Entre a Cruz e o Asana:
Respostas cristãs à popularização do Yoga no Ocidente

Rodrigo Wolff Apolloni[*] []

Resumo

A transculturalidade recente do Yoga chama a atenção de líderes cristãos. Essa prática põe a cristandade em risco? Ela pode ser utilizada em benefício dos crentes? Com base em enunciados de Colin Campbell e Frank Usarski, buscaremos encontrar respostas a essas questões. Inicialmente vamos caracterizar a transculturalidade do Yoga, apresentando, em seguida, a teoria de Campbell sobre a "Orientalização do Ocidente". Na seqüência, tomando por base o enunciado de Usarski acerca da "Retórica da Aniquilação", apresentaremos um modelo clássico de enfrentamento religioso de movimentos potencialmente ameaçadores. Apresentaremos, em seguida, visões distintas de pensadores e grupos cristãos a respeito do Yoga. Por fim, concluiremos observando que, a partir de um "olhar belicoso", grupos cristãos contrários à prática do Yoga conseguem - ainda que não intencionalmente - destacar elementos da chamada "religiosidade fragmentária" pouco percebidos pelos sujeitos da realidade-padrão.

Abstract

Referring both to the alleged process of "orientalization of the Ocident" (Campbell) and the "rhetoric of annihilation" (Usarski) the author deals with different types of reactions to the practice of Yoga among Christians. It is argued that in some cases the rejection of Yoga from a Christian standpoint is nourished by an unexpressed concept of a "fragmented religiosity" whose implications are discussed in the second part of the article.

1. Introdução

Nos últimos cem anos, o Yoga[1] foi adotado por milhões de pessoas fora do subcontinente indiano. Mesmo um grande número de não-praticantes - pelo menos, os que vivem em núcleos com um mínimo de permeabilidade em relação a dados externos - sabe identificar, com maior ou menor precisão, as características gerais dessa prática desenvolvida por hindus desde séculos antes do nascimento de Cristo. Uma medida da popularidade do Yoga pode ser obtida em uma simples visita à internet: uma pesquisa por sites contendo textos com a expressão genérica Yoga indicou nada menos que 5,2 milhões de endereços![2]

Mesmo subtraindo desse número os sites produzidos na própria Índia, bem como as repetições e os textos em que o termo é empregado de forma não-relacionada diretamente à prática, pode-se afirmar, com absoluta certeza, que o Yoga se converteu em produto transcultural.

A partir dos enunciados de Leon Hunt, Sabine Frühstück e Wolfram Manzenreiter, podemos definir um "produto transcultural" como sendo todo elemento cultural local que abandona seus limites geográficos iniciais para alcançar uma abrangência global. Ao ser adotado por outras culturas, deixa seu caráter étnico inicial - ainda que a "casca" de representação possa permanecer intacta - e ganha novos significados. O novo conjunto semântico acaba por influenciar até mesmo sua fonte original, redefinindo-a de acordo com o padrão global. Esse movimento se caracteriza por ser de fluxo e refluxo, ou seja, por abrir uma porta intercultural, que, quando escancarada, não volta a se fechar (Quadro 1).[3] Nesse contexto, mesmo os grupos "ortodoxos" originais ganham novos contornos, visto que passam a ter suas atitudes guiadas pela defesa da "velha ordem" face ao "inimigo transcultural".

A incorporação do Yoga pelas sociedades "do lado de cá" do mundo pode fazer parte de um movimento semelhante àquele que o pesquisador Colin Campbell denominou "Orientalização do Ocidente", marcado pela inclusão, cada vez mais abrangente, de elementos filosóficos, éticos e religiosos orientais em nossa visão de mundo.[4] Campbell observa uma diferença significativa entre a "Orientalização" e a mera incorporação de valores de forma não-traumática, ou seja, sem conseqüências para a realidade-padrão.[5] A "Orientalização" também não guarda relação com modismos (como o uso de certos adereços típicos do Japão, China ou Índia), caracterizados por um forte acolhimento seguido de um rápido abandono.

Segundo o autor - este é o cerne de sua tese - o que se verifica a partir da transplantação contínua de valores orientais pelo Ocidente é uma "mudança de eixo" que implica no estabelecimento de um novo paradigma: "A tese aqui proposta é nada menos do que a afirmação de que o paradigma cultural ou teodicéia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por cerca de dois mil anos está sofrendo um processo de substituição - e com toda probabilidade terá sido substituído, quando entrarmos no próximo milênio - pelo paradigma que caracterizou o Oriente. Essa mudança radical tem sido, e continua sendo, ajudada pela introdução de idéias e influências do Oriente no Ocidente, mas o que tem sido de muito maior importância são os desenvolvimentos culturais e intelectuais dentro da própria civilização ocidental, desenvolvimentos que têm sido grandemente responsáveis por apressar esta mudança de paradigma."[6]

Vale reforçar a observação de Campbell, de que a transformação não se dá apenas e tão somente pela transplantação maciça do paradigma oriental para o Ocidente, mas pela germinação de algo novo, não-híbrido, nascido da fusão de valores "paradigmáticos" das culturas do Leste e do Oeste promovida pelos próprios ocidentais.

Por sua legitimidade, esse "algo novo" tende a se configurar como paradigma emergente, que revisita e transforma valores consolidados como os do Cristianismo e do Cartesianismo. A tese, evidentemente, é controversa, uma vez que defende a emergência de um novo paradigma. Em tempos de "alta modernidade", nos parece difícil estabelecer os limites de um paradigma. Independente disso, com o devido cuidado, a tese merece ser considerada, uma vez que capta sinais de um movimento mais expressivo de inclusão ou negação de valores religiosos, éticos e filosóficos "extracristãos" no Ocidente.

No presente artigo vamos examinar exemplos de receptividade religiosa cristã ao Yoga. Os segmentos religiosos são brasileiros e pertencem ao Catolicismo e ao movimento Evangélico (Assembléia de Deus e Centro Apologético Cristão de Pesquisas, formado por pastores da região de Ribeirão Preto-SP). A partir da análise dos casos - que não pretende, em absoluto, produzir uma resposta aplicável a todas as linhas existentes dentro dos segmentos religiosos examinados - poderemos verificar, tomando por referência um construto baseado na tese de Colin Campbell, a aceitação ou a resistência a transformações decorrentes de uma visão ocidental de mundo "orientalizada".

