Reinterpretação do Budismo Chinês e Coreano no Brasil

Rafael Shoji[*] []

Resumo

Esse artigo tem como objetivo fornecer um panorama do Budismo chinês e coreano no Brasil. Inicialmente serão descritos os dados existentes sobre a imigração chinesa e coreana, bem como dados dos templos visitados em pesquisa de campo. No caso chinês, os grupos no Brasil podem ser basicamente divididos em templos étnicos - fruto da organização de iniciativas locais - e representações de instituições de presença mais globalizada, com estratégias mais organizadas de inserção na sociedade brasileira. No caso coreano, um dos principais motivos da quase ausência de templos budistas é a assistência dada pelas igrejas aos imigrantes na sua chegada. Ao final serão comparados os processos de aculturação desses templos chineses e coreanos com o caso japonês, com a intenção de oferecer elementos mais gerais de reinterpretação do Budismo do Extremo Oriente no Brasil.

Abstract

Based on the author’s fieldwork the article gives an overview over the main features of Chinese and Korean Buddhism in Brazil. While Chinese groups can be divided in ethnic temples administered by local initiatives, and "globalized" institutions that run missionary strategies in order to establish Buddhism in the overall Brazilian society, the number of Korean temples is considerably restricted due to the compensating role of Christian Churches that served Korean immigrants at the time of their arrival. For heuristic reasons the second part of the article confronts the characteristics both of Chinese and Korean Buddhism with the situation of Japanese Buddhism, the third line of East Asian Buddhism in Brazil.

1. Introdução

O Budismo chinês e coreano no Brasil foi iniciado após o significativo fluxo migratório de chineses e coreanos, a partir dos anos 60. No caso chinês, já pode ser identificada uma atividade de budistas em 1964. Somente a partir dos anos 80 a presença do Budismo chinês se intensificou no Brasil, acompanhando a diáspora chinesa pelo mundo, que elevou o número de imigrantes no Brasil e trouxe grupos com uma presença mais globalizada, como a Fo Guang Shan (port. "Montanha da Luz do Buda"). No caso coreano, ainda que a maior parte da comunidade freqüente igrejas protestantes, principalmente devido ao auxílio prestado na sua chegada ao Brasil, existe um templo budista em atividade.

Hoje, apesar de o Brasil abrigar a maior comunidade de chineses e coreanos da América Latina, concentrados nas regiões Sudeste e Sul do país, existem poucos estudos sobre os templos budistas dessas comunidades. Ainda que o número de brasileiros no Budismo chinês e coreano seja bastante reduzido, a Fo Guang Shan tem se empenhado ativamente na promoção de atividades para brasileiros e em um estabelecimento progressivo.

Aqui pretendo introduzir a história da imigração chinesa e coreana no Brasil, apontando os principais grupos budistas e identificando quais ênfases doutrinais podem ser observadas. Ao final será esboçada uma análise comparada mais geral dos processos de adaptação no Budismo japonês, chinês e coreano, buscando indicar padrões gerais de reinterpretação e receptividade do Budismo do Extremo Oriente no Brasil.

2. Imigração Chinesa e Coreana no Brasil

2.1 "Pré-História" do Extremo Oriente no Brasil

Os chineses são os mais antigos imigrantes do Extremo Oriente no Brasil. Existem provas da presença de chineses no Brasil no período colonial, ainda que não se possa avaliar a quantidade exata.[1] Também é certo que algumas centenas de chineses desembarcaram no Rio de Janeiro em 1810, inicialmente trazidos para o cultivo de chá.[2]

Posteriormente, a possibilidade da imigração chinesa foi colocada dentro do contexto da substituição em massa da mão-de-obra escrava. Uma das possibilidades foi a imigração de chineses, já que se estimava que a imigração européia não ocorreria em número suficiente para as atender à demanda brasileira. Por conta disso, por volta de 1854, também algumas centenas de chineses foram trazidos em um experimento infrutífero de substituir a mão-de-obra escrava.[3] Em 1882 foi fundada a companhia de Comércio e Imigração Chinesa, que tinha o apoio ativo do governo e planos ambiciosos de trazer milhares de chineses ao Brasil. Por essa companhia, cerca de mil chineses chegaram para trabalhar em uma mina em São João Del Rei, no Estado de Minas Gerais.[4] Em 1893 - apesar dos protestos de chineses e ingleses[5] - entraram 475 chineses no Brasil, recrutados na China e embarcados em um navio alemão fretado chamado Tetardos. Segundo o Memorial dos Imigrantes de São Paulo, a primeira entrada oficial de chineses no estado ocorreu em agosto de 1900, com 107 pessoas que se encaminharam para a cidade de Matão, depois de terem desembarcado no Rio de Janeiro e de passarem pela Hospedaria dos Imigrantes na cidade de São Paulo.

