Os Mortos estão Vivos: traços da religiosidade brasileira

Maria Angela Vilhena[*] []

Resumo

Este artigo objetiva chamar atenção para a importância de novos estudos a partir dos referenciais das Ciências da Religião sobre o imaginário da morte e das relações entre vivos e mortos que nele se abriga. Considera-se aqui que, neste imaginário polissêmico, encontram-se traços que permitem uma compreensão mais ampla da religiosidade brasileira. Este estudo, centrado em uma forma específica do culto aos mortos na cidade de São Paulo, se propõe discutir a circularidade de incidências entre suas tradições e ritos com os objetos sociais e a vida na metrópole.

Abstract

The study of the multifarious imaginary of death is not only fundamental for the research in terms of Comparative Religion in general but can contribute to a more profound understanding of the religiousness of Brazilian people in particular. Referring to author’s fieldworks in Sao Paulo, the article relates specific customs and rites in dealing with death to the overall social surroundings in this Brazilian city.

1. Introdução

Ao longo do tempo e nas diferentes culturas, a morte e suas implicações têm se constituído como um dos grandes fatores de questionamento da humanidade. Esse questionamento implica na elaboração de vários sistemas explicativos, conjuntos de representações e práticas rituais.

A morte, com suas explicações e representações, precisa ser estudada, posto que se constitui como uma das dimensões significativas da vida pessoal e coletiva. Entendemos que a morte é um fenômeno social total,[1] totalizante e totalizador, posto que açambarca e incide em todas as dimensões da vida humana e em todas as instituições sociais. Como fenômeno biológico, refere-se aos processos de cessação e aniquilamento da vida corpórea. Envolve com freqüência dor física ou desconforto, não raro acompanhados pela dor moral proveniente da percepção da finalização da vida, da dependência física, das manipulações do corpo, de inevitáveis separações, de medos e culpas. É um acontecimento social capaz de aglutinar ou dispersar pessoas, fortalecer ou dissolver vínculos familiares e sociais, promover a solidariedade entre os sobreviventes e a competitividade pelos bens econômicos que por ventura tenham pertencido ao falecido.

O vazio deixado pelo morto vincula a redistribuição e o rearranjo das responsabilidades, cargos, papéis e funções tanto familiares quanto sociais e econômicas. Esse vazio promove nas famílias, empresas e instituições o surgimento de lideranças, protagonismos, distribuição de bens móveis e imóveis. A morte exige e incide sobre sistemas de leis, regulamentos, normas de conduta, criação, organização e distribuição de espaços urbanos destinados a inumações. Ela instaura uma nova relação de perda-custo-benefício no plano social, político e econômico.

No geral, a morte traz a sensação de perda irreversível, de ausência irremediável. Com ela ocorre uma fratura, uma quebra, uma cisão. A morte coloca a questão do nunca mais . Alguém se foi para sempre, o mundo mudou. Fraturas, perdas, fim de um mundo conhecido costumam ser dolorosos, trazem desequilíbrios, insegurança. A irreversibilidade da morte coloca a dimensão da finitude e finalidade da vida, suscitando indagações profundas àcerca da natureza e do agir humanos, da transcendência e do Transcendente. Aqui se alocam em ebulição racionalidades, especulações, imaginações, criatividades, emoções, memórias, valores, utopias e desejos, ensejando narrativas, crenças, práticas, rituais eficientes a ponto de permitir aos vivos criar, reorganizar ou, ainda, conservar seus mundos de sentido, de relações e atribuições. A partir da realidade da morte o ser humano se constitui em hermeneuta da vida histórica e em especulador da realidade, das dimensões e particularidades do Além, onde outro tipo de vida poderia vir a ocorrer. Julgando-se sabedor de ambas as realidades, o sujeito se constitui, também, em legislador das relações entre ambas, prescrevendo, normatizando, proibindo, incentivando crenças e práticas entre vivos e mortos.

A hermenêutica, tanto da vida quanto da morte, é mediada pela trama dialógica entre subjetividades, pela concretude das relações sociais cujas possibilidades se alocam entre referenciais provenientes das várias formações culturais. Estas são necessariamente aqui entendidas em sua processualidade histórica e dialeticidade interna, potencializadas pelo movimento das trocas no interior e entre as culturas.

O binômio vida-morte , com suas grandes implicações e decisivas questões, constitui-se em interrogante não apenas para os hermeneutas individuais e coletivos, mas é co-natural e extensivo a um conjunto de ciências que engloba, entre outras, a Cosmologia, Física, Biologia, Filosofia, Antropologia, Sociologia, Economia, Política e Teologia. Se, a seu modo, cada uma delas oferece suas respostas, no concerto das ciências são criados novos paradigmas, novas chaves de leitura, aos quais as pessoas têm acesso diferenciado e seletivo.

Assim, a morte é a morte mais suas representações, ou seja, sua apresentação significada às consciências através de imagens mentais intelectuais e afetivas, elaboradas culturalmente com materiais pré-existentes, considerando-se que esses materiais não se encontram nunca petrificados, estando sujeitos a alterações provenientes de sucessivas e diferentes apropriações e moldagens.

Contemplam-se, aqui, os imaginários da morte como traduções históricas e representações culturais deste fenômeno universal, forjados em articulações com materiais imagéticos disponíveis no coletivo. Ou seja, a morte é a morte mais os complexos sistemas simbólicos, imagens intelectuais e afetivas que a traduzem interpretando a realidade objetiva do morrer, apreendida pelas realidades internas aos sujeitos, nas quais se localizam emoções e pensamentos, historicizando sentimentos profundos do substrato psicológico de longuíssima duração. Vale ressaltar que, sendo subjetivas as realidades internas aos sujeitos, não são menos objetivas, ou tão somente individuais, posto que se alimentam de interpretações e manifestações culturais que são constantemente criadas e recriadas pelo conjunto da sociedade. Mas não apenas isso. A morte é universal, mas suas manifestações e interpretações são culturais, indissociáveis, portanto, dos multifacetados trabalhos da memória, dos conjuntos de valores e práticas sociais, dos rituais que podem ter caráter religioso, civil, familiar, grupal ou político.

Este trabalho versa sobre o imaginário das relações entre vivos e mortos tal como pode ser observado em narrativas e práticas ritualísticas muito específicas, através das quais um grupo singular de pessoas se apercebe capaz de estabelecer relações com os mortos. Trata-se, pois, de compreender não tanto a morte em si, mas as maneiras pelas quais ela é interpretada por um conjunto de pessoas que julgo ser representativo, portador e partícipe do imaginário de considerável parcela da população brasileira.

2. Lugares de devoção

Para quase totalidade do povo brasileiro a morte biológica não equivale ao encerramento da existência do ser humano. Este, de alguma forma, sobrevive a ela. Para tal compreensão concorrem, em dinamicidade, contribuições oriundas das diversas nações indígenas, do Cristianismo e suas raízes judaicas, de antigas tradições do paganismo europeu, das tradições africanas, do Espiritismo. Com várias acentuações, as crenças sobre a realidade da comunicação e interação entre vivos e mortos são muito freqüentes. No bojo dessas crenças, encontram-se aquelas que identificam a presença de almas e espíritos vagando em lugares onde ocorreram mortes violentas ou que foram marcados por intenso sofrimento ou, ainda, onde ocorreram sepultamentos.[2]

Acreditava-se, e ainda se acredita, que estes lugares têm a potencialidade de imantar, aglutinar almas sofredoras e aflitas por se encontrarem perdidas, desencaminhas, sem luz - são as chamadas almas penadas. Tem-se como certo que muitas almas estão nessa situação porque seguem inconformadas com as violências que sofreram em vida e por ocasião de sua morte, ou porque morreram sem sacramentos ou, ainda, porque seus parentes e amigos delas se esqueceram e deixaram de cumprir os rituais necessários para seu descanso e iluminação . A presença desses espíritos impregna os lugares com aflição, dor e revolta que sentiram e ainda sentem. Na visão de muitos daqueles que praticam o culto às almas, quer antigos ou contemporâneos, tais sentimentos são transmitidos e afetam as pessoas que passam por esses lugares. São eles tidos como perigosos e causadores, nos vivos, de sentimentos de aflição, medo e terror; são tidos, também, como fascinantes pelo mistério que encerram. Por isso, estes lugares são diferentes de todos os outros. Inspiram temor, reverência, cuidados, orações, cultos.