Como referencial teórico à análise também utilizaremos o trabalho de Frank Usarski sobre a chamada "Retórica da Aniquilação".[7] Buscaremos, ainda, nos referir à percepção de uma "religiosidade fragmentária" presente em produtos culturais orientais aparentemente desligados do contexto religioso.

2. Um dilema religioso

Vale observar que, em seu artigo, Colin Campbell afirma que o Yoga não se inclui como elemento da "Orientalização". Segundo ele, trata-se de um produto importado, que, como outros (dentre os quais inclui a acupuntura, o Hinduísmo[8] e o Budismo), "caiu nas graças de muitos ocidentais" e que não diz respeito à mudança mais radical proposta em sua tese.[9] Partido da visão do Yoga como algo ligado apenas a uma "agenda fria", essa afirmativa prevalece. Para muitos adeptos, porém, a prática não é apenas um elemento estanque, mas algo (não necessariamente religioso, pelo menos do ponto de vista institucional) que se torna um importante referencial de vida, de contato com o próximo e com a natureza.

Em nossa avaliação, o Yoga cabe na categoria dos "elementos formadores" de um movimento maior de inclusão do pensar oriental no Ocidente, cuja influência não se dá apenas diretamente, explicitamente, mas também em função de sua incorporação ao universo semântico ocidental. Essa incorporação inclui, por exemplo, a adoção não-religiosa e fragmentária de práticas de fundo originalmente religioso e, também, uma relação diferente com o meio ambiente. O próprio Campbell observa que "há mesmo uma conexão intrigante - que lembra de fato o Hinduísmo e do Budismo - entre a crença da reencarnação e o ambientalismo".[10]

A medida da aceitação de elementos mais visíveis de uma outra religião (como "legítimos" ou, pelo menos, como "válidos"), porém, depende fundamentalmente da própria postura religiosa em relação ao mundo. Ao reprovar ou aceitar a entrada de tais elementos, um determinado grupo religioso se inscreve em um universo construído a partir de uma ampla gama de respostas, decorrentes do contato pré-existente entre própria ortodoxia e a sociedade na qual está inserido. Uma delas - a mais radical - é a chamada "retórica da aniquilação", cujo mecanismo é explicado por Frank Usarski: "Para uma aniquilação ser eficaz é preciso uma instância detentora de um poder de definição, uma entidade que apele à consciência coletiva do maior conjunto social que ela representa. Os aniquiladores aparecem com a finalidade de manter a plausibilidade interna do seu grupo ao diminuir a posição e desvalorizar retoricamente a qualidade de uma ideologia adversa. Degradando o "eles" em relação ao 'nós ", a aniquilação tenta estabelecer um desnível em favor do "próprio" e em detrimento do "outro" e assim rejeitar o desafio potencial do seu competidor."[11]

A reprovação pode significar a certeza de que se está no caminho certo e de que o "outro" segue em erro. Pode significar, também, uma resposta de luta ao "lobo" que ameaça o rebanho. Pode, ainda, ser uma resposta institucional, uma vez que, ao demonstrar "pusilanimidade teológica", a liderança religiosa se arrisca a "amolecer" os fiéis ou, pior, a despertar neles dúvidas acerca de sua seriedade. Pode, por fim, ser a soma de todas as respostas anteriores.

A aceitação, por sua vez, pode indicar uma certeza absoluta da própria verdade, que permite ao grupo religioso acatar elementos de fora como "simpáticos", "inofensivos", "risíveis" ou "complementares". Pode indicar, ainda, uma tendência à modernidade, desde que, é claro, não se admita o radicalismo como a grande resposta pós-moderna à relativização decorrente da fragmentação do olhar no século XX. Pode indicar, por fim, um processo de "arredondamento das arestas" da ortodoxia, decorrente da constatação, entre os fiéis, de uma incerteza mais ou menos secreta face à própria "teoria geral".

Diante disso, é possível presumir que as reações cristãs ao Yoga sejam as mais diversas. A bem da verdade, a inserção da prática no Brasil, no séc. XX, não parece se encaixar propriamente em um "paradigma bramânico": basta pensar nas finalidades terapêuticas e de auto-estima afirmadas por professores importantes no cenário yôguico brasileiro, como José Hermógenes de Andrade[12] ou, então, na visão "mercadológico-ortodoxa" de outro relevante promotor, o "Mestre" De Rose.[13]

As opiniões de líderes de segmentos cristãos no Brasil, porém, mostram uma representação da prática indiana em que o "potencial de risco" vai além dos inofensivos exercícios para saúde, do uso de batas indianas ou da queima de incenso em casa ou no ambiente de trabalho. De acordo com essas opiniões, ela guarda uma nota religiosa digna de observação.

3. Um Asana para Jesus

Uma tentativa pioneira de contato amistoso entre o Cristianismo e os valores da velha prática hindu pode ser vista em 1960, com a publicação de "La Voie du Silence" ("A Via do Silêncio"), do monge beneditino belga J. M. Déchanet.[14] No Brasil a obra foi publicada em 1962, com um título mais radical: "Ioga para Cristãos" (fig. 1).[15] Em sua página de apresentação, o autor indica uma intersecção possível entre sua religião e a prática indiana: "Cristianizar a ioga, uma determinada ioga? Não! Colocar ao serviço da vida cristã certas disciplinas ióguicas".[16] É interessante notar a preocupação inicial em relação à pureza do Yoga, seguida pela observação de que é possível separar o "joio pagão" do "trigo palatável pela cristandade". Inicialmente, o padre Déchanet deixa bem claro seu objetivo ao se iniciar no Yoga: "Vi a Ioga como uma junção com o Absoluto. Precisamente aqui devia acautelar-me. Deveriam minhas práticas, concentração e fixação do pensamento, conduzir-me não a "Ele", ao "Absoluto", ao "Todo-Um", ao "Inapreensível" nebuloso dos místicos hindus, porém ao Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob; ao Deus Vivo, Trino e Uno, Princípio de todas as coisas, meu Criador e meu Pai, em quem tenho a vida, natural e sobrenatural. Sentia absolutamente necessário colocar minha experiência, quiçá aventura, sob o signo e o selo da Graça."[17]

A materialização desse objetivo se mostra em seu depoimento a respeito da prática diária das técnicas: "Rezadas as matinas, celebrada a missa, encerrava-me durante uma hora e, qualquer que fosse a temperatura, executava, com a janela aberta, uma série de exercícios, mais ou menos divertidos como os da cultura física, tão conhecidos. Descrevi estes exercícios e manifestei seus frutos, talvez idênticos e certamente mais eficazes que os recolhidos em meu curso de ginástica. (...) A novidade mais evidente, em relação à minha experiência anterior, foi o sossêgo [sic] extraordinário experimentado após a execução dos exercícios, a simultânea facilidade de orar e concentrar-me num ponto particular, resultados que denominei "meditação silenciosa".[18]

Ao mesmo tempo em que acredita possível utilizar o Yoga como ferramenta, Déchanet deixa transparecer - isso é o mais surpreendente - preocupação com um risco de desvio religioso por conta da experiência yôguica. Em nossa opinião, isso equivale a afirmar que a religião do outro é tão válida quanto a própria.

