“A imagem [...] atua no duplo registro (‘dupla
realidade’) de uma presença e de uma ausência”.
Jacques AUMONT (1995, p.120)
A afirmação de Aumont, quando aceita, implica em reconhecer um importante aspecto metodológico nas investigações da relação entre imagens e devoções religiosas. Poderia formular esse aspecto na forma da seguinte hipótese: as imagens religiosas, quando inseridas em uma relação devocional, não somente representam uma ausência que se reconhece através dela (o que ela evoca), mas simbolizam uma forma que se explicita pela sua própria presença. Ou seja, toda imagem religiosa tem um registro para si e em si.
Entretanto, antes de aprofundar essa relação é importante realizar o reconhecimento do escopo significativo do termo imagem. A palavra imagem comporta diversos significados, conforme se passe do tradicional dicionário a suas expressões mais especificamente apropriadas - considerando a ambigüidade do termo apropriação: verbal (apropriar: tomar como propriedade) ou substantiva (apropriado: adequado ou próprio).
O dicionário a apresenta: “Imagem. S. f. 1. Representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou objeto. 2. Restr. Representação plástica da Divindade, de um santo, etc. 3. Restr. Estampa, geralmente pequena, que representa um assunto ou motivo religioso. 4. Fig. Pessoa muito famosa. 5. Reprodução invertida, de pessoa ou objeto, numa superfície refletora ou refletidora. 6. Representação dinâmica, cinematográfica ou televisionada, de pessoa, animal, objeto, cena, etc. 7. Representação exata ou analógica de um ser, de uma coisa; cópia. 8. Aquilo que evoca determinada coisa, por ter com ela semelhança ou relação simbólica. 9. Representação mental de um objeto, de uma impressão, etc.; lembrança, recordação. 10. Produto da imaginação, consciente ou inconsciente. 11. Manifestação sensível do abstrato ou do invisível. 12. Metáfora. 13 Opt. Conjunto de pontos no espaço, para onde convergem, ou de onde divergem, os raios luminosos que, originados de um objeto luminoso ou iluminado, passam através de um sistema óptico” (NOVO DICIONÁRIO FOLHA/AURÉLIO, 1995).
Vê-se que a variação semântica da palavra remete em sua maioria a significados figurados, sendo seus significados restritivos exclusivamente religiosos e seu significado aplicado exclusivamente óptico.
Mais útil a esta discussão, porém, seria a possibilidade de circunscrever tais significados em uma tipificação, considerando o contexto expressivo em que se situam. Assim, uma releitura dos verbetes permite explicitar três dimensões típicas expressivamente distintas: real (visual), simbólica e processual. Os limites destas expressões podem ser mantidos conceitualmente, considerando-se seus parâmetros comumente estabelecidos. Ocorre que, em determinada contextualização, estas expressões admitem interseções e complementaridades em seus movimentos, produzindo fenômenos de apreensão complexos.
Este é o sentido dos significados figurados descritos nos verbetes 7 e 8 do Dicionário. A representação de um ser ou a produção de sua cópia, como a evocação de uma determinada coisa ou classe de objetos, variam enormemente conforme consideremos tempos históricos diferentes, e mesmo culturas distantes entre si, com poucos contatos ou trocas. Como a “cultura condiciona a visão de mundo do homem” (LARAIA, 1997), pode-se afirmar que suas imagens são produzidas na mesma razão que se opera nesse condicionamento.
Pode-se ainda questionar a lógica enunciada nos verbetes: o que é a representação exata de um ser? Seria um conjunto de descrições objetivas das características físicas aparentes ou uma descrição subjetiva de seu “caráter”? Que imagem pode evocar semelhança ou relação simbólica com uma determinada coisa e como ela pode ser partilhada por pessoas que têm relações diferenciadas com a mesma coisa?
Da mesma forma, o verbete 9 remete a uma apreensão semelhante: a representação mental de um objeto é produto dos estímulos sensíveis que conscientemente aproprio de tal objeto, ou daqueles que ele projeta sobre mim, indiscriminadamente? Ou, ainda, ela opera por circularidade?
De uma outra apreensão possível dos verbetes, a imagem pode ser caracterizada pelos processos que a configuram: termos como representação, evocação, reprodução, produto do imaginário, manifestação, efeito luminoso, mostram que as perguntas anteriores podem ter respostas diferentes, segundo o estudo da imagem seja analisado por um ou outro processo (FELDMAN-BIANCO e LEITE, 1998). Em geral, porém, imagem e representação são propriamente sinônimos de um ou vários fenômenos semelhantes. Tanto na evocação, produção, reprodução ou manifestação, quanto em sua representação, está latente aquela afirmação inicial de Aumont.
Assim, a duplicidade característica da imagem circunscreve uma dada formação sensível do pensamento, uma capacidade de imaginar coisas distintas dos objetos existentes, como também uma necessidade de visualização, determinada pela presença de objetos, pela apreensão de suas propriedades ou pela ausência de sua manifestação. Essa formação sensível do pensamento Francastel (1993) denominou pensamento plástico, em contraposição ao pensamento verbal.
O histórico dessa discussão é longo e remete a uma tradição que se inicia na antigüidade Clássica. “Imagem (gr. (...), lat. Imago; in. Image; fr. Image; al. Einbildung; it. Immagine) Semelhança ou sinal das coisas, que pode conservar-se independentemente das coisas. Aristóteles dizia que as I. são como as coisas sensíveis, só que não têm matéria (De na. III, 8, 432 a 9). Neste sentido a I. é: 1º. produto da imaginação; 2º. sensação ou percepção, vista por quem a percebe. Neste segundo significado, esse termo é usado constantemente tanto pelos antigos quanto pelos modernos. Os estóicos distinguiam os dois significados empregando duas palavras diferentes: denominam imaginação (...) a I. que o pensamento forma por sua conta, como acontece nos sonhos, e I. (...) a marca que a coisa deixa na alma, marca que é uma mudança da própria alma. A I. propriamente dita é “aquilo que é impresso, formado e distinto do objeto existente, que se conforma à sua existência e por isso é o que não seria se o objeto não existisse” (DIÓG. L., VII, 50). Desse ponto de vista, as I. podem ser sensíveis e não sensíveis (como as das coisas incorpóreas); racionais ou irracionais (como as dos animais) e artificiais ou não artificiais (DIÓG. L., VII, 51). Conceito igualmente geral da I. era o dos epicuristas, que admitiam a verdade de todas as I. porquanto produzidas pelas coisas: pois o que não existe não pode produzir nada (DIÓG. L., X, 32).
Esses conceitos passaram para a Idade Média e foram utilizados com fins teológicos, para esclarecer a relação entre a natureza divina e a natureza humana (cf. p. ex., S. Tomás, S. Th., I, q. 95). Na filosofia moderna, foram retomados por Bacon (De augm. Scient., II, 1, § 5) e Hobbes; para este, a I. “é ato de sentir e só difere da sensação assim como o fazer difere do fato”(De corp., 25, § 3). Mas, em filosofia, o termo I., em seu significado geral, começou a perder terreno para idéia, em Descartes, e representação em Wolff. A preferência por esses dois termos persiste na filosofia contemporânea, que só lança mão do termo I., em seu 2º significado, quando quer acentuar o caráter ou a origem sensível das idéias ou representações de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson: “Vamos fazer de conta, por um instante, que nada sabemos das teorias sobre a matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as discussões acerca da realidade ou da idealidade do mundo externo. Estaremos então em presença da I. no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, I. percebidas quando abro meus sentidos, não percebidas quando fecho (Matière et mémoire, cap. 1)”(ABBAGNANO, 1998, p. 537).
Vê-se, na análise do filósofo, que o termo imagem perde significação em decorrência dos debates acerca de sua ambigüidade conceitual. Porém, como sugere Manuela Saraiva, a essência de tal debate está estruturada mais em sua aplicação no que em sua semântica. “O termo aplica-se a duas realidades diferentes: a) produto ou resultado de um fenómeno psíquico que consiste na representação das coisas sensíveis, na ausência destas; b) classe de objectos, geralmente de natureza artística, que funcionam como substituto, reprodução, evocação ou recriação de coisas reais ou de realidades espirituais. No sentido de a) uma longa tradição criou a expressão de ‘imagem mental’; no sentido de b) a corrente fenomenológica fala de objecto-imagem (Bildobjekt)” (SARAIVA, 1990, p. 1328-29).
