This article integrates a wide variety of research and experience, including aging, chronic illness/disability, race, and sexuality, into a discussion of the ways in which body should and should not be identified with self. Concluding that self both is and transcends the body, Gudorf argues for revising understandings of self identity in the direction of greater constructionism, at the same time she develops some reservations about propositions for a discontinuous self.
Keywords: aging, body, constructionism, chronic illness/disability, dimorphism, hope, inner depths of the person, inscription, physical/sexual abuse, racial bodies, relationality, self, sexual desire, sexual identity, simple souls, touch, unity of the self, victims.
Este artigo integra uma ampla variedade de pesquisas e experiências que incluem envelhecimento, doenças crônicas/deficiência, raça e sexualidade na discussão sobre os modos como o corpo deveria ou não ser identificado com o self. Ao concluir que o self transcende e, ao mesmo tempo, não transcende o corpo, a autora aponta para necessidade de rever a compreensão a respeito da identidade do self indo ao encontro de um maior construtivismo, assim como desenvolve algumas reservas a respeito de algumas afirmações sobre a descontinuidade do mesmo.
Palavras-chave: envelhecimento, corpo, construtivismo, doenças crônicas/deficiência, dimorfismo, esperança, profundidade interior da pessoa, inscrição, abuso físico/sexual, corpo racial, relacionalidade, self, desejo sexual, identidade sexual, almas simples, toque, unidade do self, vítimas.
Durante séculos dentro do Cristianismo o termo “corpo” trouxe para a maioria dos pensadores não a corporificação de Cristo na Encarnação, nem mesmo a criação deliberada do corpo humano por parte de Deus, mas, em vez disso, as associações com pecado, luxúria, tentação, excesso. Nem o corpo foi entendido como o lócus do self[1]; pelo contrário, o self foi identificado com a luta da alma para salvar a si mesma das armadilhas do corpo.
A proliferação desta abordagem negativa do corpo humano não apenas deformou a espiritualidade cristã, casamento e sexualidade, como também teve profundos efeitos destrutivos na caridade e justiça social cristãs. Porque se eu tenho que viver em constante suspeita quanto ao meu corpo, preocupado em controlar nele cada desejo e fazer ouvidos surdos à sua voz, então eu não vou levar a sério as demandas de outros corpos. Se os corpos não interessam, então injuriar corpos não será levado a sério. De fato, como nós todos sabemos, algumas vezes, no passado, e mesmo ainda no presente, a dor corporal e o sofrimento têm sido apresentados como uma coisa boa. A mortificação da carne tem sido compreendida como que nos unindo com o sofrimento de Jesus Cristo na cruz.
Em face de tais ensinamentos o imperativo cristão para amar o vizinho como o Bom Samaritano fez pode se esvanecer, e então nos tornaremos mais como o padre e o Levita, que estavam tão envolvidos com as coisas sagradas que não podiam ficar preocupados com a vítima do crime. Eu, pessoalmente, não tenho dúvidas de que esta atitude é uma das raízes da crise atual na Igreja em torno da pedofilia. Os bispos, que são os verdadeiros culpados no escândalo dos Estados Unidos, por muito tempo consideraram a molestação dos coroinhas em termos da violação de votos de celibato dos padres, e não como a violação dos próprios garotos. A atitude era clara: corpos não interessam, mas os votos sim. Isto é, indubitavelmente, o motivo pelo qual nenhum de nós ouviu sermões contra esposas que apanham e sobre outras formas de violência doméstica contra mulheres, e porque a Igreja durante tantos séculos fez vista cega à prostituição, preferindo ignorar a opressão econômica, política e social que levou estas mulheres à prostituição - sem mencionar o tráfico nacional e internacional de mulheres - em favor do domínio individual delas, responsabilizadas pelo fato no confessionário; deveria alguém ser corajoso o suficiente para mostrar isso a elas. Vítima-culpada é o modelo quando mencionamos assuntos do corpo.
Neste momento eu não quero estender-me nesta história, mas examinar assuntos que nós enfrentamos como mulheres católicas trabalhando sobre a temática do corpo. A cultura da pós-modernidade, que está se espalhando em todos os cantos do mundo, traz aspectos positivos, mas também alguns negativos, e alguns ainda, ambíguos. Como deveríamos interpretar, por exemplo, a insistência pós-moderna de que o corpo é construído, ou inscrito? O corpo é o self? E o que dizer sobre o corpo e os direitos? O self tem completo controle de seu corpo, ou este controle pode ser usurpado em algumas situações?
O corpo está gravado - pelos genes, pela cultura, pelas nossas escolhas e pelo meio ambiente. Os genes provêm a base estrutural do corpo. Eu tenho as coxas da minha avó materna; suponho que poderia fazer uma lipoaspiração comum; com outras regiões do meu corpo, porém, não há outro caminho senão o da convivência. As culturas marcam e sempre marcaram o corpo com certos estilos de cabelo ou roupa, algumas vezes pelo corte - como na circuncisão - na marca de cicatrizes no rosto, algumas vezes pela tatuagem ou piercing. Mas as culturas não têm a última palavra; os indivíduos podem freqüentemente, com o gasto de uma tremenda energia, disfarçar ou apagar marcas culturais específicas e escolher outras.
O meio ambiente coloca certos limites no corpo; alguém que nasceu no meio do Saara terá pouca oportunidade de desenvolver a natação, assim como os esquimós não poderiam desenvolver corpos de corredores. Ainda aqui, também, as escolhas individuais podem dominar a influência do meio ambiente.
O fato de o corpo estar gravado não o diferencia do self porque os selfs estão também gravados. Nossas famílias, nossos amigos, as instituições com as quais nos associamos - tudo, em nossa experiência, inscreveu-se de alguma maneira em nossos selfs. Enquanto podemos recusar uma ou duas gravações específicas, nós muito provavelmente modificamos apenas poucas de nossas gravações recebidas do meio ambiente... a palavra final sobre o que está inscrito dentro de nossos selfs não é nossa; muitos prefeririam apagar certos aspectos do self. Algumas vezes nossa única opção é decidir qual particular experiência será integrada a ele.
O corpo é o self? Sim. Mas não todo o self. Quando examinamos a vida das pessoas que sofreram dores contínuas no corpo - vítimas de tortura, doença crônica ou abuso crônico - nós percebemos que lutar contra a dor torna-se toda a sua vida. Manter algum mínimo sentido de self é tudo o que é possível. Tudo mais é eventualmente empurrado para fora - outras pessoas, outros pensamentos, outros cuidados. A dor toma a vida, bem como toma o self. Roubar o corpo é roubar o self pela maior parte.[2]
E ainda não completamente. Para todas a mulheres traficadas que se entregaram às drogas e ao desespero, para todas as esposas espancadas e crianças que se resignaram ao abuso, para todas as vítimas da tortura no mundo que se refugiaram na loucura para evitar a dor, há sempre um punhado que encontra recursos - dentro ou fora - para evocar um self que se sobrepõe à dor e resiste ao roubo dele ou dela mesma.
É crucial aceitar a unidade do corpo e do self porque nós sabemos que todo dano feito ao corpo afeta também o self; assim, então, amar os selfs de outros significa cuidar de seus corpos, e amar nosso selfs significa cuidar de nosso próprio corpo. Mas a esperança depende do reconhecimento de que o self transcende o corpo. Esta transcendência não é entendida em termos de oposição, como no dualismo alma/corpo. Preferivelmente, o corpo é o lócus do self; self que pode se mover além. Algumas vezes vemos naqueles que estão morrendo uma aceitação emocional e espiritual da morte, antes de vermos o corpo morrer, e reconhecemos nesta aceitação a transcendência do self. Porém, é freqüente que o corpo morra antes que exista uma aceitação emocional e espiritual da morte; nós interpretamos isto como trágico.
Para as mulheres o assunto corpo é extremamente assustador pelo fato de que elas foram amplamente objetivadas tão somente como corpo: corpo para ser tomado no sexo, corpo para carregar crianças, corpo para trabalhar no lar, campos e saunas. Não é acidental que a grande maioria dos escritos sobre o corpo atualmente esteja sendo feita por feministas que estão questionando não apenas sobre a relação corpo e alma, mas sobre corpo e self.[3]
Existe uma concordância geral entre estudiosos acerca de que a noção ocidental contemporânea do self emergiu somente no período moderno. Uma das melhores e mais claras descrições do processo desta emergência está em Source of the Self, de Charles Taylor.[4] Quatro das descrições de Taylor do self moderno estão resumidos aqui por Robert Di Vito. São elas: 1) o senso moderno de que a dignidade humana reside na auto-suficiência e na auto-contenção, alcançadas através da libertação de nossa posição pessoal e social no mundo; 2) o sentimento moderno de unidade pessoal e de se ter limites precisos e nítidos; 3) a crença moderna no “caminho interno”; e 4) a moderna convicção que nossa humanidade depende da capacidade de ações autônomas e auto-reguladoras.[5] Uma premissa deste papel é que se o self moderno é distinguido do pré-moderno por estes quatro critérios, o self pós-moderno que se desenvolve agora parece distinguir-se do self moderno especialmente pela falta de: (2) sentimento de unidade pessoal e limites precisos do self e (3) a crença no “caminho interno” de uma pessoa; ao mesmo tempo, a auto (self)-suficiência (1) e a autonomia (4), como marcas do self, continuam fortalecidas.
Dentro do Cristianismo o entendimento moderno do self tem variado, caminhando do foco sobre o self em relacionamentos para o foco sobre o self moral, freqüentemente descrito como consciência, e para as compreensões mais tradicionais do self como alma. Tudo isto foi construído em caminhos que refletem diferentes graus do dualismo corpo/alma, que têm caracterizado o pensamento moderno. Talvez a identificação mais próxima entre self e corpo na compreensão moderna é a recente compreensão secular do self como auto-consciência e, localizado dentro, algumas vezes mesmo co-delimitado, pelo cérebro.
É interessante explorar com que extensão as referências do self usam a linguagem da “alma” prefigurando algumas vezes o uso moderno, especialmente no caso dos místicos. Por exemplo, quando a mística Marguerite Porete escreveu The Mirror of Simple Soul,[6] ela apresentou claramente esta “alma simples” como o centro do self, um self auto-consciente que anseia pela união com Deus, que está relacionado com outras pessoas pelas quais sente amor, responsabilidade e compaixão e que cresce historicamente através destes relacionamentos. O uso que ela faz de alma para indicar o self salienta alguma qualidade distinta e que está ausente nos modelos de self (moral) em Tomás de Aquino ou em teólogos tais como Charles Curran ou Timothy O´Connel?[7] A Alma de Marguerite está num amplo diálogo com os ensinamentos da Voz do Amor e da Voz da Razão, e é chamada em diferentes direções por elas como representações da consciência pessoal, estando ciente e capaz de responder às vozes conflitantes que a pressionam (a alma). No que vem a seguir, admito que, enquanto o self pode ser explorado de diferentes perspectivas, privilegiando-se diferentes aspectos, nossa auto-identidade - nosso conceito central de nós mesmos, visto de qualquer tipo de perspectiva - desenvolve-se através da contínua interação com a historicidade, com as relações, com a liberdade transcendental como auto-consciência vivida no corpo de uma pessoa humana individual. A identidade sexual é uma parte da auto-identidade, uma parte que discutirei mais tarde, e que parece estar perdendo a importância.
