento, ligada à Regra de São Basílio e à chamada Regra do Mestre, cujo autor é desconhecido. Pode-se dizer, então, que a tradição da Ordem Beneditina está ligada a uma cadeia de práticas de longa presença na História do cristianismo.

A representação construída pelos monges do Mosteiro da Ressurreição e expressa no texto de um dos fundadores é estruturada partir da longa duração. A história da fundação do mosteiro é uma construção coletiva provavelmente incorporada pelos novos membros, que, a partir do momento em que ingressam, passam a ser, ao mesmo tempo, construídos e construtores da representação desse mosteiro. O que está em jogo não é apenas a construção de uma identidade do monge do mosteiro da Ressurreição, mas também da condição de monge da Ordem Beneditina, herdeiro de uma tradição que remete ao fundador da Ordem e, conseqüentemente, a monges de gerações anteriores, de quem herdou a forma de vida monástica. Para D. Mateus, a vida monástica foi resultado do exemplo. Ele remete ao capítulo 7 de Regra de São Bento: “que só faça o monge o que lhe exortam a Regra comum do mosteiro e os exemplos de seus maiores.” Dessa forma, as práticas dos monges do mosteiro da Ressurreição estão relacionadas ao exemplo dos monges que os antecederam, tanto dos tempos do próprio Bento como do mosteiro de São Paulo.

A tradição mantida pelos monges do mosteiro da Ressurreição em algumas de suas práticas, como “vida conventual, a clausura, o silêncio, a celebração da liturgia e o trabalho[31], resultam de uma representação construída por um grupo a partir de uma leitura de todo um processo de construção da história do monaquismo. Tal leitura tem como foco a vivência do grupo e também dos monges beneditinos do Brasil, principalmente os do mosteiro de onde saiu o grupo fundador.

Ao se referir ao mosteiro de São Paulo, o autor cita a tradição ligada a Beuron, congregação encarregada de “Restaurar” a vida monástica nos mosteiros do Brasil no final do século XIX.[32] Tal tradição estava voltada para a vida contemplativa[33], que, no caso do mosteiro paulistano, não se realizava de forma concreta devido à localização geográfica. Voltando-se para a história do mosteiro de São Paulo no início do século, o autor demostra que, já naquele momento, existia a busca de uma vida contemplativa fora da cidade. Os fundadores do mosteiro da Ressurreição são, pois, herdeiros e construtores da história do mosteiro onde iniciaram a suas vidas monásticas. Ao construírem uma representação da sua história, os monges do mosteiro da Ressurreição buscam na longa duração e nas histórias do monaquismo e do mosteiro de São Paulo a legitimação de suas práticas. Fundar um mosteiro em área rural não foi um arroubo de um grupo de jovens iniciantes, mas uma idéia herdada dos monges restauradores transmitida através do tempo até a década de 80, quando foi posta em execução por um grupo que busca uma volta à tradição beneditina. “Sempre houve em parte da comunidade de São Paulo uma insatisfação com a localização do mosteiro em um centro urbano. O próprio D. Miguel Kruse, o primeiro abade da Restauração, chegou a lançar a lançar a pedra fundamental de um novo mosteiro que seria edificado foram da cidade.[...] A morte de D. Miguel em 1929, bem como o socorro financeiro prestado à comunidade do Rio de Janeiro, que havia contraído grandes dívidas, impediu a efetivação do projeto. A idéia porém, jamais, morreu, e ao longo dos anos voltava-se a falar ora na transferência da Abadia [...], ora na realização de uma fundação”.[34]

Ao entrar para a Ordem Beneditina, em 1976, o autor passou a fazer parte da história do mosteiro de São Paulo. No final da década de 70, um grupo de iniciantes, apoiados pelo Mestre de noviços, iniciou reuniões para decidir sobre a fundação de um mosteiro em área rural. Diz o monge: “Era quase inevitável que esse tipo de conversa ocorresse dentro da comunidade, sobretudo no noviciado, especialmente levando-se em conta o ‘clima’ eclesial no Brasil no final dos anos 70 e início dos 80, onde era moda a exaltação de um autodenominado ‘profetismo’ cujo ranço ainda se faz sentir”[35]. Que “clima” era esse, ao qual o autor se refere? Provavelmente à teologia da Libertação, pois, nesse momento, existiu uma efervescência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que os teólogos da libertação acreditavam ser o início de uma luta para a justiça social na América Latina. Um dos principais representantes do movimento era o teólogo brasileiro Leonardo Boff, silenciado pelo Vaticano em 1984.[36]