Aqui, o duplo registro da ausência e da presença se manifesta mais claramente, tratando-se de definir o estatuto de realidades diferentemente representadas pela imagem. Mais ainda, trata-se de definir o lugar de produção ou conservação da imagem, como dado concreto ou abstrato.
Neste sentido é que o debate se acirra, sobretudo com a crítica de Husserl e Sartre[1] à noção de “imagem mental” que, segundo eles, implicaria que a imagem existiria no interior da consciência como um quadro numa sala. Visando superar alguns pressupostos presentes neste debate, uma perspectiva atualizada da concepção de “imagens mentais” é fornecida por Aumont: “A discussão sobre as imagens mentais pode ser assim resumida: uma vez que numerosas experiências e a introspecção usual evidenciam a existência de imagens ‘internas’ em nosso pensamento, como conceber essas imagens? São elas (posição picturalista) verdadeiras imagens no sentido de que, ao menos parcialmente e para algumas delas, representam a realidade no modo icônico? Ou são elas (posição descricionalista) representações mediatas que se assemelham às representações verbais? A querela é mais sutil do que as palavras ‘imagem’ e ‘linguagem’ parecem supor, pois todo mundo concorda que não se trata de imagens no sentido cotidiano, de fenômeno, da palavra. Talvez uma das maneiras mais esclarecedoras de expô-la seja esta: é ‘imagem mental’ aquilo que, em nossos processos mentais, não pode ser imitado por um computador que utiliza informação binária. A imagem mental não é portanto uma espécie de ‘fotografia’ interior da realidade, mas uma representação ‘codificada’ da realidade (mesmo que esse códigos não sejam os do verbal)” (AUMONT, 1995, p. 117-18).
Nem representações icônicas, nem representações verbais, mas representações codificadas. O que significa tal afirmação? Em princípio, que desconhecemos o processo mental de produção dessas imagens ‘internas’[2]. O apelo à idéia de “representação codificada” implica que o pensamento possui uma capacidade de imaginar (e codificar as imagens) em uma escala intersticiária entre os códigos socialmente arbitrados e cotidianamente intercambiados. Todavia, sentimos regularmente o peso da cultura, que condiciona nossa visão de mundo, nos impelindo a “traduzir” estas representações codificadas em códigos inteligíveis e partilháveis socialmente.
Quando os estudiosos de fenômenos que se produzem a partir da imagem, ou que produzem imagens, discutem seus fundamentos, esse condicionamento se explicita pelas associações que podem ser elaboradas entre planos abstratos e concretos de relações ou de identificações com as imagens. Vejamos um exemplo.
Debray (1986), ao buscar a etimologia da palavra, escava os níveis profundos de seu significado. Assim como Mora (1986), que associa a etimologia de imagem com os vocábulos gregos traduzidos como ídolo e ídolos, aquele autor escreve: “Ídolo vem de eídolon que significa fantasmas dos mortos, espectro e, somente em seguida, imagem, retrato. O eídolon arcaico designa a alma do morto que sai do cadáver sob a forma de uma sombra imperceptível, seu duplo, cuja natureza tênue, mas ainda corporal, facilita a figuração plástica. A imagem é a sombra; ora, a sombra é o nome comum do duplo. Assim, como nota Jean-Pierre Vernant, o vocábulo tem três acepções concomitantes: ‘imagem do sonho’(onar), aparição suscitada por um deus (phasma), fantasma de um defunto (psyché)” (DEBRAY, 1994, p. 23).
Para além das acepções que se fundem no termo, Debray afirma o desenvolvimento geral de sua aplicação: inicialmente, significa “fantasmas dos mortos, espectro e, somente em seguida, imagem, retrato”. Significados que se manterão próximos, contudo, pela sua associação original: “a imagem nasce com a morte” (Idem., p. 22) e torna-se o “lugar” onde se guarda a lembrança daquele que morreu, de “onde” se evoca o que se foi, o que não está mais visível.
No desenvolvimento geral da aplicação do termo imagem, o autor aponta para sua finalidade: tornar-se visível e, nesse processo, representar algo[3].
Ora, estamos aqui diante da associação original entre imagem e representação, como o mesmo Debray sugere: “Em língua litúrgica, ‘representação’ designa ‘um caixão vazio sobre o qual se estende uma mortalha para uma cerimônia fúnebre’. E Littré acrescenta: ‘Na Idade Média, figura moldada e pintada que, nas obséquias, representava o defunto’. Trata-se aí de uma das primeiríssimas acepções do termo” (Idem., p. 24).
Vê-se, aqui, o mesmo desenvolvimento geral de aplicação do termo imagem: inicialmente, designa um “lugar”; posteriormente, uma representação figurada que substitui o lugar, ou se associa com ele. A representação não seria, assim, mais restrita que a imagem em seu significado – talvez, em sua aplicação.
Em suas acepções iniciais, os termos imagem e representação já estão muito próximos. Desta perspectiva, seria errôneo afirmar que o termo imagem “perde terreno (...) para representação”, como o fez Abbagnano. Mais correto seria afirmar que o termo representação, durante muito tempo secundarizado pela filosofia e pela ciência, passa por uma ressemantização na modernidade, devido ao renascimento da discussão sobre o imaginário, no século XX.
Seguindo a lógica externalista do pensamento científico, o termo modifica-se por pressão das reflexões sobre a alteridade, mas também porque a necessidade que move a racionalidade ocidental, de incluir a diferença num processo de homogeneização generalizante de seus pressupostos convencionados como lógicos, primeiro através da colonização – que incluía a expropriação do outro e a sua conversão ao cristianismo – depois, pela imposição da lógica do mercado e, finalmente, pela lógica da ciência. Frente à descoberta de modos alternativos de simbolizar fenômenos diversos em culturas diferentes da sociedade ocidental e à penalização das que reagiam contra a ocidentalização (LÉVI-STRAUSS, 1985) – durante muito tempo desenrola-se uma verdadeira “guerra das imagens” (GRUZINSKI, 1995) – tornou-se necessário elaborar significados abrangentes para o imaginário, capazes de absorver o potencial simbólico dessas culturas.
Com as reflexões mais seriamente desenvolvidas nesse processo, chega-se a importantes contribuições epistemológicas sobre a questão. Sem tirar o mérito de vários pensadores, citarei duas contribuições importantes para esta análise: primeiramente, o adjetivo imaginário torna-se substantivo, pelo pensamento de Bachelard: “O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, é imaginário. O valor de uma imagem se mede pela extensão da sua auréola imaginária” (BACHELARD, 1992, p. 7)[4].
Essa reflexão, no conjunto da obra, implica uma revalorização da imagem em geral, associada com o símbolo, e ganha consistência com as contribuições da Antropologia, como descreve Saraiva. “O problema da imaginação conhece brilhante renascimento no início do século XX (...) do desenvolvimento das ciências humanas, nomeadamente da psicologia patológica e da etnologia (estudo dos ritos, simbolismo religioso, mitologia, iconografia). G. Durand inspira-se em Cassirer, Freud, Jung, Adler, M. Eliade, Lévi-Strauss, Bachelard, R. Bastide, Ricoeur e muitos outros investigadores, mas sobretudo em Bétcherev e Dumézil e Piganiol. Graças ao método complexo do ‘trajecto antropológico’[5], estuda o patrimônio imaginário da humanidade em que imagens e símbolos são considerados conjuntamente. O seu método supõe a incessante interacção que existe ao nível do imaginário, entre as pulsões subjectivas e assimiladoras e as intimações objectivas que emanam do meio cósmico e social” (SARAIVA, 1990, p. 1340).
