A Linguagem do Corpo na Devoção Popular do Catolicismo

José Carlos Pereira []

1 - Devoção popular e espiritualidade: definindo conceitos

Antes de falarmos da linguagem do corpo na devoção popular, achamos por bem tentar delimitar o conceito de devoção popular, uma vez que o termo anda meio (sugestão: trocar esse “meio” por “um tanto quanto”, que é menos coloquial) desgastado devido ao uso excessivo e indiscriminado.

Ao falarmos de devoção lembramos que ela se enquadra dentro de um universo maior - o do catolicismo - e, dentro dele, no da religiosidade, mais especificamente da Religiosidade Popular. O termo devoção é popular e adquiriu, ao longo da História, certa conotação pejorativa, desenvolvida principalmente no período da Cristandade[1] Colonial, que, por questões de poder, tinha interesse em desqualificar as manifestações religiosas populares, mantendo assim o controle sobre os fiéis. Após o Concílio Vaticano II[2] houve uma tentativa de substituição do termo particular “devoção” ou “devoção popular” pelo termo genérico “religiosidade popular”. Isso ocorreu desde os primórdios do “processo de romanização”[3] da Igreja Católica, mas culminou com o Concílio Vaticano II, com a “renovação da liturgia”[4], em que, entre outras mudanças, as imagens dos santos perderam espaço nos “espaços sagrados” dos templos. A “devoção” passou a ser vista como algo depreciativo, marginal, como manifestações de fé (devoções) que não se enquadravam no modelo europeu, romanizado. Não entraremos em pormenores sobre a História da devoção, o que nos interessa aqui é seu conceito geral e a comunicação, a linguagem que o corpo expressa na relação com a mesma. Linguagem que, segundo Pierre Bourdieu, se configura como relações de comunicação que implicam não somente relações lingüísticas, mas também de poder simbólico.[5]

Se o corpo tem (sugestão: trocar por “possui” uma linguagem não verbal, expressa por meio da devoção popular, qual o entendimento popular da devoção na linguagem verbal comum? A linguagem comum entende por devoção “o ato de dedicar-se ou consagrar-se a alguém ou à divindade (...). Um sentimento religioso, o culto, prática religiosa, enfim, uma dedicação íntima, uma afeição, afeto a um objeto de especial veneração”[6]. A devoção nasce, geralmente, da crença em determinados poderes sobrenaturais que o santo de devoção possa ter, freqüentemente um acontecimento extraordinário, milagre ou algo do gênero que ocorreu ou que ouviu-se dizer que tenha ocorrido. Riolando Azzi afirma que “a devoção ao Santo constitui para o fiel uma garantia do auxílio celeste para suas necessidades. A lealdade ao Santo manifesta-se sobretudo no exato cumprimento das promessas feitas”[7]. Na relação devocional, a promessa é algo fundamental e precisa ser cumprida. O devoto não pode ficar em débito com o santo porque, da próxima vez que precisar, não será atendido; pior: o santo poderá mudar de idéia e retirar a ‘graça” concedida ou até castigar. Um exemplo dessa relação pode ser encontrada na fala de uma devota de São Lázaro, residente em Cachoeiro do Itapemirim (ES), que estava vindo pela segunda vez a um santuário para pagar uma promessa. Dizia ela: “Minha vizinha fez promessa para que São Lázaro curasse a ferida de sua perna. Depois que curou a ferida, ela não cumpriu a promessa e a doença voltou mais feia que antes (...) ela se arrependeu, mais já era tarde.” E completou, “...Deus a gente não engana”.[8]

Como podemos perceber, a devoção tem como característica a fidelidade, o pacto entre o santo e o devoto. Usando uma expressão de Pierre Bourdieu, diríamos que ela está inserida em uma “economia de trocas de bens simbólicos”[9]. Se uma das partes falha, esse vínculo se rompe, perde-se a credibilidade, dificultando a dimensão relacional (devoto & divindade) existente na devoção. Segundo Bourdieu, essa “economia dos bens simbólicos apoia-se na crença, a reprodução ou crise dessa economia baseiam-se na reprodução ou na crise da crença, isto é, na perpetuação ou na ruptura do acordo entre as estruturas mentais (...) e as estruturas objetivas”[10]. A sala dos milagres funciona como um "termômetro" dessa "reprodução" ou "crise" da crença. Se o espaço está repleto de ex-votos continua recebendo novas peças, é sinal de que o santo continua fazendo milagres, contribuindo para a reprodução da crença. Se ocorre o contrário, é indício de que está ocorrendo uma crise na crença e o santo corre o risco de perder espaço na devoção. O primeiro lugar que o devoto visita, depois de ver o santo, é a sala dos milagres. Ali estão os dados concretos que indicam que o santo é eficiente, poderoso, milagreiro ou qualquer outro adjetivo que reforce a reprodução da crença. Este espaço precisa estar devidamente ordenado, catalogado, para que o fiel possa visualizar bem cada milagre alcançado, cada graça recebida. Quanto maior a sala dos milagres, maior o poder do santo. Sala dos milagres desorganizada, com ex-votos muito antigo, sem novidades miraculosas, sinaliza a crise da crença e o fracasso do santuário. Quando isso ocorre, entram em ação os "funcionários do sagrado", aqueles que zelam para que a crença prospere e garanta sua função. Esse tema é relevante, mas não será abordado neste trabalho, ficando para uma outra oportunidade.

Um outro dado que ajuda a clarear o conceito que se desenvolveu de devoção é a distinção entre "devoção" e "espiritualidade"[11]. Apesar de aparentemente sinônimos, os termos guardam uma certa distinção. Ambos fazem parte do mesmo universo religioso do catolicismo, mas são empregados para definirem comportamentos religiosos distintos. Um dos aspectos que difere espiritualidade de devoção é que a primeira não necessita, necessariamente, de “milagres”[12] - não é tão evidente a relação de "troca simbólica", trata-se de algo mais solidificado. Usando uma terminologia poética da espiritualidade teológica de Rubem Alves, diríamos que espiritualidade é uma “experiência de Deus na sua ausência”[13], algo que vai sendo lapidado, amadurecido na pessoa que aprende a se relacionar com Deus não mais através do “sistema de trocas”[14], o que geralmente acontece numa relação devocional. Na espiritualidade, a relação com o sagrado é mais pela graça do que pela barganha com a divindade. É caracterizada pela Igreja Católica institucional como um amadurecimento da fé, enquanto que a devoção, por sua vez, se caracteriza como um “contato primitivo”.

A devoção pode ser um primeiro estágio desse processo de amadurecimento, mas não quer dizer que necessariamente venha a se tornar uma espiritualidade, podendo ficar estagnada no âmbito das permutas com o santo. Há, no glossário santoral, santos capazes de resolver todas as causas, até as “impossíveis”, possibilitando a comutação de todos os "bens simbólicos". Isso colabora para a permanência nessa etapa, dispensando as intermediações da instituição eclesiástica e diminuindo seu espaço de poder. Dá-se, aqui, a origem dos conflitos entre catolicismo institucional e catolicismo devocional.

Podemos afirmar, pelo que nos apresenta a História, que a devoção propriamente dita pertenceu e pertence mais ao âmbito das camadas populares, economicamente mais pobres e com baixo grau de escolaridade que, de alguma forma, sofreram ou sofrem algum tipo de violência física, moral, social ou psicológica. Riolando Azzi, ao falar da crise da cristandade colonial, constata que: “Se por um lado, os católicos letrados e iluministas queriam purificar a religião das manifestações de ignorância, por outro lado, como decorrência da acentuada crise política, social e religiosa, aumentam na colônia os centros de devoção, onde o povo passava a buscar remédio e segurança nessa época de forte abalo da ordem social.”[15]

Com isto constatamos que, se por um lado a devoção era considerada pela “elite católica” como sinônimo de ignorância religiosa, por outro ela tem ajudado a manter acesa a chama da esperança diante das realidades de crise e sofrimento. Dentro deste quadro, a relação devocional nos dias de hoje não é diferente. Os santos continuam servindo de panacéia[16] para os devotos e o espaço sagrado (o santuário, as igrejas, etc.) constituiu-se em espaço privilegiado onde as graças e os dons celestes são distribuídos com mais abundância, suprindo dessa forma as múltiplas carências das camadas populares[17]. Em nossos dias também há santos que atuam fora dos chamados “espaços sagrados”, como Santo Expedito e outros menos evidentes. Esses santos não são menos eficientes do ponto de vista devocional, atraindo um segmento significativo dos fieis católicos que, para o desespero de padres e bispos, evadem-se das missas dominicais para buscarem os lugares de aparições de Nossa Senhora ou de fenômenos equivalentes.

