O Símbolo e o Ex-Voto em Canindé

Marcelo João Soares de Oliveira[*]

Introdução

Em termos etimológicos, o vocábulo "símbolo" vem do grego "symbolon = contra-senha", sinal de reconhecimento[1], do verbo symballoo = reunir, acercar como ato correspondente a "con-juntar", "con-correr", "co-nectar", não raro com sentido real no meio circundante. Tal era, por exemplo, entre os cidadãos gregos, o caso das assembléias ou reuniões dos pares, antes das quais um objeto de terracota (um dado, um disco, etc.) era previamente quebrado, ficando cada membro com um fragmento do mesmo. No momento próprio da realização do encontro, "con-juntando" os fragmentos de cada um dos participantes – o que, de certo modo, re-compunha o objeto - se "re-conhecia" ao portador de cada fragmento o direito de participação naquela assembléia.

O conhecimento ocorre a partir de um encontro entre o sujeito e a realidade objetal, entre o ser humano e um setor determinado do mundo. A limitação do encontro é co-natural tanto à limitação da natureza do sujeito, quanto à do objeto: nem o sujeito é capaz de apreender tudo, nem o objeto de dar-se totalmente, pois não é esgotável. Há, também, uma seletividade que é fruto da mesma limitação inerente à natureza do sujeito. Nisto reside a especificidade do encontro perceptivo e cognoscitivo: o olho percebe os objetos iluminados, mas não os sons; o ouvido percebe os sons, mas não os objetos iluminados, etc. A realidade objetiva é deformada pelo sujeito, pelo seu modo próprio de ser, ainda que não o queira.

O sujeito percebe (de per-capere) porque capta algo. Registra em sua mente uma re-presentação na qual, ao mesmo tempo, há uma ação espontânea, tanto de con-formar como de de-formar. A capacidade perceptiva, por natureza, se con-forma ao objeto, e este, por isso mesmo, assimilado por outra realidade - que é o sujeito - deixa de ser ele próprio, tal qual era antes, e, assim, se de-forma. Origina-se, destarte, uma representação que constitui, em si, uma realidade diferente da realidade do sujeito e da realidade do objeto em si mesmas: é uma fusão destas duas realidades, formando uma terceira realidade, que é o produto da percepção. Por isso, o símbolo supõe, pelo menos: 1) dois setores diversos da realidade; 2) fusão, a união destes numa nova entidade que se torna mediadora entre ambos; 3) essa entidade apresenta o caráter de certa equivalência, igualdade, similitude. Os patrícios helênicos juntavam, um com outro, seus fragmentos de terracota e, assim, reconheciam e tornavam reconhecido o direito de participação (tornar-se parte) na assembléia que se reunia. Nem os pedaços em si, nem sua simples justaposição eram o direito ou a assembléia de cidadãos, mas significavam (fazer sinal ou prova de algo) o direito àquilo.

O símbolo, no seu vir-a-ser, dinamicamente, é o “encontro” pelo qual se adquire o conhecimento, que se fixa por uma representação (ora mais concreta e sensorial, ora mais abstrata e intelectual) que é o símbolo em si mesmo, no seu modo de ser. Tudo o que é humano participa da natureza total do homem: soma, psique, espírito.

De acordo com Francisco Taborda: O símbolo é aquele fragmento que remete ao todo, medeia para a totalidade, antecipa a plenitude, embora continue fragmentário, isto é, continue na história. Os símbolos são portanto, próprios do ser humano como ser da transcendência. Um símbolo é tal dentro de determinada rede de referências, é condicionado pelas circunstâncias históricas, culturais, psicológicas, sociais. Todas estas condições estão presentes no símbolo, ao mesmo tempo idênticas e distintas do símbolo [2]

Não há conhecimento, ou seja, apropriação do objeto pelo pensamento, que não seja, de algum modo, intelectualizado, e não há elemento conceitual, lógico, que não seja representado sensivelmente.

O pensamento, em si, não se constitui de palavras, mas só podemos pensar com clareza quando podemos fixar as idéias com palavras convenientes. Mas também reconhecemos, de outra parte, que não é só por palavras que o homem pode expressar-se com clareza, por exemplo, numa cena muda, perfeitamente inteligível (o cinema antigo, a mímica), ou numa representação figurativa (caricatura, pintura, desenho, etc.). Diz-se que, em muitas ocasiões, o silêncio fala. O termo símbolo tem, aqui, duas acepções intimamente vinculadas: é o sinal-no-qual a realidade é percebida pelo sujeito e o sinal-pelo-qual o sujeito comunica a outrem a realidade percebida. O símbolo manifesta a realidade percebida pela relação que tem com a mesma, e que se chama significado. Convém recordar que significar quer dizer “signum facere”, isto é, fazer sinal.