Há que se considerar ainda que, nesse período, a Congregação Beneditina do Brasil, assim como toda a Igreja Católica Romana, estavam se adequando ao Vaticano II - em 02 de fevereiro de 1971 foi liberado para publicação o documento “Institutio Generalis de Liturgia Horarum”, que deu origem à reforma na Liturgia das Horas[37], que seria publicada no Brasil em 1984. Além do mais, em 1976 foram promulgadas as novas Constituições da Congregação Beneditina Brasileira, feitas com base no Vaticano II e que sofreriam algumas alterações em 1994. O Decreto “Unitatis Redintegratio”, art.15 do Vaticano II, propõem um retorno às tradições espirituais do monaquismo oriental e recomenda aos católicos que se aproximem das riquezas espirituais do Oriente, nas quais se encontra a tradição cristã. Este último elemento está presente no projeto monástico do mosteiro da Ressurreição, que propõe um “retorno ao Oriente”.

Essa determinação do Vaticano II foi expressa na proposta de fundação e também nas práticas dos monges, que se propuseram a manter a tradição do monaquismo cristão e da Ordem Beneditina, que não existem no mosteiro de São Paulo. A construção de uma representação da história do mosteiro da Ressurreição foi necessária para significar uma diferente forma de viver a tradição monástica, herdada da longa duração e da vivência no mosteiro de São Paulo.

As reuniões realizadas pelos noviços e postulantes aconteceram sem o conhecimento do abade do Mosteiro de São Paulo: ”deu início à uma série de reuniões para tratar do que deveria ser a futura fundação. É preciso bater no peito e reconhecer que tais reuniões foram realizadas à revelia do abade, D. Joaquim, e mesmo contra a sua vontade.”[38] Segundo as Constituições Beneditinas de 1976 em artigo 186, a fundação de um mosteiro deve ser um assunto “amplamente discutido pela comunidade”. No caso da fundação do mosteiro da Ressurreição, o assunto foi discutido entre os iniciantes e o mestre de noviços[39], que não cumpriu sua missão - moldar nos noviços a identidade do grupo – de forma satisfatória.

Durante o período de formação, o futuro monge assume-se como membro do grupo. O mestre tem a incumbência de moldar o iniciante segundo a identidade do grupo. As reuniões levam a uma crise dentro no mosteiro, sendo quebrada a autoridade do abade no processo de fundação. Para ser membro do grupo deve-se assumir determinada representação, expressa nas práticas reconhecidas como pertencentes a um grupo específico. No Mosteiro da Ressurreição, realizar o Ofício Divino, trabalhar na horta, preservar o silêncio, viver em um mosteiro rural, são práticas que caracterizam o ser monge, que deve ser transmitido pelo mestre de noviços do mosteiro.

No decorrer do texto são facilmente perceptíveis os conflitos de idéias que existiam na Igreja Católica e, principalmente, dentro do mosteiro, no contexto em que se discutia o processo de fundação. Não existe uma homogeneidade dentro do grupo fundador do mosteiro da Ressurreição com relação a como deveriam ser as práticas no futuro mosteiro - este assunto será abordado mais à frente. Em se tratando de um grupo de religiosos (monges), é entre os noviços que se fermenta a idéia de fundação de um mosteiro, pois estes ainda não assumiram os seus papéis e estão se amoldando ao grupo.

Com relação ao local de fundação: “a fundação deveria ser no sul do país, onde a vida monástica era quase desconhecida.”[40] - esta é a justificativa para a escolha do local de fundação. A partir de um levantamento de dados do ano de 1985, sobre o número de mosteiros masculinos que seguem a Regra de São Bento no Brasil, contatou-se que existem 11 mosteiros no Estado de São Paulo, 4 na Bahia, 2 em Minas Gerais, 2 em Goiás, 2 no Paraná, 1 em Alagoas, 1 em Pernambuco e 1 no Rio de Janeiro. Desse total, seis pertencem à Congregação Beneditina do Brasil e estão localizados na Bahia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, em São Paulo, em Minas Gerais e no Paraná.[41]

Estes dados nos mostram que no norte do país a vida monástica é tão desconhecida quanto no sul. Mesmo com relação a mosteiros femininos, a concentração maior está em São Paulo e Minas Gerais. A justificativa de fundar no sul devido o desconhecimento do monaquismo na região não deve ter sido, pois, o único fator – afinal, ele poderia ter sido fundado no norte do país. No entanto, essa representação sobre o local de fundação do mosteiro da Ressurreição, construída pelo grupo fundador, foi apresentada ao monges que estavam no CIMBRA no final da década de 90.