Nossas pesquisas sobre o imaginário da morte aconteceram em dois desses lugares, localizados na área mais central de São Paulo: a Capela Nossa Senhora dos Aflitos e a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados. Vejamos brevemente seus históricos:

A Capela Nossa Senhora dos Aflitos está localizada na Rua da Glória, no ponto central do que havia sido, no final do século XVIII, o primeiro cemitério planejado e construído em espaços apartados das igrejas. Conforme ordenações eclesiásticas, até esse período todos os sepultamentos deveriam acontecer nos interiores e adros das igrejas. Como na época tais espaços já estavam superlotados, em 1775 o bispo Dom Frei Manuel da Ressurreição mandou construir esse cemitério, destinado a recolher os despojos de indigentes, escravos, sentenciados e supliciados. O nome do orago alude à necessidade de proteção divina para essas pessoas que, em vida e por ocasião de suas mortes, enfrentaram sofrimentos e aflições próprias de seus estados de pobreza e exclusão social.

A igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados tem sua origem ligada à antiga forca erigida em 1821, a mando da Câmara Municipal, no então Largo da Forca, hoje Largo da Liberdade. Muitos escravos fugitivos, negros, índios, mulatos, bastardos, rebeldes e infratores pobres foram ali supliciados. Dentre os que ali foram enforcados a memória popular guardou um caso exemplar. Trata-se do enforcamento de Chaguinhas, acontecido aos 20 de setembro de 1821. Chaguinhas era o apelido pelo qual era conhecido Francisco José das Chagas, morador da rua das Flores e que então servia como soldado no Primeiro Batalhão dos Caçadores, assentado em Santos. Pois bem: em junho deste mesmo ano este batalhão se insurgiu contra o comando português pelo fato de seus soldados terem seus soldos atrasados em quase cinco anos. Tal insurreição resultou em saques, soltura de presos e assassinatos de autoridades portuguesas que haviam perseguido os brasileiros na caserna. Quando a rebelião foi sufocada, os rebeldes foram presos e submetidos a julgamento. Diz a tradição que Chaguinhas assumiu para si todas as responsabilidades pelo ocorrido, livrando, assim, seus companheiros. Daí ter recebido a pena máxima, capital Por ocasião de seu enforcamento, conforme Feijó (testemunha ocular dos fatos), a corda de material comum partiu-se e foi substituída por uma de couro, mas este instrumento não foi capaz de sufocar o condenado com presteza, tendo este caído ainda vivo no chão e acabado de assassinar a coronhadas. Para a numerosa população que, como de costume, foi assistir ao enforcamento, a corda teria milagrosamente se partido três vezes antes de ser substituída pela de couro. Imediatamente o povo interpretou o fato como ordálio divino, sinal da inocência de Chaguinhas.

Por ter chamado sobre si culpas que não lhe cabiam, pagando com sua vida pelas infrações cometidas por outros, livrando-os assim da morte certa, Chaguinhas é visto pelo povo como herói, vítima e mártir inocente que morre em nome de uma causa justa comum a outros paulistanos que ansiavam pela liberdade frente à Coroa Portuguesa. Nessa condição é constituído em santo protetor milagroso, de muita valência, que jamais deixa de atender aos pedidos daqueles que dele necessitam. Aquele a que a tantos salvou continua a salvar concedendo graças a outros tantos desprovidos de proteção. Quase dois séculos após sua morte, seus devotos, como ele pessoas simples, não cessam de reverenciar sua memória, suplicar seu auxílio e agradecer suas benesses. Assim, a partir de um fato histórico, jurídico e político, é gestado pelo povo o mito Chaguinhas , que interpreta, narra, dramatiza, santifica e comunica a saga do herói popular.

O caráter vitimário de sua morte, aliado ao de tantos mortos por enforcamento, desperta a solidariedade popular no sentido de propiciar às almas desses condenados alguma forma de redenção, libertação e paz. Essas almas, como aconteceu com a de Chaguinhas são sempre agradecidas àqueles que oraram por seu descanso no Além. Elas manifestam, sob a forma de proteção especial, sua gratidão. Cristián Parker, a partir de suas observações junto à uma comunidade de Santiago do Chile afirma que a crença popular no poder mediador da ‘alma’ daqueles que morreram tragicamente é tão forte que ultrapassa das barreiras institucionais, políticas e sociais[3]. De sua colocação podemos inferir a extensão de tal devoção; por outro lado, ela nos servirá como referência quando, mais abaixo, analisarmos a procedência religiosa dos devotos das almas.

3. Devoções e rituais: sua incidência na paisagem urbana

Desde o século XVIII, no lugar da antiga forca e no cemitério dos Aflitos, acontece o culto às almas desencaminhadas, inconformadas e aflitas que, quando vivas em corpo, tanto sofreram pelas agruras da vida, injustiças, desprezo social e por conta de suas mortes violentas. Assim, ao lado da antiga forca, o povo levantou uma cruz de madeira a que deu o nome de Santa Cruz dos Enforcados.[4] A ereção dessa cruz atendia a duas necessidades: a primeira delas era a de sinalizar aos passantes que ali aconteceram mortes violentas e que, portanto, todos deveriam se persignar e orar pelos falecidos objetivando seu conforto espiritual, dizendo-lhes palavras de incentivo para que buscassem e obtivessem a paz pedindo a misericórdia divina. Ao mesmo tempo, acreditava-se no poder da cruz de afastar o mal e, por extensão, os espíritos portadores ou causadores do mal em suas relações com os vivos.

Ao lado da cruz foi colocada uma mesa onde se acendiam velas que, conforme a tradição, nem chuvas e nem ventos conseguiam apagar. Essas velas destinavam-se a iluminar os mortos, suas consciências e seus caminhos em direção a outros planos da existência, nos quais, longe do mundo dos vivos encarnados, afastados de seus apegos e desejos de vingança, pudessem encontrar repouso. Essas iniciativas populares promovem a transformação e a ressignificação do lugar contaminado e nefasto em espaço de higienização, descontaminação, iluminação e libertação das almas sofridas que, por conta de sua condição incômoda, são muitas vezes persecutórias.[5] Estas, uma vez libertas são agradecidas e generosas, não tardando em retribuir seus benfeitores atendendo a seus pedidos e concedendo favores.

Em 1891 alguns populares erigiram no lugar do cruzeiro uma tosca capela onde os devotos passaram a se reunir para orar pelas almas e praticar rituais.[6] Essa devoção laica se expandiu e a capela precisou ser constantemente ampliada para acolher o povo. Em dado momento, estes agentes religiosos leigos sentiram a necessidade de legitimar socialmente suas crenças e, ao mesmo tempo, de atender a demandas internas por ritos oficiais. A fonte de legitimidade foi percebida pelos devotos como prerrogativa da religião instituída. Por isso, recorrem à autoridade eclesiástica capaz de concedê-la. Ela o fez mediante certas exigências prévias, capazes de lhe assegurar o controle do local, de tudo nele contido, bem como o gerenciamento dos cultos, das relações e formas de associação entre os fiéis.

Em 1895 a capela é benta e concedida provisão para celebrações na forma do ritual romano. Particularmente importante na história da edificação da atual igreja é o ano de 1921, centenário da morte de Chaguinhas, quando devotos e autoridades eclesiásticas se mobilizaram para recolher recursos destinados à construção da nova igreja, cuja pedra fundamental foi lançada em 1925.[7]

Tanto na Capela Nossa Senhora dos Aflitos como na Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados foram construídos velários. São salas destinadas exclusivamente a rituais de iluminação dos caminhos ou das consciências de almas de ou espíritos (conforme a denominação preferida por alguns devotos). Na Capela Nossa Senhora dos Aflitos há, desde sua fundação, um velário lateral com entrada independente e, atualmente, separado do corpo da igreja. Já nos Enforcados são dois velários com entradas independentes, mas conectados à igreja.