Além do símbolo: a imagem do totalmente outro

O devoto vê no simbólico o sagrado. Contudo, só consegue entender o significado quem comunica a mesma fé. A pessoa que, diretamente, não tem acesso ao Mistério, para atingi-lo, usa o símbolo. Ele propicia o encontro da pessoa com o Sagrado e não uma reflexão sobre o mesmo. Remete ao totalmente outro, ou seja, ao Transcendente, porque não há outra forma de alcançá-lo, senão no símbolo. Assim, o símbolo é a representação visível de uma realidade invisível[3].

Esta é a lógica do pensamento simbólico. Ele amarra paradoxalmente realidades aparentemente opostas, integra em único olhar a realidade em si e para além de si, estabelecendo uma sintonia profunda com a totalidade[4].

O homem e a mulher se comunicam, entram em sintonia através do seu corpo e recebem informações por meio dos sentidos que possuem. Já o contato com o Divino se dá nos símbolos, não podendo haver, sem eles, mensagem. Por isso, os devotos de Canindé procuram comunicar-se simbolicamente com o Sagrado através dos ex-votos durante as peregrinações.

Além da imagem: a revelação do santo vivo

Nas devoções em Canindé existe um lugar especial onde muitos devotos costumam retratar o Santo vivo[5]. É um salão de festa[6] que fica ao lado do santuário de São Francisco das Chagas, de Canindé, conhecido como a Casa dos milagres. Lá procuram reproduzir - nos ex-votos que oferecem - a face do Sagrado. Os ex-votos significam a imagem revelada do Santo vivo, isto é, a fotografia dele. Lá se materializa o seu caráter, descrito conforme a intimidade e a relação afetiva do devoto para com o Santo. Ali o fiel diz como Ele é e como O encontrou.

Eles expõem a fotografia do Santo vivo no intuito de que todos os devotos possam conhecê-lo, mostrando como Ele dá sentido ao seu cotidiano fragmentado, como constitui a sua verdadeira identidade e como se revela no seu ser. Alguns devotos desejam ardentemente vê-Lo de perto, mas as condições de saúde nem sempre possibilitam o acesso até Canindé: Senhor São Francisco, peço que me abençoe e me dê muitas saúdes para mim e toda a minha família. Que rogue a Deus por mim e que mostre um meio de eu visitar a sua Igreja. Que a minha aposentadoria saia, e assim eu vou te vê [sic] de perto. Seio que sabes a minha condição, mas espero a misericórdia de deus. E sua ajuda meu santo protetor. A sua serva. (assina) [7].

Na realidade, o romeiro deseja olhar para São Francisco, falar com ele[8], sentir sua presença amiga, e, também, que responda as cartas que recebe. A senhora Mariana, em 1959, escrevia ao Santo vivo solicitando na resposta de sua carta que o mesmo enviasse o seu fiel retrato: Estando gravemente enfermo meu filho Francisco, que ainda vivia pagão, recorri ao glorioso S.Francisco de Canindé, pedindo o seu restabelecimento, prometi viajar a procura de um sacerdote para batizá-lo, que só existia muito longe (...) contudo, fui imediatamente atendida, motivo porque agradeço ao milagroso santo (...) Segue a fotografia do referido garoto, e em resposta espero receber o vosso fiel retrato. (assina) [9].

Outras pessoas, além de enviar ao Santo vivo o seu retrato numa carta, mandam também um terço em forma de anel para que o Santificado possa utilizá-lo nas suas rezas pelos devotos: São Francisco, eu me chamo Maria eu tenho uma história meia triste eu era uma pessoa normal eu enchergava [sic] bem de repente eu fiquei com um problema do meu olho direito, eu já fiz uma operação mas não adiantou (...) Eu acredito de milagre e que você pode me ajudar. Peço que você bence [sic] com carinho e me dê à visão de novo covesse [sic] com Santa Luzia e fale o meu problema a ela, eu já pedi mas não deu certo, que você ai está perto dela e mais fácil você falar com ela eu sei que ela ama todos tipos de doença de olhos. Eu estou tão triste (...) mando uma foto minha e um Anel Terço para você rezar por mim, eu agradeço(...) (assina) [10].

Para revelar o Santo vivo, os devotos confeccionam ex-votos, comunicam visivelmente o Sagrado, conforme a experiência de fé. Assim, fazem memória do seu relacionamento com ele, remetem a história, a particularidade da revelação santa e tudo como promessa de um amor.