Como o self está relacionado com o corpo? No mundo ocidental contemporâneo, ataques ao dualismo religioso e cultural do corpo-alma tornaram-se comuns, e muitos abandonaram a compreensão dualista do self em favor de uma concepção mais materialista, talvez percebida melhor no título do livro do movimento de mulheres americanas, Our Bodies, Ourselves.[8] Our Bodies, Ourselves foi originalmente pensado como resposta ao modelo dualista, e insiste na idéia de que nossos selfs são afetados pelo que acontece com nossos corpos, que o abuso e a negligência física danificam o self e o corpo, e que o conhecimento e controle de nosso corpo são essenciais para a construção da integridade do self. Curiosamente, a visão de self de ambos os dualismos clássicos (tanto os estóicos como a variedade cristã) e a do materialista Our bodies, Ourselves enfocam o controle do corpo com a diferença de que, sob o dualismo, o foco é controlar o que o corpo faz (bem ou mal), enquanto no materialismo feminista o foco é sobre quem controla o corpo. No modelo dualista Cristão, o corpo começa como o Outro, e somente quando ele foi completamente subordinado à alma-self poderá tornar-se parte do self. Usualmente ele permanece como uma ameaça em potencial para a alma-self, somente temporariamente subjugado pela oração e a disciplina ascética.
Enquanto eu não acredito que as feministas que cunharam a frase Nossos corpos, Nós mesmas nunca tencionaram afirmar que o corpo constituía o todo o self, na fase atual da cultura pós-moderna a frase foi tomada com um novo e expandido significado. As feministas reivindicam que os nossos corpos são nossos, construídos sobre uma identificação crescente do self com o processo de pensamento e de escolha que acontece dentro do cérebro físico, ampliando a metáfora popular de cérebro físico como o self, para, mais além, incluir não somente todo o corpo físico, mas também todo o conhecimento reflexo. É assim que o self veio a ser entendido como criado não somente através de sua própria ação, através de suas próprias escolhas para o bem e o mal, mas também através do conhecimento reflexo de si mesmo, recebido de outros que observaram sua ação ou falta de ação, bem como de suas respostas a este conhecimento reflexo.
Discussões sobre o corpo e o self conectam-se com um número de outros recentes debates dentro da academia, incluindo aqueles em torno do self como relacional, e mesmo mais atualmente o debate entre construtivistas sociais e aqueles descritos como essencialistas que argumentam em favor de um dom dentro de todo ser humano. Isto, é claro, é uma parte do debate sobre o pós-modernismo. A capacidade do self de relacionar-se é essencialmente provada e não mais uma hipótese - certamente, dentro do pensamento católico contemporâneo, o desenvolvimento do self é dependente dos relacionamentos com outros, incluindo Deus, família e amigos, grande parte da sociedade, o mundo natural e também toda relação consigo mesmo através da reflexão. Este é um ponto de vista construtivista social, matizado pela insistência sobre a persistência da liberdade transcendental dos humanos e pela habilidade variada dos corpos em particular, para carregar dados específicos para a ação. Isto, em contraparte, constitui uma espécie de dom residual dentro de um modelo construtivista mais amplo.
Na tentativa de descrever a relação entre o corpo e o self em termos da modernidade e pós-modernidade, eu primeiro recapitulei a forte ligação entre corpo e self; então procurei evidenciar o self como transcendente ao corpo, antes de uma tentativa preliminar para integrar a evidência. Como feminista, acredito que começamos nossas reflexões baseados na experiência, e sempre limitados pela nossa história relacional. Eu sou de classe média, esposa americana branca, de meia idade, mãe e avó, e tudo isto inevitavelmente vai dar forma a minha perspectiva sobre o corpo e o self.
Diferente do sexo, a raça tem sido provavelmente a característica do corpo que tem mais influenciado historicamente o self. O próprio corpo informa a identidade de um grupo, o que até recentemente era a parte maior da identidade do self. A pele, a cor do cabelo e dos olhos de um corpo, bem como a formação das características de um corpo, declaram de que povo e local geográfico vem o indivíduo. Como o sexo, a raça era inalienável, uma atribuição que durava uma vida. Diferente do sexo, muitos humanos até muito recentemente podiam viver suas vidas inteiras sem encontrar pessoas de outra raça, ou serem eles mesmos distinguidos pela raça.
As sociedades étnicas e raciais e suas religiões têm freqüentemente adicionado elementos aos sinais biológicos de raça, marcando os corpos de seus membros como seus, com sinais tais como a circuncisão masculina e feminina, piercing na orelha e nariz, estilos de barba, faces ou o alto da cabeça raspados, distintos estilos de cabelo - inclusive perucas - para homens e mulheres, cicatrizes corporais e tatuagens, e inúmeros estilos de vestir e despir - tudo isto tem designado um corpo como membro de um grupo racial /étnico em particular.
O corpo racial teve uma forte influência sobre a consciência individual do self através da história humana todas as vezes em que os grupos tiveram contato com outras raças - uma circunstância que parece ter sido comum mesmo através da história antiga. Dentro da história do Cristianismo tem havido uma dialética entre a visão dualista que suspeitou dos corpos e atentou para a conversão de todas as almas-selfs, e uma afirmação de que alguns corpos - por exemplo, aqueles marcados por outra raça, tais como os mouros, e mais tarde os africanos e nativos americanos - não eram passíveis de salvação. Nós vemos que a dialética nos debates entre o clérigo católico Bartolomeu de Las Casas e Juan Sepúlveda em 1540, quando aquele argumentou que os índios eram cristãos aptos, já praticando muito dos evangelhos, e este argumentou que eles eram os escravos naturais de quem Aristóteles pensou: incapazes de serem responsáveis por suas próprias vidas e salvação. Mesmo Las Casas, que argumentou com tanta eloqüência que a conversão precisa ser uma livre escolha e que os índios eram humanos plenos, sustentou por um tempo que os verdadeiros escravos naturais eram os africanos, que poderiam substituir os índios no trabalho forçado; uma visão da qual mais tarde ele se arrependeu. Um dos primeiros fatores que influenciaram Las Casas para apoiar a escravidão africana, até ele realmente saber o que era, foi o fato de que o corpo dos africanos parecia sobreviver à escravidão com taxas significantemente maiores que a dos índios, o que foi interpretado como sendo a escravidão mais natural para aqueles.
Durante os séculos de escravidão nos EUA muitos que se opuseram a converter os escravos africanos argumentavam serem eles animais, não verdadeiramente humanos, e freqüentemente apontavam suas características físicas, que eram interpretadas de modo a distinguir os africanos de seus proprietários. Para este grupo com diferentes corpos, suas próprias diferenças corporais eram interpretadas como evidência de que os seus selfs eram diferentes e inferiores, a despeito do fato de que a marginalidade do corpo para o entendimento cristão da alma-self deveria preferivelmente conduzir a que se imputasse pouco ou nenhum significado às diferenças corporais.
No último quarto de século tem havido um excesso de pesquisas atestando como o abuso do corpo (físico e sexual) afeta a identidade do self. Um tipo de evidência nas pesquisas envolve negligência com crianças - os efeitos da fome e privações ou do vício em drogas nas mesmas. Estudos mostram que a desnutrição séria ocasiona retardo mental nas crianças, e que alguns retardos podem permanecer se a desnutrição for severa o suficiente durante certos estágios do desenvolvimento fetal.[9] Outros estudos mostram que usuários de crack e “bebês-crack” - filhos de mães viciadas em crack - são inclinados ao vício, de maneira que o caminho de seus cérebros busca manter estados de extrema excitação em detrimento de seus relacionamentos e escolhas de vida, enquanto que crianças nascidas de viciadas em heroína têm atraso de crescimento e de desenvolvimento motor, bem como permanente anormalidade de comportamento.[10]
O abuso produz ainda um número maior de exemplos que os de negligência. Se nós olharmos os estudos sobre os efeitos do estupro, abuso sexual de crianças, abuso físico de crianças, tortura política ou militar, ou crianças expostas ao campo de batalha, vemos padrões de destruição similar nas vítimas, incluindo medo, falta de confiança, inabilidade para formar relacionamentos íntimos e uma falha generalizada para proteger-se de abusos futuros por causa de uma dupla compreensão enraizada profundamente, de que o self não tem valor de proteção e é incapaz de ser protegido.[11] As vítimas são propensas à depressão e ao desespero, e freqüentemente demonstram um torpor para sua própria dor, bem como para a dor dos outros. O torpor para nossa própria dor inevitavelmente cria torpor em relação à dor dos outros, o que torna difícil ou impossível tratá-los bem - por isso não temos meios de saber o que lhes causará dor. Ensinamentos morais tais como “ame seu próximo como você mesmo”, ou “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem para você”, presumem que sentimos nossa própria dor e reconhecemos o que causará dor nos outros. Mas, se não sentimos nossa própria dor, carecemos de um componente crítico da capacidade para a ação moral.
Nós nos acostumamos a ver padrões não apenas de disfunção, mas de autodestruição na vida das pessoas que sofreram trauma abusivo do corpo, incluindo veteranos de infantaria do Vietnã e prisioneiros de guerra, vítimas de violência doméstica, vítimas de pedofilia por parte do clero. Crianças nativas fisicamente e sexualmente abusadas nos orfanatos do Canadá, garotas raptadas ou enganadas para pertencer ao tráfico comercial de trabalhadoras do sexo, crianças abandonadas nas ruas e que superlotam orfanatos da Europa Oriental e América Latina, e aparentemente um número sem fim de outras situações abusivas.[12] Muitas destas pessoas que sofreram abuso procuram álcool ou drogas como escapes para entorpecer a mente quase sempre são bem conscientes e às vezes dão as boas vindas ao seu potencial de morte.
Nós temos também nos familiarizado com o oposto desta vítima que aceita a mensagem daquele que praticou o abuso e busca a própria destruição, a vítima que tenta negar sua própria vitimização tomando para si o papel de quem abusa e vitimizando outros. Por razões que envolvem padrões de socialização de gênero e padrões biológicos hormonais, este exemplo é mais tipicamente masculino do que feminino, embora ambas as respostas sejam encontradas em cada sexo.[13] Para relatar as razões de socialização de gênero, esta parcela feminina que responde à vitimização não com mais auto-destruição passiva, mas com negação, tornando-se praticante de abuso ela própria, é muito mais propensa a escolher o abuso verbal e emocional do que o físico ou sexual.
Existe uma clara e simples lógica para as repostas ao abuso físico e sexual. O pai ou a mãe que batem numa criança desnecessariamente, o torturador que mutila e ameaça, o estuprador que invade o corpo da vítima - todos estão dizendo para suas vítimas em cada gesto: “Você não tem controle sobre seu corpo; eu tenho. Eu faço em você o que eu desejo, não o que você deseja; eu faço você sentir o que eu quero, não o que você quer. O que você sente, o que você quer, o que você deseja, não conta.” Freqüentemente quem abusa ensina estas lições verbalmente, bem como através do toque. Quando o abuso é demorado ou repetido, é virtualmente impossível resistir a esta mensagem, pois é verdadeira na medida em que corresponde à experiência e memórias da vítima. Quanto mais dura o abuso, mais a vítima perde o controle de seu corpo, e seus sentimentos e desejos não têm mais efeito sobre a situação.