Quando o autor se refere ao primeiro bispo a interessar-se pela fundação, D. Pellanda, é possível perceber que ocorreu contato com outros bispos não citados. Diz o texto: “o primeiro bispo a interessar-se e comprometer-se seriamente foi o passionista D. Geraldo Pellanda, de Ponta Grossa.”[42] Esse bispo representa um protetor, pois possibilita a instalação do grupo próximo a Vila Velha e intercede a favor da fundação junto à Santa Sé enquanto alguns membros da Congregação Beneditina do Brasil iniciavam uma discussão sobre a possibilidade de fechamento do mosteiro ou a exclusão da ordem. Comenta D. Mateus: “Foi providencial a chegada naquele preciso momento, em Olinda, do documento da Sagrada Congregação para religiosos (que tinha como Secretário o beneditino Agostinho Mayer), danto permissão para s fundação ad experimentun do mosteiro por três anos. Essa decisão favorável da Santa Sé deveu-se, em grande parte, à influência do bispo D. Geraldo Pellanda”.[43]

Mosteiro da Ressurreição: tensões e contradições

“Em novembro do mesmo ano [1981] reuniu-se uma junta abacial no Rio de Janeiro, inclinada a decidir-se pelo fechamento da fundação, ou a exclusão da Congregação Brasileira”.[44] A representação construída sobre o processo de fundação do Mosteiro da Ressurreição é composto por tensões e contradições. Um processo em que o grupo fundador construiu o seu reconhecimento de membros pertencente a Congregação Beneditina do Brasil, que viviam em um mosteiro reconhecido pela legislação canônica. Em 1981 o mosteiro da Ressurreição, segundo o artigo 204 das Constituições Beneditinas, tornou-se um mosteiro dependente, estando sob a autoridade do abade-presidente da Congregação, que residia em Olinda, e tendo um superior no mosteiro.

A convocação de uma “Junta Abacial”[45] revela a tensão existente dentro da Congregação com relação à fundação do mosteiro da Ressurreição. O monge do mosteiro da Ressurreição não esclarece quem convocou a Junta Abacial. Pelas Constituições a Junta é convocada pelo abade presidente, ao qual o mosteiro estava adstrito em termos jurisdicionais. O momento foi de tensão, para o qual houve alivio a partir do envio, pela Santa Sé, de um documento deu a permissão para uma fundação experimental por três anos.

A representação da história do processo de fundação tem como ponto principal as muitas dificuldades encontradas pelo grupo fundador: existiam superiores dentro da Congregação que eram contra a fundação do mosteiro, a situação canônica era provisória e as dificuldades financeiras eram muitas. A esse respeito, escreveu D. Mateus: “Nos primeiros anos havia total incerteza quanto ao futuro. Além da pobreza aflitiva, a situação canônica era apenas provisória. Quanto ao trabalho, fazia-se de tudo, apesar do desconhecimento técnico dos fundadores, todos de cultura da cidade grande: a primeira horta fracassou miseravelmente na primeira chuva forte porque os canteiros estendiam-se na mesma direção do declive do terreno; a cozinha - inicialmente de chão de terra batida e que nas chuvas as goteiras transformavam num lamaçal - não preparava quase nada além de macarrão para o almoço e sopa à tarde. O pão, amavelmente doado por uma padaria da cidade, tinha de ser previamente amolecido na água e depois reaquecido no forno - quando foi conseguido um. Os gastos eram mínimos e o dinheiro que entrava provinha quase que exclusivamente do artesanato.”[46]

Além disso, havia divergências dentro do próprio grupo quanto ao projeto monástico a ser adotado pelo mosteiro. Segundo D. Mateus, “este grupo que abrangia ideais discrepantes e inconciliáveis, deu início a uma série de reuniões para tratar do que deveria ser a futura fundação.”[47]