Ao final, parece ter sido triste o final desses chineses no século XIX no Brasil. Com poucas possibilidades de retorno à China, muitos morreram pobres nas ruas do Rio de Janeiro, vítimas do preconceito racial,[6] e sua influência cultural só pode ser parcialmente rastreada. No campo religioso, é provável que os chineses no Brasil tenham tido santuários próprios combinando elementos populares, como ocorreu nos EUA.[7]

2.2 Fluxos Migratórios Recentes

Em tempos recentes também existiu um significativo fluxo de imigrantes chineses para o Brasil. O início desse fluxo se deu em função da implantação do socialismo na China e da conseqüente fundação da China Nacionalista, em Taiwan, em 1949, o que produziu uma significativa diáspora do povo chinês. No Brasil, a grande maioria dos chineses se dedicou ao comércio e mesmo a profissões liberais. O número de chineses e descendentes no Brasil foi estimado por um censo de 1987 em 100.000.[8] Neste censo, consta que cerca de 50% dos imigrantes chineses estão presentes em São Paulo e cerca de 30% no Rio de Janeiro. Atualmente, o número de chineses e descendentes no Brasil é calculado em cerca de 190 mil, dos quais 120 mil no Estado de São Paulo, muitos deles ainda em processo de legalização.[9] Apesar de parecer existirem alguns fatores que possam desmotivar a imigração chinesa,[10] o fluxo de chineses para o Brasil ainda era relativamente alto até alguns anos atrás. Na anistia da Polícia Federal relativa aos anos de 1998 e 1999 foram regularizados 9.229 imigrantes chineses, o que fez com que eles fossem a população estrangeira mais beneficiada por essa anistia.[11]

No caso coreano, ainda que alguns prisioneiros da Guerra da Coréia (1950-1953) tenham se fixado no Brasil, a imigração se intensificou a partir de 1963 e nas décadas seguintes devido à Guerra Civil.[12] Os primeiros imigrantes eram agricultores e aportaram no porto de Santos, em São Paulo. Em muitos casos, a imigração foi clandestina e tinha como objetivo uma imigração definitiva para os EUA.

Muitos coreanos acabaram se estabelecendo no Brasil, principalmente nas grandes cidades e se estabelecendo economicamente no ramo de comércio e confecções. A presença coreana neste ramo é significativa, existindo dados da prefeitura de São Paulo de que cerca de um terço das peças de moda feminina produzidas no Brasil têm como origem as confecções coreanas, estando mais de 70% da comunidade envolvida com o ramo. Também segundo a prefeitura de São Paulo, estima-se que existam mais de mil confecções coreanas no bairro do Bom Retiro e outras 800 no bairro do Brás.[13] Em termos absolutos, supõe-se que cerca de 100 mil coreanos e descendentes estejam vivendo no Brasil, grande parte deles na cidade de São Paulo.[14]

3. Templos Budistas Chineses e Coreanos no Brasil

3.1 Budismo e Diáspora Chinesa

A história do Budismo chinês mostra uma grande influência do Taoísmo e do Confucionismo, além de inúmeras tradições populares, em um ambiente no qual a convivência religiosa múltipla é um fenômeno comum. Outra característica importante é a presença de uma religiosidade de tipo familiar, muitas vezes independente da presença em cerimônias ou visitas freqüentes a templos, sendo de cunho não congregacionista[15]

A diáspora chinesa moderna ocorreu principalmente depois da Guerra Civil Chinesa (1945-1949), que culminou com a fundação da China Nacionalista (Taiwan). Fruto de conflitos na terra natal, essa diáspora resultou em um esforço de ressignificação étnica, com uma conseqüente abertura religiosa. Para os "templos da diáspora" é necessário estabelecer uma nova interpretação da religiosidade chinesa, de acordo com realidade local. Com o passar das gerações, torna-se necessário um processo de tradução cultural e religiosa para a continuação dos grupos, quer seja através de convertidos nativos, quer através dos descendentes.