A maior parte de nossa identidade de self - nosso próprio conceito de quem somos - é conhecimento reflexo, refletido em nós por outros. São primariamente nossos pais, professores, líderes religiosos, amigos, cônjuges, companheiros de trabalho, vizinhos e crianças que nos contam, ao longo de nossas vidas, onde residem nossos dons, como são nossas personalidades e, é lógico, como são nossas deficiências atuais. Nós estamos acostumados a absorver quem somos nas mensagens que os outros dão sobre nós. Assim, é um perigo real que a vítima aprenda a lição daquele que dela abusou, porque nós somos programados e acostumados a absorver conhecimento reflexo sobre nós mesmos e usá-lo para construir nossa identidade de self. É por isto que o abuso pelas pessoas em quem confiamos - os pais ou familiares, um pastor, um professor, um psiquiatra - é mais danoso para o self da vítima: Nós somos acostumados a confiar completamente nas mensagens deles, então eles têm grande acesso ao nosso sentido de self.
Se as vítimas aprendem a lição de quem as abusou, elas não tomarão responsabilidade por suas vidas porque não acreditam que podem. Em suas experiências, outros estão sempre no comando e a oposição é fútil, mesmo perigosa. Além disso, depois de longos períodos de abuso, muitas vítimas não saberão como retomar o comando de suas vidas, porque não reconhecem seus próprios desejos, não conhecem seus próprios sentimentos. Quando nós rejeitamos ou suprimimos nossos próprios desejos por um período demasiado, quando não podemos agir sobre eles, quando os outros não respondem aos nossos desejos e sentimentos, gradualmente iremos não mais reconhecê-los. Por conseguinte, não temos nada para nos guiar e estabelecer um curso para nós mesmos. Perambulamos e nos tornamos alvos dos desejos dos outros.
Enquanto o self continua a se desenvolver durante toda a vida humana, é mais vulnerável ao abuso durante os anos de formação da infância e juventude, quando os elementos mais básicos para a identidade do self estão sendo construídos. Resistência e recuperação ao abuso são sempre possíveis, mais são muito mais difíceis para as crianças, especialmente quando o abuso envolve pessoas de confiança, quando se estende por longos períodos, ou quando foi particularmente severo (doloroso).
As pesquisas neste campo são claras: o abuso do corpo por outrem, especialmente quando se trata de crianças, fere o self. Existe claramente uma forte conexão entre o corpo e o self. Mas nós precisamos ser cuidadosos ao interpretar estas pesquisas. Pode ser errado, por exemplo, concluir desta evidência que práticas ascéticas, mesmo quando dolorosas, são um dano para o self, uma vez que são escolhidas livremente pelo self, e especialmente se elas são também administradas por ele, não é enviada a mensagem de quem abusa, não se nega o controle do corpo pelo self, não se reivindica controle sobre o outro e não se rejeita os sentimentos e desejos do self. Quando elas são auto-infligidas, mesmo as dolorosas práticas ascéticas podem ser, como freqüentemente pretendem, métodos de percepção e focalização da atenção do self sobre seus profundos desejos e sentimentos.[14]
Ninguém que já passou um tempo com um doente crônico duvida de que a dor física crônica tem efeito negativo sobre o self. Como Elaine Scarry apontou tão fortemente em The Body in Pain: The Making and Unmaking of the Word, a dor focaliza nossa atenção dentro, fazendo com que fique difícil atender qualquer Outro; o mundo fora de nosso corpo.[15] A dor resume nosso mundo em nosso próprio corpo, tornando-nos insensíveis e mesmo descuidados com os Outros e suas dores. Esta é a primeira razão porque a Igreja Católica orientou que os médicos usassem analgésicos para reduzir ou eliminar a dor daqueles que estavam morrendo, pois, assim, estas pessoas podiam atender ao trabalho do self - resolvendo relacionamentos com Outros, cumprindo responsabilidades pessoais e de profissão, sedimentando negócios pessoais, fazendo as pazes com Deus.[16] Ao mesmo tempo, a Igreja Católica estabeleceu um limite para o uso de analgésicos - evitando a inconsciência sempre que possível - até que este trabalho do self esteja completo.
Uma das coisas que muitos parentes e enfermeiras parecem ter percebido há um bom tempo, e que foi confirmado pela ciência nas últimas décadas, é a habilidade do toque para aliviar a dor. Estudos controlados demonstraram a habilidade terapêutica do toque para aliviar não somente a dor crônica, mas também a dor em recém nascidos.[17] Os parentes que dão um beijo na testa ou um aperto de mão para fazer o doente sentir-se melhor podem realmente fazê-lo porque seus toques liberam endorfina na corrente sanguínea, que bloqueia a dor. Enfermeiras em hospitais e enfermeiras que assistem nas casas sabem que segurar a mão da pessoa com dor, esfregar suas costas ou pernas, ou afagar seus ombros, alivia parte da dor. Mas o toque interpreta um outro papel positivo além desta liberação de endorfina.
O toque focaliza a atenção. Quando minha neta nasceu, minha maravilhosa nora, uma pessoa com precoce educação escolar e graduada em faculdade, suavemente beliscava as bochechas de sua filha e a olhava diretamente enquanto falava com ela. Antes de Emma completar seis meses de idade, ela entendia a fala humana, e respondia a ela, como eu aprendi um dia, quase matando nós duas no processo. Com Emma em sua cadeirinha sentada atrás de mim, eu perguntei se ela estava com fome, e se ela gostaria de lanchar quando chegássemos em casa, não esperando uma resposta. Eu estava virando uma esquina e vi Emma no espelho retrovisor vigorosamente acenando com a cabeça “Sim”. Desacreditando e dirigindo para fora da estrada, perguntei: “Que tal uma soneca depois do lanche?” ao que ela balançou sua cabeça “Não” muito claramente. Sua mãe explicou que muitas pesquisas sugerem que crianças nos primeiros anos de vida e muitas daquelas com incapacidade e em fase de aprendizado têm dificuldade em escolher que estímulo atender na mistura de estímulos à sua volta. O toque os ajuda a focar quem está falando e fortalece a extensão de sua atenção.[18] A grande extensão da atenção de Emma colocou-a meses à frente na aquisição de habilidades de linguagem.
Estudos em educação mostraram que estudantes da escola elementar aprendem melhor em sala de aula quando se sentem seguros e apreciados, onde crianças do jardim da infância têm sua vez no colo da professora na hora da estória, onde professores de alunos mais velhos caminham entre as carteiras fazendo um afago na cabeça ou ombro, encorajando o trabalho das crianças.[19] Freqüentemente é admitido que na escola elementar, na medida em que o aluno fica mais velho, o ato do toque por parte do professor diminui. Porém, a necessidade de toque, entre as crianças mais velhas, não é menor do que entre as mais novas. A diferença é que o self das crianças mais velhas está mais formado, tem limites mais claros, e estes limites necessitam ser respeitados. Isto não significa que não deveríamos tocar as crianças mais velhas - que na verdade, podem precisar ainda mais do toque de apoio. Significa somente que com crianças mais velhas devemos tomar mais cuidado e nos certificarmos de que o toque será bem-vindo. Mesmo com crianças mais novas o toque não deve nunca ser imposto contra a vontade, exceto em situações emergenciais, em que sua segurança está em risco. A permissão para o toque pode ser pedida e outorgada de várias maneiras, verbais ou não-verbais, mas a permissão das crianças mais velhas deve ser verbal e explícita. Obviamente, este toque deve sempre ser não genital, não exigir nada em troca, e deve ser recíproco. Existe alguma coisa de errada na situação em que os professores tocam as crianças sem que estas tivessem permitido o toque. Uma vez estabelecida a relação que inclui o toque de apoio, o consentimento deve ser admitido, até que haja uma revogação verbal ou não verbal para ele.
Estudos similares mostraram que os doentes e pessoas em idade avançada que são tocados e afagados não apenas têm níveis mais baixos de dor, mas também menos depressão e altos níveis de interação verbal com outros.[20] Muitas pessoas idosas nos EUA, cujos filhos morreram ou se mudaram para longe, são forçadas a substituir o abraço espontâneo de afeto por toques mais impessoais de barbeiros, esteticistas e terapeutas corporais. O corpo nos conecta com os outros de maneiras diversas, e uma vez que nosso sentido de self está enraizado nos relacionamentos, a experiência do corpo, a positiva e a negativa, influenciam nossa identidade de self. O que dizer da valorização do nosso self quando as únicas pessoas que nos tocam são pagas para isso?
Embora tenhamos visto uma grande quantidade de dados sobre condições e circunstâncias nas quais a experiência corporal forte influencia, positivamente e negativamente, a formação do self, existe também grande quantidade de dados que sugere o benefício de preservar algum estágio do corpo-transcendente, como encontrado no modelo dualista do self entre os antigos cristãos.
O doente e o deficiente físico, por exemplo, recusam de modo crescente serem identificados com seus corpos deficientes. Os pacientes de Aids, em muitos países, recusaram as expressões “vítima de Aids” e “paciente de Aids” e insistiram em serem chamados “pessoas com Aids” (“Persons with Aids/ PWAs”) em reconhecimento ao fato de que são primeiramente pessoas, e que acidentalmente aconteceu de contraírem Aids. Enquanto raramente identificamos explicitamente o self e a alma, pessoas com deficiência física freqüentemente usam metáforas que evocam a tradicional alma imaginária, como quando, por exemplo, uma avó em cadeiras de rodas, na minha paróquia, insistia: “Minhas pernas não podem andar, mas eu ainda posso dançar com alegria.” Muitos insistem em que a deficiência em algumas áreas é usualmente compensada em outras áreas da vida humana, de tal forma que não diminui o self. Eles apontam para exemplos tais como o da autora Helen Keller, o físico Steven Hawkings e mesmo o ator tetraplégico Christopher Reeve, cujas severas deficiências não conseguiram vencer.
É possível facilmente concordar que a qualidade do self pode não ser afetada por muitas deficiências do corpo, que o corpo pode transcender e não necessariamente determinar o self, mas nós precisamos ter cuidado com o entendimento desta transcendência, reconhecendo que, enquanto o corpo não determina o self, ele enraíza o self. O grau de impacto que a deficiência tem sobre o self parece depender do tipo de deficiência corporal e o contexto no qual a deficiência irá estar inserida no resto de seus dias. Muitos de nós entendemos que a doença de Alzheimer, por exemplo, gradualmente, suprime o self ao destruir relacionamentos e memórias que constituem e mantém a identidade dele. A perda dos membros, ou mesmo dos movimentos, não parece ser tão devastadora para o self como a injúria ao cérebro, ainda que a perda da mobilidade pessoal possa ser muito devastadora em contextos de maior pobreza, onde a ajuda mecânica não está disponível.
Por outro lado, o contexto é também criticável para a possibilidade de transcendência do corpo. Uma criança paraplégica sem acesso tanto a cadeira de rodas como às rampas para cadeiras de rodas - algo importante e raro em quase todo o mundo - estará limitada a um pequeno número de relacionamentos pessoais, bem como atividades educacionais, espirituais, estéticas e culturais. Ela terá recursos materiais limitados para transcender a deficiência, mesmo quando sua própria energia e desempenho possam ser superiores aos dos paraplégicos mais privilegiados. Da mesma forma, retardo mental suave ou moderado, nos países em desenvolvimento, incapacita menos, especialmente nas sociedades agrícolas, onde a saúde e a força físicas são mais importantes para conseguir emprego, bem como na participação da vida social diária, do que a capacidade de ler e escrever e o pensamento abstrato, algo tão necessário em nossa sociedade de avançada tecnologia. As sociedades que não requerem de seus cidadãos que passem em testes escritos para dirigir carros, que assinem contratos de aluguel, memorizem dúzias de códigos, nomes e senhas, ou manipulem máquinas de alta tecnologia (carros, secretárias eletrônicas, telefones celulares etc.) não oferecem, na verdade, qualquer vantagem para aqueles com QI de 100 em vez de 75. O ponto aqui é: admitir que o self transcende o corpo de alguma maneira, não necessariamente fixa a transcendência na vontade humana, ou em algum outro aspecto do self. A transcendência pode estar enraizada numa combinação de fatores, muitos dos quais são sociais e ambientais.