Essa afirmação não deixa, efetivamente, de apontar para a inflexão referida por Campbell: o Yoga não seria apenas uma prática psico-física-religiosa antiga, mas uma espécie de novo "instrumento controlável de transcendência" (ainda que ligado a uma crença de fundo imanente), que permitiria ao cristão alcançar seu objetivo religioso com o auxílio de um meio tipicamente hindu - sem, com isso, se render a Vishnu, Shiva ou Ganesha.

Não nos parece possível, porém, fazer uso religioso de uma ferramenta de tal natureza sem dela adquirir alguma coisa, por sutil que seja, sem mudar a própria visão de mundo. Essa mudança nos parece especialmente clara quando, a certa altura do livro, o autor, ao invés de se referir a "cristãos praticantes de Yoga", lança mão da expressão "Iogue Cristão" - isso é visível, por exemplo, no capítulo 5, intitulado "Para um ioguismo cristão: Conselhos Práticos e Diretivas".[19] Definitivamente, um "iogue cristão" é diferente de um "cristão", uma vez que aquele incorpora um "ferramental bramânico" à sua prática religiosa (o que não acontece, por exemplo, com um "boxeador cristão" ou com um "nadador cristão", visto que tais práticas não guardam qualquer relação com a religião).

Poderíamos chegar a um questionamento muito simples: o Cristianismo não oferece, em si, nenhum modelo de instrumento de transcendência assemelhado ao Yoga? Não dispomos de muitos elementos teóricos para opinar. Jung, por exemplo, nega a possibilidade de uma "absorção espiritual do Yoga" e afirma que "com o perpassar dos séculos o Ocidente irá formando sua própria ioga e isto se fará sobre a base criada pelo Cristianismo".[20] Vale observar, porém, que, aparentemente, J. M. Déchanet não encontrou tal ferramenta em sua própria religião. Diante disso, não se importou em incorporar uma prática oriental, "pagã". Seria, em termos muito simples, um caso clássico de aplicação da sentença "os fins justificam os meios".

O sacerdote belga, porém, procura se proteger da acusação de "heterodoxia" ou de "rendição à religião alheia". Ao longo da obra, explicita a diferença entre a prática que desenvolve - baseada num olhar ocidental perfeitamente cabível dentro da tese de "Orientalização do Ocidente" - e o Yoga Clássico, voltado à elevação espiritual no universo religioso hinduísta. Ele afirma ter conseguido estabelecer um caminho seguro em sua jornada: "Nossa técnica ocidental soube separar a Hatha-Ioga de seus fins religiosos e espirituais. Abstraindo da moral que lhe serve de base, da atmosfera de ascetismo e heroísmo que o envolvem, como dos objetivos espirituais que o coroam, nossa técnica desligou tôda [sic] a parte física - posturas e controle respiratório - para adaptá-la a fins utilitários e profanos. Elaborou um sistema autônomo de educação física com atitudes e práticas atinadamente selecionadas. Para o europeu, a expressão "Hatha-Ioga" evoca sòmente [sic] um conjunto de exercícios, mais ou menos esquisitos, cuja prática regular revela-se, na experiência, altamente benéfica para a vida psíquico-física. Reduzida assim a seu aspecto corporal, a Hatha-Ioga compreende as posturas ou âsanas, o controle da respiração ou prânâyâma."[21]

A nosso ver, todas as afirmações do autor buscam levar o leitor a crer na possibilidade de que, sem se afastar de Jesus, é possível ingressar no mundo do Yoga. Isso significa, sem dúvida, um indício do movimento mais amplo percebido por Colin Campbell.[22] A tal ponto que, em um determinado capítulo, Déchanet indica a prática do Yoga para outros religiosos: "Superioras de um convento, mestras de noviças, perguntaram-me se convém [sic] para mulheres o método recomendado em "Ioga para Cristãos". E por que não? A mulher, mais flexível que o homem comum, executará as posturas com maior facilidade. A única diferença relativa à respiração foi explicada em seu lugar. Conheço vários mosteiros e conventos onde o método é praticado com sucesso. Nem por todos certamente: nunca deve ser ele [sic] imposto como regra. A quantas me consultam, respondo: lede o livro e vereis!"[23]

Em uma entrevista por nós realizada em 2003, com um professor de arte marcial chinesa de Florianópolis,[24] obtivemos um dado semelhante: a convite da superiora de uma ordem religiosa católica, esse profissional estava ministrando aulas de Tai-Chi-Chuan para freiras idosas. Segundo o entrevistado, as religiosas (principalmente as mais velhas) se divertiam muito repetindo movimentos que, de acordo com a tradição chinesa, brotaram do Taoísmo!

4. Cristãos com um pé no Oriente

Déchanet não foi o único religioso cristão a se ocupar das possíveis relações entre o Cristianismo e a "metafísica" oriental. Muito tempo antes, jesuítas como Matteo Ricci (1552 - 1610) e Joseph Maria Amiot (1718 - 1793) precisaram conhecer a fundo as religiões e o sofisticado pensamento chinês para, na arena do adversário, arrebanhar almas para Cristo. Seu objetivo, sem dúvida, era catequético, mas, aparentemente, eles não fizeram uso da Retórica da Aniquilação, preferindo (até por uma questão de sobrevivência!) partir para o debate "de alto nível" com sábios e burocratas das cortes chinesas Ming e Qing. No século XIX, com o declínio da Dinastia Qing, a China se viu invadida por missionários cristãos que, na corrente da dominação colonial, puderam adotar livremente o discurso da aniquilação, com resultados nem sempre previsíveis.[25]

A segunda metade do século XX produziu interesses bastante diversos, por parte de religiosos cristãos, em relação às religiões do Oriente. Interesses de caráter pessoal, sem dúvida, voltados ao conhecimento e à apreensão de métodos e conceitos aplicáveis ao cristianismo da modernidade. Quais as semelhanças, por exemplo, entre os discursos de Cristo e de Buda?