Ora, a contribuição da Antropologia, por mais que explicitada aqui por uma filósofa, não pode ser afirmada senão no processo histórico que a enriquece de intercâmbios com outros campos científicos. Neste processo, os estudos sobre a imagem adquiriram seus contornos mais propriamente figurativos, mesmo quando as interlocuções valeram-se de referências acerca do imaginário. Por outro lado, essa elaboração constitutiva do escopo significativo do termo imagem permite avançar para um movimento mais sofisticado das e nas relações entre imagens religiosas e devoções: a de que elas se movem em um campo de trocas de sentido entre os sujeitos devotos e o campo imagético devocional.
Retomando a hipótese inicial, agora, ela implica reconhecer também, como afirma Deleuze (1988), que os registros da consciência que se movem em torno das representações da repetição e da diferença que estabelecemos sobre e com os fenômenos, como registros de nossa própria consciência de continuidade e de mudança, são inscritos nas imagens e podem ser assim investigados, sob algumas abordagens.
Penso aqui, sobretudo, na elaboração do autor acerca da subjetividade originária que constitui a repetição, apropriada de Hume, ou seja, a idéia de que o objeto (leia-se imagem) que se repete não muda, “mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (DELEUZE, 1988, p. 127). Idéia que imprime uma regra básica à relação estabelecida originariamente: “um não aparece sem que o outro tenha desaparecido” (Idem, p. 127).
Sobre essa premissa, Deleuze elabora uma reflexão que busca efetivar duas sínteses do tempo: a do presente vivo e a do passado puro. As referências movimentadas nessa análise configuram um campo interessante de elementos para as investigações acerca de devoções e imagética religiosa.
Por ora, vou caminhar um pouco com seus pensamentos, para apropriar-me de algumas referências importantes posteriormente. Na elaboração da primeira síntese, Deleuze inicia com a idéia de Hume, segundo a qual a mudança no espírito ocorre por um movimento de contração, associado à regularidade da repetição do objeto, que não opera por entendimento (não se tratando de memória) mas de imaginação. Este movimento marca a síntese originária que incide sobre a repetição dos instantes: aí, o tempo se reconstitui.
A constituição do tempo opera na vivência do presente, que não precisa sair de si para mover-se do passado ao futuro, num movimento do particular (dos particulares que ele envolve na contração) ao geral (a expectativa produzida no espírito). “A subjetividade do tempo é a subjetividade de um sujeito passivo”. (Idem, p. 129). A repetição ideal implicaria, assim, um tipo de movimento que retroage entre dois elementos limítrofes. Ela se tece entre os dois: o objeto que se repete e a mudança no sujeito.
Reconstituindo os casos particulares como distintos, conservando-os no espaço de tempo que lhe é propício, a memória realiza uma síntese ativa sobre a determinação da síntese passiva operada na imaginação. O passado deixa de ser “o passado imediato da retenção [para ser] o passado reflexivo da representação” (Idem, p. 129); da mesma forma, essa mudança projeta-se na relação entre o futuro imediato da antecipação e o futuro reflexivo da previsão.
Porque somos formados de um conjunto de sínteses orgânicas que remetem a sínteses perceptivas que se erguem sobre elas, o desdobramento dessas relações levam “a sínteses ativas de uma memória e de uma inteligência psicoorgânicas” (Idem, p. 131).
A maneira pela qual os diversos componentes da repetição participam dela é medida, em cada caso, pela imbricação possível das sínteses ativas com as sínteses passivas. Coloca-se como núcleo a questão do hábito que, para Deleuze, configura-se não “como uma ação instantânea que se compõe com outra para formar um elemento de repetição, mas da fusão desta repetição no espírito que contempla [...] é contraindo que somos hábitos, mas é pela contemplação que contraímos. Somos contemplações, somos imaginações, somos generalidades, somos pretensões, somos satisfações” (Idem, p. 133). O hábito implica uma noção de continuidade assentada na fé em si mesmo. A imagem de Plotino “amarra” essa noção de continuidade – “ninguém determina sua própria imagem nem a goza a não ser retornando, para contemplá-la, àquilo de que procede” (Idem, p. 135) – continuidade que é identidade com a procedência. Assim, a ação que faz repetir um “caso” não faz acontecer a contração. A contração ocorre num eu que contempla a ação e duplica o agente: aquele que faz a repetição mais outros eus que contemplam e “que tornam possíveis a ação e o sujeito ativo” (Idem, p. 135).
A correlação de outros eus subjacentes ao sujeito ativo e à ação implica que a contemplação propicia o estabelecimento da diferença na repetição. Toda repetição é, assim, imaginária, sendo “repetição que se desdobra e se conserva para nós no espaço da representação” (Idem, p. 136). A diferença, dada no imaginário, é o para-si da repetição: ela nos permite passar de uma ordem a outra da repetição, mas ela está entre duas repetições, assim como a repetição também está entre duas diferenças[6]. Como a síntese do tempo é definida no próprio presente, como tempo vivo, passado e futuro são dimensões do presente. Sendo, porém, síntese intratemporal, o próprio presente passa. Daí a idéia de duração, que Deleuze afirma acontecer “segundo o alcance natural de contrações” (Idem, p. 138) que a alma contemplativa absorve. Ou seja, pelo número de instantes que a contemplação contrai no presente.
Esta duração depende das condições em que as necessidades dos sujeitos interferem na sua percepção dos instantes que marcam seu presente, do número de sínteses que é capaz de operar: “não se pode ir mais depressa que seu próprio presente, ou antes, que seus presentes” (Idem, p. 138): este é o sentido da primeira síntese do tempo[7]. Como, para o autor, “a necessidade exprime a abertura de uma questão antes de exprimir (...) a ausência de uma resposta, contemplar é questionar” (Idem, p. 139). Ao contemplar a repetição, busca-se apreender a diferença nela existente.
À medida em que é no domínio do comportamento (hábito) que ocorre o entrelaçamento dos signos naturais e dos signos artificiais, “as questões da contemplação se desenvolvem em campos problemáticos ativos” (Idem, p. 140 – grifos meus). Mas é na segunda síntese do tempo (a do passado puro) que Deleuze fecha o circuito das idéias que aqui me importam. Segundo o autor, se o presente traz em si o paradoxo de constituir o tempo, mas passar neste tempo constituído, é mais porque ele se funda no hábito, que é a fundação do tempo, mas não seu fundamento. “O fundamento do tempo é a Memória [...] a memória é a síntese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o presente)” (Idem, p. 142).
A memória inverte a relação entre geral e particular dada na primeira síntese: com relação ao presente, em geral. “Do ponto de vista da reprodução da memória, é o passado (...) que se tornou geral, e o presente (...) que se tornou particular” (Idem, p. 142). Ora, essas idéias remetem a uma discussão bem atual sobre as relações entre a imagens e as devoções religiosas, mas também a uma revisão da história dessas relações. Trata-se da formação de um fundo cristão presente na imagética religiosa (sobretudo nas imagens figuradas) e suas transfigurações contemporâneas.
As pesquisas que realizei, ou coordenei, nesse campo de investigações, permitem afirmar que, no domínio devocional popular[8] (também denominado “culto aos santos”), enforma-se um campo de exteriorização das imagens religiosas que se tensiona entre sua produção plástica, institucionalizada, e uma “produção do consumo” (CERTEAU, 1994) devocional, popular. E é aqui que a análise de Deleuze nos permite colocar as imagens no centro da discussão sobre a repetição e a diferença. Isso porque as imagens religiosas são ativas, depositárias de sacralidade e, por isso, mediadoras com as esferas do sagrado. Mas a Igreja atualmente não utiliza ou reforça isso. O motivo para a desvalorização do “culto aos santos”, de per si, está no fato de que os segmentos populares de devotos, em todas as épocas, nunca aceitaram passivamente a definição clerical de santidade e a institucionalização das devoções. Muitos dos santos canonizados pela Igreja e figurados na imagética religiosa nem chegaram a ser cultuados ou difundidos amplamente, enquanto outros se tornaram cultuados e aceitos institucionalmente a partir de um movimento iniciado desde a experiência popular.