Envelhecer é outra experiência corporal cujos efeitos afetam a condição do self, sendo que os indivíduos e as sociedades respondem a isto de maneira diferente. Em culturas orientadas para a juventude, tais como a nossa, pessoas idosas utilizam auxílios vários, como a tintura de cabelo, cirurgias plásticas, Viagra, substituição das articulações e outras cirurgias e tratamentos para negar ou disfarçar as mudanças que a idade provoca no corpo. Em algumas outras culturas a idade ainda é considerada (embora menos e menos) para conferir dignidade e autoridade. As pessoas antecipam a paternidade e apreciam o dia em que suas barbas grisalhas serão referência do status de mais velhos então conferido a eles. Eles sentem um pequeno impulso em transcender o processo de envelhecimento e parecem sentir menos medo da morte que a outra contraparte, ou seja, aqueles que vivem nas sociedades orientadas para a juventude.
Para ampliar o fato que os humanos experimentam o envelhecimento como limitação - e eu penso que todos sentimos isto em algum nível, quando precisamos de óculos ou lentes mais grossas para ler ou dirigir, quando nosso desejo e capacidade sexual começam a diminuir, bem como nos surpreendemos cochilando durante o dia, incapazes de se recuperar pelas noites de trabalho, ou dirigimos sem parar através da noite - o conceito de transcendência sobre o corpo tem valor aumentado para nos ajudar a sustentar a energia e viver uma vida plena.
Dentro do movimento das mulheres, defende-se que a vítima sexual está em acordo com o conceito da transcendência do corpo. Por um tempo elas insistiram que o abuso negativo do corpo afeta o self, e também objetam qualquer culto à vitimização. Ser vítima não cria um self-vítima. O self pode não somente sobreviver à vitimização, como utilizar a experiência para crescer. Seu argumento é parecido com o de Santo Agostinho sobre a fé e a dúvida: que aquele que nunca duvidou não pode ter uma fé forte, porque a fé se fortalece ao superar a dúvida. A vitimização sexual cria dúvida sobre o self, seus valores, sua força, seu papel. Superar esta dúvida, requerer seu direito de controlar seu próprio corpo e sua própria vida, freqüentemente cria um self mais forte - e, certamente, maior auto-conhecimento; e fé interna? - fortalecimento este que não teria ocorrido sem a experiência do abuso.
Mesmo na categoria raça, um aspecto do corpo visto na maior parte da história como impermeável à transcendência, existem agora alguns sinais limitados da possibilidade de transcendência. O governo estadual e federal nos EUA tem relatado por mais de 15 anos aumento significativo do número de pessoas que recusam preencher a questão sobre raça no censo, assim como de saúde e outras questões deste tipo. Nós vemos propagandas nas salas de cinema e nos jornais argumentando que raça é uma categoria sem base científica, daquelas que deveriam ser rejeitadas e ignoradas. Em nações com população multirracial - uma categoria que inclui mais e mais nações atualmente - um número crescente de pessoas inter-raciais e multirraciais recusam identificar-se com uma única parte de sua herança biológica e cultural. Recentemente um de meus alunos me disse: “Eu sou cubano-americano. Nacionalidade é fácil, porque todos os meus parentes são cubanos. Mas uma das minhas avós é judia e casada com meu avô, um descendente da Espanha católica. Minha outra avó tinha a pele escura e feições africanas, e seu marido era meio-chinês. O que isto me faz?”
Ao mesmo tempo em que a população inter-racial continua crescendo, existem algumas evidências de que, em deferência aos valores capitalistas, raça nos EUA está submetida à classe como base de exclusão. Por exemplo, afro-americanos com educação no Ivy League e renda de milhões de dólares cada vez mais admitem nunca terem experimentado discriminação racial. Enquanto tais experiências são extremamente raras e privilegiadas, elas seriam impossíveis trinta anos atrás nos EUA. Tais exemplos não estão limitados ao mundo desenvolvido. Por outro lado, religiões e outras diferenças culturais parecem aumentar a dificuldade de transcender em cooperação.
Todos os exemplos sugerem que o corpo não pode ser simplesmente negado ou ignorado pelo self - ele deve ser virtualmente levado em consideração em todas as áreas e estágios da vida. O que acontece ao corpo afeta o self. Mas o corpo não define (ou determina) o self.
Para os cristãos, a palavra “corpo” está sobrecarregada de sexualidade. Ninguém que tenha um bom conhecimento de história da teologia cristã pode negar que muitíssima da tradicional insistência cristã na transcendência do corpo foi baseada em atitudes relativas à sexualidade. Enquanto o conceito de transcendência corporal pode ter sido originado na doutrina da ressurreição, o contexto experiencial dos teólogos que interpretavam a transcendência do corpo inclui atitudes negativas para com a sexualidade reforçadas pela adoção, por parte da Igreja, do voto do celibato como vocação preferencial que se tornou uma exigência para os ministros em qualquer condição.
Livros como o de Peter Brown, The Body and Society[21] (“O Corpo e a Sociedade”), nos ensinam que grande parte da antiga defesa da virgindade na Igreja não foi baseada somente na aversão gnóstica para com a corporeidade e a materialidade, mas representou a rejeição consciente do então modelo corrente de matrimônio em favor do celibato, que significava a liberdade em Cristo para aceitar os carismas do espírito e desenvolvê-los em novas atividades e associações. Isso parece ter sido especialmente verdadeiro para as mulheres, que, sendo mais limitadas pelas restrições do matrimônio, tinham mais a ganhar com a virgindade - daí o grande número de mulheres virgens e mártires na igreja primitiva (Houve algum homem virgem e mártir?).
Parece-me que este modelo histórico é também relevante para a rápida aceitação da contracepção artificial no século XX. A contracepção ofereceu às mulheres a liberdade de perseguir os carismas do espírito, de desenvolver mais do que seus dons maternais como donas de casa. Embora não existam dúvidas de que muitas das mães trabalhadoras de hoje gostariam de passar mais tempo com suas crianças, mas devem trabalhar em tempo integral por razões econômicas, uma grande quantidade de dados mostra que a maioria das mães trabalhadoras gostaria de combinar a importante função de cuidadora com atividades fora da casa que lhes permitissem a participação e a contribuição social, bem como a independência econômica. A relativa eficácia da contracepção moderna tem ajudado a garantir que a busca por uma variedade de carismas do espírito como uma necessidade feminina nem sempre exige a virgindade.
Pelo fato de a tradição teológica cristã ter sido amplamente escrita por homens, e homens celibatários, o tratamento dado ao corpo - à sexualidade - e ao self está focado geralmente não na fertilidade, mas no desejo sexual. Hoje há uma rejeição popular na Igreja Católica ocidental a muitos ensinamentos teológicos e pastorais do passado sobre desejo sexual, devido ao que descrevi como expansão da experiência baseada na 3ª benção de Agostinho, o vínculo sacramental. Muito da tradição cristã do passado não apenas enfatiza as duas primeiras bênçãos agostinianas do matrimônio, a prole e o evitar o pecado, como, quando tem a ver com o vínculo sacramental, mas quando tem que lidar com o vínculo sacramental, tende a descrever este vínculo como um acordo cooperativo indissolúvel voltado para compartilhar a educação das crianças. Hoje, muitos dos casais católicos entendem o vínculo sacramental no matrimônio principalmente em termos de comprometimento íntimo e emocional que está, pelo menos inicialmente, baseado na experiência marital da partilha do prazer sexual. Eles prontamente se identificam com aquilo que Gallagher, Mahoney, Wilczak e Rousseau escreveram em “Embodied in Love”[22] (“Corporificados no Amor”) acerca do sexo marital que funciona como uma escola para o amor. Gallagher et al. descrevem o sexo marital como uma experiência de abertura do próprio corpo e, por conseqüência, do próprio espírito - tornar-se vulnerável - ao esposo ou esposa, sendo recompensados por um irresistível prazer por ter assumido o risco. Este prazer é pleno de felicidade e, como toda a alegria, transborda sobre os demais que estão próximos do casal, tornado-os mais abertos entre si, para com as crianças, amigos e vizinhos. Uma das razões do prazer sexual ter a capacidade de expandir o amor é, como explica Patricia Jung, que este “nos desperta para a nossa própria beleza e valor”, para o amor próprio, assim como ajuda na manutenção da relação.[23]
O prazer sexual compartilhado é freqüentemente a base para outros tipos de prazeres compartilhados do matrimônio porque cria a confiança e a abertura que permite a partilha emocional, que, em contrapartida, nos ajuda a conhecer e ser conhecido pelo esposo(a). Quando somos intimamente conhecidos pelo Outro que continua a nos amar e apreciar podemos, então, desenvolver juntos a coragem de aceitar desafios morais, como ajudá-lo(a) a melhorar a si mesmo(a) (um negócio muito delicado!) e chegamos a poder nos confortar reciprocamente quando das inevitáveis tragédias que a vida humana nos proporciona.
Aqueles que apontam para casais de idade que não têm mais relações sexuais e concluem que o sexo não é, portanto, uma parte importante do amor conjugal, deveriam investigar como foi que esses casais desenvolveram tal devoção. Meus avós franceses me disseram uma vez que, quando eles seguravam as mãos um do outro ou trocavam um olhar de alegria ao tomar conta do sono de um novo bisneto, aquele toque carregava as memórias do prazer que eles experimentaram em cada um de seus jovens corpos nus, e este olhar reflete o olhar que eles trocaram quando pela primeira vez fitaram o primeiro fruto de seu partilhado prazer sexual. Esta, que tem sido também minha própria experiência, penso que é devida mais do que ao poder de sugestão.
Hoje há uma compreensão geral entre os cristãos de que não deveríamos abordar o desejo sexual como algo a se renunciar ou negar, mas, ao contrário, como uma espécie de bem pré-moral. Pode-se claramente fazer mau uso do desejo sexual, como na pornografia, ou em alguns tipos de violência sexual (outros tipos podem não estar vinculados de forma alguma ao desejo sexual), sedução ou agressão sexual. Mas o desejo sexual é compreendido com um bem em geral porque pode produzir prazer físico, vínculo relacional e o dom das crianças.
O desejo sexual pode também ser sublimado. É uma forma de erotismo, de sensualidade, um extravasamento da energia humana, de entusiasmo pela vida. A sublimação do desejo sexual pode transformar a energia deste em outras formas de energia criativa: arte, ciência, serviço comunitário, até teologia - magníficas conquistas humanas que enriquecem a vida comunitária. Esta é uma das razões pelas quais eu acho que seria um erro deslocar a preferência moral e espiritual pela virgindade para uma insistência, como se encontra nas tradições do Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo, no matrimônio e na procriação como vocações normativas. O Espírito dá uma variedade de dons, uma variedade de chamados. A vocação monástica é um precioso chamado, e a capacidade de vivê-lo é um dom pessoal e comunitário valioso. O corpo - aqui, na forma de desejo sexual - não deveria ser negado ou renunciado, nem a sublimação deveria se tornar normativa. Os humanos deveriam usufruir uma grande liberdade na determinação de como devem interpretar o papel de seus corpos na resposta ao chamado do espírito, seja como indivíduos ou como membros de uma cultura particular sob circunstâncias históricas particulares.