Outra característica da devoção é a não “institucionalização da fé”[18]. Ela se manifesta, de certa forma, independente da Igreja institucionalizada. É, muitas vezes, marginal a esta realidade, apesar de surgir, em grande parte, no seio da mesma, ou seja, nas igrejas estabelecidas: paróquias, santuários oficiais, etc.,[19] enfim, lado a lado com uma Igreja regida por normas e regras institucionalizadas. Essa convivência nem sempre é pacífica, ocasionando, direta ou indiretamente, conflitos entre o catolicismo devocional e o catolicismo oficial[20]. O filme “O Pagador de Promessas” relata bem essa realidade, remetendo-nos à constatação de Riolando Azzi, quando ele afirma que a religião “oficial”, em consonância com a hierarquia católica, foi defendida pelo sistema colonial numa “tentativa de purificação da religião das manifestações de ignorância”[21]. Diz também que “o catolicismo popular era reprovado como expressão de ignorância, de superstição e de fanatismo”.[22] Esse era um dos argumentos e motivos da implantação de uma “religião purificada”,[23] livre de “superstições” e que estivesse sob a égide do poder clerical.

Apesar da constatação do conflito existente entre catolicismo popular devocional e Igreja romanizada, tem-se procurado formas de amenizar tais conflitos. Utilizando uma terminologia de René Girard, diríamos que a Igreja oficial procurou meios de “apaziguar essa violência intestina”[24], tolerando manifestações religiosas distintas das recomendadas, objetivando não perder o rebanho para outras denominações religiosas de cunho popular. Um destes meios foi a implantação de devoções européias, como a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como afirma Pedro A. Ribeiro de Oliveira:

“Assim, santos tradicionais são relegados a segundo plano ou simplesmente esquecidos, enquanto devoções de origem européia recente vão se introduzindo. Neste processo entram no Brasil as devoções ao Sagrado Coração de Jesus, à Nossa Senhora de aparição em sua condição celeste (em contraste com as devoções marianas tradicionais, que realçavam sua condição terrena, como Nossa Senhora das Dores, da Conceição, de Nazaré...) e aos diversos santos das congregações européias atuantes no Brasil”.[25]

Nesse processo de implantação de devoções tipicamente européias em substituição as devoções de cunho mais popular chega ao Brasil a devoção ao Bom Jesus, trazida pels colonos lusos e que se desenvolveu principalmente nas camadas mais pobres da população. Essa identificação com o Cristo sofredor favoreceu o florescimento desta devoção, que se tornou popular entre os marginalizados pelo sistema colonial. Essa popularidade da devoção se evidencia nos santuários dedicados ao Bom Jesus, muitos deles até hoje importantes centros de peregrinação. Todos esses santuário têm forte apelo corporal, motivando romeiros e peregrinos a atitudes de sacrifício que castigam o corpo. A relação de troca simbólica que era feita com os santos passou a ser feita diretamente com o “Bom Jesus”, que na visão popular não deixa de ser mais um santo de devoção.

Atualmente são incentivadas pela Igreja institucional outras formas, mais fundamentalistas, de "devoção", que se manifestam através dos movimentos religiosos que povoam os espaços sagrados. O mais evidente e expressivo deles é o da Renovação Carismática Católica (RCC), que manifesta um tipo de religiosidade que, em muitos lugares, caminha em sintonia com a Igreja institucional e não gera conflitos com a mesma. Essa relação pacífica acontece desde que os participantes não manifestem autonomia, podendo ocupar naturalmente os "espaços sagrados" do templo numa linha de obediência ao pároco e ao bispo, sem maiores conseqüências. Este movimento, não mais de devoção aos santos ou o Sagrado Coração, mas de devoção a Eucaristia, ao Cristo Eucarístico, permite-lhe ser considerado parte integrante da Igreja institucional, não representando perigo de autonomia, pois seu "objeto de devoção" não é mais uma "imagem autônoma", mas algo que depende da instituição eclesial católica.

2 - O sofrimento apaziguador da violência: o conceito de sacrifício na devoção popular e a linguagem do corpo nessa relação

O sacrifício sempre foi definido
como uma mediação entre um
sacrificadore uma ‘divindade’.
[26]
(René Girard)

Ao falarmos de sacrifício, se faz necessário referirmos à sua etimologia. Ficamos, a princípio, com a contribuição de Rubem César Fernandes que resgatou em parte o conceito etimológico da palavra sacrifício: “A palavra é derivada da expressão latina sacra facere (‘fazer o sagrado’) e pelo costume está associada a ritos de imolação de animais ou de destruição de oferendas feitas à divindade. Caracteriza rituais em que um ser profano é feito sagrado por uma inversão radical de suas marcas características, implicando uma transformação substancial”.[27]

Quanto ao conceito de sacrifício e sua relação com a devoção popular do catolicismo, sabemos que há várias formas de abordá-lo. Queremos aqui fazer uma distinção entre duas principais espécies de sacrifícios, aproveitando a idéia de Júlio de Santa Ana, que afirma que “devemos distinguir entre o sacrifício imposto e o sacrifício que corresponde a uma disposição de amor”.[28] Benedito Ferraro confirma que “o primeiro é vitimário. O segundo é martirial. O primeiro preserva a iniqüidade do sistema. O segundo tem uma dimensão redentora”.[29] É a esse segundo aspecto de sacrifício que daremos mais ênfase neste texto.

É essa dimensão de sacrifício que mais nos interessa ao trabalharmos com a devoção popular e sua relação sacrificial. O sacrifício como o privar o corpo de algo em detrimento de um bem maior. Isso, tendo em vista que o sacrifício pertence ao âmbito do sagrado. Sacrifica-se para uma divindade, ou seja, o sacrifício tem a função mediadora entre aquele que se sacrifica e a divindade à qual o sacrifício é oferecido. Seja uma oferenda ou um ato de penitência, ou mesmo a imolação de uma vítima (ritual comum dos povos antigos e que ainda hoje permanece vivo em algumas culturas), o sacrifício como um donativo, um bem simbólico oferecido a divindade. Esta definição de sacrifício coincide com a de Maurice Blondel, citada por Rubem César Fernandes na sua pesquisa sobre “os cavaleiros do Bom Jesus”. Afirma Blondel que: “No sentido etimológico e no sentido literal, o termo sacrifício implica a idéia de um bem sensível que é oferecido ou destruído em honra de um ser superior, a fim de atestar a sua soberania e, subsidiariamente, para obter proteção, perdão, ou graça.”[30] Geralmente, o bem oferecido é o próprio corpo da pessoa, doado através de atitudes que expressam uma linguagem que tem a função de comunicar algo ao santo. Deposita-se na sala de promessas os elementos concretos dessa comunicação simbólica: réplicas de partes do próprio corpo, fotografias, objetos pessoais, enfim, uma infinidade de ex-votos relacionados ao devoto e à graça alcançada, como gesto que atesta o poder deste ser superior.

Para complementar a idéia do sacrifício como linguagem corporal, ficamos também com a definição genérica do vocabulário teológico, que nos ajuda a entender melhor o conceito de sacrifício e sua relação com o corpo daquele que o oferece: “embora a palavra ‘sacrifício’ pertença ao âmbito do religioso – significando tornar uma coisa sagrada por meio de uma oferenda – ela expressa uma realidade humana muito profunda, que foi o que deu lugar à interpretação religiosa”.[31]

Ao falarmos de sacrifício levando em consideração esta profunda realidade humana e a interpretação religiosa, estaremos usando também, direta ou indiretamente, o conceito de sacrifício usado por René Girard. Sacrifício como algo apaziguador da violência sofrida pelos corpos dos fiéis. Considerando que a violência cotidiana é parte integrante dos corpos dos que procuram os espaços sagrados, o sacrifício corporal oferecido ao santo, embora seja um paradoxo, serve de antídoto contra a violência sofrida no cotidiano. Os fiéis buscam nos espaços sagrados algo que diminua o sofrimento, conseqüência de outras formas de violência sofrida. O ato sacrificial (seja qual for) passa a ser aquele que engana a violência, fazendo-a “perder de vista o objeto inicialmente visado”.[32] O sacrifício, nesta relação devocional, despista a violência ou as situações de violência em que as pessoas estão envoltas.

Nas relações devocionais enfatiza-se aquilo que visa algo maior e mais profundo, e que está por trás dos ritos sacrificiais oferecidos na devoção: a reconciliação, o sacrifício como ato reconciliador. Trata-se de um meio de se relacionar com o sagrado que tem como símbolo máximo um Deus “Pai que necessita do sacrifício do filho para que a humanidade possa ser reconciliada com Ele”.[33] Dentro dessa concepção, o devoto necessita “sacrificar-se” para estar purificado do pecado e reconciliado com Deus e ser, assim, merecedor da graça. É uma situação de mimesis sacrificial, uma identificação - a manifestação do desejo mimético motivador do ato de sacrificar-se colocando-se no lugar da divindade, numa imitação apaixonada. Girard a expressa muito bem ao afirmar que “los hombres sólo han aprendido a identificar a sus víctimas inocentes poniéndolas en el lugar de Cristo”.[34] É a imitação da divindade do Cristo Crucificado, pharmakós[35], que foi sacrificado pela redenção da humanidade.