Surge, então, uma questão que não foi respondida pelo autor: se o grupo tinha divergências quanto ao projeto monástico desde as primeiras reuniões, por que somente nove anos após a fundação é que essa divergência é colocada em questão? Tal divergência levou a renúncia do prior, que fazia parte do grupo desde as primeiras reuniões ainda no mosteiro de São Paulo. “Em 1990 a comunidade pediu uma visita canônica, estranhamente a primeira em mais de nove anos de fundação. Realizada em novembro, os visitantes decidiram que D. Lucas deveria apresentar sua renúncia, o que de fato aconteceu em março do ano seguinte. No dia 17 de abril de 1991 foi eleito D. André Martins, quando a história do mosteiro entrou numa nova fase, na qual ainda vive.”[48]

O primeiro prior eleito do mosteiro da Ressurreição, D. André Martins, tornou-se em 1997 o primeiro abade do mosteiro. Ele também foi um dos fundadores da Ressurreição.[49] O monge não responde à questão, porém indica,m na primeira parte do texto, uma diferença entre os dois projetos. O Prior “tinha em mente um projeto de índole completamente diferente, bastante secularizado, em nada ligado à tradição beuronense e ao que ela representava” [50]. Na outra parte do texto, ele se refere ao segundo projeto, um “projeto de vida contemplativa”.[51] A relação de conflito ocorre entre diferentes formas de se viver o monaquismo: a partir do contexto em que se encontrava a Ordem Beneditina no final dos anos 70 e a partir de uma leitura da maioria do grupo, busca-se um retorno a práticas que identificavam o ser monge beneditino - uma vida de oração, trabalho, estudo e silêncio.

Ao construir uma representação da sua história, o grupo de monges constrói uma identidade, na qual a vida contemplativa, ligada à tradição beneditina é o ponto central. Ser monge beneditino do mosteiro da Ressurreição significa constituir-se como parte dessa representação. No entanto não podemos esquecer que essa representação foi construída 16 anos após a fundação, a partir de um único monge.

Mosteiro da Ressurreição: um nome e um sentido

A representação do processo de fundação do Mosteiro da Ressurreição, expressa no texto de D. Mateus, deixa transparecer tensões e conflitos. Também relata algumas curiosidades do cotidiano nos primeiros anos. No entanto, não explica porque os fundadores dedicaram o mosteiro à Ressurreição do Senhor - no decorrer do texto, porém, é possível identificar uma ligação entre o projeto monástico (que, de certa forma, expressa uma realidade presente na Igreja Católica no momento da fundação) e o nome do mosteiro.

O Vaticano II expressa uma necessidade de buscar na tradição do Oriente cristão ensinamentos deixados pelos primeiros cristãos. Partindo dessa proposta, os monges do mosteiro da Ressurreição justificam suas práticas: “em conformidade ao sentir da Igreja e ao desejo expresso do Santo Padre. (Carta Apostólica Orientale Lumen,1; e Encíclica Ut Unum Sint,53) [Estas referências encontram-se em uma nota de rodapé, não texto original] O Mosteiro da Ressurreição tem a proposta de abrir-se ao Oriente cristão, tão rico em valores evangélicos, litúrgicos e monásticos, não para copiá-los servilmente, mas para recuperar [o grifo é nosso] valores muitas vezes perdidos no Ocidente devido a tantas contingências históricas. [...] [no final do texto o autor conclui que] [...] o Mosteiro da Ressurreição é uma comunidade de monges que, militando sob a Regra de São Bento, entendida em seu sentido mais antigo - abertura à Tradição monástica em sua totalidade - procura em fraternidade servir a Deus e à Igreja”.[52]

Os monges do Mosteiro da Ressurreição propõem um retorno à vida monástica dos primeiros monges e não apenas à Regra de São Bento. Porém, esse retorno não deve ser entendido como viver da mesma forma que aqueles monges, mas buscar nas regras e nos escritos daqueles que viveram nos primeiros séculos do cristianismo a tradição monástica. Entendendo tradição como “uma coisa viva, reelaborada por cada geração, em cada lugar”[53], os monges do mosteiro da Ressurreição construíram uma representação do mosteiro como um local de “retorno a tradição monástica”[54], a partir do tempo presente. Gravar CDs e serem protagonistas de videoclipe podem não ser práticas monásticas tradicionais, mas podem ser lidas como uma diferente vivência de práticas tradicionais a partir do entendimento de tradição dado pela maioria do grupo fundador.