O vocábulo ex-voto origina-se do latim, cujo significado pode ser o pagamento de uma promessa ou em agradecimento por uma graça alcançada, por causa de, em virtude de um voto alcançado[11]. É a criação artesanal feita em madeira, tecido, cera, barro, gesso, papelão, das partes chagadas do corpo humano, curadas a partir de um relacionamento do devoto com o Sagrado. Sua prática é bastante antiga e sua história emerge da Antigüidade, quando, por exemplo, os guerreiros penduravam as armas após os combates e os doentes curados depositavam esculturas de pedaços do corpo, feitos de barro, nos templos de Delfos, na Grécia, de Diana, em Roma [12].

Esta prática de depositar os ex-votos, depois de conseguir vencer os males ou as dificuldades, acontecia nos momentos de instabilidade, desespero, dor, inoperância das soluções humanas. Daí se recorria ao Sagrado e se realizava a promessa. Em diversas culturas, como a greco-romana e a hebraica, encontra-se registro desse tipo de relação com o ser divino[13].

Nos ex-votos, permite-se entrever outra realidade: as moléstias são um modo simbólico de dizer como está a vida dos devotos, nos quais se observam a falta de saúde, emprego, moradia, inteireza etc. Entretanto, os fiéis sabem como transpor os percalços e re-criar suas vidas. Eles conhecem o trajeto a peregrinar e também o ente sagrado de quem poderão valer-se.

A solução para tanto está no encontro com o Santo vivo. Contudo, é preciso ir buscá-lo. Em seguida, é necessário encará-lo e construir um ex-voto que seja veículo para a encarnação e a memória deste encontro.

O Dr. Adalberto Barreto, coordenador da disciplina de Medicina Social do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), vem catalogando os ex-votos colocados na Casa dos milagres. Ele relata que, nos últimos onze anos, o total de peças depositadas chega a 216.552[14]. As partes mais representadas, são: Membros inferiores: é a região do corpo humano que tem mais exemplares: em oito anos foram repertoriados 47.257 ex-votos. Cabeça: é o órgão cuja representação tem crescido muito. Foram catalogadas: 21.997. Membros Superiores: ocupam o terceiro lugar em quantidade com 14.079. Mama é outro órgão que também tem aumentado proporcionalmente:10.351. Também são catalogados ex-votos que representam os mais diversos órgãos (coração, útero, órgãos genitais, costelas, tronco, pulmões, coluna vertebral). Outros ex-votos simbolizam cereais, tijolos e maquetes de casas, casco de animais, certificado de cursos e ingresso em universidade. Total: 24.026. Também centenas de quilos de cabelo e milhares de fotografias de peregrinos são expostas num agradecimento à cura dos males [15].

Tal pesquisa constata que o povo sofrido da região nordestina busca atribuir ao Sagrado a cura que lhe é negada pelos profissionais da Saúde Pública.Todos esses milhares de ex-votos simbolizam o Santo vivo, acolhedor do corpo chagado e amputado dos devotos. Ele está aí, visível, palpável neste amontoado de peças, mas unido ao peregrino de Canindé.

Os ex-votos antigamente eram expostos nos corredores do templo, mas, segundo Venâncio Willeke, tempos depois passaram a ficar num local específico, no salão de festas, ganhando, assim, merecida evidência[16].

Esta prática dos ex-votos em Canindé resulta de uma convivência íntima entre o devoto e o Santo vivo, de sorte que não significa unicamente uma relação de negócios, de troca de favores, mas um relacionamento amoroso de proximidade do Sagrado. Como nos lembra o historiador e cientista da religião Torres Londoño, da experiência de fé do devoto podemos ter uma outra dimensão de sua relação com o santo, que não é unicamente contratual. Acredito assim que os ex-votos, aí incluídas as 216.552 peças (mãos, pernas, cabeças, rins, seios, muletas...) que foram inventariadas em estudo da Universidade do Ceará em 1995 no santuário do Canindé, (...) não são unicamente o registro de um contrato cumprido, mas uma mensagem clara para todo o mundo de que alguém quis reconhecer que Deus o tem abençoado com sua misericórdia[17].

Nos ex-votos é possível simbolizar os desafios enfrentados pelos fiéis e as bênçãos concedidas pelo Santo vivo. O aspecto amontoado dos ex-votos e a leitura das cartas afetuosas de agradecimento destinadas ao Santo vivo deixam perceber uma parcela de sentimentos que envolvem a intimidade de milhares de devotos que comunicam, nestes sinais visíveis, o retrato do Sagrado.

Conclusão

Pode-se afirmar que os símbolos, quando utilizados nas devoções, expressam realidades de mais-vida, presentes em cada ex-voto. Todos têm única preocupação, que é o sentido de dignificar aquele que caminha no mundo de injustiças em direção ao Sagrado.