Na dimensão da sacralidade do sacrifício, Júlio de Santa Ana afirma que “os sacrifícios não são atos banais. Pertencem ao âmbito do mistério, do sagrado, do que não pode ser discutido nem transformado. São praticados em momentos de grande regozijo ou de grande sofrimento”.[36] Na devoção popular acontece, geralmente, em momentos de grande sofrimento. Existem várias espécies de sacrifícios - em sua obra “Teologia do Antigo Testamento”, Gerhard Von Rad identifica algumas das principais espécies de sacrifícios e nos auxilia na compreensão do sacrifício e de sua relação com o corpo na devoção popular: “1) o holocausto (olah e kalil, Lv 1); 2) a oblação (oferenda) (minhâh, mistura de farinha, azeite e incenso, Lv 2); 3) o sacrifício de comunhão e ação de graças (shelem, Lv 3) o sacrifício pelo pecado ou de expiação (hatta’t, Lv 4,1 – 5,13); o sacrifício pela culpa ou de reparação (âshâm, Lv 5, 14-19)”.[37]

Nos espaços sagrados as atitudes de sacrifício são praticadas para alcançar graças ou agradecer pelas graças alcançadas. Portanto, elas podem ser enquadradas em duas das subdivisões ou dimensões de sacrifício citadas por Gerhard Von Rad. A oblação, que é o mesmo que oferenda: o devoto oferece à divindade algo que simboliza a graça alcançada ou que se deseja alcançar; são exemplos os ex-votos depositados nas salas dos milagres, que expressam pedidos ou agradecimentos. Um outro aspecto de sacrifício bastante comum na devoção popular é o sacrifício de comunhão e ação de graças; o sacrifício pelo pecado ou de expiação, que está vinculado ao sacrifício pela culpa ou de reparação.[38] Portanto, pode ser um sacrifício que está sendo realizado para expressar um dom, ou uma comunhão, ou mesmo uma expiação.[39] Neste aspecto enquadramos os ritos sacrificiais que envolvem diretamente o corpo do fiel, como por exemplo caminhar longas distâncias carregando pesada cruz, subir de joelhos as escadas que levam à imagem do santo de devoção, acender velas (geralmente do tamanho do corpo da pessoa), passar noites em vigília resistindo ao sono e participar de missas nos lugares sagrados, entre outras formas de colocar o corpo nos limites da resistência humana visando torná-lo mais divino. É um sacrifício voluntário que chega a ser prazeroso, tendo em vista suas motivações. Essas formas ‘sacrificiais’ de manifestação de fé, dentro ou fora dos espaços sagrados, fazem parte do que classificaremos como “devoção sacrificial” que tem estreita relação, ou relação direta, com o corpo do devoto. O corpo recebe e responde aos apelos aplicados pelos rituais da devoção, desenvolvendo uma comunicação entre o imanente e o transcendente.

3 - A devoção sacrificial como categoria

São inúmeras as formas de devoção, mas uma que envolve diretamente o corpo, como já vimos, é a sacrificial. Entendemos por devoção sacrificial a devoção ao Cristo sofredor, a devoção à Paixão. Este tipo de devoção se enquadra dentro do universo das manifestações de fé relacionadas com uma vítima que foi sacrificada por alguém, por um grupo ou por alguma causa. Além de Cristo, pode-se também ser um santo que se enquadre nas características sacrificais. Neste trabalho focalizamos o Cristo Crucificado, que, na linguagem de René Girard, é a vítima expiatória de um mecanismo vitimário[40] simbolizado nas expressivas imagem retratadas na iconografia religiosa.

Ao falarmos da devoção à Paixão, faz-se necessária uma breve referência ao contexto histórico. Relembrar a origem e porquê ela se propagou no mundo ocidental, percorrendo um longo caminho histórico e geográfico que partiu da Europa, passou pela América Latina e chegou ao Brasil através do chamado “caminho dos Bandeirantes”, onde foram implantados diversos santuários de devoção sacrificial que funcionam até hoje. Alguns deles de forma muito expressiva, como é o caso do santuário do Bom Jesus de Pirapora, na cidade que leva o mesmo nome, no interior de São Paulo.

Quem contribui para esta breve memória histórica são pesquisadores como Cristián Parker, Carlos Alberto Steil, Rubem César Fernandes e Riolando Azzi. De um modo particular, como historiador, Azzi tem pesquisado “a devoção à Paixão de Cristo na tradição luso-brasileira”[41] e a influência desta tradição na propagação da devoção sacrificial como instrumento de dominação entre as camadas populares que iam sendo colonizadas. Dentro deste processo de colonização lusa, a devoção à Cruz encontrou fértil terreno no Brasil, tornando-se muito popular e favorecendo a criação de santuários de devoção sacrificial como os quatro principais centros de devoção e romarias situados no citado “caminhos dos Bandeirantes” [42] em São Paulo.

Steil e Parker concordam ao afirmar que a devoção à Cruz “se inicia no século XVI e se estende pelos dois séculos seguintes”.[43] Steil completa a referência histórica exemplificando que “...a cruz que fora um símbolo associado à autoridade central de Roma, durante o período das Cruzadas, e ao poder dos reis católicos na conquista da Península Ibérica, foi reapropriada pelos cultos locais, através dos crucifixos que são descobertos milagrosamente em diversos lugares em todo território ibero-americano”.[44] Este dado da pesquisa de Steil coincide com a constatação feita por Azzi, de que “houve um processo de popularização da devoção ao crucifixo que estava intimamente associado ao movimento da criação dos Santuários”.[45] Nesta mesma linha, Azzi afirma que “a memória da paixão e morte de Cristo ocupa um lugar destacado na formação da sociedade luso-brasileira”[46] e que “as práticas e os discursos que envolvem a celebração da paixão não têm um sentido unívoco. Existem diversas vertentes através das quais esse culto é praticado.”[47] Azzi aborda três aspectos relevantes que envolvem a celebração da paixão: “a evocação da paixão no catolicismo de tradição guerreira, no catolicismo penitencial e no catolicismo devocional”.[48] Enfatizamos aqui o terceiro aspecto porque é esse tipo de catolicismo que desenvolveu a devoção à Paixão, que classificamos como “devoção sacrificial”. Na prática eles estão muito ligados - principalmente o catolicismo penitencial e o catolicismo devocional - e, na maioria das vezes, são manifestados de forma inseparável.

Resumindo estes três aspectos podemos afirmar que a evocação à Paixão de Cristo no catolicismo de “tradição guerreira”, do qual nos fala Azzi, tinha como principal objetivo, dentro do sistema colonial, além da conquista de novos territórios, a imposição sobre outros povos, através do estandarte da Cruz, o domínio lusitano. Eduardo Hoornaert enfatiza este “catolicismo guerreiro”[49] como uma vertente militante, tendo suas origens ou matrizes principais, nas Cruzadas. A expansão da devoção à Cruz ajudou no combate a outras formas de devoção dos povos colonizados, que não eram convenientes para o sistema. Através da “aliança entre a cruz e a espada”[50] implantou-se o modelo de Cristandade que visava, entre outras coisas, combater algumas formas de devoção popular não condizentes com as orientações romanas. Levando em consideração que a cristandade, segundo René Girard, não é constitucionalmente diferente de qualquer outra sociedade vitimária[51], ela impõe “sacrifícios” que visam legitimar o poder estatuído de uma instituição, segundo Weber, hierocrática[52]. De acordo com Girard, “graças à leitura sacrificial, durante quinze ou vinte séculos, pôde existir o que se chama a cristandade, e é uma cultura que tem o mesmo fundamento das outras, pelo menos até certo ponto, uma vez que se assenta sobre as mesmas formas mitológicas produzidas pelo mecanismo fundador”.[53]

Esse processo de conquista e domínio lusitano, através da cristandade, contava também com a valiosa colaboração de Ordens Religiosas como a dos Jesuítas, os quais estavam incumbidos especificamente a conquista espiritual,[54] enquanto “aos soldados cabia garantir a dominação territorial”[55]. Azzi afirma que “essa união entre a cruz e a espada era também conseqüência da concepção messiânica tão típica do reino lusitano. Dentro dessa ótica não havia muita distinção entre o sacerdote e o soldado, pois ambos estavam a serviço da mesma causa divina.”[56] Igreja e Estado estavam juntos num mesmo processo de colonização e evangelização. Aliás, os termos “colonizar” e “evangelizar” tinham, praticamente, o mesmo significado.