Dedicar o mosteiro a Ressurreição do Senhor é referir-se ao maior mistério da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, retornar a uma prática medieval segundo a qual os mosteiros não recebiam nomes de santos mas, sim, de mistérios da Igreja. A fundação de um mosteiro em uma área rural pode ser identificada como uma tentativa de deixar marcado o afastamento que o monge deve ter do mundo. Afastado do centro urbano de Ponta Grossa, o mosteiro é um local onde existe um bosque com várias árvores (inclusive a araucária, árvore-símbolo do Paraná), cujo chão é coberto por grama, possibilitando aos monges e aos visitantes um maior contato com a natureza. Um local onde o silêncio só é quebrado pelo canto dos pássaros, pelo toque do sino anunciando mais um momento de oração, pelas máquinas de cortar grama - quando necessárias - pelos carros que chegam e saem ou por pelos que passam na estrada de terra em frente do mosteiro. A presença dos monges na mídia estabelece um diálogo com uma outra realidade e com o “mundo de fora do mosteiro”. Mundo esse que São Bento pediu para os monges evitarem.

Considerações finais

A representação que o grupo fundador construiu do Mosteiro da Ressurreição é expressa na leitura de um monge. Não existe apenas uma história do mosteiro da Ressurreição, mas várias histórias, na razão em que cada monge faz uma leitura própria a partir de suas referências pessoais. No entanto, a leitura individual é resultado de uma construção coletiva, que tem como base a memória do grupo fundador. Os monges que não compunham o grupo fundador herdam a representação do grupo e, a partir dela, constroem às múltiplas histórias do mosteiro da Ressurreição.

O grupo fundador do mosteiro forjou uma identidade coletiva, expressa nas práticas dos monges (oração, trabalho, estudo e silêncio, em um mosteiro rural). Elas são uma representação elaborada por esse grupo, que identifica o ser monge nesse mosteiro. Construída a partir da leitura da Regra de São Bento e das práticas que os monges identificam como monásticas – que, de certa forma, estão presentes na Ordem de São Bento - essa representação está relacionada a longa duração, isto é, a São Bento e ao monges do Oriente. Para os monges do mosteiro estudado, a tradição (práticas que identificam o monge) não estão apenas em São Bento, mas em tempos anteriores, dos quais ele realizou uma leitura expressa na sua Regra.

O contexto em que viveram os monges fundadores do mosteiro da Ressurreição - um momento que a Congregação Beneditina do Brasil, a Ordem Beneditina e a Igreja Católica Romana como um todo se adaptavam ao Vaticano II - possibilitou uma leitura das práticas beneditinas expressa na representação história do mosteiro construída a partir da leitura um dos fundadores. Assim, cada mosteiro pode ter uma leitura da tradição, isto é, das práticas beneditinas, e vivê-las segundo a leitura realizada, que é legitimada pela história das práticas monásticas e pela história do grupo que a realizou.

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Notas

[*] Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2003.

[1] Abadia: “Mosteiro de homens e mulheres. Casa religiosa de monges ou monjas, dirigida por um abade ou abadessa. As abadias beneditinas, criadas em toda a Europa a partir do séc. VI, são organismos autônomos. Na reforma cluniacense (séc. X), a abadia geral de Cluny agrupou sob sua autoridade os mosteiros afiliados, mas a reforma cisterciense de São Bernardo (séc. XII) adotou o princípio de federação. A partir do séc. XIII, com o desenvolvimento das cidades, a importância dos mosteiros decresceu em favor das ordens mendicantes e das universidades. (...) A forma clássica de vida nas abadias alterna oração e trabalho, obedecendo a um ritmo regular. (...)”. SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis, RJ: Vozes, vol. I, 1995.

[2] A vida monástica, na Igreja Católica, é identificada pela primazia da oração sobre a ação. Os monges não têm como função a vida apostólica e clerical, mas a contemplação. Eles fazem votos de pobreza, castidade e obediência. PENIDO, D. Basilio. Considerações sobre o problema atual do monaquismo. Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 21, fasc. 2, 2 de Junho de 1961, p. 293-302.