Nesse sentido, entre os templos budistas chineses pode-se fazer uma divisão entre os étnicos independentes, frutos de iniciativa local e mais centrados na comunidade imigrante, e os já globalizados, que tem padrões pré-definidos de ressignificação étnica e de divulgação do Budismo. No caso dos grupos mais globalizados, um primeiro desafio é encontrar uma base comum para a cultura chinesa, dada a grande variedade de línguas e contextos culturais, políticos e sociais que configuram os imigrantes, desde Taiwan até a China continental e Hong Kong.[16] Outro desafio de adaptação surge a partir do caráter global da imigração chinesa, que implica em um reposicionamento de sua herança cultural e de seus conceitos religiosos em um contexto de diáspora.

3.2 Templos Étnicos Locais

Em 1964 foi fundado o primeiro templo chinês no Brasil, o templo Mituo Amitabha da escola Sukhavati, que teve a liderança do Ven. Chi Ming por mais de 30 anos. As principais cerimônias do templo são direcionadas a recitações e práticas do Terra Pura. Depois da morte do monge pioneiro Chi Ming, o templo ficou durante certo tempo sem um monge responsável, situação revertida há alguns anos. Cerca de 60 a 70 pessoas freqüentam o templo; em dias de grandes cerimônias esse número varia entre 100 e 200 pessoas. Nos domingos acontecem cerimônias de recitação de sutras e, uma vez por mês, é realizada uma cerimônia especial de arrependimento e purificação. Nos sábados foram iniciadas sessões de prática de meditação, freqüentadas principalmente para brasileiros, mas ainda existem poucos adeptos.

A partir de meados dos anos 80 começaram a surgir novos templos budistas chineses no Brasil, muitas vezes organizando iniciativas já existentes. Em 1984 foi inaugurado o provisório templo Kwan Yin no bairro da Liberdade, enquanto era iniciado o projeto de um templo e centro cultural chinês maior. Em 1987 foi iniciada a grandiosa construção do tradicional templo Kwan Yin em Santo Amaro (São Paulo), que foi concluído em 1994 e é certamente um dos maiores templos budistas do Brasil, com dois pavilhões principais no qual são praticados o Taoísmo e o Budismo. De caráter fortemente étnico, o Kwan Yin apresenta uma interação bastante pequena com a sociedade brasileira - um número muito reduzido de brasileiros freqüenta o templo.

Em 1993, o templo Tzong Kwan foi aberto pelo mestre chinês Pu Hsien, tendo suas atividades de meditação já atraído alguns brasileiros. Uma das preocupações do templo é o vegetarianismo e a associação da saúde com a alimentação correta e o jejum. O templo no Brasil foi construído com os recursos vindos da comunidade local e de Taiwan, existindo outros templos no Paraguai e na Argentina. O templo funciona, também, como centro cultural, com meditação aos sábados e almoços e cerimônias aos domingos, além de atividades paralelas como cursos de ikebana, culinária e chinês.

Atualmente, como fruto de iniciativa regional, também pode ser citada a construção de um templo budista, como conseqüência da união das comunidades chinesas da região de Foz do Iguaçu, no estado do Paraná. O templo, que reúne chineses do Brasil, Argentina e Paraguai, é administrado pela Ordem Budista Internacional (Orbi), sendo necessário uma pesquisa de campo mais detalhada para investigar até que ponto o Budismo é ali praticado como uma religião étnica.

3.3 Organizações Globalizadas

Em contraste com grupos de alcance mais local, fruto da organização das comunidades étnicas no Brasil, existem movimentos chineses no Brasil que decorrem de uma organização mais globalizada, existindo freqüentes contatos com suas representações internacionais. Entre elas, pode-se citar o escritório brasileiro do movimento mundial Tsu Chi, que se dedica principalmente a visitas médicas e assistenciais e a doação de equipamentos e outros insumos para hospitais.[17] Apesar de ser um movimento global, no Brasil o Tsu Chi é relativamente pequeno e tem se dedicado mais ao aspecto assistencial, sendo sua atuação religiosa bastante limitada.