Também de raiz medieval, segundo José Comblin, é outra vertente da fé cristã a que denominamos catolicismo penitencial.[57] Segundo Comblin, “foram os monges irlandeses que a partir do século VI difundiram através da Europa uma concepção do Cristianismo marcada por rígida repressão corporal, através de freqüentes práticas de penitência e sacrifício.”[58] Neste catolicismo penitencial, que tem estreita ligação com o catolicismo devocional, temos a cruz como instrumento de penitência. A cruz na sua dimensão expiatória. Riolando Azzi enfatiza que: “A concepção católica mais difundida a respeito da paixão gira ao redor do binômio graça - pecado. A paixão e morte de Cristo na cruz é apresentada como instrumento de redenção dos pecados da humanidade, sendo restabelecida dessa forma a aliança primitiva com Deus. Através da paixão de Cristo os homens tornam-se de novo merecedores dos favores divinos, ou seja, da graça de Deus. A cruz assume dessa forma uma forte dimensão expiatória. Assim sendo, a repetição ritualizada dos grandes momentos da paixão constitui uma maneira de atualizar a graça divina na obra da remissão dos pecados”.[59]

O catolicismo devocional à Paixão, implantado pela Igreja oficial, expande-se entre as camadas populares porque iguala Cristo aos demais santos de devoção, como afirma Azzi:

“A devoção ao Bom Jesus que sofre e morre na cruz (...) coloca Jesus ao nível dos demais santos protetores da comunidade. Os fiéis esperam obter dessa devoção favores e bens de ordem material e espiritual, como saúde e paz familiar, criação de animais e colheitas de cereais abundantes, mantendo afastadas as secas e as pestes.”[60]

Portanto, para se obter esses “favores” faz-se necessário sacrificar-se ou sacrificar algo em benefício dos “bens simbólicos”. Utilizando alguns “conceitos sistemáticos[61] de Bourdieu, podemos afirmar que essa relação de troca simbólica (como por exemplo, os votos e ex-votos, os sacrifícios oferecidos, etc.) entre o fiel e o Santo, existente na devoção popular, faz também parte de uma relação econômica de bens simbólicos,[62] onde o devoto, através da “economia da oferenda[63] na qual a troca se transfigura em oblação de si a uma espécie de entidade transcendente”[64], mantém laços de dependência, alimentando um círculo vicioso. Lévi-Strauss definiu este tipo de relação “como uma estrutura de reciprocidade que transcende os atos de troca, nos quais a dádiva remete à sua retribuição.”[65]

Ainda na dimensão da devoção sacrificial é importante destacar que a mesma não se limita apenas ao ato passivo de contemplação do Crucificado ou do santo mártir sofredor. Ela sempre envolveu uma relação virtual do penitente com a divindade através da linguagem do corpo, expressa nos gestos e manifestações do sofrimento.

Neste aspecto, a devoção sacrificial “é, em última análise, a devoção especial das camadas pobres, oprimidas e marginalizadas (...)”, geralmente dos que sofrem. “(...) Existe entre as populações pobres uma outra maneira de encarar a devoção à paixão (...) Cristo é considerado como um aliado, como um companheiro, como um sofredor como eles”.[66] Esta cumplicidade entre o devoto e o santo se faz presente nas manifestações devocionais. A divindade sofredora desperta no devoto a resistência necessária para enfrentar os sofrimentos. A imagem de um Deus ou um santo que sofre e vence os sofrimentos motiva-os, de certa forma, a imitá-los. Esses gestos de “imitação sacrificial” impedem o desespero e ajudam a resgatar a esperança. Portanto, a devoção sacrificial faz do sacrifício divino o bálsamo para o sacrifício (sofrimento) humano. Ambos se completam. São corpos reais e imaginários que encontram um ponto de convergência no sofrimento.

4 - Fé e sacrifício: a relação corporal nessa categoria de devoção

Como vimos anteriormente, a devoção ao Bom Jesus sofredor é classificada como devoção sacrificial. Além de compreender a veneração da imagem de um Deus que sofre, a mesma requer dos devotos atitudes que imitem este sacrifício, o que classificamos como mimesis sacrificial, algo que envolve diretamente o corpo, caminho considerado eficaz pelo penitente para alcançar a misericórdia de Deus (alcançar graças). Mas o que mais nos interessa aqui é destacar nesta relação de devoção e sacrifício, esta relação corporal que envolve o devoto com a imagem do santo. É o corpo que expressa e manifesta as atitudes de sacrifício e que recebe as conseqüências do mesmo.

4.1 - A linguagem do corpo na devoção sacrificial

O corpo desempenha um importante papel na manifestação da devoção sacrificial. Toda atitude de sacrifício passa pelo corpo ou se reflete no mesmo. É através do corpo que as pessoas expressam sua devoção. Estas expressões estão presentes nas relações sacrificiais que vimos acima: romarias, pedidos, promessas, ex-votos, enfim, em todos os ritos sacrificiais relacionados ao santo.

Desde a antigüidade, e aqui nos referimos à antigüidade no contexto bíblico (especificamente no do Levítico), o corpo, por ser considerado causador do pecado, era tido como impuro; era, portanto, alvo de sacrifício[67]. Uma vez impuro por causa do pecado era necessário, para se obter o perdão e voltar à condição de pureza, praticar o sacrifício, que variava conforme o culpado.[68] Essa prática sacrificial que envolvia o corpo era prescrita pela lei: a “lei do puro e do impuro”: “A lei da pureza estava unida à lei da santidade (Lv 17-26), como aspectos negativo e positivo da mesma exigência divina”[69]. Tais práticas sacrificiais de purificação corporal aconteciam no espaço sagrado, o templo, diante do sacerdote, que desempenhava o papel da divindade receptora do sacrifício.

É bom lembrar que “a impureza era uma falta externa e o procedimento para se recuperar a pureza consistia em abluções, sacrifícios, ofertas e outros ritos. Os catalogados como impuros tinham o dever de se apresentar no templo, diretamente ao sacerdote, para fazer as devidas purificações e adquirirem o atestado de pureza”[70]. Essa idéia de castigar o corpo para se obter a misericórdia (ser merecedor do perdão e alcançar a graça desejada) de Deus, fazendo sacrifícios, perdura até hoje no imaginário do catolicismo popular, sendo, em parte, influência da Cristandade Colonial. Uma Cristandade que implantou o modelo europeu do cristianismo sacrificial, que usava como meio de evangelização “a aliança entre a cruz e a espada”[71], impondo sacrifícios aos povos colonizados a pretexto de convertê-los, tornando-os merecedores das graças de Deus .

Essa influência histórica que une devoção e sacrifício se faz presente na devoção popular. São atitudes de sacrifício expressas através do corpo que as pessoas manifestam diante da imagem dos santos. Elas se expressam diante da imagem com a linguagem do corpo. É o corpo que fala, grita, pede socorro e agradece. Diz Rubem Alves que “uma pena que roce o corpo roça também as meninas dos olhos de Deus. Deus sente pelos corpos dos homens”[72]. Diríamos que, na visão popular, o santo de devoção sente através dos corpos das pessoas que pedem pela saúde dos seus corpos e pelos corpos dos seus.

Cada pessoa que sobe as escadas do santuário do Bom Jesus Crucificado do Porto das Caixas, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, vai para tocar com o próprio corpo a imagem do Crucificado, cujas chagas, afirma-se, verteram sangue. Os fiéis buscam a cura para as mais variadas formas de chagas, expressas nos bilhetes e cartas deixadas no cofre e aos pés da imagem. O corpo sente e reage diante de uma imagem que choca pela expressão de dor. Rubem Alves afirma que “É isto que horroriza e espanta, neste Deus que se vê, bem no fundo nos olhos de Jesus de Nazaré: Deus crucificado, sacrificado, Deus mulher - grávida, gerando mundo novo, redenção, lágrimas, Deus que chora... É sobre isto que nos fala o corpo de um crucificado: a dor da espera. Deus vítima: é necessário esperar”.[73]

Nessa relação entre o devoto e o Santo são os corpos que falam. E como colocou muito bem Rubem Alves, falam da espera. Da espera deriva-se a esperança. Dessa relação corporal nasce a paciência da espera que é a esperança de alcançar a graça pedida, comunicada através de seus corpos. Espera-se o fim do sofrimento de seus corpos.

Não dá para ignorar que o corpo tem um importante papel na devoção sacrificial. É o portador das doenças e desencantos e o receptor das graças. Para muitos, só o fato de poder passar diante do corpo do Crucificado já é motivo de alívio para seus corpos. Dizia-nos uma romeira de Magé (RJ): “toda vez que estou diante desta imagem, esqueço todos os meus problemas”. A fala e a atitude dessa romeira que pouco antes havia contemplado e beijado a imagem do Bom Jesus expressa, em parte, o papel e a linguagem do corpo na devoção sacrificial. “O beijo é uma das linguagens do corpo que fala e revela sua unicidade, sua integridade. Na aproximação dos lábios está a aproximação dos corpos e dos corações.”[74] O beijo é manifestação de solidariedade, de carinho e, acima de tudo, de amor. “O corpo é o espaço do amor (...) a linguagem do corpo é também a linguagem do amor”.[75] É nesta linguagem corporal de amor que a romeira extravasa suas dores, seus sofrimentos. Ao descer as escadas que levam à imagem do Bom Jesus, é visível a sensação de alívio no rosto de cada pessoa

Além do beijo, também elencamos outras formas que os devotos encontram para expressar e demonstrar o papel do corpo nesta categoria de devoção: subir as escadas de joelhos contorcendo todo o corpo, rezar com as mãos erguidas na direção da imagem, tocar na mesma, louvar através de cantos com gestos e outras manifestações, participar de procissões com ênfase no carregar o andor com a réplica do santo ou mesmo carregar cruzes ou outros objetos pesados castigando o corpo como forma de penitência – todas essas formas são linguagens do corpo, que falam de uma realidade sofrida. Também os ex-votos não deixam de ser, em grande parte, uma forma de relação corporal com o Santo. O número de partes do corpo reproduzidas em cera é bastante significativo nas salas dos milagres dos santuários. São expressões simbólicas da linguagem do corpo na devoção.