Após o Concílio de Trento, inclusive, pode-se perceber uma distinção clara entre os santos venerados eclesiasticamente e aqueles venerados nos segmentos populares. Nos claustros dos mosteiros e conventos, tanto na Europa como no Novo Mundo, são figurados santos que exemplificam a disciplina e o rigor da vida monástica, dos carismas das ordens religiosas, dos ideais de fé, castidade e desprendimento do trabalho missionário, assim como símbolos teológicos tradicionais, cenas bíblicas e figurações dos doutores da igreja, entre outros. Nas paredes, naves, absides, frontispícios, capelas abertas e outros espaços públicos ou de visitação dos mesmos mosteiros, conventos ou igrejas, além das capelas que se disseminam pelas cidades, figuram-se os santos patronos e outros santos que exemplificam a caridade, a piedade, o sacrifício, a fé inabalável, a missão evangelizadora, além de símbolos religiosos mais populares – como os da paixão de Cristo - cenas históricas ou de tradições religiosas associadas aos santos[9].
Esta distinção entre as imagens figuradas para uns e outros sugere que o clero tinha seu gosto e sua concepção da imagética religiosa, como também indica que o processo de evangelização dos segmentos populares estava assentado num projeto figurativo considerado apropriado à leitura de mundo dos mesmos. Por outro lado, sugere também que a materialização das concepções sagradas difundidas nas imagens religiosas figuradas ocorre a posteriori, ou seja, mesmo que as imagens sejam esboçadas a partir de referências populares, sua elaboração, propriamente dita, é realizada no topo da hierarquia religiosa e oferecida aos devotos. A incorporação da imagem pode levar anos, ou não acontecer, dependendo da proposta e da associação possível entre o processo de criação plástica e o de recriação mítica. “As imagens são produtos de certas concepções sagradas e catalisadoras de outras”[10].
São Bartolomeu, São Jorge, São Roque e São Lázaro são exemplos de imagens que, em suas figurações, são associadas a demônios e a cachorros, respectivamente, gerando uma dupla devoção – em uma dialética entre negação-afirmação, ou em uma dupla afirmação. Se essa dupla devoção não foi aceita pela estrutura eclesiástica do catolicismo, por outro lado, essa mesma duplicidade foi incorporada posteriormente pelos cultos sincréticos de origem afro, como na umbanda brasileira. Ocorre que, nessa incorporação, a diversidade das figurações religiosas católicas se reduz a algumas linhas estruturadas do campo da imagética das religiões afro – que nem sempre exigem ou permitem representações figuradas das suas entidades – onde as imagens se imbricam entre si segundo qualidades e características atribuídas ou reconhecidas às mesmas, produzindo assim um outro sentido e uma outra carga de poderes, classificados rigidamente.
Como a aceitação da criação plástica das figurações religiosas pelos segmentos populares não é passiva, opera-se nessa dinâmica uma combinação dos elementos presentes nas figurações, que são produzidos novamente para atender necessidades ou ajustar-se às referências próprias da visão de mundo dos segmentos populares. É aqui que a idéia deleuziana alcança sua expressão mais forte: no domínio do hábito ocorre o entrelaçamento dos signos naturais e dos signos artificiais. Como “as questões da contemplação se desenvolvem em campos problemáticos ativos” (DELEUZE, 1988, p. 140), que marcam o presente, a memória, que é o fundamento do tempo, inverte a relação entre geral e particular dada na primeira síntese, com relação ao presente. O mesmo ocorre com as imagens devocionais, como afirma Londoño: “Na imaginária da devoção, a figura, os motivos e os temas aos que está associada, estão sujeitos a variações, adequações e modas, tributárias da estética determinada pelo projeto de comunicação que conduz a devoção. O que é admitido sem muita dificuldade pelos devotos. O que recentemente foi mostrado por estudo realizado sobre os santinhos de Nossa Senhora Aparecida [...]. A devoção vai, pois, compondo a representação, alterando a imagem, aproximando-a do presente e do que faz sentido, carregando-a de símbolos fáceis de reconhecer” (LONDOÑO, 2000, p. 257-258).
Na medida em que as imagens religiosas são figuradas de forma diversificada, seja pela dinâmica histórica das transformações técnicas de sua produção ou de estilos artísticos, seja pela dinâmica de produção do consumo entre os segmentos populares, o sentido que carregam passa por metamorfoses mais ou menos profundas. Daí, a Igreja ter se preocupado em vários períodos com o controle dessa produção, tanto quanto com a difusão do imaginário que se desdobra aquém e além dos uso das imagens. Nesse sentido, explicita-se historicamente uma oposição estrutural sobre o valor das imagens e o controle exercido sobre sua produção x sua utilização mais ou menos autônoma (LOPES, 2000; LOPES e SOUZA, 2001), que pode possibilitar o seguinte esquema:
Nesse esquema, as relações podem ser analisadas no sentido vertical, de cima para baixo, e numa projeção elipsoidal com direção ao centro, sugerindo a projeção de um campo de esvaziamento da importância eclesiástica de uma imagem, que a aproxima de uma liberação ao uso, que é conseqüência das constantes ressemantizações operadas sobre elas[11]. Ocorreria assim, por diversas possibilidades, uma condição em que as imagens teriam seu sentido original esvaziado, ou esse sentido se cristalizaria enquanto carga associada às mesmas.
Essa idéia surge da perspectiva de que a classificação da iconografia religiosa popular no catolicismo é fluida, caracterizada por pouca densidade semântica e grande diversidade plástica, o que não ocorre na iconografia dos cultos afros, que seguem uma classificação que explica os elementos que compõem as iconografias por linhas, por exemplo. Ao mesmo tempo, esse processo sugere que as figurações religiosas evoluem seguindo um procedimento mimético, ou seja, ela opera difusões por representações miméticas[12]. Essa idéia, inclusive, permite pensar um modelo de explicação sobre a reprodução, em locais diferentes, de imagens diferentes de Maria, por exemplo (PELIKAN, 2000).
“Uma imagem não é apenas a justaposição de diversos signos,
mas o resultado articulado deles. Ademais, uma imagem
nunca é autônoma, pois seu significado está ao menos em parte
relacionado com o conjunto no qual ela se encontra inserida, isto é,
com sua localização física e com a utilização social que recebe”.
Hilário Franco Jr. (1996: 202)
Um exemplo dessas representações miméticas e de suas possibilidades de redução, no campo da imagética, está no uso das fitas com motivos religiosos – ou que guardam lembranças de romarias e peregrinações a centros de devoção – que se amarram nos pulsos, no catolicismo como nas religiões mediúnicas, que deriva dos tefilin[13], um costume tradicional judaico, confirmando a permanência de elementos semíticos na imagética religiosa que compõe o catolicismo popular.
Idéia semelhante orienta Ginzburg, em seu mais recente livro, onde sugere que a imagem de culto cristã tem suas premissas em uma característica recorrente nos textos proféticos judaicos (o uso de frases nominais), com ênfase nas profecias de Isaías apropriadas pelos evangelistas (GINZBURG, 2001, p. 117; 121). Segundo o autor, essa característica teria levado à produção de uma série de imagens de culto que enfatizavam os milagres, no século IV, reforçando uma dimensão narrativa associada à imagética (aliás, dimensão que persiste em várias figurações devocionais até hoje produzidas, como nos santinhos populares). Contudo, nos séculos seguintes, essa dimensão foi substituída por outra, ostensiva: “nos séculos V e VI, essa tradição foi suplantada por algo completamente diferente: o surgimento de imagens cultuais com conteúdo narrativo escasso ou inexistente. Podemos falar então do ‘retorno’ da ‘tradição greco-romana da imagem cultual’, como sugeriu Kurt Weitzmann ao introduzir um simpósio ligado à célebre exposição The age of spirituality [...]. No mesmo simpósio, Ernst Kitzinger propôs outra explicação. O aparecimento, ou reaparecimento, da imagem cultual poderia ter sido uma resposta ‘à necessidade de uma comunicação mais direta e mais íntima com o mundo celeste. Para o espectador, perceber a imagem como um documento fatual ou histórico, ou então como parte de um sistema auto-suficiente, não bastava mais. A imagem devia servir aqui e agora’. Esse e outros elementos certamente podem ter contribuído para a popularidade das imagens de culto” (Idem, p. 118).