Como compreender a atitude extrema - semelhante às de mártires cristãos - dos sete bonzos vietnamitas que se incendiaram em Saigon no ano de 1963, protestando contra a guerra? Quais as raízes de tamanho desprendimento e vigor "espiritual"? (Fig. 2) [26]

Entre os contemporâneos do padre belga na relação de "cristãos com um pé no Oriente" aparecem figuras como o jesuíta alemão Hugo Enomiya-Lassalle (1898 - 1990), autor do livro "Meditação Zen para Cristãos" (de 1958), o monge cisterciense/trapista Thomas Merton (1915 - 1968), autor de obras como "O Zen e as Aves de Rapina" e Allan Watts (1915 - 1973), um cristão episcopal que mergulhou profundamente no Zen e que, atualmente, é uma espécie de "referência filosófica" para os aficcionados pelo Oriente.

O objeto de Déchanet, porém, parece fugir aos dos demais religiosos acima citados. Afinal, ele não tratou de discutir sistemas metafísicos (nem sempre acessíveis ou interessantes ao "cristão médio") ou de práticas que, pelo menos exteriormente, se assemelham às do cristianismo.[27] Ele abordou de forma instrumental (e acatou abertamente) o Yoga, conjunto de práticas corporais até então relativamente "estranhas" aos cristãos comuns (estamos nos referindo aos anos 50) nascido no mais colorido e menos compreendido dos universos religiosos, o hindu (Fig. 3).[28] Neste aspecto, ele parece ter sido um desbravador solitário.[29]

 

Enquanto a representação popular do Zen, por exemplo, está ligada ao vazio, à abnegação e ao silêncio (elementos, a seu modo, reconhecíveis no ambiente religioso ocidental), a do Hinduísmo evoca deuses "esquisitos" e práticas "bizarras", como a de criar vacas sem transformá-las em bifes ou a de se desnudar diante de pessoas desconhecidas para banhos de purificação.

O ponto em discussão neste momento, evidentemente, se refere à proximidade/distância entre o conjunto semântico das religiões orientais e o objeto Yoga. Essa proximidade existe, assim como profundas diferenças, marcadas até mesmo pelo fato de o "Hinduísmo" não poder ser considerado propriamente uma religião, mas um rótulo estabelecido para identificar um extenso conjunto de práticas religiosas mais ou menos semelhantes encontradas no subcontinente indiano.[30]

Além disso, vale observar que, enquanto elementos como o Zen aparecem mais claramente relacionados a práticas religiosas explícitas (ainda que possam subsistir de forma fragmentária, como nas artes marciais), o Yoga é muito mais identificado como prática corporal, perfeitamente cabível na agenda do "estressado-ocidental-comum-pouco-ligado-em-religião" e pouco notada em seus termos religiosos (o incenso, as batas e os quadros nas paredes dos ashrams são "legais", mas não parecem despertar grandes devoções).[31]

5. Um Asana para o Demônio

Como observamos anteriormente, nem todos os católicos - sejam eles fiéis ou representantes oficiais da religião - adotam uma postura inclusiva face às práticas corporais orientais. Apenas para exemplificar, tomamos como referências duas opiniões expressas em sites católicos. A primeira delas está registrada no site brasileiro "Veritatis Splendor: Memória e Ortodoxia Cristã".[32] À pergunta "Yoga: O que é?", o bispo D. Estevão Bettencourt dá a seguinte resposta: "A filosofia yógui é panteísta - o que não se coaduna com a fé católica. Os exercícios físicos, porém, ditados pela Yoga são, religiosamente falando, neutros, de modo que podem ser praticados por um cristão sem prejuízo para a sua fé. Acontece contudo que os mestres de Yoga costumam transmitir aos discípulos sua cosmovisão panteísta, ao mesmo tempo que lhes propõem o respectivo treinamento corporal. (...) Meditação, para o hinduísta, não é o mesmo que para nós, cristãos; não significa reflexão, aprofundamento de um tema que leve à oração. (...) Daí a importância da distinção entre os exercícios ou a técnica da yoga (coisa neutra, do ponto de vista religioso) e a filosofia dos mestres hinduístas (de índole panteísta, não-cristã). Quem assim distingue, pode praticar a yoga, sabendo que se trata de uma terapia, um tratamento de saúde, e não uma mística ou um método de meditação."[33]

Percebe-se, nessa resposta, uma maior de tensão entre o discurso oficial da Igreja e a prática indiana. Assim como Déchanet, D. Estevão Bettencourt admite a hipótese de que o Yoga pode ser uma prática válida, desde que o cristão tenha discernimento suficiente para escapar do "panteísmo". Ainda assim, sua desconfiança é grande por conta do risco em relação à utilização do Yoga como um "Cavalo de Tróia" panteísta. Para evitar esse risco, o religioso fornece uma saída não-problemática - evitar o Yoga e abraçar ferramentas 100% católicas: "O cristianismo tem seus próprios métodos de meditação, ensinados por Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa de Ávila, Santo Afonso Maria de Ligório... São os frutos de uma venerável tradição que formou uma multidão de santos e santas, heróis e heroínas."[34]

Um segundo site católico, o "Catholic.Net" (publicado pela Red Informática de la Iglesia em la América Latina - R.I.A.A.L.), oferece a seguinte resposta à mesma pergunta: "Estas técnicas traídas de Oriente, nada tienen que ver con la oración cristiana, pues no buscan una comunicación con Dios, sino solamente el placer de "sentirse bien". (...) Yo no cambiaría la hermosura y plenitud de la oración cristiana por un ejercicio nihilista. Sería como cambiar la esperanza por la desesperanza, la ilusión por la desilusión, el amor por la vaciedad. No, yo prefiero buscar la luz en la claridad del día en vez de en las tinieblas de la noche. (...) ¿El yoga y la oración son compatibles? Para quien no conoce a Dios y lo que Él quiere, quizá no le quede otro remedio. Pero para ti y para mí, cristianos, ¿por qué buscar la plenitud en la vaciedad del yoga? (...) La verdadera oración es un contacto personal (de persona a Persona) con Dios y no requiere de posturas, olores o sonidos especiales. La oración es mirar a Dios, dejando que Él te mire. Es hablar con Dios y escucharlo silenciosamente."[35]

O texto, assinado pelo padre Juan Gralla, não deixa dúvidas acerca dos malefícios do Yoga para o cristão. É, sem dúvida, uma posição oposta em relação à primeira apresentada neste artigo (de Déchanet). Vale observar, porém, que o autor não cita as práticas corporais, concentrando-se exclusivamente na atitude mental dos praticantes. Por este prisma, segundo o padre Gralla, o "Cavalo de Tróia do Vale do Indo" não engana ninguém. O verdadeiro fiel, segundo ele, abraça o catolicismo sem "abrir portas". Como veremos a seguir, opinião semelhante é manifestada por seguidores da Assembléia de Deus.