4.2 - Mimesis e Sacrifício

Continuando a análise da linguagem que o corpo do devoto desenvolve em relação ao santo na devoção popular não podemos deixar de abordar a questão da mimesis e do sacrifício nesta relação corporal. Ou, melhor dizendo, da mimesis sacrificial, pois o sacrifício, como vimos, faz parte do desejo mimético. O desejo mimético é exemplificado por René Girard, resumidamente, da seguinte forma “O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival designa-o ao sujeito como desejável. O rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial das maneiras de ser, das idéias, etc., quanto ao plano mais essencial do desejo. (...) Qualquer mimesis relacionada ao desejo conduz necessariamente ao conflito.”[76]

Tendo em vista que as atitudes sacrificiais praticadas na devoção se enquadram num contexto de mimesis, em que o ícone do santo representa ao mesmo tempo sujeito e objeto de imitação, é que abordamos a questão do sacrifício como desejo mimético. O ato de fazer determinado sacrifício, além de representar uma forma de imitação, enquadra-se também numa relação econômica de trocas simbólicas, como constatou Bourdieu ao analisar “o mercado de bens simbólicos”[77]. Uma economia que, tanto no âmbito do simbólico quanto no da “economia política”, no dizer de Hugo Assmann, “se refere a nós enquanto seres humanos concretos, feixes vivos de ânsias e precisões, necessidades e desejos, enquanto corporeidades vivas”.[78] É esse corpo humano concreto, vivo, de carne e osso, que tem necessidades biológicas, que está se relacionando com um corpo simbólico (a imagem do santo) e tendo-o como modelo de sacrifício, como modelo a ser imitado, pois, apesar de ser imagem, representa o sacrifício reparador. O sacrifício que apaga os pecados, que apazigua a violência e dá a sensação de alívio. Girard afirma que

“La creencia religiosa se funda em ‘efectos de víctimas propiciatorias’ tan poderosos que la víctima parece omnipotente no sólo como perturbadora del orden sino también como aportadora de la paz”.[79]

Isso fez-nos lembrar de um homem que chegou ao Santuário de Pirapora do Bom Jesus carregando a maior de todas as cruzes, desencadeando um fenômeno mimético. Tornou-se, como afirma Girard, uma poderosa vítima que perturbou a ordem da pacata Pirapora do Bom Jesus: parou o trânsito, chamou a atenção de todos e provocou comparação com os demais penitentes que traziam cruzes menores que a sua. A evidência mimética se deu no momento em que ele incentivou outros a imitá-lo, dizendo que, nos quatorze anos que vinha a Pirapora carregando sua cruz (que aumentava um metro a cada ano) muita gente já havia seguido seu exemplo. Essa imitação, que passa a ser muitas vezes uma competição, não deixa de causar certa rivalidade, própria do desejo mimético. Rivalidade que não tem maiores conseqüências, pois o próprio agente da rivalidade se encarrega de pôr fim a ela, como constata Girard

“El ignorar los efectos miméticos que determinaron todos los sucesivos cambios en el estado de ánimo colectivo convierte a la víctima propiciatoria primero, en el único agente de la rivalidade y luego en el agente del ‘milagro’ que pone fin a ella”.[80]

O dono da maior cruz que, num primeiro momento, era motivo de rivalidade, passou a ser portador da paz, “agente transformador da realidade”. Dizia ele que só o sacrifício seria capaz de banir a violência do mundo, por isso ele não se cansava de sacrificar-se.

Essa transferência de uma situação de rivalidade para algo sagrado e transformador acontece, segundo Girard, pelo ato de se ignorar o ciclo mimético nesta relação naturalmente conflituosa. “O ignorar o ciclo mimético equivale a uma transferência coletiva dual que explica a dualidade de todas aquelas coisas designadas como ‘sagradas’, ‘numinosas’ (...) etc.”[81] Girard afirma ainda que “o sacrifício da vítima se converte assim na sagrada epifania do antepassado fundador, ou da divindade fundadora que foi a primeira em transgredir as leis que também contribuiu a comunidade”.[82] Dessa forma, o sacrifício do carregador de cruzes se converte na manifestação sagrada do fundador do sacrifício que é o Bom Jesus e, assim sendo, é legitimada pela comunidade.

Voltando à análise da devoção sacrificial, a predisposição da maioria das pessoas em fazer sacrifícios, revela a mimesis sacrificial. Esta reação se revela não só na tentativa de imitação do sofrimento do santo, mas na imitação do outro, como a de uma romeira que subia de joelhos as escadas do santuário e que, por sua atitude, levou outras mulheres ao mesmo gesto[83]. Nesse e em outros rituais constatamos que mimesis e sacrifício estão intrinsecamente ligados na devoção sacrificial.

4.3 - O Corpo do Devoto e o Corpo do Santo

Hugo Assmann afirma que a “corporeidade é, além do mais, uma categoria estratégica para recolocar, sempre de novo, o ponto de partida das prioridades, nas mais diferentes esferas da atividade humana”.[84] Isso não difere na esfera do religioso e, por isso, achamos importante recolocarmos alguns pontos relacionados ao corpo do devoto e o corpo do Santo nessa devoção. Ambos se configuram num mesmo “espaço sagrado”.[85]

Segundo Mircea Eliade esse “espaço sagrado” onde se configuram os corpos reais e simbólicos existe porque foi consagrado por uma hierofania,[86] ou seja, é um espaço ritualmente construído onde o sagrado se manifesta. A manifestação do sagrado se dá nesses espaços através da réplica do corpo de uma divindade vítima do sacrifício.

Boa parte dos devotos que chegam aos santuários traz em seus corpos marcas de sofrimento e a esperança de superá-los. Corpos chagados, mutilados, maltratados... corpos vitimados pelas mais variadas formas de violência: do trânsito, das drogas, das condições subumanas das favelas e cortiços, dos subúrbios das grandes metrópoles, da violência de regiões como a Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, o Jardim Ângela, em São Paulo e outras regiões considerada violentas, do desemprego, da miséria e da fome, dos vícios e das doenças incuráveis, etc. As agressões de um sistema desumano que produzem constantemente vítimas. É este “ser humano concreto, como ser-de-necessidades-e-desejos, como corporeidade viva”[87] que se dirige ao santo, com corpos símiles, para pedir e agradecer a cura dos mesmos, através de atitudes sacrificiais.

O que mais impressiona nos corpos dos devotos são as marcas, nem sempre visíveis, do sofrimento. O que mais impressiona no corpo (imagem) do Crucificado é a expressão de dor que, começando pelo rosto, perpassa todo o corpo. O rosto é de agonia: um olhar profundo de piedade e compaixão parece estar direcionado, do alto da cruz, para os também sofridos corpos daqueles que o contemplam. O corpo do devoto, às vezes aleijado, cego, mudo, surdo etc., com ou sem chagas, não esconde a esperança do “milagre”, da cura. O corpo do Crucificado, com diversas chagas ensangüentadas, não esconde a dimensão do sofrimento; sofrimento que apazigua todos os demais. As marcas dos cravos nas mãos e nos pés parecem “gotejar sangue humano”. É este sangue que tornou o corpo do Bom Jesus dos santuários de devoção sacrificial, como Porto das Caixas, símbolo hierofânico. É sangue que, segundos os romeiros (e neste, caso as romeiras[88]), tem poder de cura. Limpa o corpo e a alma de seu sofrimento “ [...] o sangue de Cristo limpa a mácula do pecado (I João 1:7; Apocalipse 1:5), isto é, liberta da culpa inconsciente. Além disso, diz-se que ele santifica (Hebreus 13:12) [...]”.[89] Edward Edinger afirma ainda que “outro importante atributo do sangue de Cristo é sua capacidade de reconciliar e de trazer paz aos contrários beligerantes [...]”.[90] “reconciliar por ele a si mesmo todas as coisas, tanto o que está na terra, quanto o que está no céu, pacificando-os pelo sangue de sua cruz” (Colossenses, 1, 20)”[91]

Constatamos nesse santuário que, ao passar diante da imagem “ensangüentada” do Crucificado, dá-se a impressão que os olhares se cruzam, o “olhar” do santo e o olhar do fiel. Olhares que se misturam e parecem irmanar-se no mesmo sofrimento, na mesma dor. Momento em que os romeiros, penitentes, sentem-se agraciados pela “com-paixão[92] do Bom Jesus. É “o sacrifício sendo amparado, complementado, pela compaixão”[93], foi o que nos confessou uma romeira que, tendo um sério problema na perna, com muito sacrifício havia conseguido subir as escadas e passar diante da imagem do Crucificado: “Todo sofrimento, por maior que seja, torna-se insignificante diante dele”. É o momento considerado mais importante de toda a peregrinação: estar diante da imagem e “deixar ali” seus sofrimentos. A fila para passar diante dela é uma verdadeira procissão de oferendas. Oferta-se ao Cristo sofredor o próprio sofrimento (doenças, desemprego, desilusões amorosas, vícios, etc.). Sobe-se as escadas carregando toda dor, entrega-se ao Bom Jesus, e desce com o rosto de alívio. Qualquer pessoa, mesmo desatenta, pode perceber tais expressões. Um ritual simbolicamente eficaz.