Embora Ginzburg discorde da proposição de Kitzinger, em proveito de sua idéia – de que a experiência das imagens guarda relação com as experiências místicas, ou proféticas – a referência a essa passagem entre as dimensões narrativa e ostensiva das imagens de culto permite articular outra transição histórica. A própria constituição do campo devocional católico e popular passaria por uma síntese imagética dessas dimensões a partir da difusão dos exemplos cristãos.
Essa outra face, analisada por Franco Jr., é a da difusão dos exempla[14] pela Legenda Aurea[15], escrita no século XIII, inaugurando uma longa tradição no catolicismo, que seria uma referência ambígua, mas constituinte dos modelos de devoção popular. Escrita no período do “Renascimento urbano”, em que a concepção de espiritualidade caracterizava-se por três elementos articulados – “a pobreza evangélica, a pregação apostólica e as especulações escatológicas” (FRANCO JR., 1996, p. 222) – que se reproduziam num campo de mentalidades marcado pelos traços do belicismo e do contratualismo, próprios da Idade Média, a Legenda Aurea apresenta o santos como serviçais de Deus[16]. “Expressando de forma mais completa o belicismo e o contratualismo, os santos eram vistos na Legenda Aurea como ‘escravos de Deus’ que preparavam a humanidade para o juízo final. [...] O significado escatológico, essencial nos exempla, tão importantes na Legenda Aurea, transparecia, dentre outras formas, através do papel de punidores desempenhado pelos santos. Da mesma maneira que, pela visão totalizadora que se tinha da Divindade, os demônios eram ‘feitores de Deus’, os santos também O serviam castigando pecadores. Ou melhor, assim como os milagres benéficos tinham Deus como autor exclusivo, sendo os santos apenas seus instrumentos, o mesmo ocorria nos milagres punitivos” (Idem, p. 222-23).
A caracterização ambígua do papel dos santos, porém, ocorre em um período de transformação das sensibilidades, que a Igreja procurava conhecer e controlar. “O processo de cristianização de festas e divindades pagãs que ocorria desde a Alta Idade Média não era apenas uma estratégia de conversão, mas também expressão da permanência da sensibilidade antiga, que via o divino habitando a natureza. Ao insistir repetidamente naquele processo, a Legenda Aurea reforçava a visão belicista e contratualista do mundo e sobretudo manifestava sua vinculação a uma espiritualidade que ia sendo ultrapassada. Os milagres punitivos na Legenda Aurea, apesar de dirigidos à população urbana, mais afeita àquela transformação, correspondiam a uma espiritualidade mais pública que privada, portanto arcaica” (Ibid., p. 224). Trata-se de uma estratégia de “curar os contrários com seus contrários”, de combater as heresias e as perspectivas populares e de usá-las como instrumento ideológico.
A Legenda Aurea apresenta, assim, uma síntese das transformações da época, possibilitando reconhecer a tensão existente nas relações entre a diversidade das experiências religiosas populares e o projeto de unidade da Igreja – assentado nas características de um projeto programático da religião (SANCHIS, 1994) – através da uniformização daquelas. Nessa tensão, os milagres punitivos atribuídos aos santos produzem três conseqüências que seriam características do desenvolvimento posterior das mesmas relações: “Primeiro, eles revelam a ambivalência dos santos, com seus atos benéficos e/ou maléficos para os homens reforçando a velha e discutida tese de os santos cristãos terem sido sucessores dos deuses ou ao menos dos semideuses pagãos, tese aceitável desde que seja feita a ressalva fundamental de os santos não terem poder próprio como as entidades pagãs, sendo apenas intermediários. Segundo, aquele tipo de milagre representava uma tentativa de valorizar os santos num momento em que a Igreja – cada vez mais centralizada, porém também ameaçada pelas heresias – passava a controlar a canonização, de forma a aproveitar um traço da cultura vulgar para firmar a superioridade da cultura clerical. Terceiro, os milagres punitivos funcionavam como uma Microparúsia, uma aceleração da História, ou melhor, como a negação da História, pois seu objetivo se colocava para além dela, no Fim dos Tempos. Enquanto os demais tipos de milagre eram uma intervenção do Eterno na História, reafirmando a própria existência desta, os milagres punitivos simbolizavam o Fim da História, a passagem para o Eterno” (Ibid., p. 228-29).
Situados como intermediários nessa mão dupla da relação entre o homem e Deus – ora instrumentos dos milagres benéficos, ora dos maléficos – os santos passam a possuir um status dogmático, o qual a Igreja utiliza para firmar sua hegemonia. Daí em diante, cresce a distância entre os santos canonizados e os “santos” populares, relegados à periferia das zonas institucionais de produção do ethos religioso. Essa dicotomia marca profundamente a ambigüidade do santoral católico popular, que oscila regularmente entre uns e outros. Tal oscilação pode ser constatada nas insistentes reivindicações populares pela canonização de santos que não se enquadram no status dogmático estabelecido pela Igreja, como também pelas produções de características populares atribuídas aos santos canonizados segundo aqueles dogmas. Isso influi decisivamente no processo de materialização das concepções sagradas imprimidas nas imagens dos santos. As imagens que apresentam um fundamento mais dogmático têm dificuldade em penetrar nos círculos devocionais, uma vez que as devoções se afirmam para aquém da profissão de fé. A centralidade da profissão de fé é marcada pela imagem do absoluto e caracterizada por ser inalcançável. Assim, o milagre é obra, de Deus, mas os santos são seus instrumentos de realização, como degraus numa escada que não leva a lugar algum. Se o carisma que cerca o santo é muito dogmático, sua simbologia torna-se desapegada da vida comum e sua figuração não materializa concepções sagradas. Torna-se mais adequado para os segmentos populares produzir seus próprios santos, forçando sua entrada no espaço sagrado, segundo a projeção dos lugares que habitavam mundanamente – prática ainda comum nos segmentos devocionais populares do catolicismo.
Essa posição de intermediários e a dogmatização dos cânones de santidade opera outra reação nos segmentos populares que, grosseiramente, pode ser definida como uma seletividade concorrencial nas devoções aos santos. A capacidade e o poder de instrumentalizar os milagres divinos faz com que os santos sejam classificados numa disposição hierárquica – mesmo que fluida – e numa escala de especialidades que permite um inventário vastíssimo[17]. Neste processo, os santos transformam-se em especialistas. Supõe-se, aqui, que a dogmatização da canonização dos santos, porque passa por um processo de instrumentalização dos mesmos, reforçou a mentalidade popular de pensar a mediação realizada pelos mesmos segundo tais especialidades. Como não possuem, originalmente, o poder de realizar os milagres, as suas capacidades instrumentalizadoras – mediadoras – é que se especializam. Em geral, tais capacidades foram sacadas estrategicamente de suas biografias, reais ou imaginárias, e elevadas à uma condição hiperbólica[18], ora pela apropriação que os segmentos populares realizaram secularmente dos exempla utilizados no processo de evangelização, ora como estratégia de aprimoramento e uniformização do imaginário popular, pelos agentes diversos da estrutura eclesiástica.
O desuso dos exempla no processo de evangelização, posterior ao Concílio de Trento, foi importante para romper esse ciclo de apropriações, rebatendo na diminuição das combinações populares produzidas sobre os santos no campo da imagética religiosa. Uma vez que o sentido das materializações das concepções sagradas que produzem os santos e suas imagens têm por princípio, cada vez mais, a unidade da Igreja, sua estrutura torna-se rígida e confunde-se com a própria atuação da Igreja. Os santos canonizados contemporaneamente têm um papel menor na afirmação da experiência devocional, na medida que se torna maior o seu papel de afirmação do valor da Igreja.
Simultaneamente, o desuso dos exempla corresponde ao desuso das imagens no processo de evangelização, que agora retoma o primado do método bíblico, abrindo caminho para a reinvenção da produção do consumo da imagética religiosa. Tal concepção pode ser facilmente confirmada pelo motivo da associação entre a iconografia religiosa utilizada em determinadas situações e suas transfigurações na atualidade, já que o devoto atual pode não se ocupar com o sentido tradicional da imagem[19].