Existem também pressões morais sobre nós para o uso do desejo sexual. A crise ecológica de hoje, devida em grande parte ao aumento da população global, assim como ao uso desregrado dos recursos pelas partes ricas dessa mesma população, sugere que o desejo sexual humano deveria ser sempre menos identificado com a procriação. Isto sugere um certo distanciamento de si dos papéis físicos da maternidade e paternidade. Devemos persuadir aqueles casais que no passado teriam compreendido seu próprio sentido social como dependendo do ser pais de uma dúzia de crianças, para que fundem suas próprias identidades na combinação de papéis e não simplesmente no maternidade/paternidade. Começamos este estágio avançado de transição demográfica na América do Norte e na Europa, mas esta mudança intimida as nações pobres, onde existem poucas alternativas de papéis disponíveis, através dos quais seja possível construir o self.
Como argumentei em outro lugar,[24] no último século a compreensão do self sexual foi ampliada num grau estonteante. Até o século XX, virtualmente todos no mundo entendiam que, quando uma criança nascia, sua genitália indicava aquilo que nós distinguimos agora como sexo, gênero e orientação sexual. Se a criança tinha um pênis era entendida como varão, que assumiria o papel social aceito para os varões naquela sociedade e seria sexualmente atraído pelas mulheres.
Durante o vigésimo século, cada uma dessas três deduções, feitas a partir da genitália, foram desafiadas. Em primeiro lugar, o gênero foi separado da genitália graças ao estudo antropológico a respeito de outras sociedades nas quais os papéis masculinos e femininos eram muito diferentes daqueles designados na nossa sociedade. Chegamos a ver o gênero como construído, socialmente definido. O movimento das mulheres, no qual as mulheres assumiram com sucesso papéis até então restritos aos homens, acelerou fortemente a disseminação dessa compreensão. Em segundo lugar, a orientação sexual foi separada da genitália. Começando com Kinsey,[25] através do trabalho de Hooker[26] e de muitos outros, a homossexualidade começou a ser entendida não como um desvio, mas como uma orientação alternativa, que muitos cientistas acreditam hoje estar baseada numa predisposição genética afetada de formas diferentes pelo ambiente. Ter um pênis não desqualifica ninguém para ser enfermeiro ou dono de casa, nem assegura a ninguém que será atraído sexualmente pelas mulheres. Note-se que em ambos está envolvido o distanciamento do corpo de uma parte da identidade sexual. O próprio corpo não determinade nenhuma forma direta, o gênero ou a orientação sexual.
A maior parte de nós aceitou essas duas revisões de uma compreensão anterior sobre sexualidade e familiarizou-se com a linguagem para lidar com elas. Entendemos sexo como referido ao sexo biológico, gênero para nos referirmos aos papéis baseados na interpretação social do sexo, e orientação sexual para fazer referência à atração sexual em relação ao mesmo ou ao sexo oposto. Todavia, ainda não aprendemos a linguagem adequada para lidar com o último desafio, que mina o remanescente último vínculo direto entre corpo e identidade sexual: o sexo. Biólogos, influenciados pelas novas aberturas postas pelos conceitos de gênero e orientação, foram gradualmente aceitando que sexo também não é tão simples, e é algo muito mais amplo do que comumente se acredita. De fato, eles dizem, aquilo que nós todos chamamos sexo - masculinidade ou feminilidade - é, na verdade, composto por seis componentes biológicos diferentes, que nem sempre assumem os modelos dimórficos da masculinidade e da feminilidade. Não há também clareza a respeito da prioridade desses seis fatores na definição do sexo - algumas pessoas definem o sexo com base na genitália, outras com base no sexo cromossômico, e outras enfim no sexo do cérebro (que freqüentemente influencia a identidade sexual que é experienciada pela pessoa). Na comunidade cientifica dos Estados Unidos encontramos todas as formas diferentes de definir o sexo com base em critérios biológicos. E, de fato, os biólogos frisam que mesmo dentro desses critérios não há um claro modelo dimórfico. Por exemplo, enquanto a maioria dos humanos é XX ou XY, há milhões de humanos cujo modelo cromossômico é XO, XYY, XXY, XXX e até muito raramente XXXX. Se olharmos para os níveis hormonais ou para os efeitos dos hormônios no cérebro (sexo cerebral), vemos um espectro se abrindo entre dois pólos.Os paradigmas dimórficos para a compreensão do sexo, e para a compreensão do sexo como um dado biológico, estão ambos desmoronando. O mais persuasivo disso é a evidência científica, mas a evidência social também vem sendo acumulada. A cultura jovem no Ocidente é sempre mais unissex na aparência, e a mídia global espalha essa cultura. As modelos, freqüentemente entendidas como o ideal físico das mulheres, têm sempre mais o corpo, o corte de cabelo e até as roupas de jovens varões. Roupas trocadas são moda entre os artistas e mesmo entre figuras do esporte. Nas praias de Miami, Rio, Maui e da Riviera pode-se ver freqüentemente transexuais em vários estágios do processo de transformação. A linguagem da mídia adaptou-se: no politicamente correto, a frase “gay, lésbica, transexual e pessoas transgênero” está agora na ponta da língua.
Assim, ao mesmo tempo em que o corpo humano é sempre menos compreendido como um dado e sempre mais aberto a uma (re)construção, o sexo do corpo humano sofre paralelamente uma transformação parecida em nossa compreensão social, passando do dado ao construído. Este deslocamento do sexo da categoria do dado biológico para aquela do dado socialmente construído reduz ulteriormente o impacto do corpo na identidade sexual.
A cultura moderna, especialmente a jovem, está, penso, tateando na direção de uma nova compreensão da relação do corpo com a identidade. Aonde vamos parar ainda não está claro. Observando a cultura, somos surpreendidos por aquelas que parecem inicialmente como duas direções opostas. Num primeiro nível, o corpo parece ter uma grande importância para a identidade individual. Jovens que ainda estão construindo sua própria identidade no processo introspectivo iniciado na infância certamente entendem o corpo como central para o self que manifestam em cada momento. Se o corpo não fosse importante, não veríamos os cortes de cabelo multicoloridos e de vanguarda dos jovens de todo o mundo, não veríamos os anéis de metal pendurados nas sobrancelhas, línguas, narizes, orelhas, umbigos, e outras mais privadas partes do corpo, e não teríamos cicatrizes ou tatuagens em ombros, tornozelos, peitos e nádegas. Essas decorações corporais têm a função de serem declarações de identidade. Se o corpo não fosse importante para a identidade individual, os jovens homens e mulheres não estariam enchendo as academias dos países desenvolvidos na tentativa de mudar suas psiques. Não estou querendo dizer que o corpo é menos importante para a identidade individual do que no passado. Mas, me parece que mudou a importância do corpo para a identidade individual, de forma que o corpo não é tão somente a fonte da influência na formação da identidade pessoal ou daquela sexual, como era no passado, mas é agora mais a base sobre a qual cada um expressa a si mesmo naquele momento. Porque o corpo não é uma tabula rasa, ele é sempre mais entendido como um meio para a comunicação ao invés de ser o próprio self se comunicando ou, então, um complemento (ideal) dependente do self moral.
O corpo tem ainda uma importância crítica para a identidade individual como um todo, mas seu significado está mudando, o que acarreta sérias conseqüências para a identidade sexual. Nós sempre entendemos mais o corpo como uma construção, seja ele esculpido ou projetado. Fazemos por nossa conta parte da escultura e entregamos aos profissionais a realização do projeto - cirurgiões, treinadores físicos, esteticistas, tatuadores, nutricionistas, cabeleireiros, etc. Eu tenho uma mãe (minha mãe) com dois joelhos artificiais, um filho com um transplante de rim e uma prótese no testículo, uma cunhada com implantes nos seios e um primo de segundo grau que é um transexual em transição de varão para mulher - e tenho certeza de que há outras (re)construções na família que me são desconhecidas! Se o Iluminismo nos levou à Era da Ciência, na qual chegamos a compreender os humanos como co-criadores do mundo, chegamos agora a compreender nós mesmos como co-criadores dos nossos próprios self, incluindo nosso corpo. Conforme esta compreensão se espalha, será talvez inevitável que a visão do sexo, baseada na expressão do corpo, comece a desmoronar.
Hoje, enquanto permanece a corporeidade de cada pessoa humana, existem sempre menos e menos aspectos deste corpo que precisam ser aceitos como são. Temos reivindicado o direito e a capacidade de controlar muitos aspectos da saúde, do físico, do ser hábil/deficiente, da sexualidade e da aparência, e temos, na cirurgia genética, provavelmente como ápice, a possibilidade de projetar nossas crianças ou netos numa maior escala. Os livros e filmes de ficção científica sobre cérebros bióticos/robóticos e transplantes de cabeças parecem estar apenas uma geração à frente da nossa tecnologia, nos empurrando na direção em que o self ainda está ligado ao corpo, mas onde corpos podem ser trocados à vontade da forma como hoje estamos, cada vez mais, trocando partes do corpo e incorporando outras produzidas, como marca-passos, corações artificiais, pele e articulações de plástico.
Parece-me que o primeiro e o quarto dos aspectos do self moderno de Taylor (desvinculação radical da própria localização pessoal e social no mundo, e a convicção moderna de que nossa humanidade depende da capacidade de autonomia e de ação auto-regulada) têm, se não mudaram completamente, provavelmente se reforçado no último período moderno/pós-moderno. Mas eu vejo na descrição acima, sobre a experiência contemporânea, uma confusão ou obscurecimento do segundo e terceiro aspectos do self moderno de Taylor (a percepção de uma unidade pessoal e de fronteiras pessoais claramente definidas, e a crença na “profundidade interior” da pessoa). Nos Estados Unidos, por exemplo, os jovens de hoje não sentem mais, ou cada vez menos, a necessidade de passar suas vidas em sua cidade natal, de serem batizados, casados e sepultados na mesma congregação religiosa de seus pais, e os jovens de hoje são parecidos com seus pais e avós ao considerarem que sua capacidade de tomar essas decisões, de forma independente, é o que os torna humanos. Mas os jovens de hoje não têm, por outro lado, um senso tão forte de fronteiras definidas, nem estão tão certos como a geração anterior de que todos nós temos “profundidade interior”.
Suspeito de que a mudança na direção de experimentar o corpo como construído tem muito a ver com a diminuição do senso de unidade pessoal, assim como de fronteiras pessoais bem definidas. Deve ser mais difícil manter fortes fronteiras pessoais quando estamos ao mesmo tempo incorporando em nós mesmos partes de outras pessoas, partes de máquinas ou mesmo uma variedade de substâncias psicotrópicas (tranqüilizantes, antidepressivos e uma série de outras drogas psiquiátricas). Não são, por outro lado, tais mudanças limitadas a uma pequena elite em algumas partes do mundo; muitas delas, incluindo partes artificiais do corpo, estão gradualmente se tornando tratamentos comuns também nos países pobres dilapidados pelas guerras, como na África e Ásia - pense nas vítimas dos campos minados no Vietnam, Laços e Camboja, ou nas vítimas das amputações militares na África Ocidental. E além do mais, como poderíamos manter fronteiras quando ao mesmo tempo a reconstrução e manutenção dos nossos corpos e mentes se apóia numa variedade de especialistas, cirurgiões plásticos a treinadores esportivos e terapeutas? As organizações de caridade que oferecem cirurgias gratuitas de correção para crianças nascidas com o palato fendido representam o primeiro passo na direção de válvulas cardíacas, transplante de órgãos, aumento dos seios e do pênis.