A eficácia deste ritual na devoção, que envolve o “corpo do devoto” e o “corpo do santo”, está relacionado ao que denominamos de “relação corporal”. São corpos que simbolicamente se encontram nos sofrimentos da vida para celebrar a esperança da vida sem sofrimento. Esse encontro, movido pela fé, envolve o toque, o beijo, o olhar... Rubem César Fernandes constatou que “na igreja de Pirapora há uma (...) figura de Cristo morto, deitado e coberto por um véu. Os devotos chegam a ele, descobrem o véu e beijam a imagem sofrida”[94]. Gesto parecido acontece em Porto das Caixas, com a diferença que a imagem está em pé e protegida por uma redoma de vidro, mesmo assim tocam e beijam o vidro, como se tivessem tocando e beijando a imagem.

Mircea Eliade afirma que não se trata apenas de veneração da imagem como imagem. A imagem sagrada não é adorada como imagem, mas justamente porque é hierofania, porque “revela” algo que já não é imagem, mas o sagrado.[95] Nos faz ver que, “manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente”[96]. Afirma ainda que uma imagem sagrada nem por isso é menos uma imagem; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais imagens. Para aqueles a cujos olhos uma imagem se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural.[97] É o que acontece com a “imagem corporal” do Bom Jesus Crucificado. Diante dos olhos (dos corpos) dos devotos, torna-se algo sobrenatural, capaz de mudar uma situação de sofrimento em não sofrimento, de tristeza em alegria, de desânimo em esperança. Acontece uma “alquimia” de sentimentos. A mudança do “natural” em “sobrenatural”, modificando o estado de espírito das pessoas.

4.4 - O corpo como lugar teológico

Acentuamos até agora o corpo dos romeiros como lugar onde se manifestam os sacrifícios: lugar de dor, angústia, desânimo, enfim, toda forma de sofrimento. Corpos onde se manifestam os desejos por rivalidade mimética[98]. Parafraseando James Alison, diríamos que são corpos que buscam formas de expulsar a violência para garantir a paz. Disto, segundo Alison, “origina o sagrado e aquilo que geralmente figura como Deus”.[99] No contexto desta “violência” que sofrem os devotos é que irrompe “o verdadeiro Deus (...), o Deus de Jesus Cristo (crucificado), revela-se como a irrupção do Outro radicalmente não-violento em meio à nossa ordem social violenta, subvertendo-a a partir de dentro”[100]. De dentro de um território violento como a Baixada Fluminense irrompe e prefigura na imagem do Bom Jesus Crucificado que sangrou o Deus não-violento, canalizando simbolicamente a violência real e promovendo simbolicamente a paz, considerada pelas(os) romeiras(os), “verdadeira graça”. Essa paz (simbólica) é atribuída à graça pela ambivalência do lugar. Este é um dos motivos pelos quais a pesquisadora Zeny Rosandahl, ao trabalhar o conceito de “espaço sagrado” da Baixada Fluminense, afirmou ser Porto das Caixas um exemplo de hierópolis[101]. Um lugar hierofânico, “relativamente recente, ordenado e seguro, numa periferia caótica e selvagem como a Baixada Fluminense, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”[102]. Este “porto seguro” inserido num espaço geográfico inseguro é muito mais que lugar de paz e descanso do corpo, é lugar, teologicamente falando, de “descanso da alma”, onde cada romeira(o) se entrega “de corpo e alma” ao Bom Jesus, tornando-se receptáculo do divino e morada de Deus, onde Ele se manifesta das mais variadas formas.

Falar do corpo como lugar teológico é falar do espaço corporal onde se manifesta Deus, começando pela encarnação[103] de Deus em corpo humano, representado na pessoa de Jesus Cristo, como manda a tradição cristã. A imagem do corpo crucificado do Bom Jesus que se encontra no Santuário do Porto das Caixas é, para as romeiras, muito mais que uma lembrança de Deus na forma humana: é o próprio “mistério de Deus se manifestando na carne”(cf. 1Tm. 3, 16) do “corpo sacrificado” do Bom Jesus. Esta manifestação corpórea de Deus se estende no corpo sofrido de cada peregrino ou romeiro(a), que se identifica com o Deus Crucificado, que assume suas dores, solidariza com seus sofrimentos, torna-se igual, próximo, acessível. Um Deus que, numa condição de Kenosis,[104] esvazia-se da condição divina para inserir-se no meio do sofrimento da humanidade, com um corpo semelhante ao nosso, como afirma o Apóstolo Paulo na carta aos Filipenses; “Sendo Ele de condição divina, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens, vivendo como um homem”(Fl 2,7). O corpo do Bom Jesus Crucificado, com chagas ensangüentadas, é lugar de manifestação de Deus. Este “corpo teológico” aguça o desejo mimético, motivando as relações sacrificiais como meio de despistar a violência, sustentando a esperança.

Ao falarmos da imagem (corpo) do Bom Jesus como imagem (corpo) de Deus, esbarramos na ambigüidade “geográfico-teológica” do “conflito entre distância e familiaridade”.[105] Ao mesmo tempo em que o corpo aproxima o Bom Jesus dos devotos, tornando-o “imagem e semelhança” dos que sofrem, Jesus continua sendo “um Pai poderoso, que fica lá em cima”.[106] Segundo Alexandre Otten, “uma imagem significativa é a de Jesus Cristo Nosso Senhor. Este se iguala a Deus Nosso Senhor. Jesus Cristo é o Senhor da glória, majestático e distante, que está reinando no mundo (...) para muitos Deus e Jesus Cristo se confundem desta maneira: ‘Jesus e Deus é uma coisa só’”.[107] Por outro lado, afirma Otten, “há imagens mais humanizantes de Jesus Cristo”[108], como é o caso da imagem do Porto das Caixas. É um Cristo que, pelo sofrimento expressivo, se torna mais próximo do povo simples que freqüenta o Santuário. Esta imagem assemelha-se à do “Senhor Bom Jesus da Semana Santa (...), devoção que ostenta um nítido caráter popular”[109] de identificação e de proximidade: a possibilidade de tocar no corpo de Deus, como no corpo de um santo. Um Deus que sofre e que portanto, “entende o meu sofrimento”, como afirmava uma moradora do Porto das Caixas numa procissão de Sexta-feira Santa. O sofrimento aproxima as pessoas do Deus sofredor.

Os Santuários de devoção sacrificial são lugares propícios, onde o “corpo de Deus” expresso na imagem, se corresponde, através dos rituais, com o corpo do fiel penitente, como afirma Mircea Eliade; “a correspondência se faz também entre o corpo humano e o ritual em seu conjunto: o lugar do sacrifício, os utensílios e os gestos sacrificiais são assimilados aos diversos órgãos e funções fisiológicas”[110], fazendo a transmutação simbólica do corpo profano para o corpo sagrado. Nesse contato com a divindade manifestada na imagem corpórea do santo, o corpo do devoto torna-se espaço teológico, ou seja, lugar da manifestação de Deus, reconhecido nas “curas” e em outros “milagres” que os romeiros atestam ter testemunhado. Além das características acima citadas, há o aspecto da filiação divina, do parentesco com a divindade que este contato proporciona.

Enfim, como afirma Jacques Audinet, “o corpo pessoal é lugar do encontro com o outro, ao mesmo tempo que da descoberta de sua própria identidade, lugar da abertura ao diálogo com os outros humanos”[111] e com a divindade. Lugar onde Deus se manifesta.

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Notas

[1] A Cristandade “(...) trata-se de uma revivescência de uma concepção de Igreja que perdurou durante a Idade Média na Europa Ocidental. O elemento básico do modelo é o conceito de sociedade sacral. Nesse conceito de sociedade sacral ou cristandade se identificam os conceitos de fé e nacionalidade, e o catolicismo passa a ser religião oficial do Estado. Os interesses da Igreja são os interesses do Estado e vice-versa. (. . . ...)”. Cf. Hugo SCHLESINGER e Humberto PORTO. Dicionário Enciclopédico das Religiões, verbete “Cristandade”, p.737.