Dentre as organizações globalizadas, a Fo Guang Shan é a que tem buscado e conseguido maior penetração entre os brasileiros:[18] o movimento tem planos ambiciosos e uma relevante presença na mídia. A história da Fo Guang Shan no Brasil começa em 1992, a partir de uma doação do empresário Chang Shen Kai. Fundada pelo Ven. Hsing Yün, a Fo Guang Shan representa o chamado Budismo Humanístico, que pretende ser a síntese de diferentes ramificações budistas, baseando-se fortemente na corrente Mahayana e em uma prática que combina elementos do Ch’an e da Terra Pura. A partir do final dos anos 80, a Fo Guang Shan expandiu-se de maneira rápida em todos os continentes, tendo se desenvolvido principalmente nos países que tiveram um maior número de imigrantes chineses. Hoje, pode ser considerada uma das maiores e mais bem organizadas ordens não só do Budismo chinês, mas do Budismo em geral, tendo se expandido de um número muito pequeno de centros no Exterior para quase cem.[19] Segundo dados oficiais da Fo Guang Shan de 1997, existem 95 templos fora de Taiwan e, destes, 27 estão na Ásia, 13 na Oceania, 19 na Europa, sete na África, 24 na América do Norte (dos quais 19 nos EUA) e cinco na América Latina[20]. A iniciativa na África é pioneira, dado a pouca familiaridade do continente africano com o Budismo, mas ainda existem muitas dificuldades de adaptação e sustentação econômica.[21] De forma geral, Chandler mostra, a partir de dados como o número de adeptos, ocupação geográfica dos monges e também a partir de dados financeiros, que essa aparente internacionalização da Fo Guang Shan é menor do que mostra o número de templos, estando fortemente associada à dispersão chinesa no mundo e ainda se conservando etnicamente ligada à cultura chinesa.[22]

No Brasil, a ordem possui algumas centenas de adeptos em instalações em Cotia, São Paulo, no Rio de Janeiro e em Recife. Em tempos mais recentes, a Fo Guang Shan do Brasil finalizou a construção de uma grande sede na cidade de Cotia. O custo do templo foi estimado em US$ 4 milhões, 37,5% dos quais vieram de um negociante chinês-brasileiro e o resto da organização Fo Guang Shan Internacional. Com esse templo, a ordem conseguiu no Brasil algo comparado com as estruturas grandiosas dos templos Hsi Lai (Los Angeles), Nan Tien (Wollongong, Austrália), e Nan Hua Temple (Bronkhorstspruit, África do Sul), que se tornaram importantes pontos locais e atrações turísticas. Contendo um colégio monástico, o templo em Cotia é entendido como um importante passo para o estabelecimento de uma sangha (comunidade budista) independente no Brasil.

Dado esse investimento financeiro, a Fo Guang Shan tem buscado viabilizar uma maior interação com a sociedade brasileira. De fato, em caso semelhante ao que relata o Ven. Hui Li na África do Sul,[23] ainda está em aberto se essa iniciativa corresponde a uma demanda real. A priori não parece existir, no Brasil, um volume significativo de interessados em formação monástica ou especializada em Budismo.

Por outro lado, a busca de adaptação na Fo Guang Shan decorre de um pedido dos próprios chineses que freqüentam o templo, já que muitos têm a consciência de que o futuro deles está no Brasil e muitos descendentes já não dominam o chinês.[24] Para os brasileiros, o Budismo chinês traz associações que encontram um público específico, como a medicina chinesa (por exemplo, a acupuntura), práticas de origem taoísta, Tai-Chi-Chuan e uma preocupação alimentar mais acentuada (vegetarianismo ou jejum). No contexto ecumênico, atividades intra-budistas também têm sido um foco de atuação da Fo Guang Shan, em correspondência com a visão do Budismo humanístico. Dado o fato de que existe somente uma organização de escolas budistas no Brasil, a Federação das Seitas Budistas do Brasil, que inclui somente as escolas mais tradicionais do Budismo japonês, é de se esperar que as iniciativas da Fo Guang Shan encontrem uma grande receptividade.