[3] Para saber mais: LUNA, D. Joaquim G. de. Os monges Beneditinos no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1947.

[4] VAUCHEZ, André. S. Bento e a revolução dos mosteiros. In: BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa - Portugal: Terramar, 1994, p.17 - 20.

[5] CONGREGAÇÃO BENEDITINA DO BRASIL. Constituições, 1976.

[6] Professo solene é o monge que fez a profissão perpétua. Ao entrar no mosteiro, o monge se torna um postulante; depois de um certo tempo torna-se noviço, a seguir faz a profissão monástica temporária, cuja duração mínima é de três anos (são monges chamados professos trienais), vindo em seguida a profissão perpétua.

[7] CONGREGAÇÃO BENEDITINA DO BRASIL. Constituições, 1976.

[8] LUNA, Op.cit. p.135.

[9] Idem.

[10] JORNAL DA MANHÃ. Mosteiro da Ressurreição de PG é destaque em todo país. Jornal da Manhã, Ponta Grossa, 24 de dezembro de 1994, cad.1,p. A-6.
O ESTADO DO PARANÁ. O monge é pop mas não é profano. O Estado do Paraná, Curitiba 17 de Julho de 1994, cad. Almanaque, p.1.

[11] CHARTIER, Roger. O mundo como Representação. Estudos Avançados, 11(5), 1991, pp.173-191.
JODELET, Denise. Représentations sociales: un domaine en expansion. In: JODELET, D. (org.) Les représentations sociales, Paris: PUF, 2ª. ed. 1991, pp. 31-38.

[12] CERTEAU, Michel. Ler: uma operação de caça. In: A invenção do Cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis, RJ Vozes, 1994, p. 264-265.

[13] SPINK, Mary Jane. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das representações

sociais. In: GUARESCH,P.; JOVCHELOBVITCH,S.(orgs).Textos em representações sociais. 2ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,1994, p. 120-121.

[14] Para P. Burke a Nova História pode ser identificada com a reação, ocorrida nos anos 70 e 80, contra o paradigma tradicional, que envolveu historiadores de vários lugares do mundo. Os historiadores da Nova História não buscam verdades, mas diferentes olhares sobre o passado, ou melhor, sobre os vestígios deixados pelos seres humanos do passado. Porém, essas mudanças na escrita da história são parte de uma tendência, vamos dizer, herdada da escola dos annales, em 1929, associada a Lucien Febvre e a Marc Bloch, e da geração seguinte com Fernand Braudel. Ver: BURKE, Peter. Abertura: a nova História , seu passado e seu futuro. In: _____. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p.7-62.

[15] Para saber mais: CHARTIER, op. cit. e JODELET, op. cit.

[16] CHARTIER, op. cit. p.177.

[17] ALBUQUERQUE, J A Guilhon. Instituição e Poder: a análise concreta das relações de poder nas instituições. Rio de Janeiro: Graal, 2ª. ed., 1986, p. 111-115.

[18] BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

[19] CHARTIER, op.cit., p. 183.

[20] O costume dos oito momentos de oração, mais o Ofício de Leitura (lectio divina), esteve presente nas práticas beneditinas até o Vaticano II, quanto o Scrosanctum Concilium, no seu artigo 89, suprimiu a hora prima.

[21] CONGREGAÇÃO BENEDITINA DO BRASIL. Constituições, 1976, art. 155.

[22] MOSTEIRO DA RESSURREIÇÃO. Costumeiro. Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa, 2 de fevereiro de 1996.

[23] “Durante o grande silêncio, que vai de Completas até Tércia, incluído o tempo da Lectio, os irmãos devem falar apenas se houver real necessidade. O horário do grande silêncio deve ser observado também no sentido de se evitar quaisquer ruídos que perturbem o ambiente de oração, como bater portas, limpeza de celas, o modo de andar, etc.(...) Quanto ao silêncio usual durante o dia, deve-se sempre conservar o ambiente silencioso no Mosteiro. Para isso, é necessário que se fale baixo, não se assobie, não se cante alto, ande-se sem ruído, não se bata as portas, mantenha-se o volume baixo de aparelhos de som, etc.”

[24] BENTO. Regra de São Bento: Latim-português. ENOUT, João Evangelista (tradução e notas), 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1980, cap. 48.