6. "A ioga não tem nada a ver com a palavra de Deus"

Em sua edição de número dez (de dezembro, janeiro e fevereiro de 2003), a revista "Resposta Fiel - Apologia da Fé Cristã" (fig. 4), editada pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CEPAD),[36] trouxe uma reportagem de capa alertando os fiéis assembleianos para os efeitos "desviantes" do Yoga. O título da matéria - "Ioga - Ocultismo disfarçado em exercício" -[37] não deixa dúvidas acerca do posicionamento oficial assembleiano em relação ao tema. De acordo com a matéria, os cristãos não devem praticá-lo, sob pena de se verem enredados pelo paganismo e, mesmo, por forças demoníacas.

Tão interessante quanto a matéria em si é o editorial da revista ("Engano que vem do Oriente"), em que os responsáveis pela publicação justificam seu alerta em relação às "coisas do Oriente": "Desde os anos 60, o mundo ocidental tem recebido uma forte influência das concepções filosóficas e religiosas do oriente. De uns anos para cá, as seitas orientais têm encontrado imensa guarida em solo ocidental. Se dermos uma olhada nas prateleiras das livrarias, vamos perceber que elas incluíram, já há alguns anos, seções para obras esotéricas, budistas etc. Nas lojas de CD, são inúmeros os títulos New Age. Se dirigirmo-nos a uma academia, encontraremos muitas pessoas praticando artes marciais ou ioga. Esses são só alguns exemplos da enorme influência da filosofia e religiosidade oriental na sociedade antes tida como judaico-cristã. O pior de tudo isso é que há muitos cristãos que pensam que não há problema nenhum em aderir às filosofias ou práticas orientais. Por isso, nesta edição, Resposta Fiel resolveu tirar as dúvidas de cristãos sinceros e bater de frente com os conceitos sincretistas, que nada têm a ver com as Sagradas Escrituras. As trevas não se misturam com a luz. Não há comunhão entre a luz e as trevas."[38]

Partindo-se da tese de Colin Campbell, pode-se afirmar que os assembleianos se aperceberam claramente dos riscos de um "paradigma emergente" e assumiram uma postura de resistência. Definitivamente, os teólogos desta denominação evangélica não vêem qualquer possibilidade de diálogo com as filosofias e religiosidades orientais, vistas como práticas demoníacas ("as trevas não se misturam com a luz. Não há comunhão entre a luz e as trevas").

O artigo segue uma estrutura de aproximação e aniquilação: a prática é apresentada a partir de dados históricos e religioso-filosóficos[39] e, a seguir, "desconstruída" a fim de se encontrar os elementos que a tornam perigosa para os cristãos. De acordo com essa visão, não há como usar a "ferramenta bramânica" sem se contaminar. O discurso é veemente: "Não são poucos que, lamentavelmente, engodados pelo discurso da mídia, pensam que não há nada demais em o cristão praticar ioga. Muito pelo contrário. Ioga é paganismo travestido de exercício físico".[40]

Como no caso da crítica católica de Juan Gralla, o grande problema do Yoga, segundo os assembleianos, não está nos exercícios físicos, mas na atitude mental presumivelmente decorrente do ingresso no universo do Yoga: "O que atrai mesmo as pessoas a essa prática é a garantia de alívio mental, relaxamento, encontro consigo mesmo etc. O cristão não precisa usar técnicas do paganismo religioso para aliviar sua alma e alcançar o equilíbrio anterior". Segundo eles, não há possibilidade de diálogo com nenhum tipo de prática, nem mesmo com as de caráter terapêutico (como a yogaterapia ou a voltada a hipertensos e asmáticos): " Não há uma modalidade da ioga, mesmo as ditas menos religiosas (...), que não devam ser repudiadas pelo cristão, já que todas são ioga. Todas usam a técnica da hatha, que é um método religioso com metas religiosas, apesar de enfatizarem que o propósito é apenas alcançar "benefícios corporais e mentais".[41]

Além de criticar a prática em si - assim como a atitude mais "frouxa" de certos cristãos - o autor da matéria ainda elenca uma série de meios desonestos pelos quais os yogues fazem discípulos. Esse "arrebanhamento" aconteceria por meio dos seguintes métodos:

A crítica evangélica também é visível na internet. Em muitos sites, os termos seguem um padrão semelhante ao adotado pelos assembleianos de "Resposta Fiel", mas de forma mais radical. É o que se pode verificar, por exemplo, em um texto do site do "Centro Apologético Cristão de Pesquisas - CACP"[42] (fig. 5). Nele, as principais críticas são relacionadas à meditação e à participação em cerimoniais hindus "anticristãos". As práticas meditativas são descritas como a face visível de um "mundo tenebroso"; elas abririam portas para encontros com "espíritos grotescos", levando muitos de seus praticantes à loucura e, mesmo, a uma "fúria cega" voltada ao homicídio.

Para reforçar seus argumentos, o autor do artigo, um evangélico identificado como Samuel Costa, elenca alguns nomes controvertidos ligados ao Oriente durante o período da Contracultura, como Osho e Maharishi Mahesh Yogi. José Hermógenes é apontado como disseminador de um condenável culto ao "Eu-Divino".