[2] Concílio Vaticano II: “O último Concílio Católico (Vaticano II, 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965) desenrolou-se sob o signo da conciliação e da unidade ecumênica. Convocado pelo Pontífice João XXIII, com a participação de mais de 2.000 bispos e superiores de Ordens Religiosas, o Concílio atenuou o centralismo pontifical, aboliu a liturgia latina, substituindo-a por línguas locais, e reconheceu o valor dos métodos de estudo histórico das matérias religiosas”. Cf. Mircea ELIADE e Ioan P. COULIANO. Dicionário das Religiões, p. 120.

[3] “A romanização é um processo de reformas religiosas iniciado há mais de cem anos na Europa, durante o pontificado de Pio IX (1846-1878) e que visava implantar, no mundo todo, o mesmo modelo de catolicismo: o modelo romano”. Cf. Pedro A. Ribeiro de OLIVEIRA. “Religiões Populares”. Curso de verão – Ano II, p. 120.

[4] Cf. Compêndio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, Petrópolis, Vozes, p.259-306.

[5] Pierre BOURDIEU. A economia das trocas lingüísticas, São Paulo, EDUSP, 1996, pp. 23-24.

[6] Cf. Dicionário “Aurélio”, verbete “devoção”.

[7] Riolando AZZI. “A Espiritualidade Popular no Brasil: um enfoque histórico”, in; Grande Sinal – Revista de Espiritualidade, Ano XLVIII – 1994/3, p 296.

[8] Fala da devota Rosa Maria dos Santos, de Cachoeiro do Itapemerim – ES, recolhida em 26/01/1999 no Santuário de Porto das Caixas, Distrito de Itaboraí, Rio de Janeiro.

[9] Segundo Pierre BOURDIEU, esse tipo de relação “é a produção do valor dos bens simbólicos, contrariando, ao mesmo tempo, a representação ingenuamente idealista que têm dela seus atores e a redução brutalmente materialista que todo economismo (marxista ou neo-clássico) opera. Cf. in; Renato ORTIZ (Org.) “Pierre Bourdieu”: Sociologia, São Paulo, Ática, 1983, p. 43. Cf. também sobre este conceito, Pierre BOURDIEU, “Razões Prática”, p.157.

[10] Pierre BOURDIEU. Razões Práticas: sobre a teoria da ação, p.194.

[11] Mais dados sobre o conceito de Espiritualidade, cf; Estefano DE FIORE & Tullo GOFFI (Oorg.). Dicionário de Espiritualidade, verbete “Espiritualidade Contemporânea”, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 340-357.

[12] Sobre “milagres”, consultar Martien Maria GROETELAARS. Milagre e Religiosidade Popular, Vozes, Petrópolis, 1981.

[13] Rubem ALVES. Creio na Ressurreição do Corpo, 3º ed., p.29. Neste texto, sobre “o rosto risonho de Deus”, Rubem Alves, indiretamente, fala, desta experiência de Deus na sua ausência ao afirmar que, “Deus mora na saudade, ali onde o amor e a ausência se assentam”. Sentir Deus é sentir saudade (nostalgia) de Deus.

[14] Referência a tese de P. BOURDIEU, sobre “o desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos”, in; A Economia das Trocas Simbólicas, 3º ed., p.102.

[15] Riolando AZZI. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal: História do pensamento católico no Brasil – II, p. 221.

[16] O termo “panacéia” ( remédio para todos os males), foi empregado aqui em sentido literal. Na devoção popular, os santos servem para ‘solucionar’ todos os problemas e ‘curar’ todos os males.

19 Riolando AZZI. “A Espiritualidade Popular no Brasil: Um enfoque histórico”, in: Revista Grande Sinal – Ano XLVIII, p. 296.

[17] Riolando AZZI. “A Espiritualidade Popular no Brasil: Um enfoque histórico”, in: Revista Grande Sinal – Ano XLVIII, p. 296.

[18] Segundo o Código de Direito Canônico, Cân. 386 - § 1 e 2, “O Bispo diocesano é obrigado a propor e explicar aos fiéis as verdades que se devem crer e aplicar aos costumes, pregando pessoalmente com freqüência (. . ....)” e termina dizendo, no § 2, “Defenda com firmeza a integridade e unidade da fé, empregando os meios que parecerem mais adequados (. . ....)”. Este é o conceito que utilizamos ao empregarmos o termo “institucionalização da fé”. Uma fé pré edeterminada pelos cânones da Igreja.

[19] Lembramos aqui que Santuário oficial é aquele reconhecido pela Igreja e que consta na relação dos Santuários. Existem também, paralelo a estes, os centros de devoção, declarados pelo povo como “santuários”, mas que ainda não foiram reconhecidos pela Igreja. Ex: “Santuário do Menino da Tábua”, em Maracaí, interior de São Paulo.

[20] Um exemplo bastante claro desta relação conflituosa presente na Igreja foi apresentada no filme “O Pagador de Promessas” (1962), dirigido por Anselmo DUARTE. O mesmo, produzido pela CINEDISTRI e rodado na Bahia, “olha de frente o conflito entre a ortodoxia católica – Igreja institucionalizada ligada às classes dominantes – e o candomblé de origem africana, de grande penetração nas classes dominadas”. Cf. Ismael XAVIER. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome, p.44.

[21] Riolando AZZI. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal: História do pensamento católico no Brasil – II, p.221.

[22] Riolando AZZI. História da Educação Católica no Brasil: contribuição dos Irmãos Maristas, vol., 2, p.32.

[23] Entende-se aqui “religião purificada” como a religião católica oficial, com seus rituais dentro dos padrões romanos. Pelo menos era este o conceito de “religião pura” da Cristandade colonial.

[24] René GIRARD, A Violência e o Sagrado, p. 27.

[25] Pedro A. Ribeiro de OLIVEIRA, Religiões Populares. In; Curso de Verão – ano II, p. 120.

[26] René GIRARD. A Violência e o Sagrado, p.19.

[27] Rubem César FERNANDES. Os Cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares, p.84.

[28] Júlio de SANTA ANA. “Algunas consideraciones sobre la mimesis sacrificial de los sujetos sociales modernos”, in; Benedito FERRARO. Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios, p.90.

[29] Benedito FERRARO. Op.cit.,p.90.

[30] Maurice BLONDEL. In; Rubem César FERNANDES, op.cit., p. 32.

[31] J. L. IDÍGORAS. Vocabulário Teológico para a América Latina, p. 438.

[32] René GIRARD. Op.cit., p. 18.

[33] Franz J. HINKELAMMERT. Sacrifícios Humanos e Sociedade Ocidental: Lúcifer e a Besta, p. 17.

[34] René GIRARD. El Chivo Expiatorio, 1986, p. 262. (trad.) “Os homens só teêm aprendido a identificar as suas vítimas colocando-as no lugar de Cristo”

[35] Jean-Pierre VERNANT. Mythe et tragédie en Gréce Ancienne, Maspero, 1972, p.p. 99-131. Segundo Jean-Pierre VERNANT, “pharmakós” é um termo grego que significa “bode expiatório”. Quando dizemos pharmakós, afirma Vernant, o entendemos no sentido da vítima inocente. Cf. René GIRARD, El Chivo Expiatorio, p.p. 163-165.

[36] Júlio de SANTA ANA. “Sacralizações e sacrifícios nas práticas humanas”, in; Hugo ASSMANN (ed.). René Girard com teólogos da libertação, p. 140.

[37] Gerhard VON RAD. Teologia do Antigo Testamento, vol. I, p. 248, in; Op.cit., p. 140.

[38] Ibid., p. 140.

[39] Júlio de SANTA ANA. In; op.cit., p. 141.

[40] Segundo Rui JOSGRILBERG, com base na teoria René Girard, “o mecanismo vitimário é, portanto, o mecanismo estruturante da realidade no qual devemos interpretar a sociedade e a cultura. Esse mecanismo, com as polaridades desejo/violência, crise/sacrifício, proibição/ cultura, etc., levanta uma série de questões, insuspeitadas antes, especialmente para os teólogos (. . ....). O sacrificial, portanto, é interpretado, no mecanismo vitimário, como uma forma de diluição da violência e de transmutação de suas formas, mas não é fator de erradicação da violência mimética”. Cf. In; op.cit., p. 226.

[41] Riolando AZZI. “A Paixão de Cristo na Tradição Luso-brasileira”, in; Revista REB, vol. 53, março 1993, p. 114.

[42] Os quatros importantes centros de devoção sacrificial e romaria que formam o “Caminho dos Bandeirantes”, são: Iguape, Tremembé, Perdões e Pirapora. Cf., Ibid. , p. 125.

[43] Carlos Alberto STEIL. O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa - Bahia, p. 223.