No contexto de uma inserção mais geral, podem ser destacadas adaptações de comemorações como Natal, festas juninas e a utilização do folclore e canções brasileiras, buscando penetração em camadas mais populares. Em termos organizacionais, através da separação entre atividades monásticas e laicas, a existência da BLIA já reflete um importante esforço de adaptação.[25] Além disso, uma ressignificação de elementos como bodhisattva e Terra Pura podem ser importantes para uma interação entre a comunidade étnica e a sociedade majoritária brasileira, que tem uma carência social tão destacada. No caso da Fo Guang Shan, a ênfase em atividades de caridade tem sua fonte em uma reinterpretação ocidentalizada da Terra Pura, a partir da interação de elementos míticos budistas com uma concepção mais secularizada e orientada para esse mundo. O resultado é o esforço pelo "estabelecimento da Terra Pura nesta terra", conceitos que também moldam o Budismo humanístico da Fo Guang Shan.

3.4 A Pequena Comunidade Budista Coreana

Dado o expressivo número de imigrantes coreanos, é importante buscar responder porque o Budismo coreano no Brasil é praticamente inexistente. Em um dos poucos estudos sobre a comunidade coreana no Brasil, Choi apontou o papel central da igreja protestante para a comunidade coreana, não só como centro de convivência social e étnica, mas também no auxílio financeiro e psicológico aos novos imigrantes que chegavam, muitos deles clandestinos.[26] Apesar de ter existido uma leva de imigrantes coreanos católicos em 1965, a maior parte dos imigrantes coreanos era de protestantes ou de indivíduos que se converteram ou Protestantismo. Atualmente, o Protestantismo coreano está organizado em várias igrejas independentes no Brasil, em decorrência de divisões e conflitos na comunidade. Mesmo assim, as igrejas se mantém como o principal local de reunião da comunidade.

Devido à rápida orientação social das igrejas cristãs, a presença do Budismo coreano no Brasil é bastante pequena. Muitos budistas se converteram ao Cristianismo nos primeiros anos de estada no Brasil, tendo sido desestimulada a organização de templos budistas.[27] A igreja era o centro comunitário principal, assumindo um papel análogo ao exercido pela escola no caso da imigração japonesa.

Somente em 1983 foi fundado uma filial brasileira do templo Kwan Um, a partir dos esforços de um monge coreano que vivia nos EUA, mas esse templo foi fechado em 1988. Muitos dos fiéis remanescentes desse templo se associaram ao templo Jin Gak Sa, fundado em 1984 e que esteve temporariamente associado à ordem Chogye na Coréia. Esse parece ser o único templo coreano no Brasil, tendo se desenvolvido principalmente como um centro de cultura étnica. As cerimônias dominicais estão centradas na recitação e em atividades para a comunidade coreanal, apesar de existirem intenções de abrir atividades de meditação para brasileiros. Entre 150 e 200 pessoas freqüentam o templo, praticamente todos coreanos ou descendentes.

Depois da presença de monges temporários, o templo Jin Gak Sa tem atualmente um monge permanente, chamado Ven. Sung Hwan. Além de buscar atrair os convertidos ao Protestantismo, o templo tem buscado organizar atividades para jovens e para brasileiros interessados em meditação. Muitos reconvertidos que se interessam novamente pelo Budismo são imigrantes mais velhos, que valorizam a forte influência confucionista da cultura coreana, mais disseminada entre os budistas. Esses imigrantes mais tradicionais, no entanto, são um número que se reduz rapidamente com o passar das gerações, enquanto muitos integrantes das novas gerações são educados em contato com as igrejas coreanas e com as escolas por elas oferecidas.

4. Comparação dos Processos de Aculturação do Budismo Étnico

Do ponto de vista geográfico, tanto a comunidade japonesa quanto as comunidades chinesa e coreana se encontram concentradas na região Sudeste do país. Os processos de aculturação, no entanto, se diferenciam por razões históricas, doutrinais e organizacionais. Esse item final busca esboçar algumas semelhanças e diferenças nos processos de adaptação do Budismo étnico nikkei, chinês e coreano no Brasil. Dessa forma estaremos buscando atingir um dos principais objetivos de uma ciência comparada das religiões, que é a formulação de generalizações analíticas através da comparação de processos que podem ser relacionados mas que são diferentes.