[25] SPINK, op.cit., p. 122.

[26] Entenda-se a noção de apropriação segundo CHARTIER, isto é, “(...) interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas especificas que as produzem (...)”. CHARTIER, R. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Portugal: DIFEL, 1990, p. 26.

[27] PENTEADO, Mateus S. Mosteiro da Ressurreição: síntese histórica e projeto monástico. Mimeog., 1998.

[28] Idem.

[29] HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p. 10.

[30] Idem, p. 21.

[31] PENTEADO, Op.cit.

[32] Sobre a crise das ordens religiosas no Brasil e o processo restauração da Ordem Beneditina, ler: WERNET, Agustin. Crise e definhamento das tradicionais ordens monásticas brasileiras durante o século XIX. Revista Inst. Est. Bras. SP, 42, p.115-131, 1997. JONGMANS, Jacques. A restauração da congregação Beneditina Brasileira. O papel de Dom Gérard van Caloen ( 1894-1907 ). Revista Ecl. Bras., vol.32, fasc. 127, Petrópolis, RJ: Vozes, setembro de 1972, p. 640-654.

[33] Com relação à vida contemplativa, foi emitido pela Sagrada Congregação para os Religiosos e os Institutos Seculares, Vaticano,12/11/ 1980, um documento que valoriza a Vida Contemplativa. Artigo 25 “Atualidade da vida especificamente contemplativa. Aqueles que são chamados à vida contemplativa, são reconhecidos como um tesouro mais precioso da Igreja. Graça a um carisma especial eles têm escolhido a parte melhor, ou seja aquela da oração, do silêncio, da contemplação, do amor exclusivo de Deus e da doação total ao seu serviço(...)”. Documentos SEDOC, n.13, junho de 1981. Dimensões contemplativas da vida religiosa.

[34] PENTEADO, Op. cit.

[35] Idem.

[36] BURDICK, John. Procurando Deus no Brasil: a Igreja Católica progressista no Brasil na arena das religiões urbanas brasileiras. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

[37] AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Ave-Maria, 1998, p. 263.

[38] PENTEADO, op. cit.

[39] Mestre de Noviços, artigo 44 Constituições da Congregação Beneditina do Brasil: “Para Mestre de noviços seja escolhido um monge com as qualidades requeridas pela Regra e pelo Direito (Cf. can. 554,559, 562 e 565), maduro de caráter, paciente, dotado de boa cultura e de discernimento dos espíritos. Como colaborador qualificado do Abade no exercício da sua paternidade (cf. 73), o Mestre deve educar os irmãos para uma vida inspirada na fé e no ideal monástico a ser vivido concretamente na própria comunidade (...)” Art. 73 : “O noviciado estará sob os cuidados do Mestre de noviços, (...), em vista da formação dos noviços para a comunidade. (...)”

[40] PENTEADO, Op.cit.

[41] Anuário Católico do Brasil. Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social - CERIS, Rio de Janeiro, 1985.

[42] PENTEADO, op.cit.

[43] Idem.

[44] Idem.

[45] Artigo 243 das Constituições Beneditinas de 1976 : “Em casos que julgar necessário, poderá o Abade Presidente convocar e consultar não apenas o Conselho dos Assistentes, mas um Conselho mais amplo de Superiores Maiores, ao qual é dado o nome de Junta Abacial. (...)”

[46] PENTEADO, op. cit.

[47] Idem.

[48] Idem.

[49] Nascido em São Paulo, capital, em 01 de maio de 1956, D. André Martins recebeu o hábito de noviço em 1976, no Mosteiro de São Bento em São Paulo, fez sua profissão de votos monásticos em 1978, e renova seus votos em 1981, um dia antes de partir para Ponta Grossa. Em 1984, faz sua profissão monástica perpétua, no mosteiro da Ressurreição, no ano seguinte é ordenado sacerdote, partindo para Roma, no mesmo ano, onde permaneceu até 1987 estudando no Instituto Litúrgico do Pontifício Colégio de Santo Anselmo, se especializando em Sagrada Liturgia. Ao retornar para o mosteiro da Ressurreição tornou-se Subprior e Mestre se Noviços, sendo eleito Prior Conventual em 1991.

[50] PENTEADO, op. cit.

[51] Idem.

[52] Idem.

[53] Idem.

[54] Idem.