Na passagem da pré-modernidade para a modernidade, os seres humanos desenvolveram fronteiras bem definidas, isolando a si mesmos da família extensa e das demais comunidades nas quais eles foram inseridos. Agora, aquelas mesmas fronteiras, muito estranhamente, estão se tornando sempre mais permeáveis - não para as relações pessoais ou coletivas, mas para aquelas impessoais e instrumentais.
Ao mesmo tempo, o sentido do ser humano como tendo uma “profundidade interior” parece estar sendo seriamente corroído, graças, também, à influência do instrumentalismo. Por exemplo, se olharmos para o desenvolvimento da tradição dos direitos humanos dos últimos duzentos ou trezentos anos, parece que até recentemente esses direitos foram entendidos como se referindo à profundidade interior das pessoas humanas, como qualidade inalienável da dignidade e do valor. Hoje, os direitos humanos são sempre mais entendidos como uma convenção útil, como um instrumento para a conquista da justiça e da estabilidade social para os humanos, mas aos quais falta uma clara e consistente fundamentação. A pluralidade religiosa é uma das razões desta mudança, sendo que, se algumas religiões podem abrigar uma tradição de direitos humanos, outras não a possuem ou, talvez, não possam.
Não precisamos olhar para o cínico abuso da tradição dos direitos humanos na política internacional para ver essa transformação; é suficiente olhar para os debates acerca da especificidade e antropocentrismo no interior da literatura relativa ao meio ambiente. Pelo fato de estarmos compreendendo a pessoa humana mais como algo a ser construído e menos como tendo um caráter que lhe é dado, nos tornamos cada vez menos capazes de definir “a profundidade interior” e, assim também, com menos certeza de que ela existe. Alguns dos aspectos da moderna cultura tecnológica oferecem suporte a essa dúvida, como a intolerância para com o tédio, a solidão e a quietude, e uma distração extrema acompanhada por uma curta capacidade de atenção. Se não tivermos desenvolvido nossa própria capacidade para a profundidade interior, não poderemos, da mesma forma, esperar que outras pessoas tenham profundidade interior. Na medida em que o corpo serve agora como anúncio do self do momento, compreensões acerca da profundidade interior vão provavelmente colapsar no “próximo self”, que também será anunciado pelo corpo. Supomos, então, que as pessoas possam, façam e expressem, no corpo e sobre o corpo, tudo que elas são e, que algumas vezes, ouçam-se expressões não apenas de admiração, mas de raiva e sentimento de traição quando ocorre a descoberta de caminhos secretos em amigos e familiares.
As experiências construtivistas do corpo e os modelos construtivistas do self levam a questões complexas e específicas para a teologia e a teologia moral, algumas das quais têm sido longamente debatidas dentro da Igreja. Todos nós temos familiaridade com as discussões de bioética relativas aos possíveis limites da reconstrução humana, especialmente, mas não exclusivamente, a experimentação com embriões. Pode o status da humanidade co-criadora com Deus autorizar uma terapia embrionária que transforme não somente a nós mesmos, mas aos nossos descendentes? Quais outros limites morais, se há, podem existir para a autoridade humana na reconstrução da natureza criada dos seres humanos?
De forma semelhante, questões a respeito da continuidade do self têm sido longamente centrais nas discussões sobre o divórcio; ministros, padres, advogados e juízes escutam casais que relatam que um ou outro parceiro não é mais a mesma pessoa, mas se tornou um estranho, não a pessoa com a qual os votos foram feitos. Hoje este argumento tornou-se mais forte, mais comum e mais persuasivo do que nunca, não somente no contexto do matrimônio, mas numa variedade de outros relacionamentos ao longo da vida.
Se o corpo é plástico no sentido de ser radicalmente reconstituível e o self sexual é reversível em todas as categorias sexuais do sexo, gênero e orientação sexual, então a questão que se apresenta é se o self é contínuo ou descontínuo. Quando eu era jovem, a questão da continuidade do self nos estudos de religião era primordialmente focada na Ressurreição e Reencarnação. O Jesus ressuscitado tinha o mesmo self de antes? Nós o teríamos? E quais dos aspectos do self precedente seriam reencarnados no novo self no sistema oriental de reencarnação? Mas o pouco espaço de tempo relevante na questão da continuidade do self foi agora drasticamente encurtado. Hoje os meus estudantes perguntam como podem ter certeza de que eles têm o mesmo self mês após mês, ou até mesmo de um lugar localização à outra. Alguns dos meus estudantes indonésios falaram que são pessoas diferentes em casa, em suas aldeias em suas ilhas e quando estão na universidade em Java. Um dos alunos americanos me disse que parou de fazer a confissão porque, confessando o pecado, ele era sempre uma pessoa diferente daquela que o tinha cometido. Num certo nível, isso soa como a combinação de radicalização, ficção científica e talvez doença mental. Mas muitos desses meus estudantes passaram por sérias transições de vida que lhes estimularam essas questões. Alguns foram refugiados que ficaram à deriva em frágeis jangadas sobre as quais muitos morreram ao tentar chegar nos Estados Unidos. Outros falam de pais ou parentes que sobreviveram meses, até mesmo anos, a torturas em seus países nativos, mas saíram juntos disso tudo como pessoas diferentes. Alguns viram seus pais passarem por divórcios difíceis que os levaram a caminhos de vida radicalmente novos, parecendo até ter novas personalidades. Eles entendem a relacionalidade humana como o fato de que novas relações e novas condições vão mudar o self. Eles se perguntam em que momento a mudança se torna tão grande que aparece um self diferente?
Esta é uma questão mais ampla do que uma opção fundamental da teologia. Se a opção fundamental entende o self como em desenvolvimento, uma cebola com muitas camadas, este novo self pós-moderno parece não ser nada orgânico. Este self é como um filme contemporâneo feito com curtas e múltiplas tomadas de cena. Não há centro, as tomadas de cena não estão necessariamente em ordem cronológica, e elas podem ter características inteiramente diferentes umas das outras. Diferentemente da opção fundamental, em que o “salto” no self é compreendido em termos de uma mudança básica em direção a, ou se afastando de Deus (o bem), no exemplo pós-moderno o novo caminho não é necessariamente melhor ou pior do ponto de vista moral do que o antigo; é “meramente” radicalmente diferente, de maneira que faz com que o self se torne radicalmente diferente.
No nível moral, esta possibilidade de que a pessoa encarnada não é contínua, mas uma série descontínua de self, é desconfortável. Para muitos isso vai parecer próximo demais da esquizofrenia. Indo ao ponto: o que poderia significar a conversão religiosa para uma série de self? Qual desses self é salvo? O que a salvação poderia significar?
Como se essas questões não intimidassem o suficiente, ainda há uma outra série inteira de desafios para a nossa compreensão da relação do corpo com o self, especialmente com o self moral e relacional, vindos de alunos como Linda Holler, em seu “Erotic Touch: The Role of Touch in Moral Agency” (“Toque Erótico: o papel do Toque na Ação Moral”). Holler examinou uma pesquisa com pessoas autistas e com vítimas de acidentes que sofreram danos na parte frontal do cérebro; o trabalho mostra que o julgamento moral é profundamente deteriorado quando há uma disfunção dos mecanismos sensórios e afetivos do cérebro, de modo que a pessoa não consegue acessar mais os sentimentos dos outros. Aos corpos de algumas pessoas simplesmente falta o mecanismo físico de base - o hardware - de que precisamos para ter a capacidade de responder corretamente aos outros. A grupos relativamente grandes de pessoas não somente falta aquilo que Holler apresenta como os instrumentos necessários para reconhecer a ação moral adulta; eles também não são orientados pelos modelos contemporâneos de educação moral. Holler discute que temos de fato compreendido de forma errônea - ignorado - a interação mútua entre nossos corpos e nossos selfs moral e relacional. O corpo não age meramente por fora do self; o corpo coloca a delimitação inicial para o desenvolvimento do self e é depois fisicamente afetado pelas condições, decisões e escolhas do self.
A respeito dos limites que o autismo imprime ao comportamento, por exemplo, Holler explica que as pessoas autistas experimentam o toque físico como incômodo, que pode até doer seriamente, ao mesmo tempo em que experimentam a mesma necessidade de conforto, calor, proteção e comunicação que os outros. Por serem excessivamente sensíveis a todo estímulo sensório, os autistas são incapazes de conectar-se fisicamente com os outros - freqüentemente até incapazes de estabelecer um confortável contato visual - de modo que não têm acesso aos sentimentos alheios. Eles têm assim pouca habilidade para entender as reações externas adversas ao seu próprio comportamento ou de esclarecer suas necessidades para que sejam satisfeitas. Eles são símbolos, diz Holler, do indivíduo isolado que os pensadores contemporâneos têm criticado no pensamento cartesiano. Seu isolamento é um obstáculo crítico para o processo ordinário de moral. Sem o acesso aos sentimentos dos outros, até o mais básico dos ensinamentos morais falha no ensino. Não é suficiente, por exemplo, nutrir o faminto quando nós sentimos fome - as pessoas precisam de comida quando têm fome. Holler escreve:
… as atitudes dos autistas seguem rigorosamente uma lei - e só podem compreender regras que não têm exceções. Eu especulo que eles devam ser assim porque estão alienados de suas próprias vidas emocionais e, assim, da vida interior dos outros. Agindo conforme regras abstratas e absolutas, e não pela conexão subjetiva, Barry, que tem a Síndrome de Asperger, diz “Eu nunca mataria alguém, visto que odiaria morrer numa cadeira elétrica ou ficar na prisão perpétua.”Perfeitamente adaptados ao sistema comportamental da justiça, os autistas vêem a correspondência entre comportamento e punição como um-por-um, ou como um simples problema de matemática. O contexto do ato, a vida da outra pessoa envolvida, e todas as outras conexões sociais e emocionais, são irrelevantes frente à análise custo/benefício.
....Os autistas geralmente não podem fingir, dissimular, ou mentir, e descrevem indiscrições em detalhes, sem vergonha ou embaraço. Porque estão fortemente inconscientes de que os outros têm vidas subjetivas, eles não podem machucá-los intencionalmente. Ao mesmo tempo, eles são rigidamente legalistas quando buscam orientações para o comportamento. Infelizmente, pelo fato de não poder entender que os outros têm vidas subjetivas, eles também não podem compreender que estes podem violar a lei, e assim eles podem ser presas fáceis dos que desejam aproveitar-se de sua confiança indiscriminada. [O extraordinário Templo autista] Grandin prontamente admite que quanto ela se afasta dos assuntos morais, os quais entende autenticamente por sua própria sensibilidade erótica - seu amor pela família e seu trabalho e seu trabalho para eliminar o sofrimento de rebanho - é forçada a tomar decisões se referindo a um “vasto banco de dados” e ao processo de eliminação. Ela compara si mesma a um andróide no exemplo acima, porque se dá conta de que é impossível aprender intimidades sociais ou capturar experiências subjetivas somente pelo processo da cognição abstrata.[27]
Sem o acesso aos sentimentos dos outros, diz Holler, o único caminho moral para essas pessoas é a deontologia. Eles exigem regras claras e absolutas como seus guias para a agir moralmente.