O símbolo possibilita experimentar a existência de forma mais profunda. É uma nova linguagem que vai além da realidade quotidiana, transmitindo sentimentos, sonhos, pensamentos, fé e utopia, e provoca a convocação de pessoas. Estas vivências são percebidas pelos devotos. A linguagem dos romeiros deixa transparecer isso, há diversas expressões usadas por eles para superar seus problemas. Daí a busca de exprimir seus ideais e desejos nos sinais sacros utilizados nas romarias.

Os símbolos devem ser percebidos não somente com o intelecto, mas com o coração, os peregrinos encontram recursos para relacionarem-se efetiva e afetivamente com o Santificado e fazer memória deste relacionamento.É no mundo simbólico que os devotos conseguem o acesso ao Santo vivo.

Bibliografia

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ALVES, Luiz Roberto, “Comunicação e cultura popular: as prosopopéias na rua, no meio do redemoinho”, in: Comunicação popular e alternativa no Brasil, p. 133.

BOFF, Leonardo, “O pensar sacramental”, in: Revista Bíblica Brasileira, Petrópolis, Vozes, 35, (1975), p. 519.

HOUAISS, Antonio e Vllar, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 1294.

LONDOÑO, Fernando Torres, “Devoções populares: cotidiano e memória”, in: PUC viva Revista, p. 10.

MOTA, P., “Estresse lota de ‘cabeças’ sala de fiéis”, Folha de São Paulo, 14/07/1996, p. 5.

BÍBLIA DE JERUSALÉM (Cf. Gn 28,20; Nm 21,2; Jz 11,30; 1Sm 14,24; 1 Sm 1,11; At 18,18)

OLIVEIRA, Marcelo João Soares de, Francisco, o Santo vivo dos devotos, Fortaleza, Livro Técnico.

TABORDA, Francisco. Sacramento, práxis e festa, Petrópolis, Vozes, 1990.

VIANA,C. A. E ELIÉZER Rodrigues, “Pesquisa retrata a fé dos romeiros em busca da cura”. Diário do Nordeste, Fortaleza, 07/09/1997, p. 4.

WALLSCHLAG, Humberto, Nosso pé no chão, s/e , Fortaleza, p. 25.

WILLEK, Venâncio, São Francisco das Chagas de Canindé, Petrópolis, Vozes, 1993.

Notas

[*] Mestre em Ciências da Religião da PUC-SP

[1] TABORDA F., Sacramento, práxis e festa, p. 67

[2] Ibidem.

[3] BOFF, Leonardo, “O pensar sacramental”, in: Revista Bíblica Brasileira, Petrópolis, 35, (1975), p. 519.

[4] Ibidem, p. 518-519.

[5] O Santo vivo é forma de linguagem dos devotos de Canindé para falar de si, de recriar sua vida no transcendente (cf. OLIVEIRA, Marcelo, Francisco, o Santo vivo dos devotos, p.81.

[6] ALVES, Luiz Roberto, “Comunicação e cultura popular: as prosopopéias na rua, no meio do redemoinho”, in: Comunicação popular e alternativa no Brasil, p. 133.

[7] Esta carta foi encontrada entre os ex-votos na casa dos milagres no ano 1988. Optamos por deixar o texto no seu original.

[8] WALLSCHLAG, Humberto, Nosso pé no chão, p. 25.

[9] Cartas a São Francisco publicadas no Santuário de São Francisco, no dia 15/01/1959.

[10] Esta carta foi encontrada entre os ex-votos e transcrita no seu original, mas não conseguimos localizar o retrato e o anel-terço.

[11] HOUAISS, Antonio e Vllar, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 1294.

[12] MOTA, P., “Estresse lota de ‘cabeças’ sala de fiéis”, Folha de São Paulo, 14/07/1996, p. 5.

[13] Cf. Gn 28,20; Nm 21,2; Jz 11,30; 1Sm 14,24; 1 Sm 1,11; At 18,18;

[14] ALVES, A. C. “Casa dos Milagres e os ex-votos”, Diário do Nordeste, 04/10/1995, p. 10.

[15] VIANA,C. A. E ELIÉZER Rodrigues, “Pesquisa retrata a fé dos romeiros em busca da cura”. Diário do Nordeste, 07/09/1997, p. 4.

[16] Segundo Venäncio, a partir de 1986 os ex-votos foram depositados num salão apropriado. Cf WILLEKE, Venâncio, São Francisco das Chagas de Canindé, p. 50.

[17] LONDOÑO, Fernando Torres, “Devoções populares: cotidiano e memória”, in: PUC viva Revista, p. 10.