Nem toda meditação, porém, é condenada. Para os interessados, o caminho certo está na "meditação cristã", que apresenta duas diferenças fundamentais em relação às meditações orientais "desviantes": enquanto a meditação oriental prega o esvaziamento da mente, a cristã não; enquanto a meditação oriental é voltada a uma "contemplação vazia", a cristã é sempre voltada a Deus. A vacuidade mental e a devoção ao ego, informa o texto a partir de um exemplo bíblico, são portas para o ingresso de forças demoníacas: "Mente vazia é alvo fácil para a possessão demoníaca. Não se esqueçam que Jesus afirmou que um demônio, após ter saído de um certo homem, retornou para o mesmo homem, algum tempo depois, porque este continuava espiritualmente desabitado (Mateus 12.43 a 45)."[43]

O autor conclui o texto reforçando os riscos da chamada "meditação esotérica", que estaria a serviço de forças ocultas: "De um lado, o objetivo final da meditação esotérica é o controle total das mentes dos praticantes por forças ocultas anticristãs. Do outro lado, o alvo da meditação cristã é o cultivo constante de um relacionamento de amor e dependência do homem limitado com o seu único Deus - Maravilhoso, Criador, Onipresente, Onipotente, Onisciente e Ilimitado. As pessoas estão cansadas e até certo ponto exaustas; procuram tranqüilidade de espírito e estão dando ouvidos para o canto da sereia esotérica. Escolher a opção pela meditação esotérica (da Nova Era) é satisfazer-se com ilusões. Cair na sedução da meditação oriental (esotérica) é andar por caminhos movediços que conduzem à morte eterna. (...) Medite, pois, no Senhor! Amém!"[44]

7. A "Nova Era" como alvo

Uma característica comum a todas as fontes pesquisadas voltadas à crítica do Yoga é que eles não se limitam apenas a combater essa prática originalmente oriental, mas também outras manifestações da "Nova Era".

A edição "yôguica" da revista "Resposta Fiel", por exemplo, também dedicou uma página a condenar a prática das artes marciais, que seriam, ao mesmo tempo, promotoras do paganismo e contrárias à crença no poder do Deus cristão ("Quando um cristão pratica luta para defesa pessoal, está dizendo: 'Não confio que Deus possa proteger-me'").[45] Em outra edição, a revista combateu o uso dos chamados "Florais de Bach" (em "Os Sutis Espinhos dos Florais de Bach")[46] - o método terapêutico estaria ligado à difusão do panteísmo e da crença na reencarnação.

O site do CACP, por sua vez, inclui críticas à Igreja Messiânica, ao movimento "Viver de Luz", ao Tarô e até à Rede Globo (apontada como desviante por tirar fiéis dos templos e colocá-los na frente dos aparelhos de TV). O site da Veritatis Splendor, por sua vez, traz - por exemplo - condenações ao uso de tatuagens (que mostrariam inclinações mágicas do indivíduo),[47] ao consumo da "oaska" (ayahuasca)[48] e à comunicação com mortos por meios eletrônicos.[49] Já o site Catholic.net dedicou um link específico ao tema "Nova Era",[50] em que condena práticas como a "Psicologia Pop", astrologia, Reiki, Massoterapia e Reflexologia. Os responsáveis fazem, ainda, um alerta em relação aos riscos relacionados à leitura de livros de auto-ajuda.

Diante dessas posições fortemente contrárias ao Yoga e a outras práticas que passaram a fazer parte do universo existencial-religioso das sociedade do Ocidente no final do século XX, o que dizer da opinião do padre Déchanet? É difícil, em um artigo acadêmico, partir para suposições sem embasamento teórico. Ainda assim, arriscamos a emitir um argumento de caráter meramente pessoal. Ele é baseado, fundamentalmente, nos anos de publicação de "Yoga para Cristãos" (1960[51] na Bélgica e 1962 no Brasil). Em princípio, o livro foi editado em um período em que praticamente não existiam manifestações populares de crenças "exóticas" (em um momento anterior ao da Contracultura);[52] trabalhos de pensadores católicos como Thomas Merton, por exemplo, não influíam na vida dos "cristãos médios", muito mais no Brasil. Naquela época, mesmo o número de denominações evangélicas era muito menos expressivo. Diante desse argumento, podemos questionar: a publicação de "Ioga para Cristãos" seria possível atualmente?

8. Conclusão: Retórica da Aniquilação, "Orientalização do Ocidente" e a percepção cristã da religiosidade fragmentária

Tomando por base os casos analisados neste artigo, podemos afirmar que o predomínio é de uma posição baseada na "retórica da aniquilação" (para uma "graduação da ameaça", ver Tabela 1). Em seu artigo, Frank Usarski observa que a aniquilação tem como fundamento "o exagero seletivo de certos aspectos do fenômeno desafiador e a transferência ao tal fenômeno de definições socialmente negativas". De fato, é o que se pode perceber em relação ao Yoga, captado por quatro dos cinco segmentos religiosos cristãos examinados muito mais por seus traços religiosos do que pelos corporais-terapêuticos.

Tabela 1

Corrente "Ioga Cristão" Veritatis Splendor Catholic.net Resposta Fiel CACP
Risco Baixo Médio/Alto Alto Alto Alto

A partir da assertiva de Usarski, podemos localizar os elementos apontados pelos cristãos como sendo "de risco". O Hatha Yoga (linha mais popular dentre as praticadas no Brasil) não se caracteriza apenas por práticas meditativas, mas também por técnicas corporais.[53] Estas, por serem vistas como desligadas de qualquer finalidade religiosa, não diretamente são atacadas - não merecem atenção, a não ser por seu aspecto de "cavalo de Tróia". O elemento meditativo/introspectivo, assim como a iconografia do subuniverso yôguico, por sua vez, são bombardeados. As escolhas, dentro da retórica da aniquilação, nos parecem claras: elas implicam no o que há de mais "perigoso", frontalmente contrário, por seu aspecto imanente e "idólatra", à transcendência ao monoteísmo que caracterizam as "Religiões do Livro".

A partir daí é construída, literalmente, a "satanização": os yogues traficam, de forma sub-reptícia, sua cosmovisão panteísta e não-cristã (Veritatis Splendor); a meditação é uma prática niilista que leva, por sua "vacuidade", a recantos espirituais sombrios (Catholic.net); ela é uma "sombra" que se opõe à "luz" cristã (Resposta Fiel); ela é a ferramenta de dominação de forças anticristãs e uma porta para a possessão demoníaca (CACP).

O primeiro a vislumbrar o inimigo é aquele que por ele se sente mais ameaçado. Diante dessa assertiva, é fácil compreender o porquê da virulência de parte de segmentos católicos e evangélicos em relação ao Yoga. Diante do "demônio", a retórica da aniquilação (bem como seu ferramental sectário) encontra uma terrível justificativa.