Holler cita também o trabalho de Antonio Damasio com pacientes portadores de danos cerebrais, descrito em seu livro “Descartes’ Error” (“O Erro de Descartes”).[28] Trabalhando por intermédio de sua experiência com deficiências comportamentais desses pacientes, Damasio insistiu que razões práticas parecem impossíveis sem marcas somáticas, que Holler explica como
… o corpo fica ligado a imagens e eventos derivados do nosso passado. Marcas somáticas são recordações significativas que ligam as experiências de nossas vidas com os estados de espírito que aquelas experiências produziram, agradáveis ou não. Como uma forma de registrar nossa colocação presente, as marcas somáticas oferecem alarmes e sinais para guiar nossas decisões de vida. ... Damasio sustenta que há dois níveis para a codificação de nossas vidas corporais e emocionais no cérebro. O primeiro nível depende do circuito do sistema límbico, particularmente da amídala e do giro cingulado anterior. As respostas desse sistema são inatas no sentido de que nascemos prontos para responder aos estímulos sensórios, tanto de prazer como de dor, e àquilo a que chamamos de emoção primária, como o medo. O sistema límbico [desses pacientes com danos no cérebro frontal] é intacto, o que explica o fato de Elliot responder com medo quando alguém o surpreende durante o teste de condutância cutânea. Mas o que Elliot e todos aqueles com danos no cérebro frontal não podem fazer é formar conexões sistemáticas entre as emoções primárias e as situações, ou seja, não podem formar emoções secundárias, das quais as marcas somáticas são um exemplo especial. Elliot, em outras palavras, não poderia expandir seu sentimento de medo, sentido num momento de medo, a uma situação na qual ele poderia com razão estar com medo.[29]
Se as pessoas com danos no lobo frontal do cérebro perderam a habilidade para conectar emoções com situações, os autistas, que são hipersensíveis à estimulação, não podem tolerar o excesso sensorial doloroso da intimidade - toque, som, olhar. Eles não conseguem ler as emoções nos rostos ou na postura corporal dos outros - nem de dor ou alegria, decepção ou raiva. O caso deles é extremo. Mas Holler aponta que há muitas pessoas com graus leves de autismo que passam desapercebidas em nossa sociedade, assim como há muitos com desordens do lobo frontal. A evidência sugere que as condições ambientais, especialmente a privação do toque nos recém-nascidos, podem ter sido a causa dessas desordens, como no caso de mais de dezoito crianças da Europa Oriental adotadas nos Estados Unidos durante os anos 90. Retiradas de situações de negligência severa e abuso em instituições sem recursos, às vezes após anos, 20-30% dessas crianças têm persistentes e severos problemas emocionais de comportamento, incluindo violência criminal e autodestruição.[30] A elas faltou a nutrição física e emocional que dá suporte ao crescimento físico, intelectual e emocional.
Estudos mostram que bebês prematuros que são acariciados e cujos membros são flexionados ganham 20% mais peso do que aqueles com as mesmas calorias e nenhuma carícia. Mães e crianças com problemas patológicos de desenvolvimento os tocam menos durante a amamentação e o jogo. Bastam trinta minutos por dia de “método canguru” com bebês prematuros - segurando o bebê no peito do adulto em contato pele-contra-pele - para estabilizar seus batimentos cardíacos, respiração e temperatura, normalmente instáveis, e encurtar em um terço sua internação hospitalar.[31]
Outros tipos de variação na sensibilidade aos outros parecem também não ser baseados na biologia, mas na relação social.[32] Pesquisa recente mostra que quando são dadas fotos de rostos de pessoas mostrando diversas emoções, a pontuação das mulheres americanas era mais alta em saber ler as emoções retratadas que os homens americanos.[33] E, muito interessantemente, enquanto as mulheres apresentavam igual habilidade em decifrar emoções positivas ou negativas, a pontuação dos homens era quase a mesma das mulheres quando se tratava de reconhecer as emoções positivas, mas muito baixa quando deviam reconhecer as negativas. Não está claro como esta menor sensibilidade dos homens para com as emoções dos outros é aprendida, mas, visto que os meninos são tocados menos que as meninas, e o toque entre pai e filho é mínimo em nossa cultura, quando comparado àquele entre mãe e filha, temos aqui umas pistas para ulteriores explorações.[34]
Existe algum modo de integrar todas essas observações num quadro coeso de relações entre corpo e self? Claramente, o corpo dá bases ao self, mas não o exaure, e este pode desenvolver um elemento - mesmo um elemento forte e proeminente - de transcendência do corpo. Além disso, aqui vão algumas observações experimentais:
1. Muito estranhamente, é na área da sexualidade, que tem convulsionado tanto as sociedades modernas atuais, que a conclusão é talvez a mais clara. Se nenhum dos aspectos sexuais do self é intrínseco à auto-identidade, mas acidentais no sentido de serem reversíveis ou capazes de reconstrução, então não faz sentido estabelecer bases morais sobre esses aspectos. Atos que são mutuamente agradáveis, responsáveis e realizados fora do amor não se tornam ruins porque um dos parceiros assume um novo gênero ou orientação. A sexualidade é uma área da vida na qual as mesmas orientações morais cristãs deveriam ser aplicadas como o são em outras áreas da vida. Ao mesmo tempo, os votos deveriam ser mantidos sempre que possível.
2. Ao mesmo tempo em que estou querendo levar em consideração a possibilidade da descontinuidade dos self em certas circunstâncias, me parece que os seres humanos têm uma capacidade radical de mudança. Muitas pessoas interpretam um papel e começam a ser alguém muito diferente em total auto-segurança: o presidente da diretoria que se aposenta e vai pescar no lago, donas de casa que, depois que seus filhos saíram de casa, fazem Direito e se tornam advogadas, viúvas e viúvos que se casam com pessoas completamente diferentes de seus amados e perdidos(as) esposos(as), conduzindo vidas muito diferentes, migrantes que adotam inteiras culturas e hábitos novos. Assassinos soltos sob liberdade condicional abrem abrigos para ex-condenados. Um self mudado não é, por si mesmo, uma indicação de um self diferente. Não deveríamos pegar nossos símbolos - como a imersão batismal e novos nomes - demasiadamente ao pé da letra. As conversões que vemos na vida de muitos santos foram mudanças radicais, mas uma parte importante da vida dos santos constitui-se na aceitação da responsabilidade pelo self que ele ou ela foram antes da conversão.
3. Isso traz à tona o maior perigo da idéia da descontinuidade dos self: ela pode desestabilizar a responsabilidade social. Se for um self novo, então não estou mais vinculada às promessas feitas pelo meu self anterior e às responsabilidades aceitas por este? Seria o modo errado para argumentar que o sistema sacramental - reconciliação, por exemplo -, requer um self contínuo, pois a antropologia deve fundamentar a teologia, e não o contrário. Mas o bem humano comum é um aspecto importante da antropologia. Temos crianças abandonadas demais em todo o mundo atualmente, para não mencionar outros compromissos que precisamos manter. A relatividade humana requer que sejamos capazes de confiar uns nos outros para manter nossas promessas, para aceitar nossas responsabilidades. O ponto fundamental aqui deve ser que se nós nos entendemos como quem está assumindo novos self, pelo menos a maior parte das responsabilidades básicas entre as pessoas deveriam ser transferidas para o novo self.
A ênfase nesse tipo de manutenção das promessas não foi um ponto forte na história da Igreja. Um número grande demais de convertidos, e às vezes em sociedades polígamas, ainda tem permissão de abandonar suas esposas e filhos como não sendo mais responsabilidade deles, uma vez que se tornam um novo self com batismo. Essa história ecoa hoje em algumas dioceses dos Estados Unidos quando bispos católicos recordam a padres casados que eles podem ter suas vocações de volta se abandonarem suas famílias.
4. Que tipo de situações poderia justificar entender os selfs de um corpo individual como descontínuo? Se o self é formado através de um processo social que envolve conhecimento refletido, ele é mantido pela memória e pelas relações contínuas, que parecem ser interligadas. Os mais velhos parecem ser mais vulneráveis ao mal de Alzheimer quando eles têm círculos sociais menores e com pouca interatividade. Vice-versa, a deterioração da memória e todos os processos associados parecem ser retardados nos pacientes com mal de Alzheimer que mantiveram a interações com pessoas com as quais têm antigas recordações. Nossos self são até um certo ponto o que pensamos (pensávamos) que somos e o que outras pessoas pensam (pensavam) que somos. Assim, em larga escala, a perda persistente de memória, especialmente quando associada com a perda de relações básicas do self, poderia constituir a condição para a emergência de um novo self.
5. Como deveríamos entender o self no caso de pacientes com Alzheimer? Aqueles de nós que já lidaram com o mal de Alzheimer sabem que esta doença não produz meramente o regresso de suas vítimas para os primeiros estágios de suas vidas, mas pode alterar a estrutura básica da personalidade, transformando pessoas calmas e pacíficas em agressivas, e aventureiros destemidos em pessoas medrosas e paranóicas. Podemos não concordar sobre se o novo “self” está enraizado em aspectos suprimidos do antigo self, ou se é produzido por danos casuais produzidos pelo processo doentio no cérebro, mas não compreendemos isso como o mesmo self, não importa quanto dure ainda mais se consideramos o delírio insensato de alguém saindo de uma anestesia como indicador de um novo self. Normalmente nesses casos falamos da morte ou ausência do self como se não houvesse nenhum self. Esta é a linguagem apta para os casos de Alzheimer em rápida progressão, nos quais o self alterado rapidamente conduz à perda da fala e da comunicação juntas, mas deixa muitas famílias e cuidadores sem poder entender a pessoa humana em lenta deterioração à sua frente, cuja coerência, memória, habilidade para manter relações, viver de forma independente e tomar decisões racionais pode dar três passos atrás e dois à frente num irregular, mas inexorável percurso que dura anos.
Nos casos de pessoas que sofreram traumas severos no cérebro, resultando em comportamentos e emoções radicalmente diferentes, podemos ler as evidências como indicativas, seja de um segundo self, seja de um self danificado. Nos casos por nós descritos poderíamos ter dificuldade ao descrever o self pós-trauma como igual, mas diferente, do antigo - o último self é claramente defeituoso, incapaz de funcionar com sucesso pela sua capacidade diminuída de receber comunicações e/ou de processar os dados que chegam e responder apropriadamente. Mas há muitos outros casos que não são tão claros. Precisamos de muito mais informação sobre a relação entre o mecanismo do cérebro, as emoções humanas e o comportamento humano. Precisamos dessa informação para objetivos de cuidados pastorais e de ética aplicada.
6. Talvez o maior desafio para a teologia moral contemporânea e a educação hoje é o autismo. O modelo dominante de educação moral é o processo de formação da consciência que toma por garantido que o self cuja consciência está em formação lê fielmente os estímulos sensoriais vindos de seu próprio corpo e os sinais verbais e não-verbais dos outros. Cada etapa da formação da consciência depende dessa assunção dupla, que não está bem fundamentada para os autistas. O modelo corrente assume o aprendizado da conduta moral ao longo da vida como baseado em nossa habilidade em atender e perceber as conseqüências das nossas decisões sobre o resto. Os autistas não podem acessar grande parte das conseqüências de seus atos - especificamente, eles não podem acessar o impacto emocional de suas decisões e ações sobre os outros. A cebola do modelo de aprendizado social do self - que cresce camada após camada pelas decisões e ações, percebendo as reações dos outros e então respondendo com novas decisões e ações às respostas deles - não é relevante. Como Holler fez notar, o self do autista é mais isolado, recebe menos dados (porque não agüenta receber mais) e, conseqüentemente, deve basear a maior parte de suas decisões morais sobre regras externas. Ser bom, então, não significa agir a partir do coração, ou atender as necessidades de um específico Outro, mas seguir regras gerais voltadas para o bem estar de um genérico outro. Obedecer a regras ao invés de responder às necessidades do self e dos outros não oferece um retorno positivo para nós, sobre o que é ser moral. O “bom” comportamento tem muito pouco a ver com ser reforçado por prêmios, gratidão, amor, ou simplesmente boa vontade. E mesmo que os gestos dos autistas provoquem tais recompensas, o autista parece estar inconsciente dos mesmos. Devemos repensar o processo de construção dos self humanos com mais atenção para com as diferenças dos corpos, tendo em mente que pode haver mais de um modelo de construção - até mesmo de uma construção adequada - em funcionamento. Em certo modo, o self autista é como o self pré-moderno, mais focado sobre o externo do que sobre o interno, sobre o social mais do que o pessoal. No interior de um sistema moral plural, aquele que reconhece mais de um método de desenvolvimento moral, um self mais pré-moderno não é necessariamente uma desvantagem moral. A modernidade certamente não teve nenhum monopólio sobre a santidade.