Estes velários são interpretados como lugares sagrados, plenos de mistérios, carregados de forças sobrenaturais positivas e negativas. O clima é pesado, solene, respeitoso, introspectivo, cercado de tabus e perigos. Os velários são tidos como espaços ambíguos, uma vez que, nele, estão presentes almas de todos os tipos: as aflitas, penadas, persecutórias, benditas. As paredes que separam os velários do espaço interno das igrejas são consideradas intransponíveis para as almas aflitas e carregadas . Neles, espaços puros por excelência, estão somente Deus, os anjos, os santos e as almas benditas.[8] Por isso, aos anjos e santos só se pede e agradece diante de seus altares, e nunca nos velários. Eis também porque muitas pessoas, como medida de proteção e descontaminação, entram nas igrejas antes e depois de estarem nos velários. O receio de contaminação leva alguns devotos a sair dos velários sem virar-lhes as costas: para eles, pelo menos os três primeiros passos devem ser dados de frente.

4. Quem são os devotos?

4.1. São religiosos de múltiplas preferências, sensíveis às prerrogativas das almas

Chamaremos aqui devotos àqueles que se dirigem aos velários a fim de praticarem seus rituais para as almas. Nesse conjunto, percebemos diferenciações singulares de ajustamentos, afastamentos e acentuações no que se refere a justificações e fundamentações indicativas da necessidade do culto às almas ou espíritos.

Em primeiro lugar, são devotos anônimos, populares, que, espraiados pela metrópole, se dirigem a esses centros religiosos católicos para a prática de seus cultos em favor das almas. Da mesma forma que Vovelle[9] considera que na pesquisa historiográfica em relação ao trato com a morte são essenciais os testemunhos anônimos de gestos, atitudes e palavras, aqui, também, assim os consideramos. Daí porque esses testemunhos de pessoas simples, que não têm seus nomes consignados em anais, compêndios ou na mídia, pervadirem todo o artigo. Quando indagados sobre as origens de sua devoção, nossos informantes afirmam que a aprenderam com suas mães, avós, tias ou amigos. Trata-se, portanto, de um culto de origem laica, caseira, informal, vivenciado, testemunhado, comunicado e aprendido no âmbito decisório das relações afetivo-familiares.

O culto aos mortos caracteriza-se por seu caráter individual, ou seja, os devotos não interagem, evitam troca de olhares, não conversam entre si, não formam comunidade. Nos velários prevalece o silêncio, neles não acontecem orações coletivas, cânticos ou prédicas. Tudo se passa como se as paredes negras, o fogo das velas, o trato com os mortos fossem impeditivos para relações entre os vivos. Concorre também para essa apropriação individual de um espaço de culto coletivo o fato de que os devotos lá estão para buscar soluções para problemas pessoais ou para satisfazer individualmente suas obrigações para com as almas. Dessa forma, os velários e o culto aos mortos se situam o intervalo entre o particular e o público, entre o privado e o coletivo.

A expressiva maioria dos devotos é composta por mulheres. Uma explicação plausível para o fato é que o cuidado com os mortos pode ser interpretado como extensão da tarefa feminina de proteger e cuidar da casa: filhos, pais idosos, parentes necessitados.

Quanto à faixa etária, os jovens são minoria. No geral, os devotos são pessoas maduras. Têm entre 40 e 60 anos, pouco mais, pouco menos. Estão naquela fase da vida na qual os sujeitos se apercebem responsáveis uns pelos outros e assumem essas responsabilidades. É o que se pode deduzir de tantas falas nas quais aparecem expressões como: temos dever de cuidar de nossos mortos ; temos responsabilidades para com os falecidos . Trata-se, pois, de um culto próprio da maturidade, de quando as pessoas se percebem mais sensíveis às necessidades alheias.

Em relação à classe social dos devotos, é correto admitir que a predominância se verifica entre as camadas média-baixa e média-média da população. São pessoas vestidas com simplicidade, mas que no geral têm suas roupas e calçados em bom estado. Pelo estudo dos bilhetes que deixam aos pés dos santos no interior das igrejas ou nos velários, percebe-se certo grau de escolaridade, certa familiaridade com a escrita.

Quando indagados sobre suas pertenças religiosas, a maior parte dos freqüentadores das capelas preferem se identificar como católicos, mesmo no caso de algumas trazerem guias que podem ser percebidas sob as vestimentas. Depois, como sem religião definida: assim de tudo a gente pega um pouco, seguindo o tirocínio daquela pessoa . Poucos se dizem espíritas, raramente afirmam ser umbandistas ou candomblecistas. Contudo, em suas falas percebe-se facilmente a existência de um sub-texto extremamente importante porque revelador de uma série de ambigüidades. Enquanto no discurso os informantes colocam como valor a liberdade de consciência e de culto, na prática apresentam dificuldades em assumir esta liberdade. Coloca-se assim uma questão: por que isso acontece?

Para a oclusão ou disfarce da real pertença religiosa há que se levar em conta que essas pessoas estão em um espaço religioso sabidamente católico, uma igreja católica. Estando em casa alheia, podem temer não ser bem-vindos ou bem-vistos tanto pelos legítimos proprietários do lugar quanto pelos outros devotos, cujas pertenças religiosas ignoram. Como se trata de espaço católico, propriedade da Igreja, os objetos e práticas rituais estão sob a fiscalização eclesiástica. Como disseram alguns sacerdotes dessas capelas, a maior parte dos devotos é muito supersticiosa. Esses clérigos sentem a necessidade pastoral de esclarecer as consciências, combater a superstição, ou seja, tudo o que está associado a crenças e práticas que extrapolam às do catolicismo oficial.

Entretanto, do ponto de vista dos devotos das almas que reconhecem a propriedade jurídica e física do lugar como sendo da Igreja Católica, não há reconhecimento desta como sendo exclusiva no plano espiritual. Este é o plano superior, aquele que realmente importa, sobrepondo-se indubitavelmente à posse regulamentada pelos homens ou suas instituições. Ou seja, nos velários estão presentes as almas. São elas que, através de sonhos, visões ou outras manifestações indicam aos devotos os lugares preferenciais onde se fazem presentes e onde devem ser realizados seus cultos. Sendo as almas entidades dotadas de vida própria, não são propriedade de ninguém, não estão sob o controle de nenhuma religião ou instituição. Por extensão, os lugares que escolheram para freqüentar a fim de serem cultuadas são, em última análise, lugares das almas, propriedade das almas.

Por isso, os velários são lugares diferentes de todos os demais. São lugares onde paira uma atmosfera de permanente sacralidade, que não é criada ou concedida pelos religiosos, mas pelo estatuto sagrado das almas ali presentes. A prerrogativa das almas na indicação dos lugares de culto, bem como de suas formas mais desejáveis e adequadas, ordena e legitima a presença de devotos que, embora pertencendo as várias religiões, têm em comum a sensibilidade e a adesão ao apelo das almas indicativo dos lugares onde devem e como devem ser cultuadas. É em nome do direito das almas, maior que o direito da instituição, que candomblecistas, espíritas, umbandistas e católicos sentem-se plenamente legitimados perante sua fé, de praticarem seus cultos nos velários das igrejas católicas.

Porque muitos devotos afirmam receber freqüentemente comunicações e pedidos das almas, pode-se inferir que se consideram escolhidos e depositários de revelações especiais, reivindicando, portanto, para si a atualização da revelação sagrada que, por isso, deixa de ser prerrogativa das religiões instituídas. Respeitando o direito das almas e considerando-se portadores de revelações sobrenaturais, os devotos sentem e sabem que, na vida societária e no trato inter-religioso, sofrem discriminações. Dado que se apercebem como oficiantes sacros com deveres religiosos a cumprir, frente à discriminação tratam de encobrir suas crenças para poder, assim, praticar os rituais necessários. De qualquer forma, é sinal de vitalidade religiosa que extrapola as demarcações e normatizações da Igreja Católica.