Em seu artigo, Frank Usarski analisa as reações cristãs ao ingresso do Budismo e ao surgimento de novos movimentos religiosos a partir dos anos 70 na Alemanha. O caso do Yoga brasileiro, porém, nos parece distinto: a começar pelo fato de que um grande número de praticantes não identifica um substrato religioso na iconografia presente nas academias e mesmo nas ruas. Quantas vezes nós, como interessados nas culturas do Oriente, não ouvimos referências à "deusa" Shiva? Em Curitiba, por exemplo, há uma boate chamada "Shiva Lounge Bar"! Isso, sem contar a cerveja Brahma, que, segundo a pesquisadora Tereza Cristina Novaes Marques, pode ter sido batizada, ainda no século XIX, em homenagem à divindade hindu relacionada à Criação: "A primeira fábrica de cerveja - com todos requisitos técnicos indispensáveis - foi fundada em 1888. Era a Manufactura de Cerveja Brahma, Villigier e Cia., de propriedade do engenheiro suíço Joseph Villigier. Até hoje, permanecem na obscuridade as razões que levaram o engenheiro a escolher o nome Brahma para a sua cerveja. Há pelo menos duas hipóteses mais aceitas que tentam desvendar o porquê desse nome. A primeira diz que o engenheiro inspirou-se na história mística da Índia. E esse nome seria uma homenagem a uma das principais divindades hindus, que o fascinava sobremaneira. A segunda relaciona o nome Brahms, que teve seu apogeu de sucesso por volta de 1879, justamente o ano que Joseph Villigier chegava ao Brasil. O vocábulo Brahms, por ser masculino, foi adaptado para o feminino para concordar com a palavra feminina Manufactura. No dia 3 de setembro do mesmo ano, foi registrada, na Junta Comercial, sob o número 1.549, a marca Brahma, em nome da firma Villigier e Cia."[54]

O mesmo afastamento face ao Hinduísmo pode ser visto na etnicidade de nosso Yoga. Quantos mestres são indianos? E quantos são, de fato, hindus, com conhecimento suficiente dessa religião? Onde estão seus templos? Quer nos parecer que prevalece um "panteísmo à brasileira", que se aproxima muito mais da "Nova Era" do que da vetusta religião dos brâmanes. Ainda assim, parecem sobreviver alguns elementos hindus difusos, homeopáticos, de difícil identificação pelo cristão brasileiro "médio".

Brasileiros "classe média", cristãos sem grandes vínculos institucionais com a religião, vão aos supermercados e compram livros do Dalai Lama; nas feiras de artesanato, adquirem incenso fabricado em Bangalore e duendes moldados em epóxi (Fig. 6); meditam, praticam Yoga, Tai-Chi-Chuan e fazem uso de florais de Bach; relaxam montando arranjos de ikebana. Em outras palavras: incorporam tais práticas sem imaginar que elas podem trazer, em si, fragmentos minúsculos de religiões orientais ou de ideários religiosos não-cristãos.

Deixamos de fora, evidentemente, grupos institucionalizados, visíveis, relacionados à Nova Era, como os indicados por José Guilherme Magnani em "O Brasil da Nova Era".[55] Afinal, se a postura dos "cristãos atentos" é de combate direto a esses grupos, também é de alerta aos fiéis que, ingênuos, caminham "sobre o fio da navalha" de práticas orientais suspeitas.

O que nos chamou a atenção foi perceber que os grupos religiosos cristãos estão entre os primeiros a perceber, de forma mais clara fora dos círculos mais intelectualizados do Yoga, a presença desses "fragmentos religiosos" nessa prática (a mera percepção não quer dizer, porém, "satanização" - o uso ideológico vem na etapa seguinte). São, efetivamente, fragmentos, que dificilmente virão a reconstituir as religiões de que partiram ou, mesmo, constituir religiões orientais institucionais e "transculturalizadas". Eles podem, porém, mudar o pensamento ocidental? Podem, por aglutinação, estar dando início a um novo paradigma no Ocidente? Essa é, aparentemente, a crença tanto de Colin Campbell quanto dos cristãos que suspeitam das batas e Budas de resina que encontram em seu caminho. Pessoalmente, porém, não acreditamos que o "efeito Shiva"[56] chegue a tanto.

Bibliografia

Livros

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GUERRA DO VIETNÃ EM FOTOS http://www.vietnampix.com/fire1.htm (c. 04.11.2004).

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VERITATIS SPLENDOR, http://www.veritatis.com.br/ (c. 08.09.2004).

Dissertações

"Kung-Fu à Brasileira: Estudo sobre a Presença e a Transformação de Elementos Religiosos Orientais na Arte Marcial Chinesa praticada no Brasil", São Paulo, 2004. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião, PUC-SP.

Notas

[*] Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP.

[1] Por uma opção pessoal (ligada à vivência junto a círculos brasileiros de praticantes), optamos por adotar o termo "Yoga", lido como masculino. É possível encontrar, porém (principalmente entre os não-praticantes), variantes como "a Ioga", "o Ioga" e "a Yoga".

[2] Nem todos os sites contendo os termos pesquisados dizem respeito a grupos de praticantes ou academias. Em nossa avaliação, porém, a simples citação denota sua presença na cultura ocidental.

[3] Fontes: HUNT, L., "Kung-Fu Cult Masters", 1ª edição, Londres: Wallflower, 2003, 229 p.; Frühstück, S, & Manzenreiter, W., "Neverland lost - Judo cultures in Austria, Japan, and elsewhere struggling for cultural hegemony", artigo publicado em in Befu, Harumi [Editor]. Globalizing Japan: Ethnography of the Japanese Presence in America, Asia, & Europe. Florence, KY, USA: Routledge, 2001, p. 69 to 93.

[4] CAMPBELL, C., "A Orientalização do Ocidente: Reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio", in Religião e Sociedade, 18/1, 1997, p. 5 a 21.

[5] Seria o caso, por exemplo, da adoção do curry como tempero genérico, que não exclui a utilização de temperos "clássicos" da culinária ocidental. O conceito de "realidade-padrão" é de BERGER & LUCKMANN em "A Construção Social da Realidade", Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

[6] CAMPBELL, C., "A Orientalização ...", op. cit., p. 6.