Agora, as evidências indicam que o corpo estabelece alguns limites definitivos sobre a informação inicial do self, que idealmente é nutrido tatilmente durante os primeiros anos relacionados com o desenvolvimento daqueles mecanismos físicos que suportam as capacidades intelectuais, emocionais e morais do self emergente, e que a interação com os outros é necessária para o desenvolvimento daquelas capacidades. A peça que mais amplamente é ausente nas evidências biopsicológicas para o desenvolvimento do self é aquela relativa à velhice e à morte. Podemos esperar para a próxima década descobrir até que ponto os dados - hoje inconclusos - dão suporte à suposição religiosa comum de que o processo de envelhecimento avançado inclui uma gradual retirada das relações humanas e das coisas desse mundo e o desenvolvimento de um foco mais interior, espiritual.
[*] Título original do texto: “Body, self and sexual identity: reflections on the current evidence”.
[**] Professora catedrática do Department of Religious Studies, Florida International University, Miami, EUA, e autora de diversos artigos e livros sobre ética religiosa, especialmente relacionada a questões da sexualidade.
[***] Integrantes do Grupo de Pesquisa Gênero e Religião da PUC/SP.
[1] O self é algo relativo à pessoa como um todo: identidade pessoal e autoconsciência estão implicadas na noção do self. Portanto, não se trata do corpo, nem na mente, nem do espírito. Mas de da consciência encarnada de uma pessoa individual.
[2] Elaine Scarry, The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World (New York and Oxford: Oxford University Press, 1985)
[3] Katie Conboy, Nadia Medina, and Sarah Stanbury, eds, Writing on the Body: Female Embodiment and Feminist Theory (New York: Columbia University Press, 1997); Jean Arthurs and Jean Grimshaw, edts., Women´s Bodies:Discipline and Transgression (London and New York: Cassel, 1999); Judith Butler, Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (New York:Routledge, 1993); James B. Nelson, Body Theology (Louisville, KY: Westminster / John Knox Press, 1992); Caroline Walker Bynum, Fragmentation and Redention: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion (New York: Zone, 1992)
[4] Charles Taylor, Sources of the Self: The Making of the Modern Identity (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989).
[5] Robert A. Di Vito, “Old Testament Anthropology and the Construction of Personal Identity.” Catholic Biblical Quartenly 61 (1999): 217-239, citing Taylor, Sources, 111-126
[6] Marguerite Porete, The Mirror of Simple Souls, Translated by Ellen K. Babinsky (New York: Paulist, 1993).
[7] Charles Curran, “Conscience”, in Curran, Themes in Fundamental Moral Theology (Notre Dame, In: University of Notre Dame Press, 1977) 191-231; Timothy O´Connel, Principles for a Catholic Morality (new York: Seabury, 1978) 45-97.
[8] Boston Women´s Health Book Collective, Our Bodies, Ourselves (Simon and Shuster, 1969) as well as the 1976 second edition and the 1984 The New Our Bodies, Ourselves.
[9] M. l., Oster-Granite, F.F. Ebner, “Developmental Processes and Pathophysiology of Mental Retardation”,, “Mental Retardation and Developmental Disabilities Research Reviews 2.4 (1996): 197-208; H.A. Delemarre-van de Waal, “Environmental Factors Influencing Growth and Pubertal Development”, Environmental Health Perspectives 101.2 (1993): 39-44
[10] Diane Dunagan and Danni Odom-Winn, “Crack Kids” in School: What to Do/How to It. Freeport, NY: Educational Activities, 1991); R.A. Bashore, J.S. Ketchum, K.J. Smisch, C.T. Barret, and E. G. Zimmerman, “Heroin Addiction and Pregancy”, Western Journal of Medicine134.6 (1981):506-514. The effects of drugs and alcohol on the fetus are complex; some animal studies show that deleterious effects not directly from drugs or alcohol, but from the malnutrition they induce: H.L. Bartley, L.R. Coyle, and G. Singer, ”The Effects of Alcohol Induced Malnutrition in Pregnacy on Offspring Brain and Behavioral Development”, Pharmacology, Biochemistry and Behavior 19.3 (September 1983):513-8.
[11] Diana E. H. Russel, The Secret Trauma: Incest in the Lives of Girls and Women (New York: Basic books, 1988) 172-173
[12] L.Young, “Sexual Abuse and the Problem of Embodiment”, in Child Abuse and Neglect 16 (1992): 89-100; R. Krugman, J. Bays, D. Chhadwick, C. Levitt, M. McHugh, and J. Whitworth, “Guidelines for the Evaluation of Sexual Abuse of Children”, Pediatrics 87 (1991): 234-260, Fore more complete treatment, see Chapter 6 of my Body, Sex and Pleasure: Reconstructing Christian Sexual Ethics (Pilgrim, 1984)
[13] Os homens, na maioria das culturas, certamente no Ocidente, são socializados para dominar as mulheres e as crianças. Mas existe mais do que socialização funcionando. Pessoas de ambos os sexos expostas ao estresse ou maus tratos produzem maiores níveis de adrenalina e cortisol. Mas os homens também produzem testosterona a qual, uma vez que o estresse/ameaça tenha produzido os hormônios adrenais que iniciam a luta ou o reflexo da luta, rapidamente aumentam a agressão. Daniel Goloman, “The Exprerience of Touch: Research Points to a Key Role in Growth”, New York Times Magazine, 2 February 1988.
[14] Edith Wyschograd, Saints and Postmodernism: Revisioning Moral Philosophy (Chicago: University of Chicago, 1990) 37-41.
[15] Scarry, The Body in Pain
[16] Sacred Congregation for the Doctrine of the Faith, “Declaration on Euthanasia”, May 5, 1980, in Helga Kuhse and Peter singer, eds., Bioethics: An Anthology (Blackwell, 1999).
[17] P.P. Simkin and M. O’Hara, “Nonpharmacologic Relief of Pain During Labor: Systematic Reviews of Five Methods”, American Journal of Obstetrics and Gynecology 186.5 (May 2002): S1 31-59; S. Gormally, L. Wertheim, R. Alkawaf, N. Calinoiu, S.N. Young, “Contact and Nutrient Caregiving Effects on Newborn Pain Responses”, Developmental Medicine and Child Neurology 43.1 (January 2001: 28-38; D.W. Smith, P Arnstein, K.C. Rosa, and C. Wells-Federman, “Effects of Integrating Therapeutic Touch into a Cognitive Behavioral Pain Management Program, Report of a Pilot Clinical Trial”, Journal of Holistic Nursing 20.4 (December 2002): 367-387; and D.S. Wilkinson, P.L. Knox, J.E. Chapman, T.L. Johnson, N.Barbour, Y. Miles and A. Reel, “The Clinical Efectiveness of Healing Touch”, Journal ofAlternative and Complementary Medicine 8.1 (February 2002):33-47
[18] Rick Caulfield, “Beneficial Effects of Tactile Stimulation on Early Development.” Early Childhood Education Journal 27.4 (Summer 2000): 255-57
[19] Kevin Wheldall et al, “A Touch of Reinforcement: The effects of Contingent Teacher Touch on the cLassroom Behavior of Young Children”, Educational Review 38.3 (1986): 207-16; Tiffany Field, “Preschoolers in America are Touched Less and are More Aggressive Than Preschoolers in France”, Early Childhood Development and Care 151 (April 1999): !!-!7;Marlene Greenspan, “Therapeutic Touch and Healing Meditation: A Threesome with Education”. Early Childhood Development and Care 98 (1994): 121-129; Tiffany Field et al., “Touching in Infant, Toddler and Preschool Nurseries”, Early Childhood Development and Care 98 (1994):113-20.
[20] Christine M. Rinck et al., “Interprsonal Touch among Residents of Homes for the Elderly”, Journal of Communication 30.2 (Spring 12980): 44-47; Martin S. Remland et al., “Interpersonal Distance, Body Orientation, and Touch: Effects of Culture, Gender and Age”, Journal of Social Psychology 135.3 (June 1995): 281-297 and Beverly G. Willison and Robert L. Masson, “The Role of Touch in Therapy: An Adjunct to Communication”, Journal of Counseling and Development 64.8 (April 1996): 497-500)
[21] Peter Brown, The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation in Early Christianity (NY: Columbia University Press, 1988).
[22] Charles A. Gallagher, George A. Maloney, Mary F. Rousseau and Paul F. Wilczak, Embodied in Love: Sacramental Spirituality and Sexual Intimacy (New York: Crossroad, 1986).
[23] Patricia Beatty Jung, “Sanctifying Women’s Pleasure,” in Patricia B Jung et al., eds., Good Sex: Feminist perspectives from the World’s Religions (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2001.
[24] Most recently, “The Erosion of Sexual Dimorphism: Challenges to Religion and Religious Ethics,” Journal of the American Academy of Religion 69.4 (December 2001): 863-891.
[25] Alfred Kinsey, W.B. Pomeroy, and C.E. Martin, Sexual Behavior in the Human Male (Philadelphia: Saunders, 1948; Alfred C. Kinsey, W. Pomeroy, C.E. Martin and P. Gebhard, Sexual Behavior in the Human Female (Philadelphia: Saunders, 1953).
[26] Evelyn Hooker, “The Adjustment of the Male Overt Homosexual,” Journal of Projective Techniques 21 (1957): 18-31.
[27] Linda Holler, Erotic Touch: The Role of Touch in Moral Agency ( New Brnswick, NJ: Rutgers University Press, 2002) 64-65.
[28] Antonio Damasio, Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain (NY: G.P. Putnam’s Sons, 1994).
[29] Holler, 78.
[30] Margaret Talbot, “Attachment Theory: The Ultimate Experiment,” New York Times Magazine, 24 May 1998, 27.
[31] Ruth Feldman, PhD, Arthur I. Eidelman, M.D., Lea Sirota, M.D., and Aaron Weller, PhD, “Comparison of Skin to Skin (Kangaroo) and Traditional Care: Parenting and Preterm Infant Development,” Pediatrics 110(July 2002); 16-26.
[32] Leslie Brody, Gender, Emotion, and the Family (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999).
[33] Julian F. Thayer and Bjorn H. Johnsen, “Sex Differences in Judgement of Facial Affect: A multivariate analysis of recognition errors,” Scandinavian Journal of Psychology 41.3(September 2000): 243-246.
[34] Veja também Stanley E. Jones, “Sex Differences in Communication”, Western Journal of Speech Communication 50.3 (Summer 1986) 227-41; Robert E. salt “Affectionate Touch Between Fathers and Preadolescent Sons”, Journal of Marriage and Family 53.3 (August 1991):545-54