Os velários afiguram-se, pois, como espaços representativos de muitas das múltiplas ofertas religiosas presentes na metrópole. Demonstram como o povo consegue se apropriar criativamente, ainda que de maneira subterrânea, de espaços religiosos oficialmente particulares, e por isso mesmo presumivelmente unívocos, utilizando-os e ressignificando-os conforme a polifonia de suas preferências religiosas particulares.

4.2. São fiéis de sacerdotes de rua e de sacerdotes de templos

A forte (mas nem sempre assumida) presença de crenças afro-brasileiras pode ser verificada indiretamente pelo fato de que todas as semanas, na calçada em frente aos Enforcados, estão quatro baianas , todas elas negras. Duas, mais jovens, trazem nas mãos uma peneira com pipocas que oferecem aos passantes, que retribuem com donativos. No centro de cada peneira está a imagem de São Jorge, ou Ogum. Outras duas baianas , mais idosas, sentam-se à frente de mesinhas sobre as quais estão búzios para serem jogados. Em frente a cada mesinha há uma cadeira de plástico para consulentes. Seus serviços religiosos são muito requisitados, pois as cadeiras estão sempre ocupadas. Um pouco além, uma moça trajada como cigana abre cartas de tarô e faz aconselhamentos.

Desta forma, o que se vê são manifestações e práticas religiosas estranhas ao culto e à doutrina católica, ocupando, ao que parece à primeira vista muito à vontade, espaços alternativos. Se a igreja é espaço privado católico, a rua - espaço público - é apropriada por sacerdotes e sacerdotisas de outras crenças. Ali exercem algumas de suas funções religiosas, transformando o espaço público civil e secular em espaço público religioso. Neste, a liberdade religiosa corre solta , sem necessidade de máscaras e disfarces, distinguindo-se do espaço privado religioso que, estando sob a vigilância clerical, é sujeito à disciplina, ao controle de transgressões, à normatização dos cultos. Na rua, o sujeito de fé cria oportunidades para a manifestação aberta de suas preferências religiosas. Patrícia Birman, tratando do culto às almas no Rio de Janeiro - e o denominando como modo periférico de crença - observa: O culto às almas, concebido como parte do domínio da Igreja Católica, é realizado em seu espaço periférico, nas calçadas em frente às igrejas, em pequenos nichos em suas proximidades. As almas, de cuja existência ninguém duvida, não constituem para a liturgia católica objeto de culto. [10]

Como vimos, no caso específico aqui estudado esse culto não se realiza nas calçadas, mas em espaços periféricos das igrejas. A condição de periferia é dada, por um lado, pelo fato de estarem os velários desvinculados da estrutura interna das igrejas, com possibilidade de acesso independente; por outro lado, porque nesses espaços os sacerdotes católicos não realizam rituais, não os freqüentam, nem a eles se dirigem. São mais tolerados do que legitimados pela presença sacerdotal.

Sendo, portanto, as almas cultuadas no espaço periférico das igrejas, é na rua que as sacerdotisas negras apresentam-se paramentadas, portam seus adereços sem se sentirem constrangidas, atuam como anfitriãs religiosas recebendo os fiéis, distribuindo seus dons e seus símbolos aos passantes, exercendo seu ministério. Em frente à sua barraca florida o pai-de-santo atende, tranqüilo, os que solicitam sem pejo seus serviços. A maioria das pessoas que utiliza a calçada como via acesso para outras finalidades que não as religiosas passa com relativa naturalidade, olha sem demonstrar espanto ou rejeição. Alguns passantes preferem sair da calçada e andar na rua, como forma de evitar contato ou proximidade física com os umbandistas ou candomblecistas.

Em uma grande mesa-carroça estão ervas secas, plantas e folhas vivas, sementes, pomadas, ungüentos, pós, incensos e sabonetes postos à venda. Ao lado estão duas barracas de flores. Muitas rosas vermelhas e brancas são vendidas para os fiéis. A compra de tantas rosas deve-se, em parte, às obrigações ou agrados que os devotos fazem às entidades que na segunda-feira tem seu dia maior: Pomba-Gira e Exu. Outros também as compram para ofertá-las como pagamento de promessas ou simples gesto de carinho para com seus santos protetores: Santa Rita, Santo Antônio de Catigeró, entre tantos outros cujas imagens estão nos altares das igrejas dos Enforcados ou Aflitos.

Na área central da cidade de concreto essas barracas sinalizam que as relações com a natureza e suas idealizações não foram de todo substituídas ou esquecidas por muitas pessoas que residem na metrópole. Por estarem dispostas na frente da igreja e terem seus produtos recomendados pelo pai e pelas mães-de-santo fica claro que a referência religiosa preside a utilização das ervas secas, folhas vivas, sementes e pós. Tal referência religiosa coincide com situações de grande vulnerabilidade do Homem diante da e na natureza da qual participa, articulada no mais das vezes a contextos nos quais o binômio saúde-doença se apresenta. Conforme François Houtart observa: Encontraremos referências religiosas em particular onde se encontram as contradições da história humana, por exemplo, vida e morte ou bem e mal.(...) Decorre disso o papel central das representações, das significações construídas em relação com a natureza.[11]

No caso em apreço, em que está presente a referência religiosa em relação à natureza, cada enfermidade tem suas ervas curativas próprias, revelando um tipo específico de conhecimento prático. Mas também cada uma delas é associada a uma divindade, entidade, ou a seres sobrenaturais (conhecimento mítico-simbólico) dotados de força curativa, a qual pode ser acionada pela utilização correta e ritualizada através do emprego de palavras e gestos apropriados. Em ambos os casos, está presente um conhecimento acumulado, desenvolvido, conservado e transmitido ao longo de gerações. Esse processo implica em relações religiosas entre os que detém o conhecimento sobre as forças materiais e simbólicas da natureza e aqueles que dele precisam, compondo um quadro de relações e funções sociais as quais incidem em controle social, regulações e poderes.

Não longe das barracas vemos placas anunciando serviços médicos, farmácias com seus antibióticos, produtos químicos, bulas, receituários relacionados a técnicas avançadas da medicina moderna. As barracas e as farmácias próximas mostram a combinação de duas práticas, de dois pensamentos: o mítico-analógico e o analítico-científico. Os usuários dos produtos das barracas de ervas deixaram claro que transitam entre os dois universos, posto que recorrem, também, à farmacopéia moderna.

Distintas, a igreja e a rua formam um grande e movimentado complexo religioso representativo da sociedade brasileira, que é plural mas assimétrica, hierárquica em seu sincretismo, classificatória em sua heterodoxia, confusa e ordenada em suas oposições e complementaridades. Assim, enquanto a religião da igreja se faz visível pela solidez de sua construção arquitetônica, relações sociais e posições de proeminência, poder, permanência, conservação, continuidade, proteção, ordem e resguardo, a religião da rua, lugar por onde se transita e manifesta, está sujeita à vulnerabilidade, ao perigo, às intempéries climáticas, à transitoriedade, à impermanência, ao desconforto, à desordem, ao conflito, ao desprestígio. Seus sacerdotes e sacerdotisas, cuja unção e função se origina desse o reverso da sociedade que - de maneira anômala - os inclui excluindo, pagam resoluta e vigorosamente um alto o preço social e simbólico pelo direito à liberdade e visibilidade religiosa conquistado palmo a palmo no espaço público, espaço da rua.

Este, como se vê, é transformado pelos devotos que lhe conferem pela força de suas crenças discriminadas e excluídas do espaço privado, reservado e institucional, uma nova função e significação social. Naqueles poucos metros a rua é transformada de lugar de passagem, de fluxo ininterrupto de transeuntes, em lugar de estar, de ficar, ouvir e falar, de aconselhamento e trabalho espiritual, revelando mudanças na relação espaço-tempo-uso social. No tecido urbano é criado pelo povo, sem ingerência de urbanistas ou do Estado, um ponto de referência, de sociabilidade, de transmissão de ensinamentos, crenças e práticas rituais, de conservação de tradições e memórias que, em cruzamentos e rupturas com a impessoalidade de outras tantas ruas, impregna de sentido e significado a dinâmica sócio-espacial do quarteirão.