[7] USARSKI, F., "A retórica de ‘aniquilação’ - Uma reflexão paradigmática sobre recursos de rejeição a alternativas religiosas", in: Revista de Estudos da Religião (REVER), nº 1, 2001, pp.91-111 http://www.pucsp.br/rever/rv012001/p_usarsk.pdf

[8] Caracterizado por movimentos como o Hare Krishna.

[9] CAMPBELL, C., "A Orientalização...", op. cit., p. 5.

[10] CAMPBELL, C., "A Orientalização...", op. cit., p. 14.

[11] Ver nota 7.

[12] Autor de livros como "Yoga para Nervosos" (4ª edição, Rio de Janeiro: Record, 1968, 384 p.) e "Saúde Plena - Yogaterapia" ( São Paulo: Nova Era, n.d.).

[13] Autor de livros como "Prontuário de Yoga Antigo (Svástia Yoga)" (10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Ground Limitada, 1986); De Rose é o fundador da "Universidade de Yôga (Uni-Yôga). Site: http://www.uni-yoga.org.br/main.php (c. 08.09.2004).

[14] De acordo com informações do site http://www.lemondeduyoga.org/htm/fney/historique.htm (c. 04.11.2004), Déchanet foi iniciado no Yoga por Phillipe de Méric, discípulo do indiano Shri Mahesh Gatradyal. Gatradyal chegou à França em 1947 e é apontado como um dos pioneiros na divulgação do Hatha-Yoga naquele país. O site aponta, ainda, uma data diferente para a publicação da primeira edição de "La Voie du Silence": 1958.

[15] DÉCHANET, J., "Ioga para Cristãos", primeira edição, São Paulo: Editora Herder, 1962.

[16] Idem, p. de apresentação.

[17] Ibid., p. 14.

[18] Ibid., p. 15.

[19] DÉCHANET, J., "Ioga...", op. cit., p. 152.

[20] Cf. JUNG, C., "A Ioga e o Ocidente", art. disp em "Psicologia e Religião Oriental", 1ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1980, p. 60.

[21] DÉCHANET, J., "Ioga...", op. cit., p. 44. É interessante notar o uso de termos positivos - "ascetismo" e "heroísmo" - para identificar o Yoga

[22] Como observamos anteriormente, a tese de Campbell nos parece por demais ambiciosa. Ainda assim, traz, em si, uma importante observação sobre a permeabilidade ocidental à "maré que vem do Oriente".

[23] DÉCHANET, J., "Ioga...", op. cit., p. 187.

[24] Entrevista realizada com o professor Rogério Leal Soares para a dissertação de mestrado "Kung-Fu à Brasileira: Estudo sobre a Presença e a Transformação de Elementos Religiosos Orientais na Arte Marcial Chinesa praticada no Brasil", São Paulo, 2004. 221 p. mais anexos. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião, PUC-SP.

[25] Um dos produtos mais extraordinários da fusão entre os pensamentos chinês e cristão foi o movimento Taipin, que estabeleceu um "cristianismo híbrido". De corte sectário, o movimento foi responsável por uma das mais violentas rebeliões verificadas na China no século XIX (1860). A respeito do Taipin, ver SPENCE, J., "O Filho Chinês de Deus", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[26] Imagem disponível em http://www.vietnampix.com/fire1.htm (c. 04.11.2004).

[27] Como a do sentar-se em contemplação.

[28] Sadhu (asceta hindu) medita em um ambiente de calor extremo. Imagem extraída de BEDI, R., "Sadhus - The Holy Men of India", 2ª edição, Nova Delhi:Brijbasi, 1992.

[29] Em nossa pesquisa não encontramos outros religiosos cristãos que se identificaram com o Yoga.

[30] A respeito do "rótulo hinduísta", ver FLOOD, G., "An Introduction to Hinduism", 3ª edição, Nova Iorque: Cambridge University Press, 1996, p. 6-8.

[31] De acordo com o Censo de 2000 do IBGE, o Hinduísmo é praticamente inexistente no Brasil: ele se insere no 1,8% da categoria "Outras Religiosidades".

[32] Site: http://www.veritatis.com.br/ (c. 08.09.2004).

[33] Texto presente em http://www.veritatis.com.br/artigo.asp?pubid=1979 (08.09.2004)

[34] Idem.

[35] GRALLA, J., "El yoga... ¿oración o gimnasia?", art. disp. em http://es.catholic.net/temacontrovertido/326/1605/articulo.php?id=105 (c. 08.09.2004).

[36] "Resposta Fiel", Bangu (RJ), Editora Cpad, ano 3, n. 10, dez-jan-fev. 2003, p. 24 e 25. A publicação é um veículo oficial dessa denominação evangélica.

[37] "Resposta Fiel", op. cit., p. 24.

[38] "Resposta Fiel", op. cit., p. 3.

[39] A fundamentação teórica, apesar de genérica, traz informações precisas.

[40] "Resposta Fiel", op. cit., p. 24.

[41] Idem, p. 25.

[42] http://www.cacp.org.br/yoga.htm (c. 10.10.2004)

[43] Idem.

[44] Ibid.

[45] "Resposta Fiel", op. cit., p. 8.

[46] "Resposta Fiel", Bangu (RJ), Editora Cpad, ano 3, n. 9, set-out-nov 2003, p. 7-9.

[47] http://www.veritatis.com.br/grupo.asp?pubid=145

[48] http://www.veritatis.com.br/grupo.asp?pubid=138

[49] http://www.veritatis.com.br/artigo.asp?pubid=2000

[50] http://es.catholic.net/temacontrovertido/326/1591/

[51] Ver nota 14.

[52] Não nos referimos, aqui, a movimentos mais antigos como a Teosofia, aparentemente restritos em sua abrangência social.

[53] Respectivamente, posturas corporais, contrações musculares, técnicas de purificação corporal e técnicas respiratórias.

[54] MARQUES, T., "A Cerveja no Brasil", in http://www.republicadacerveja.com.br/textoseartigos3.asp (c. 12.10.2004). A questão não é de mera curiosidade: em uma conversa com um integrante da comunidade Hare Krishna de Curitiba no ano de 2002, ele se mostrou irritado com o uso do nome do deus, "muito mais para uma cerveja!". O entrevistado até ponderou: "Você já imaginou uma cerveja com o nome de ‘Nossa Senhora Aparecida’?"

[55] MAGNANI, J., "O Brasil da Nova Era", 1ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000.

[56] Vale lembrar que, no panteão hindu, Shiva é o deus da "Destruição para a Reconstrução".