Assim, o significado primeiro de imagem, aqui utilizado, poder ser repensado segundo a lógica que leva Pastro a buscar sua etimologia em um lugar comum ao aqui discutido, mas reduzi-la metaforicamente, para sugerir uma apropriação ao campo da imagética religiosa.
Apresentando uma concepção reduzida da etimologia do termo, Pastro assim a define:
“IMAGEM
IMAGO
= IMAGEM
Palavra latina que significa: sombra de um morto,
espectro, fantasma, visão, cópia, imitação,
parábola, lembrança, sinal.
IMAGEM
IN
+ AGER = NO CAMPO
AGGER, IS
AGGERARE = AMONTOAR
TERRA
IMAGEM = MONTE DE TERRA OU TERRA ARADA, MARCADA.
Na sua origem etimológica, IMAGEM dá idéia de monte de terra onde embaixo há algum conteúdo” (PASTRO, 1993, p. 33 - grifos do autor).
Aqui, vê-se o autor indicando uma significação plural, mas sugerindo uma significação metafórica, em virtude de definir a palavra no contexto de um estudo sobre arte sacra, que secundariza o valor da imagem devocional. O direcionamento simbólico que imprime à significação da palavra é claro, mas creio que sua idéia pode ser apropriada em benefício da análise das imagens devocionais também.
Para chegar ao conteúdo da imagem é necessário escavar o “monte de terra” que a encobre, assim como, para compreender a diversidade das produções figurativas no campo da imagética devocional, é necessário realizar o inventário das imagens nele presentes e analisar os movimentos recíprocos entre os agentes produtores das figurações e os produtores do consumo das mesmas.
“As imagens das coisas é também a da sua duração”.
André Basin
Agora é hora de rever a questão que esteve sustentando todo este artigo: pensar a estrutura de sentido que se enforma acerca da utilização das imagens no catolicismo popular, ou seja, o campo da imagética devocional. Desde a primeira discussão acerca do movimento que permite pensar a imagem e suas figurações, como um itinerário do campo imagético, pode-se pensar que, para além da imagem, deve-se analisar também a transição da estrutura que se cria em torno dela e que ela expressa como forma.
A rigor, a reflexão aqui esboçada sobre a afirmação e a hipótese iniciais fornece elementos para distinguir duas abordagens centrais nas investigações sobre imagens religiosas ou devocionais: a que considera a relação devocional constituída em torno de uma imagem, em algum contexto específico, e a que considera as devoções religiosas em suas relações com um campo imagético plural. Na primeira, pressuponho que é necessário compreender o caráter de “fabricação da devoção à imagem”, em uma abordagem situacional (VAN VELSEN, 1987; AGIER, 2001); na segunda, tomo como princípio que a abordagem investigativa deve deslocar o sentido das imagens, de seu significado particular (que é adjetivador), para um significado geral (substantivador), definido na “constelação devocional” (HIGUET, 1984, p. 27), onde suponho ocorrerem as contrações operadas pela memória popular.
Os trabalhos recentes de Gutilla (1993), Melo (1999), Forti (1999) e Moreno (2000), entre outros, são exemplos da primeira linha de abordagem, em perspectivas distintas, mas convergentes. Ocorre que o estudo de uma devoção particular é muitas vezes insuficiente para abranger a dinâmica de uma memória popular devocional, uma vez que os campos problemáticos ativos nos quais se desenvolvem as questões de contemplação (leia-se questões da devoção) podem se restringir. Tal restrição dificulta à investigação desvelar o entrelaçamento dos signos naturais e dos signos artificiais envolvidos no campo da imagética devocional, desde sua produção plástica à sua produção do consumo. O que considero a dificuldade central de tal abordagem é o fato de que as mediações que se operam nesse entrelaçamento são de ordem da memória, e lembre-se que a memória, que é o fundamento do tempo, inverte a relação entre geral e particular dada na síntese do presente.
Procurei expor, anteriormente, que a produção do consumo devocional das imagens renova-se em um movimento diacrônico, o que sugere constantes situações de visibilidade e invisibilidade das mesmas. Contudo, em várias ocasiões de pesquisa observei que a invisibilidade das imagens não significa que elas desaparecem, mas sim, que elas saem do espaço público.
A história conflituosa das relações entre as representações plásticas institucionalizadas (eclesiásticas ou evangelizadoras) e as figurações devocionais populares, desde o período colonial brasileiro (HOONAERT, 1983), confirma essa idéia. Mais ainda, essa história mostra que, na medida em que vai prevalecendo no espaço público um novo tipo de estrutura de sentimentos (WILLIAMS, 1981), em detrimento de um anterior, a hegemonia muda, as representações plásticas vão mudando e as imagens tradicionais vão sendo retidas nos espaços privados. Sobretudo, no campo devocional mais tradicional, essas imagens se tornam ausentes dos jogos de combinação produzidos pelos segmentos populares.
Nas pesquisas que realizei ficou evidente que, frente a diversos campos problemáticos ativos, os devotos deslocam o lugar das imagens para manter um sentido tradicionalmente atribuído às mesmas. Assim, as imagens tradicionais saem de um campo de combinações mas mantêm-se em um campo de trocas entre sujeitos que partilham esses sentidos. Um senhora cuja filha tornou-se evangélica e passa a questionar as imagens da mãe dá suas imagens a uma comadre; um senhor cujos filhos passam a receber amigos em casa muda as imagens da sala para o quarto e, após passar a receber amigos para tocar viola no quarto, muda novamente as imagens para uma edícula no quintal, onde constitui seu santuário particular. Na busca de manter suas devoções e suas imagens, os sujeitos negociam com os componentes de organização do espaço social, como afirma Hoonaert: “O oratório, a capela, ou a igreja, não é senão um espaço organizado em torno da imagem do santo. Importa pois saber como se organiza esse espaço, quem é julgado ‘digno’ de se aproximar do santo, como se faz a distribuição dos lugares, como se fazem os percursos dentro da igreja. E aqui se instala a dialética: a maneira como a sociedade brasileira entendeu a relação entre os homens e o ‘santo’ não é absolutamente pacífica, mas sim conflitual” (1983, p. 293).
Aqui, é possível pensar a atitude dos devotos frente à disposição das imagens no espaço social. Darei dois relatos rápidos[20]. O primeiro é o de um devoto de Lagoinha, no estado de São Paulo. Esse devoto tira imagens “católicas” dos trabalhos e despachos umbandistas que encontra nas estradas. Trata-se aqui de um campo problemático ativo que envolve imagens religiosas e identidade, mas não só. Quando tira a imagem de seu contexto ele rompe com um ciclo de dupla filiação identitária das imagens (um sincretismo que as caracteriza), e aí ele afirma – “Eu tiro e pronto”. Mesmo que afirme conscientemente que “isso não tem que estar ali”, é possível perceber em sua atitude a compreensão de que a imagem se move, se carrega de uma porção de sentidos. Vê-se isso no medo da mulher dele, que diz – “O velho está carregado de um monte de coisa”. Então, a posse de imagens carrega de sentidos. Ela não acredita que aquilo carrega no seu marido, mas que carrega e amplia o sentido do que a própria imagem incorpora, do que leva dos lugares onde esteve[21].
Por outro lado, esse exemplo mostra que a exteriorização das imagens corresponde à definição de padrões sociais de ação, reconhecidos segundo filiações e sentimentos de pertencimento atribuídos às imagens. Tais padrões sugerem, também, que as imagens religiosas cristalizam os sentidos da estrutura social em que circulam, na sua forma exteriorizada.
Este é o mesmo sentido do caso que se passou com um conjunto grande e diversificado de imagens que apareceu, um dia, sobre uma grande pedra à beira da ferrovia que corta Taubaté, estado de São Paulo, bem no centro da cidade. No dia em que apareceram, pela manhã, todas as imagens estavam inteiras e com aparência de novas, continuando assim até a noite; na outra manhã, quando fui fotografá-las, sobravam poucas inteiras. Haviam sido quebradas violentamente. O que permite a alguém quebrá-las, senão a consideração de que estão carregadas de um sentido que não deviam ter?