Ao contrário da quase maioria absoluta dos padres que olha e avalia de maneira depreciativa as práticas religiosas dos sacerdotes e sacerdotisas umbandistas e candomblecistas, estes não colocam obstáculos para que seus irmãos de fé entrem na igreja e lá pratiquem rituais católicos durante a celebração das missas, no intervalo destas rezando, persignando-se reverentes e ofertando flores aos santos. Quanto às sua presença nos velários, chegam mesmo a recomendá-la, posto que certas obrigações rituais que ali são permitidas, como acender velas para os mortos, têm sua prática vedada por força da contaminação espiritual que desencadeiam nos espaços domésticos, no das tendas e terreiros. Hipostasiada nas pessoas destes devotos percebe-se a religião do povo da rua construindo pontes, ligando espaços, invadindo e penetrando a religião da igreja, ocupando de maneira sub-reptícia suas instalações, desfrutando de seus bens materiais e simbólicos.

Como em torno de tantos outros centros religiosos, ao lado das igrejas prosperam lojas de artigos religiosos, onde são expostos velas, máscaras egípcias, cruzes ansadas, pirâmides, adereços de entidades afro-brasileiras, terços, imagens de santos, anjos, caboclos, pretos-velhos, índios, livros de orações, santinhos, etc. O pluralismo religioso ostensivo e seu mercado marcam o espaço aberto dos quarteirões entre a Capela dos Aflitos e a Igreja dos Enforcados, interferem na edificação e destino de construções urbanas, no trânsito de pessoas e nas maneiras pelas quais elas organizam suas vidas e disponibilizam seus bens.

O conjunto formado pela capela dos Aflitos, pela igreja dos Enforcados, pelos sacerdotes de rua e pelas lojas de artigos religiosos forma três espaços urbanos diferenciados entre si quanto à forma e as funções, mas intimamente vinculados: o espaço propriamente sagrado das edificações religiosas, o espaço profano da rua - agora ambivalente, porque constituído também como espaço religioso - e o espaço profano das lojas e negócios diretamente referidos às necessidades criadas pelo culto religioso.

5. Em que crêem os devotos

Ressalvadas as diferenças, há muito em comum entre as crenças católicas, espíritas e umbandistas no que se refere ao culto aos mortos. Neste imaginário está presente a concepção de um universo único, composto por dois mundos, diferentes entre si, na medida em que em um vivem apenas seres espirituais e, em outro, seres compostos de matéria e espírito. A substância espiritual garante a continuidade e a similitude na diferença. É ela que possibilita a intercomunicação entre os mundos.

O mundo constituído por almas vivas em corpos e almas que vivem de maneira incorpórea aponta para sistemas de crenças que, em comum, afirmam a sobrevida após a morte. Há, portanto, uma antropologia comum entre estes vários sistemas, ou seja: o homem é constituído por duas substâncias, uma material e outra espiritual. A existência dos dois mundos é correlata a este dualismo antropológico. O mundo dos vivos em corpos é o mundo terreal; o mundo dos vivos sem corpos é o mundo espiritual. No primeiro se nasce, vive, trabalha, luta, se alegra, se relaciona, sofre, e aqui se dá, com a morte do corpo, a separação entre este e a alma. A morte, que inaugura uma nova maneira de ser, ser sem corpo, não rompe, mas prolonga o que foi vivenciado pelo sujeito em seu corpo.

5.1. Toda a sociedade, quer de vivos ou de mortos, é sempre hierárquica.

Existindo, pois, dois mundos, temos que, da mesma forma que o mundo onde estão os vivos em corpo e espírito não é homogêneo internamente, isto é, apresenta várias formas de diversidades internas, assim também acontece no mundo dos vivos apenas em espírito. Algumas diferenças no mundo histórico foram muitas vezes utilizadas por devotos para exemplificar as diferenças que existem no outro mundo . Os adeptos das várias vertentes religiosas, utilizando-se simultaneamente de critérios de ordem moral, econômica, emocional, afirmaram que neste mundo e no outro existem os bons e os maus, os que se encontram em condições melhores ou piores, os que são felizes e os que sofrem. Assim também depois da morte do corpo, a diversidade tem continuidade quanto ao lugar, situação, estado. Por isso existe uma hierarquização dos espíritos. Nesse caso, a imagem sugerida é a de maior ou menor elevação ou rebaixamento. Este critério referente a lugar corresponde a uma maior ou menor iluminação. As narrativas dos devotos permitem perceber em suas representações do Além uma racionalidade classificatória e organizadora da sociedade dos espíritos, na qual articulam-se critérios de lugar com os de situação e estado. Quanto maior a elevação, tanto maior será a situação de iluminação, sendo o estado conseqüente de paz e felicidade.

O simbolismo da luz tem sua contrapartida no simbolismo das trevas. Entre a luz e as trevas estão as sombras. Conforme os devotos, os três estados ou estágios - luz, sombras e trevas - implicam em três graus hierárquicos de elevação ou rebaixamento espiritual das almas, correlatos às suas capacidades de conhecimento, que podem variar entre conhecimento amplo, relativo ou a ignorância. Conhecimento de si, conhecimento dos outros, conhecimento da vida, do que nela importa e sua finalidade, conhecimento de Deus. Quanto mais elevado o espírito, mais perto de Deus, maior seu conhecimento, maior sua iluminação. Existe uma correspondência entre a luz interna ao sujeito - ele é de luz -, quanto à luz que ele expande posto que ilumina , e a luz que o cerca é iluminado . Espíritos que têm luz interior têm luz própria e são iluminadores. Eles habitam lugares iluminados.

Na medida em que os devotos transportam para o chamado plano espiritual ou celeste , portanto sagrado, a estrutura hierárquica que caracteriza a sociedade historicamente construída, demonstram a impossibilidade de que são acometidos de imaginar uma vida societária não estratificada em camadas assimétricas pelas quais se distribui a população. A assimetria social em que vivem, é desta forma, sacralizada, porque é a reduplicação e o reflexo da ordem espiritual.

Ao mesmo tempo, quando os fiéis afirmam que é possível a uma alma ascender, ou seja, vir a integrar planos ou camadas superiores, revelam o desejo latente que implica na possibilidade de uma organização societária, na qual mesmo em presença da ordem hierárquica as pessoas que quisessem e fossem ajudadas poderiam ascender socialmente. Teríamos, então, um modelo social em que fossem possíveis movimentos individuais de ascensão social. É necessário destacar que toda ascensão depende de ajuda, de favores prestados e recebidos. Ora são os vivos que ajudam, ora esta ajuda vem de outros mortos que já possuem maior iluminação, estando, pois em estágios ou lugares mais elevados. Aquele que logra ascender é sempre o sujeito individual. Não aparecem alusões a possíveis movimentos ascensionais de caráter coletivo. Tão poderosa é a força dos condicionamentos sociais nascidos do realmente experimentado, que nem mesmo em sua imaginação criativa os devotos são capazes de ultrapassar as barreiras que na sociedade real impedem a mobilidade ascendente dos grupos sociais inferiorizados.

Os movimentos de ascensão social não aparecem nas consciências dos devotos como resultados exclusivos da atividade humana. Sem negá-la, atribuem, contudo, prevalência a interferências sobrenaturais, no caso das almas, pois a elas atribuem a regência dos fatos e ocorrências de suas vidas. Neste cenário Deus é uma presença necessária, mas longínqua, meio que nebulosa e ab-escondida como um observador que, da coxia, tudo vê e ouve, sem de fato atuar diretamente no palco dos acontecimentos. Quando instados, os devotos reconhecem que não sabem muito bem qual é exatamente o papel e a função de Deus. Sem dúvida nenhuma, tudo depende dele e de sua vontade. É o senhor e dono do mundo. De maneira geral, todos concordam que as coisas acontecem porque Deus permite. Entretanto, é crença comum que os fatos do cotidiano são decididos e direcionados na relação com as almas aflitas, com as benditas e com os santos. Até porque o que move os devotos, o que os aglutina e se constitui como objeto de seus cultos não é Deus, mas, as almas.