Historicamente, uma comparação entre a imigração japonesa e a chegada de imigrantes chineses e coreanos mostra que existem diferenças significativas entre esses processos de adaptação, principalmente no que tange ao Budismo. No que diz respeito à relação com a sociedade brasileira, existe uma história mais conflituosa da imigração japonesa, fruto das tensões da Segunda Guerra Mundial e da formação nacionalista da maior parte desses imigrantes. Isso não ocorre com os chineses ou coreanos e seus descendentes, participantes de uma imigração mais recente decorrente de conflitos em sua terra natal e que estão inseridos em um mundo mais globalizado. Essa diferente interação social produz uma diferente consciência de grupo étnico e integração. No caso coreano, devido à assistência fornecida aos imigrantes recém-chegados, muitos abandonaram as práticas budistas e se reuniram nas igrejas cristãs. No caso dos chineses, esse é um fator que explica o fato de os templos se mostrarem mais decididos a abertura étnica, na comparação com os templos japoneses.

Em relação à prática budista, escolas que são relativamente distintas no caso do Japão compartilham o mesmo espaço no caso chinês e coreano, sendo as principais as que priorizam a meditação (chinês: Ch'an, coreano: S'on) e as escolas da Terra Pura (chinês: Ching-t'u), baseadas na devoção e na recitação de sutras. Ainda que a meditação esteja mais associado à prática monástica, nos templos chineses podem ser encontrados simultaneamente elementos das escolas da Terra Pura, Ch'an e Tien'tai, tanto em termos históricos como na prática atual.[28]

No caso do Ch'an/S'on, ainda que existam diferentes conceitos e associações culturais, a maior parte dos interessados brasileiros é introduzida na meditação através do rótulo Zen, uma palavra japonesa já comum no português. Isso revela um grau de ambigüidade que pode ser entendido como uma estratégia de adaptação, aproveitando o discurso internacional sobre o Zen, que penetrou principalmente na classe média e intelectual brasileira e fez com que fosse visto como uma alternativa de prática espiritual ou como uma filosofia de vida.

No caso das práticas relacionadas à Terra Pura, diversas razões apontam para seu confinamento no grupo imigrante. Enquanto a prática do Ch’an é baseada na meditação silenciosa e em conversas sobre o dharma, os ritos da Terra Pura estão bastante associados à entoação de sutras e ao culto a imagens tipicamente orientais. Como a língua e as imagens são desconhecidas, essas práticas acabam naturalmente se associando mais ao aspecto étnico e a um mundo simbólico identificado com uma estética própria, muito diferente do tradicional imaginário devocional brasileiro, relacionado principalmente a devoções católicas.[29]

Apesar de presente há várias décadas no Brasil, um confinamento étnico das práticas do Terra Pura japonês é bastante perceptível. Esse parece ser um fator doutrinal importante para a dificuldade de difusão dos templos amidistas japoneses, que ainda estão estritamente associados ao culto aos antepassados, dado que, nesse caso, meditação e devoção são opções exclusivas. No caso de algumas escolas do Budismo chinês, através de uma visão secularizada da Terra Pura e de sua aplicação na assistência social, é buscada a integração da comunidade chinesa dentro da sociedade brasileira.

Em termos organizacionais, embora a comunidade chinesa se apresente etnicamente e culturalmente diversificada, grupos religiosos buscam cumprir um papel integrador na construção de uma identidade em diáspora. Considerando o caso chinês, é possível ressaltar que um grupo com uma estrutura globalizada já oferece padrões de reinterpretação do Budismo de acordo com conceitos ocidentais. De forma semelhante aos novos movimentos budistas japoneses, organizações globalizadas do Budismo chinês têm buscado uma organização menos etnicamente orientada, especialmente na formação de monges ou professores do dharma. De qualquer forma, os templos chineses e coreanos, quer sejam fruto de iniciativa local, quer como representantes de grupos mais globalizados, não se apresentam como sede de nenhuma missão, como ainda acontece no caso de vários templos budistas nikkeis.