Essa atribuição de sentidos é essencial para compreender o papel e o lugar das imagens devocionais no campo devocional modernizado, ou plural, onde as possibilidades de combinações das imagens são mais variadas, como escreve Londoño: “[...] a imagem religiosa multiplicada, feita santinho de gesso, madeira, papel ou mesmo imagem virtual na tela do computador, tem como destino ocupar espaços onde será carregada de sentidos particulares explícitos ou não, definidos pelas diversas práticas de veneração. Nos santuários, nos oratórios domésticos, na cabina de um caminhão, na vitrine de um negócio, na mesa de um escritório, na carteira ou mesmo perdida em um livro de rezas, a imaginária das devoções cumpre funções particulares e expressa significados. Ainda sendo a reprodução gráfica ou virtual ilimitada, as possibilidades de circulação da imagem e de presença em muitos lugares também se multiplicam. Independente dos detalhes de sua iconografia, a imagem passa a ser definida pelo uso e pelas expectativas depositadas na intervenção do santo” (LONDOÑO, 2000, p. 258-261).
Em outros estudos (LOPES, 2000; LOPES e SOUZA, 2001), já havia destacado essa situação: de que o campo imagético devocional exterioriza elementos figurados diversificados, que se estabelecem em uma rede de sentidos definidos em uma dialética produzida no uso e pelo uso das imagens. Contudo, o destino das imagens não se resume a ocupar espaços, embora a constituição de uma geografia do sagrado seja um aspecto importante da imagética devocional.
Tais elementos exteriorizados só adquirem seu real significado na forma que assumem ao interior da rede, devido à fragmentação dos sentidos identificados com a especificidade de cada imagem, que geralmente encerra, em si, uma memória devocional superficial. Ou seja, a identificação do devoto remete mais à dimensão ostensiva da imagem, e sua repetição, que à sua dimensão narrativa.
A ausência da dimensão narrativa na experiência devocional com as imagens religiosas (SÀEZ, 1996) sugere que os devotos ampliam o poder da produção do consumo das mesmas na medida em que a apropriação das imagens e sua exteriorização atende uma mediação difusa. Os devotos apropriam e utilizam-se das imagens segundo algumas propriedades atribuídas ao “santo”, difundidas amplamente no imaginário popular. Como tais propriedades não remetem à configuração de uma alteridade absoluta, mas resultam das especialidades atribuídas aos santos, na dinâmica concorrencial que se efetiva pela capacidade e o poder de instrumentalizar os milagres divinos, a própria experiência devocional torna-se profundamente marcada por essa fragmentação. Dessa forma, para além da constatação de que as imagens cumprem funções particulares e expressam significados, é importante reconhecer e investigar a rede de sentidos que se forma na experiência devocional com um campo imagético plural.
Já no campo das mediações mais consistentes, a experiência devocional somente se estrutura na familiaridade ou intimidade com um santo quando se relaciona com uma experiência mística, o que implica o domínio da dimensão narrativa e um suporte da memória coletiva. Essa característica não é extensiva a todos os devotos, mas geralmente é atribuída a alguns especialistas populares reconhecidamente legítimos, capazes de sintetizar a experiência devocional e realizar as mediações necessárias para inverter a relação entre o geral e o particular na síntese do tempo. Nesse domínio, a imagem devocional permanece e ganha os sentidos que possibilitam sua reprodução figurativa, muitas vezes, para além de seu espaço “familiar”. É nesse sentido que “as imagens também se inscrevem em uma tensão de usos, da qual não está excluída sua utilização como objeto de poder” (LONDOÑO, 2000, p. 262).
Ocorre que, na difusão de toda e qualquer imagem, a dimensão narrativa associada à devoção tende a perder seu sentido, em proveito da dimensão ostensiva. Uma vez que os modos de reprodução da imagem devocional são mais diversificados e acessíveis que os modos de reprodução de sua narrativa original, a tendência de toda devoção que ganha um escopo alargado é a de despregar-se da memória que a funda e sustenta.
Essa situação é importante porque justifica a significação de uma rede de imagens devocionais. O que há na rede? Há um conjunto de trocas que vão carregando de sentidos e de justificação esses ciclos pelos quais as imagens passam. Essa lógica dos empréstimos, das devoções, da realização das novenas em que as imagens vão da casa de um devoto para a de outro – o que ocorre também com as bandeiras de grupos devocionais populares – é importante de ser trabalhada.
A multiplicidade dos modos atuais de produção e reprodução da imagética devocional gera um campo de ressignificações que de alguma forma cria dificuldades para a cristalização das imagens e para a sua incorporação. Tudo se passa como que seguindo a lógica da produção de informação que Postmann (1994) discute em Tecnopólio: muita informação produzida por meios tecnológicos impede a manutenção de uma teoria, porque a função da teoria é excluir informação, e não agregar. O mesmo ocorrendo com a memória. Nesse caso, surge a necessidade de instituir uma competição normativa, que também pode servir para o entendimento da produção da imagética devocional contemporânea: se um sujeito pode produzir qualquer figuração plástica, as concepções normativas do princípio da figuração plástica, relacionadas com as estruturas de sentido que se fixam como memória, se abalam.
Atualmente, o processo de cristalização das imagens pode não ocorrer de forma tão visível e profunda, na experiência devocional, porque a abundância dos modos de produção da iconografia, assim como das suas formas de exteriorização, abala a estrutura de sentido hegemônica. A possibilidade de individualizar a dimensão plástica inviabiliza a constituição de uma estrutura de sentido única, como memória; daí, essa diversidade de imagens que hoje constatamos.
O santinhos difundidos publicamente, na atualidade, são exemplos do abalo que se produz na estrutura de sentidos devocionais contemporâneos. Da mesma forma, as novas combinações figurativas produzidas nas estampas de luto, assim como nos cartões e estampas trocados cotidianamente, nas camisetas, etc., não representam mais aqueles símbolos religiosos tradicionais, o que permite que eles transitem no espaço público de uma maneira mais dinâmica, porque o sentido está amenizado. Dessa perspectiva, esse abalo produzido pode ser percebido na difusão das figurações religiosas para além das fronteiras aos padrões sociais de ação definidos naquelas redes de trocas imagéticas, passando para uma esfera maior de relações, onde o ethos religioso não é mais estruturado particularmente sobre as mediações operadas pela iconografia religiosa, nem as determina.
A dimensão religiosa do espaço público contemporâneo mostra que as trocas no campo da imagética religiosa são diferenciadas e que a diferenciação está se processando na concepção da quantidade ou da personalização. A própria lógica da exteriorização da iconografia está se espalhando segundo esse princípio: o que a caracteriza hoje é essa profusão de imagens, como na arte, nos jornais, nas estampas, nos calendários, etc.
Trata-se de uma forma de esgotamento, mas não de um esvaziamento. Porque agora, ao cristalizar-se, a imagem torna-se cheia.
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[*] Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), Professor de Antropologia e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas, Universidade de Taubaté, SP.
[1] Veja-se sobretudo, de Sartre, “La imagination” (1936) e “L’imaginaire. Psychologie phénomenologique de l’imagination” (1940).
[2] Cabe esclarecer que a noção de “imagens mentais”, como o próprio Aumont afirma, não equivale ao conceito de imagens inconscientes, elaborado na teoria psicanalítica, sobretudo em Freud e Lacan.
[3] Das acepções que apreende de Vernant, porém, é sugestiva a indicação que o significado profundo de imagem equivale ao de psyché.
[4] Veja-se também a importância atribuída a esse epistemólogo, no trato da questão, por M. Eliade (1996).
[5] Segundo Durand, o que “caracteriza o ‘trajeto antropológico’ é esse paradoxo dinâmico que faz com que haja ‘uma natureza humana’ decerto, mas potencial, existindo somente no vácuo e passando ao ato pela atualização singular de uma cultura”(DURAND, 1977: 25-26).
[6] Veja-se, na p. 136, à nota 3 (DELEUZE, 1988), as três categorias fundamentais que regem todos os fenômenos, segundo Gabriel Tarde (repetição, oposição e adaptação); segundo esse autor, as repetições ocorrem de uma geração para outra, na ordem de oposição de pares binarios.