5.2. Vivos e mortos interagem moldando o mundo

Foram as declarações dos devotos que nos permitiram concluir pela relação direta e eficaz entre o fiel e as almas, com ausência de intermediação divina. Assim, quando indagados a respeito do sujeito a quem dirigiam suas orações, eles respondiam que eram para as almas; a quem se invoca, convoca ou pede auxílio, dizem, são as almas. Desta forma, no culto às almas a presença ou poder de Deus ocupa lugar secundário, pois não se faz de maneira explícita a triangulação devoto-Deus-alma.

A comunicação dos vivos com os mortos, por sua vez, pode ser feita através de pensamentos. O pensamento chama, conecta esses dois estados de vida. Daí a oração silenciosa que muitas vezes é feita nos velários, como já vimos, lugar de grande concentração de espíritos. Também a comunicação pode ser estabelecida por palavras e gestos. Muitos fazem suas preces num tom mais alto, que permite ouvi-las. São palavras de conforto e resignação, de incentivo a que descubram e sigam seus caminhos, se fortaleçam e encontrem paz. Há cuidados e carinhos em muitas preces destinadas a ajudar familiares mortos, colaborar para que conhecidos e desconhecidos esquecidos por suas famílias, pessoas desamparadas em vida e na morte, encontrem descanso. Durante as preces muitas pessoas fazem gestos com as mãos, seja persignando-se, seja levantando, abaixando unindo e separando mãos e braços. Em geral, contudo, as pessoas procuram discrição, não chamar atenção sobre o que estão fazendo.

A comunicação com os mortos - sejam eles almas benditas ou santos -, pode também se realizar com o concurso da escrita, através de bilhetes deixados nos velários ou no interior das igrejas, aos pés dos santos. Na visão dos devotos a escrita desses bilhetes constitui um ato social para entabular e conservar relações entre eles e seus protetores que estão no plano sobrenatural. São pequenas cartas, modestos pedaços de papel com textos manuscritos, endereçadas pelos emissários a destinatários específicos, aos quais se credita confiança que, de alguma forma, tomarão contato com os conteúdos consignados e, posteriormente, assumirão as providências que se fizerem necessárias. Os bilhetes são formas materiais de comunicação que certificam e prolongam a presença dos suplicantes junto aos suplicados, tornando virtualmente presentes os ausentes, abolindo distâncias e afastamentos, relembrando aos segundos as demandas dos primeiros, dando continuidade a conversações já iniciadas. Dessa forma são abolidas não-coincidências físico-presenciais, espaciais e temporais. O papel escrito colocado aos pés do santo representa material e simbolicamente a súplice prostração do escritor. É palavra, gesto, imagem que expressa carência, reverência, súplica, confiança, estados de alma e de consciência.

Como em outras relações sociais regidas por diferenças e assimetrias de poder entre os necessitados e aqueles que detém a prerrogativa de conceder favores, os bilhetes são redigidos sob a forma de pedidos que exaltam a força, o poder e a bondade dos santos e a humildade dos devotos que constroem frases afetuosas, expressando carinho, familiaridade e intenção de comover. Os devotos das almas gostam de tocar com as mãos as imagens dos santos que são entendidos como almas mais que benditas . Antes de tocar a imagem sagrada - porque nela está viva e atenta a pessoa sagrada protetora - convém alguns gestos rituais preparatórios, ritos de aproximação para entabular conversações no grande encontro que se dará. Por isso o fiel olha para o santo, abaixa o olhar e a cabeça, torna a olhar diretamente e persigna-se algumas vezes: dois ou três Em nome do Pai . Neste momento, quem porta uma oferenda, presente de agradecimento ou destinado a provocar um ambiente favorável para que novos pedidos sejam atendidos, a coloca aos pés da imagem. A esses cumprimentos iniciais segue o toque que faz às vezes do abraço caloroso entre grandes e fiéis amigos, caracterizando a qualidade da relação. São mãos portadoras de beijos que, ao tocarem esfregando os pés, as vestes, o corpo do santo, comunicam a densidade do amor esperançoso e grato que o devoto guarda em seu coração. Longos, diretos, compridos olhares, acompanhados por lábios que se movimentam em preces. Novamente as mãos tocam agradando o santo. Às vezes o toque da imagem é seguido imediatamente pelo toque em alguma parte do corpo do fiel: garganta, cabeça, perna. É pelas mãos o devoto impregna-se de graças e poder curativo: são mãos operando a transferência do dom. Ao término seguem-se rituais de despedida, com novas persignações ou mãos estendidas num até breve; são dados os primeiros passos de afastamento sem que o devoto vire as costas para o santo.

Sentir o desejo e poder, sem medo ou vergonha, acarinhar o sagrado como só entre íntimos é possível, é uma das características mais comoventes da afetiva religiosidade dos simples. Aqui, onde a transcendência se funde à imanência, se expressa o caráter devocional efusivo da religiosidade popular, ocasião ímpar de integrar conhecimentos, crenças, sentimentos, corporalidade, desejos, vivenciando a multiplicidade das dimensões constitutivas do humano, pois, ao acarinhar o sagrado, o devoto está em sua inteireza.

O olhar, o face a face, o contato físico e o falar diretamente são procedimentos sociais que caracterizam as relações primárias, íntimas, inclusivas, imediatas e familiares da vida, que se localizam na esfera do instinto e do sentimento. São esses componentes não-reflexivos que fundam e expressam a solidez da associação entre o fiel suplicante e agradecido e seu santo dadivoso que cuida, vê e protege, numa extensão, criação ou reprodução religiosa das relações paternais, maternais e filiais desejáveis ou desejadas. Sem dúvida nenhuma, para quem pode, deve ser uma experiência consoladora e reintegradora frente à fragmentação que predomina no cotidiano das relações sociais caracterizadas pelo distanciamento e impessoalidade.

É também crença comum entre os devotos a constante intercomunicação e interação entre vivos e mortos, ou, caso se venha a preferir, entre vivos no mundo espiritual e vivos na terra. Se intercomunicação e interação entre os vivos em corpo e os vivos apenas em espírito é facilmente aceita e ensinada entre os adeptos do espiritismo abrasileirado, dos cultos afro-brasileiros, a Igreja Católica tem grande dificuldade em admiti-lo. A instituição chega mesmo a negá-lo como realidade e a condená-lo como prática. Entretanto verifica-se que, a seu modo, a partir de regras cúlticas por ela prescritas, o culto aos mortos tem lugar na liturgia católica. É a devoção aceita e ensinada do culto aos santos. Seus santos, é bem verdade. Mas, quem são os santos , senão pessoas que já morreram? As preces que no catolicismo devocional são feitas às almas do Purgatório, para que mesmo em suas atual situação de desconforto e sofrimento concedam aos vivos graças e favores, não deixam de ser relacionamentos entre vivos na terra e vivos em outras dimensões, em outros lugares. As almas vivas no Purgatório são almas de mortos na terra. Trata-se, portanto, de relações entre vivos e mortos.

Crêem também os devotos que os acontecimentos da vida estão sujeitos a influências e desígnios sobrenaturais. Tanto o mundo espiritual influencia nos acontecimentos que têm lugar na terra, como também palavras, gestos, orações humanas exercem influência sobre o que foi designado em outras esferas, movendo, comovendo, transformando e orientando determinações sobrenaturais.

Quando os devotos das almas pensam a respeito da vida dos mortos e das condições nas quais ela pode transcorrer, imaginam e estabelecem parâmetros, princípios, regras, hierarquias, lugares, situações existenciais, relações possíveis. Entretanto, entendem que alguns aspectos da vida além-túmulo são desconhecidos ou escapam a seu controle. Por isso, pode-se dizer que, conforme o entendimento dos fiéis, a vida dos mortos no Além goza de certo grau de autonomia.

Sendo que a administração da vida dos vivos confere à pessoa ou instituição administradora variada gama de formas de poder e conseqüente controle social, da mesma forma a administração da vida dos mortos emana poderes sobre a vida dos vivos. Por isso, quem administra a vida dos mortos interpreta e administra o passado de um grupo, contribui para traçar o perfil e o caráter de sua identidade atual, as origens de uma crença, os conteúdos de uma doutrina, estabelece referenciais religiosos para as práticas sociais, fixa e determina cultos e interditos, exerce controle e fornece conteúdos sobre as consciências e comportamentos, administra angústias, culpas, inseguranças, mistérios. Administra o Além, o Aquém, o Passado, o Aqui, o Agora e o Futuro.