Bibliografia

CHANDLER, Stuart. 1998. "Chinese Buddhism in America: Identity and Practice". In PREBISH, Charles; TANAKA, Kenneth (eds.). The Faces of Buddhist America. Berkeley: University of California Press, 13-30.

________. 2002. "Globalizing Chinese Culture, Localizing Buddhist Teachings: the Internationalization of Foguangshan". In Journal of Global Buddhism, Vol. 3, 46-78, http://www.globalbuddhism.org/3/chandler0201.htm, accessed on 10.01.2003.

CHING, Julia. Chinese Religions. 1993. Chinese Religions. Houndmills, Basingstoke, Hampshire and London: Macmillan Press.

CHOI, Keum Joa. 1991. Além do Arco-Íris: A Imigração Coreana no Brasil. Dissertação de Mestrado, Departamento de História Social, Universidade de São Paulo.

HUI, Juan Hung. 1992. Chinos en América. Bilbao: Editorial Mapfre.

JIKIDO, Takasaki. 1994. "A History of East Asian Buddhist Thought: The Formation of a Sphere of Chinese-Canon-Based Buddhism". In Acta Asiatica, Bulletin of the Institute of Eastern Culture - 66 - Buddhism in East Asia, 1-32.

LEITE, José Roberto Teixeira. 1999. A China no Brasil. Campinas: Editora Unicamp.

LESSER, Jeffrey. 2000. A negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp.

LI, Master Hui. 1999. "Fo Kuang Shan in Africa: Heritage and Future Plans". In Clasquin, Michel e Krüger, J. S. Buddhism and Africa. Pretoria: University of South Africa, 55-66.

MIN, Pyong Gap. 2002. "A Literature Review with a Focus on Major Themes". In Min, Pyong Gap; Kim, Jung Ha. Religions in Asian America: Building Faith Communities. Walnut Creek: Altamira Press, 15-36.

SEAGER, Richard. 1999. Buddhism in America. Nova Iorque: Columbia University Press.

SHOJI, Rafael. 2000. "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fo Kuang Shan". In Usarski, Frank. Budismo no Brasil. São Paulo: Lorosae, 125-150.

STARK, Rodney. 1996. "Why Religious Movements Suceed or Fail: A Revised General Model". In Journal of Contemporary Religion, Vol. 11, No. 2, 133-146.

YANG(1), Alexander. 1995a. "A Cultura do Chá no Brasil". In China em Estudo, Ano 2, No. 2, 41-47.

________. 1995b. "O Budismo entre os Chineses no Brasil". In China em Estudo, Ano 2, No. 2, 49-57.

YANG(2), Fenggang. 2002. "Religious Diversity among the Chinese in America". In Min, Pyong Gap; Kim, Jung Ha. Religions in Asian America: Building Faith Communities. Walnut Creek: Altamira Press, 71-98.

Notas

[*] Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP, Doutor de Filosofia (Dr. Phil.) especializado na área de Ciência da Religião (Religionswissenschaft) pela Universidade de Hannover, Alemanha. O autor é grato a Rodrigo Wolff Apolloni pela revisão e comentários.

[1] Cf. Leite: 1999.

[2] Especificamente sobre a cultura de chá, pode-se consultar Yang (1) 1995.

[3] Para mais detalhes sobre a imigração chinesa no Brasil no século XIX, consultar Lesser 2000: 37-69 e Leite 1999: 111-124. Para um resumo pode-se, ainda, consultar Hui 1992: 126-131.

[4] Cf. Lesser 2000: 58.

[5] Ibid. 58-68.

[6] Cf. Leite 1999: 123-124, Lesser 2000: 70.

[7] Sobre as chamadas "joss houses", como eram chamadas os santuários chineses que combinavam elementos taoístas, populares e budistas, e que proliferaram nos EUA no final do século XIX - e que podem ter existido no Brasil -, ver Yang (2) 2002 e Chandler 2002:48-49.

[8] Censo citado em Hui 1992: 144. O censo citado é o Anuário da Economia dos Chineses no Exterior, Comitê Mundial de Comércio e Negócios dos Chineses de Ultramar, Taipei, Taiwan, 1988, pp 491-494 (em chinês). Foi publicado em inglês como Overseas Chinese Economy Year Book, Editorial Committee, Taipei, Taiwan, 1988.