[44] Ibid.

[45] Ibid.

[46] Riolando AZZI, op.cit., p 114.

[47] Ibid.

[48] Ibid.

[49] Eduardo HOORNAERT. In; Riolando AZZI, op.cit., p. 117.

[50] Riolando AZZI. A Cristandade Colonial: um projeto autoritário. História do pensamento católico no Brasil – I, p. 70.

[51] Rui JOSGRILBERG. In; op.cit., p 227.

[52] Segundo Max Weber, “uma associação hierocrática compulsória com uma organização contínua será conhecida como “Igreja” se, e na medida em que, seu quadro administrativo reivindicar um monopólio do uso do uso legítimo da coerção hierocrática”. Cf. Max WEBER. Conceitos Básicos de Sociologia, São Paulo, cCentauro, 2002, pp. 109-110).

[53] René GIRARD. Des choses cachées depuis la fondation du monde. In; Rui JOSGRILBERG. René Girard com teólogos da libertação, p. 227.

[54] Riolando AZZI, op.cit., p. 70.

[55] Ibid.

[56] Ibid.

[57] José COMBLIN. “Para uma tipologia do catolicismo no Brasil”, in REB, 28/1 (1968), p. 46-73, in; Riolando AZZI, “A Paixão de Cristo na tradição luso-brasileira”, REB, 53, fasc. 209, março – 1993, p. 121.

[58] Ibid.

[59] Riolando AZZI. Op.cit., p 120.

[60] Ibid., p. 115.

[61] Pierre BOURDIEU & Jean Claude PASSERON, A Reprodução. 3º ed., p.17.

[62] Bens simbólicos, segundo P. Bourdieu “são as trocas, ou transações nos mercados de bens culturais ou religiosos, etc. (. . ....) os bens simbólicos são espontaneamente alocados, pelas dicotomias comuns (material/espiritual, corpo/espírito etc)”. Cf. Pierre BOURDIEU, Razões Práticas, p. 157.

[63] Pierre BOURDIEU classifica como “economia da oferenda” “o tipo de transação que se instaura entre a Igreja e os fiéis; e, ainda, os trabalhos sobre a economia de bens culturais (. . ....)”. “Na economia da oferenda, a troca se transfigura em oblação de si a uma espécie de entidade transcendente. Na maior parte das sociedades, não se oferecem materiais brutos à divindade, como ouro, por exemplo, e sim trabalhado. O esforço de transformar a coisa bruta em objeto belo, em estátua, faz parte do trabalho de eufemização da relação econômica”. Cf. P. BOURDIEU, Razões práticas, p.p. 158-185.

[64] Ibid., p., 185.

[65] Ibid., p., 159.

[66] Ibid., p., 123.

[67] BÍBLIA SAGRADA, Livro do Levítico, caps.11- 15.

[68] Segundo o Livro do Levítico, “para se obter o perdão, é necessário um sacrifício, que varia conforme o culpado. O sumo sacerdote e a comunidade são considerados sagrados; nesse caso, se faz um ritual especial. Já o chefe e a pessoa do povo pertencem ao domínio profano, e o ritual é mais comum. O centro do sacrifício pelo pecado é o sangue, que é a sede da vida e tem força para perdoar o pecado (cf. Lv 17,11). Cf. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, notas, cap. 3, p.118.

[69] “A lei sobre a pureza está unida à lei de santidade (cf. Lv. 17-26), como aspectos negativo e positivo da mesma exigência divina. Estas regras se baseiam em proibições religiosas muito antigas: é puro aquilo que pode aproximar-se de Deus, e é impuro aquilo que é impróprio para o culto divino ou dele é excluído”. Cf. op.cit., cap. 11, notas, p.126.

90 90. José Wilson Correia da SILVA. A Beleza do Corpo: uma apreciação do Cântico dos Cânticos a partir do corpo”, p. 49-50.

[70] José Wilson Correia da SILVA. A Beleza do Corpo: uma apreciação do Cântico dos Cânticos a partir do corpo”, p. 49-50.

[71] Riolando AZZI. A Cristandade Colonial: um projeto autoritário, p. 70.

[72] Rubem ALVES. Creio na Ressurreição do Corpo, 2º ed., p. 43.

[73] Ibid., p. 33.

[74] Jurema ANDREOLLA e Isidoro MAZZAROLLO (org.), in;. Cântico dos Cânticos: a mais bela canção, p. 21.

[75] Ibid., SAB – Serviço de Animação Bíblica , p. 22.

[76] René GIRARD. A Violência e o Sagrado, p. 180.

[77] Pierre BOURDIEU. AEconomia das Trocas Simbólicas, p. 99.

[78] Hugo ASSMANN. Crítica à Lógica da Exclusão: ensaio sobre economia e teologia, p. 126.

[79] Ibid.

[80] Ibid. (trad.) [ . . ....] “Ao ignorar os efeitos miméticos que determinaram todas as sucessivas mudanças no estado de ânimo coletivo, converte em primeiro lugar, a vítima propiciatória, no único agente de rivalidade e logo no agente do ‘milagre’ que põe fim a ela”.

[81] Ibid.

[82] Ibid.

[83] José Carlos PEREIRA. A eficácia simbólica do sacrifício. Estudos das devoções populares. Arte & Ciência, São Paulo, 2001.

[84] Hugo ASSMANN. Op.cit., p. 124.

[85] “O espaço sagrado e o espaço profano estão sempre vinculados a um espaço social. A ordenação do espaço requer sua distribuição entre sagrado e profano: é o sagrado que delimita e possibilita o profano”. Cf. Zeny ROSENDAHL. Espaço & Religião: uma abordagem geográfica, p.32. Segundo Mircea ELIADE, “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história”. Cf. Mircea ELIADE. O Sagrado e o Profano, p.20.

[86] Mircea ELIADE. Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso, p. 35. In; Zeny ROSENDAHL, Espaço & Religião, p. 32.

[87] Hugo ASSMANN. Op.cit., p. 123.

[88] 81% das pessoas que freqüentam o santuário dos Porto das Caixas, no Rio de Janeiro, são mulheres.

[89] Edward F. EDINGER. Ego e Arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos fundamentais de Jung, p. 323.

[90] Ibid., p. 324.

[91] Ibid., - Cf. também BÍBLIA SAGRADA, carta aos Colossenses, cap.1, vers. 20.

[92] Entenda-se aqui a palavra “com-paixão”, como ‘sofrer com’ aqueles que sofrem.

[93] Rubem César Fernandes. Romarias da Paixão, p. 146.

[94] Idem. Os Cavaleiros do Bom Jesus, p. 96.

[95] Mircea ELIADE. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões, p. 18.

[96] Ibid.

[97] Ibid. - Cf. no lugar de ‘“imagem’”, M. ELIADE utiliza o substantivo ‘“pedra’”, para exemplificar o conceito de sagrado. Substituímos os conceitos para facilitar a compreensão do objeto analisado.

[98] James ALISON. “AIDS como lugar de revelação”. In; René Girard com teólogos da libertação: um diálogo sobre ídolos e sacrifícios, p. 299.

[99] Ibid.

[100] Ibid.

[101]Hierópolis “refere-se às cidades que possuem uma ordem espiritual predominante e marcadas pela prática religiosa da peregrinação ou romaria ao lugar sagrado. Pelo simbolismo religioso que esses locais possuem e pelo caráter sagrado atribuído ao espaço, podemos chamar esses locais de hierópolis ou cidades-santuário. Cf. Zeny ROSENDAHL. Op.cit., p. 82.

[102] Ibid., p. 79.

[103] Subentende-se ‘“encarnação’” como “ato pelo qual um Deus assume forma humana. Em teologia cristã, o mistério pelo qual o Filho de Deus se fez homem na pessoa de Jesus Cristo [. . ....]”. Cf. Hugo SCHLESINGER & Humberto PORTO. Dicionário Enciclopédico das Religiões, vol. I, p.937. Cf. Kénosis.

[104] Kénosis – “do grego: aniquilamento. Palavra usada na teologia de S. Paulo (Fl 2, 7) para indicar o momento da encarnação do Filho de Deus. No sentido moral, os padres da Igreja se referiam à voluntária humilhação de Cristo. Lutero comentou o texto no sentido de uma superação dos atributos divinos, pelos atributos humanos de Cristo [. . ....]. Do ponto de vista teológico, permaneceu inalterada a natureza divina após a encarnação e a humilhação voluntária de Cristo”. Cf. op.cit. vol. II, p.1503.

[105] Alexandre OTTEN. “Só Deus é Grande”: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro, p. 109.

[106] Ibid., p. 110.

[107] Ibid.

[108] Ibid.

[109] Ibid.

[110] Mircea ELIADE. Op.cit., p. 141.

[111] Jacques AUDINET. “Fronteiras do Corpo, Fronteiras Sociais”. In; Rev. Concílium / 280 – 1999/2, p. 52 [236].