5.3. O indivíduo e a sociedade são imortais

O culto às almas afirma a imortalidade do indivíduo. Na situação de morte física são preservadas características humanas tais como inteligência, vontade, memória, necessidade, desejo, comunicabilidade, possibilidade de desenvolvimento processual, ação. Também é preservada a identidade pessoal, uma vez que todos conservam seus nomes - quando chamados, respondem e vêm ao encontro de quem os chamou. Além do que, permanecem as histórias de vida, as idiossincrasias pessoais, os traços de caráter individual.

Ao mesmo tempo, o culto às almas afirma a imortalidade da sociedade. Sociedade formada pelos mortos entre si e destes com os vivos. Esta macro-sociedade implica na organização hierárquica dos sujeitos, na presença de regras, nas formas específicas de relacionamentos com permissões e interditos circunstanciais entre os contatos estabelecidos no interior e entre os diferentes escalões ou grupos de almas, bem como entre estas e os vivos em corpos. No interior da grande sociedade vigora a delimitação de espaços físicos que podem ou não ser freqüentados por cada categoria de almas ou de pessoas, existindo, assim, espaços privativos relacionados e dependentes da ordem hierárquica dada pela posição mais ou menos elevada do sujeito ou da alma. A vida social nem por um instante é suprimida na ocasião da morte. Deixando de viver como membros da sociedade constituída por vivos em corpos, a alma/espírito é imediatamente introduzida à sociedade dos vivos incorpóreos, com os quais estabelece comunicação, age e sofre influências.

Sendo assim, temos que nem o indivíduo, nem a alma podem ser compreendidos ou subsistir alijados do conjunto de relações sociais, nem a sociedade pode acontecer ou se realizar a não ser pela integração e inclusão dos mesmos, que, por diferenciados e singulares, são sempre organizados ou distribuídos por graus, esferas ou escalões que comportam, orientam e ordenam várias formas de relacionamentos intra e intergrupais. Vigora o princípio segundo o qual nem a parte se compreende na ausência do todo, nem o todo pode existir sem as partes, que são, por sua vez, diversificadas e organizadas na relação sempre necessária.

Permanecendo a sociedade, permanecem também suas instituições, como a família e o direito. Pais, filhos, irmãos, parentes em geral, estando uns vivos e sendo outros falecidos, continuam a manter os vínculos biológicos e afetivos que os constituíram e continuam constituindo como comunidade. Com a morte a parentela não desaparece e com ela continuam vigentes as mesmas obrigações, direitos e deveres estabelecidos socialmente para regrar as condutas intervivos. Temos o dever de cuidar de nossos antepassados que já se foram e eles também cuidam de nós. Este dever, esta obrigação moral se funda no direito que os falecidos têm de receber orações, velas e outros elementos rituais. Em contrapartida, confia-se que eles continuem a exercer os papéis que antes lhes cabiam. Caso os falecidos não recebam o que lhes é devido por direito, sentir-se-ão desrespeitados; mais do que isso, serão prejudicados em suas legítimas prerrogativas. Uma vez prejudicados poderão, de várias formas, expressar seu desaponto e inconformismo. Em casos graves poderão mesmo revidar, perturbando a vida dos parentes vivos. O sistema de ajuda mútua preservado tem, portanto, um caráter não voluntarista, mas obrigatório, sem o qual os núcleos familiares se esfacelariam. A obrigatoriedade da cooperação, do dar e receber, surge como a argamassa que sustenta e mantém as relações satisfatórias entre os membros da família jamais dissolvida.

Mas o culto aos mortos não se restringe às relações de parentela. Os devotos afirmam, freqüentemente, que não conhecem todas as almas pelas quais oram e praticam rituais. Mas sabem que elas estão à sua volta, que se relacionam com elas e elas entre si, e que se deve sempre ajudar sem olhar a quem. Assim, a sociedade dos mortos e dos vivos, desenhada nos velários, aparece fundada num sistema de entrelaçamento e vinculação que ultrapassa a laços de sangue. O princípio ordenador e vinculador dessa sociedade plural e diversificada reside na ajuda mútua.

A alma/espírito e os vivos em corpos que freqüentam os velários integram, pois, uma única macro-sociedade formada por membros corpóreos e incorpóreos. São abolidas, desta sorte, as fronteiras entre a realidade social histórica e realidade metafísica. Portanto, nem o indivíduo nem a sociedade estão sujeitos à morte. Ambos vencem a morte pela interação que, incontestavelmente se estabelece. Se viver é estar entre os homens (inter homines esse) e morrer é deixar de estar entre os homens (inter homines esse desenere), a morte não existe, pois como a presença e a relação constante é prerrogativa de vivos em corpos e vivos em espírito, salvam-se da morte sujeitos individuais e a própria sociedade que entre eles se estabelece.

5.4. A circularidade de dons entre vivos e mortos estrutura e mantém suas relações

Em relação às motivações internas para a prática da devoção, salientam-se aquelas ligadas ao necessário exercício da solidariedade na convivência entre os vivos e os mortos. Em muitos casos, como vimos, eles compartilham os mesmos espaços físicos. As almas aflitas são almas carentes, que necessitam de preces, consolo, iluminação. Estão como que perdidas para si mesmas, e também perdidas por falta de caminho seguro. Por isso vagam, desencaminhadas, pelos espaços. Muitas delas querem encontrar rumo e repouso, mas não sabem como. Precisam ser ajudadas, pois sofrem muito. São como os muitos pobres que vivem na terra. É a carência e o sofrimento dessas almas que desperta, em muitos devotos, o desejo de auxiliá-las. Ajudar as almas é necessário e justo porque estão em sofrimento. Sendo o sofrimento das almas o que leva à ajuda que lhes é de justiça, o devoto ajudante ultrapassa a justiça comutativa do direito romano do ut des conforme o qual cada um deve receber na medida e em equivalência àquilo que pode produzir e dar, e se encaminha para uma ajuda distributiva baseada no princípio da necessidade pessoal ou grupal articulada à possibilidade de repartição do conjunto dos bens disponíveis.

Por outro lado, as almas aflitas ou penadas desempenham, de certa forma, uma função de controle social. Elas representam, por vezes, o que a sociedade (e, nela, o grupo dos devotos) considera indesejável em termos de comportamento social. Em vida corpórea, esses espíritos foram não raramente egoístas, praticaram injustiças, foram pessoas violentas, maltrataram os outros, traíram confianças, eram beberrões, deixaram de cumprir suas obrigações, não pagaram suas dívidas, roubaram, assassinaram ou se suicidaram. Em termos religiosos podem ter morrido em pecado, sem arrependimento e sacramentos, deixaram de cumprir promessas feitas. Elas fizeram o que não se deve fazer. Se são almas penadas, é porque estão cumprindo uma pena merecida pelo que praticaram ou deixaram de praticar. Contudo, mesmo sendo assim, o povo delas se compadece e deseja ajudá-las minorando seus sofrimentos atuais e incentivando-as para que finalmente entendam seus erros, busquem e consigam paz. Dessa forma, o princípio da misericórdia prevalece sobre o da condenação.

Vale ressaltar a ausência de julgamentos ou restrições de caráter moral permeando as relações entre vivos e mortos. Os mortos, tanto quanto os vivos, não são julgados, acolhidos, ajudados ou rejeitados em função de suas possíveis virtudes ou vícios. O que realmente importa é que são capazes de dar e de receber ajuda. Não se deixa de acender velas para falecidos que foram assassinos, ladrões, prostitutas; vale sim é que eles queiram, agora, ganhar luz e repouso de seus dramas. Também as almas não dispensam seus favores na relação com as virtudes dos suplicantes. Importa o fato de que estes necessitam de ajuda. Desta forma, o critério da necessidade prevalece sobre o da moralidade, o valor da compreensão inclusiva sobre o do julgamento excludente.