[9] Em complemento a esses dados, estima-se que 5.000 famílias estejam vivendo em Curitiba, no estado do Paraná, chegadas principalmente a partir de 1998

[10] Cf. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, C4, 23/7/2000. Tem existido um fluxo de volta à China, dado o boom econômico e as novas oportunidades da região.

[11] Idem.

[12] Cf. Choi 1991: 28.

[13] Cf. http://milpovos.prefeitura.sp.gov.br, accessado em 5.8.2003.

[14] Cf. Lesser 2000: 295.

[15] Para uma apresentação da influência da participação e organização na religiosidade étnica dos asiáticos nos EUA, que vai desde uma prática fora de instituições até centros independentes e organizações transnacionais, ver Min 2002: 15-18, 27-29.

[16] Sobre dados da diversidade da população chinesa nos EUA, ver Yang (2) 2002: 74-76. No Brasil não existem dados quantitativos muito precisos sobre a variedade interna da comunidade chinesa. Apesar disso, segundo o lugar de procedência, podem ser distinguidos três grupos de origem geográfica e dois grupos de ocupação econômica: os de Shangai, dedicados à indústria e ao comércio exterior e os de Taiwan e Kuangtung, dedicados principalmente a restaurantes. Cf. Hui 1992: 144. Em relação à origem geográfica, um quarto grupo, bastante pequeno, é formado por chineses que imigraram de Moçambique, de onde foram expulsos pelo governo comunista por volta de 1976.

[17] A fundação Tsu Chi foi fundada em 1966 pelo Ven. Cheng Yen e seguidores, tendo um enfoque baseado em doações e caridade. Para uma breve descrição de suas atividades nos EUA, consultar Seager 1999: 162, Chandler 1998.

[18] Para maiores detalhes sobre as estratégias de adaptação da Fo Guang Shan no Brasil, ver Shoji 2000.

[19] Chandler 2002: 51.

[20] Cf. Ibid: 51-52.

[21] Cf. Li 1999.

[22] Cf. Chandler 2002: 54-55

[23] Cf. Li 1999.

[24] De fato, muitos templos chineses distribuem as brochuras da Fo Guan Shan, por não terem escritos próprios traduzidos.

[25] A BLIA (Buddha’s Light, "Luz do Buda") é a comunidade de leigos da Fo Guang Shan, fundada em 1992 pelo Ven. Hsing Yün. Atividades típicas da BLIA são a realização de cursos, sessões de meditação, divulgação da cultura chinesa e realização de assistência social. Os centros da BLIA são divididos em capítulos locais e regionais, dependendo da sua importância e do número de adeptos. Semelhante divisão existe em diversos grupos religiosos orientais, ainda que com uma variedade de outros fatores que tem como conseqüência graus variados de independência e até de posterior separação. Como exemplo desses grupos citaríamos, só como exemplo, a Missão Ramakrishna e as Sociedades Vedanta e a Nichiren Sôshu e a Sôka Gakkai.

[26] Choi 1991: 158.

[27] Idem: 175. Essa constatação foi também revelada em entrevistas realizadas no templo Jin Gak Sa.

[28] Para observações históricas sobre sincretismo e mútua influência entre o Ch'an e Terra Pura na formação do cânone chinês, ver Jikido, 1994. Sobre a tendência sincrética nas religiões japonesas, ver Ching 1993: 205ff. Para uma descrição da diversidade religiosa entre os imigrantes chineses para os EUA, ver Yang (2) 2002 e Chandler 1998.

[29] Por outro lado, no outro extremo dessa tensão, uma proximidade muito grande dos conceitos da Terra Pura com o imaginário cristão é freqüentemente rejeitada pelos budistas brasileiros. Adaptando Stark 1996, para que o aspecto devocional no Budismo da Terra Pura se desenvolva, parece ser necessário minimamente: 1) uma conservação do capital cultural, resultado de uma socialização e educação no Brasil; e 2) uma tensão média (mas não étnica) com relação às devoções cristãs. Mais estudos sobre a interpretação brasileira das devoções budistas, incluindo o Budismo tibetano, são necessários para uma compreensão mais detalhada da validade dessa hipótese.