[7] Ver a discussão que Deleuze (1988) elabora sobre a idéia de “signo de um presente”, do estoicismo, e a distinção entre signo natural, que remete ao presente no que ele significa, e signos artificiais, que remetem ao passado ou ao futuro como dimensões distintas do presente.
[8] Para o entendimento do campo devocional popular, ou das religiões populares, remeto o leitor às dissertações de mestrado de Régis de Toledo Souza, Identidade e devotos católicos: iconografia e instituição religiosa como elementos mediadores (Psicologia Social, PUC-SP, 2001) e de André Luis da Silva, Faces de Maria: catolicismo, conflito simbólico e identidade (Ciências da Religião, PUC-SP, 2003). Veja-se também o artigo de Higuet, onde o autor define o campo devocional como uma constelação que se “compõe da totalidade das práticas pelas quais o homem toma contato diretamente com um ser santo e pessoal. São todos os atos de piedade pelos quais pode ser estabelecida uma relação íntima para um ser santo, de modo semelhante como se dá entre duas pessoas. As práticas que dão acesso a esta relação direta e pessoal podem ter caráter individual como oração, novenas, práticas de piedade diante de imagens de santos, ou coletivo (como festa, procissão)” (HIGUET, 1984, p. 27).
[9] Um grande exemplo desta separação está na Igreja da Assunção de Maria, Catedral de Cuernavaca, México, fundada por franciscanos (1529-1552). Enquanto o claustro e outros aposentos reservados aos padres foram pintados com poucas e rígidas imagens de santos, além de alguns elementos decorativos em frisos ou nos tetos dos corredores, as paredes laterais da nave da igreja foram pintadas com imensos painéis que retratam a história do martírio do santo mexicano San Felipe de Jesús, ordenado pelo Imperador Taycosama. Este projeto figurativo pode ser constatado também nos demais conventos e mosteiros do estado de Morelos, e era uma característica da presença dos franciscanos, tanto quanto da dos dominicanos, no processo de evangelização, durante o período colonial.
[10] Aqui, agradeço à sugestão enunciada por Oscar Calavia Sàez, que possibilitou superar alguns entraves surgidos durante a pesquisa com os sujeitos e suas imagens.
[11] É o que ocorre regularmente com a imagem de São Jorge, por sua indefinição histórica, tanto quanto por sua utilização na Umbanda e outras seitas sincréticas, como o Santo Daime e a Barquinha.
[12] E é preciso reforçar aqui o papel da memória em cada um desses campos religiosos, para compreender que a fluidez ou a rigidez dessas classificações das imagens tem uma dimensão temporal distinta. A operação mimética dessa difusão, e suas distintas classificações no catolicismo e nas religiões afro, reforça a idéia deleuziana de que o alcance das contrações é que define a duração do tempo. No caso aqui discutido, busco justamente uma aproximação entre essa idéia e a permanência das imagens, no campo devocional. Suponho que esta duração depende das condições em que as necessidades dos sujeitos interferem na sua percepção dos instantes que marcam seu presente, do número de sínteses que é capaz de operar: “não se pode ir mais depressa que seu próprio presente, ou antes, que seus presentes”. Na medida em que a memória é o fundamento do tempo, as imagens permanecem quando estão profundamente relacionadas com uma memória devocional, ou religiosa. Daí se explica o caráter rígido de classificação da imagética nas religiões afro.
[13] “Tefilin (hebraico, significa ‘objetos de oração’, ou aramaico, significa ‘ornamentos’) Duas caixinhas de couro preto que contêm quatro passagens bíblicas (Êx. 13:1-10, 11-16; Deut 6:4-9, 11: 13-21) escritas por um escriba e que são presas com correias de couro ao braço esquerdo e à testa. (...) Acredita-se que os tefilin inculcam humildade, e a recompensa por usá-los é uma vida longa. Em português são chamados ‘filactérios’, significando ‘amuletos’, mas embora haja na literatura judaica histórias sobre os poderes de proteção dos tefilin, eles não são considerados primordialmente talismãs mágicos. Na meditação que precede o ato de pô-los, os tefilin do braço são vistos como uma lembrança do braço estendido de Deus quando tirou os israelitas do Egito (...) e são colocados junto ao coração para sujeitar os anseios do coração de Deus.” (UNTERMAN, 1992, p. 260-61).
[14] “Exemplum, isto é, ‘uma narrativa breve, dada como verídica e destinada a ser inserida num discurso (geralmente um sermão) para convencer um auditório por uma lição salutar’. Narrativa de inegável fundo mítico, o que garantia a receptividade almejada” (FRANCO JR., 1996, p. 221). Sàez (1996) também refere-se ao termo, afirmando que “é um termo de longa e reveladora tradição. Os exemplos, na literatura eclesiástica medieval, eram peças narrativas destinadas à pregação. Não palavra sagrada, como os evangelhos, senão narrações profanas construídas em volta de um núcleo de significado religioso ou moral. Epifenômenos de um discurso escrito alhures. Interessa ressaltar que tais exemplos exerceram grande papel na formação do cristianismo popular; à sua duplicidade de forma e conteúdo devemos em boa parte nossa procura de tal núcleo nas mitologias alheias” (SÀEZ, 1996, p. 74 – nota 12).
[15] Trata-se de uma famosa coletânea hagiográfica “elaborada pelo dominicano e futuro bispo de Gênova, Jacopo de Varazze, por volta de 1620” (FRANCO JR., 1996, p. 221). Deve-se destacar que o autor da obra era um pregador mendicante, que tinha por tarefa e preocupação centrais enfatizar o papel dos santos como evangelizadores e atualizar os fatos históricos das práticas pagãs ou perseguições ao cristianismo castigados pelos santos, através da conversão dos hereges da sua época. Aproveito a atualidade dessa obra, recentemente traduzida ao português e publicada no Brasil, para tecer alguns comentários importantes.
[16] Em seu estudo, Ginzburg também se refere à imagem de Jesus, no Deutero-Isaías, como sendo grafada originalmente na forma “Servo de Deus”, substituída por “Filho de Deus” na tradução do hebraico para o grego. Seguindo essa pista, pode-se supor que a imagem dos santos, na Legenda Aurea, buscava resgatar um sentido místico que permitiu uma maior difusão dos exempla, como também sua associação com uma produção figurativa, em torno dos santos, que foi se diversificando progressivamente.
[17] Uma análise que considerasse uma abordagem diacrônica cruzando-se com uma abordagem sincrônica dessas especialidades existentes no santoral católico permitiria analisar os limites e as recorrências históricas dos sentidos das imagens, tanto quanto das estratégias dessas construções materializáveis de concepções religiosas: o vai-e-vem dos santos entre lugares e tempos sociais diferentes, enquanto Deus permanece impassível. Uma análise desse tipo, realizada por Marlise Meyer acerca da entidade da Umbanda Maria Padilha, mostra bem a riqueza e a recorrência de tais concepções, sobre horizontes sociais distintos, mas de apropriações circulares na história (Maria Padilha e toda a sua quadrilha. SP: Duas Cidades, 1993).
[18] Essa condição hiperbólica por que é pensada a instrumentalização dos milagres muitas vezes confunde-se com uma capacidade de realizar milagres, nos segmentos devocionais populares do catolicismo. Porém, essa idéia só se mantém entre devotos mais tradicionais, sendo que entre os católicos “romanizados” prevalece a idéia do poder mediador dos santos.
[19] Esse fato acontece com mais regularidade, hoje, nas estampas de luto, ou os “santinhos de falecimento”, em que as imagens tradicionais de santos estão sendo substituídas por imagens da natureza ou por fotografias dos próprios falecidos. Sobre esse assunto, leia-se a Dissertação de Mestrado de Mateus Marcos Ribeiro, “Santinho, mármore e memória: a finitude humana revelada pela imagética” (Ciências da Religião, PUC-SP, 2001), que traz um anexo rico em imagens desse tipo.
[20] Tais relatos estão melhor explicitados e identificados em Lopes (2000).
[21] Essa idéia aproxima-se daquela desenvolvida por Malinowski, em Argonautas do Pacífico Ocidental (SP: Abril, 1976), sobre as trocas de objetos realizadas durante o Kula, pelos trobriandeses.