O que se observa é a transposição de princípios e práticas éticas populares para as relações com o sobrenatural presentificado em espíritos e almas, que, dessa forma, legitima e justifica as primeiras. A necessidade de sobrevivência pessoal e grupal dada e nas condições reais de existência material atuou e atua entre os pobres muito mais no sentido de uma ética inclusiva do que excludente: a filha desencaminhada , a criança tida fora do casamento, a família extensiva organizada segundo padrões não institucionalizados pelo Estado ou Igreja, a clássica figura do malandro, os arruaceiros e o alcoólatra.

A estes fatores adiciona-se, também, o medo que os devotos experimentam de serem perturbados ou prejudicados por espíritos desencaminhados, que ainda não alcançaram luz e repouso. Estes precisam ser afastados da proximidade dos vivos, mantidos longe dos indivíduos e dos grupos sociais, como, por exemplo, dos grupos familiares. O afastamento não implica procedimentos relacionados a castigos ou vinganças que aumentem suas dores, mas, ao contrário, em orações e ações que promovam o processo de evolução no plano espiritual. Desta sorte, os devotos justificam as convenções sociais que mandam afastar os honestos, os puros, os bons daqueles desonestos, ladrões, assassinos. Os rituais promovem esse afastamento tendo em vista o bem-estar coletivo. Trata-se, sobretudo, de uma atitude simbólica a favor da não-violência como único caminho de recuperação dos violentos e sua reinserção positiva na sociedade dos vivos e mortos. Todos podem ser recuperados em si e para a sociedade, quer se trate de vivos ou de mortos. Assim são manifestadas, de maneira religiosa, facetas da consciência social dos devotos.

Muitos devotos participam da opinião de que correm perigo ao tentar ajudar tais espíritos. Mas é imperioso que o façam pelo bem dos espíritos, pelo bem pessoal e de toda a sociedade. Como fazê-lo? Uma das maneiras mais eficientes é conduzir estes espíritos aos velários. Ajuda muito acender uma vela em casa e deixar queimar até a metade. Então a vela deve ser apagada, levada e novamente acessa nos velários. Os espíritos acompanharão a pessoa e a vela durante o percurso entre a casa e o velário. Uma vez acesa a vela, a pessoa deve ficar diante dela um certo tempo para que o espírito se acostume com o lugar. Depois ela deve circular pelos velários e pela igreja. Esta deambulação deixa o espírito sem referências para voltar para casa. Então ele fica no velário e lá pode receber palavras, orações, consolo, luz de muitas outras pessoas. Na seqüência pode ir se desapegando do vício, se desenvolvendo espiritualmente. Esse conjunto de procedimentos o devoto identifica como sendo a prática da caridade.

Uma das maneiras de ajudar as almas perdidas é iluminando seus caminhos. É por isso que todos devotos acendem velas. Para estes, a luz da vela acessa não é um símbolo, não está durante o culto representando algo, como se estivesse iluminando as almas, suas consciências e seus caminhos. Ela, de fato , está cumprindo esta função. No intenso nível da experiência religiosa criativa do devoto, o fogo e a luz poderosa da vela são, em si mesmos, realidades concretas na forma e no conteúdo, evidentes, operativas e eficientes, tanto no velário como no mundo espiritual. Verifica-se uma coincidência consensual entre matéria, forma, destinação e significado. A luz da vela é, de fato, dotada da capacidade de ser percebida e iluminar vivos e mortos. Ilumina dois planos da existência, intermediando mundos. Ela os penetra, contagia, age sobre eles, transformando-os, modificando-os. Como mariposas, os mortos carentes são atraídos pela luz das velas acesas para eles. É por isso que, nos espaços domésticos, não se deve acender velas para os mortos. É perigoso, o lugar fica contaminado, pois podem ser atraídos espíritos de tudo quanto é jeito . É por isso que existem lugares apropriados para esta prática: cruzeiros, cemitérios, igrejas.

Se fazer orações e acender velas são formas de ajudar os mortos, também se pode ajudá-los oferecendo os bens que, por ocasião de suas mortes, lhes faltavam. Ao lado das velas são depositados copos d’água e pão. Destinam-se àqueles que, em vida ou na hora da morte, sofreram sede, fome, privações em geral. Depois de mortos continuam, sem corpos físicos, sentindo as mesmas necessidades físicas, as mesmas dores corpóreas. Como se pode perceber, não há solução de continuidade entre o que se experimentou em vida e o que se experiencia na morte.

Mas, como na vida em sociedade todos precisam uns dos outros, também os vivos precisam ser ajudados pelas almas. Quanto aos pedidos de ajuda por parte dos vivos, fomos informados que nada se pode pedir para as almas aflitas. Isto só faria aumentar suas aflições e até provocar revoltas. Elas devem ser poupadas de preocupações, já lhes bastam seus sofrimentos. Os pedidos, então, devem ser endereçados apenas às almas benditas e aos santos. Agora, como muitas almas alcançaram iluminação e paz graças às orações e demais práticas efetuadas pelo devoto, é justo que retribuam os benefícios recebidos. Tanto as almas já benditas como aquelas que receberam ajuda e, por isso, estão bem, costumam ser muito reconhecidas e generosas. São poderosas e não deixam de ajudar. Ouvem e acolhem pedidos e promessas. Protegem contra a violência, intervém em conflitos domésticos, providenciam a volta da saúde, ajudam a encontrar emprego, a comprar casa, a largar de vícios. Foi dito que são muito prestativas . É preciso que o devoto volte aos velários para fazer lá seus agradecimentos e cumprir o prometido ou contratado, de tal sorte que seu protetor fique satisfeito e sensibilizado com a qualidade do reconhecimento com o qual foi obsequiado. Tudo acontece de maneira que, na sociabilidade estabelecida, a circularidade do dom desempenha um papel fundamental que implica na necessidade mútua, na dádiva, na recepção, no agradecimento e sua retribuição. Nessa circularidade pode sempre ocorrer uma mudança de papéis e posições. A alma pode pedir ou dar em primeiro lugar, sendo que o mesmo pode acontecer com o devoto. O que mantém a relação é justamente esta possibilidade de troca de papéis que transforma o suplicante agradecido em doador em potencial. A sociedade construída entre vivos e mortos funda-se e é alimentada pelo dom ritual que institui e consagra alianças sempre refeitas e ressignificadas, conservando fidelidades e confianças.

O culto que objetiva a iluminação e o bem-estar das almas é originário da conjugação de necessidades e interesses materiais, relacionais, comportamentais de caráter tanto individual quanto familiar com sentimentos de solidariedade, despojamento, responsabilidade e compaixão extensivos, ou seja, aqueles que ultrapassam os limites do grupo dos mortos domésticos na direção do coletivo, apontando incisivamente para aqueles considerados os mais desvalidos ou abandonados. Estes, se convenientemente ajudados, transformar-se-ão em poderosos concessores de benefícios para humanos necessitados. Desta sorte, encontra-se aqui, expressa em narrativas e práticas religiosas, uma concepção sociológica, ainda que não consciente, que o efeito da solidariedade entre os desvalidos é verificado na proteção mútua que os torna poderosos.

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Notas

[*] Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e doutora em Antropologia pela mesma universidade. Leciona no Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP.

[1] Cf. Marcel MAUSS. Ensaio sobre a dádiva, p.52.

[2] Cf, Riolando AZZI. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos, pp. 21-23.

[3] Cristián PARKER. Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na América Latina, p. 136.

[4] Cf. Antonio Egydio MARTINS. São Paulo antigo: 1554-1910, p. 123.

[5] Sobre rituais que transmutam o nefasto e impuro em puro e benfazejo ver Émile DURKHEIM, Formas elementares de vida religiosa, pp. 485-491.

[6] Cf. Wanderley dos SANTOS. Santa Cruz dos Enforcados, p.10.

[7] Idem., p.13.

[8] Sobre concepções e rituais relativos a pureza, impureza, perigo e higienização, ver a obra de Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, pp.19-43.

[9] Cf. Michel VOVELLE, Ideologias e mentalidades, p. 140.

[10] Patrícia BIRMAN, Modos periféricos de crença. In. Pierre SANCHIS (org.) Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural, p.168.

[11] François HOUTART, Sociologia da religião, pp. 35-36.