1) Rabina Luciana, você é uma figura inovadora no Brasil, uma mulher rabina, a segunda no país, recém chegada dos Estados Unidos, onde a realidade é diferente. Como se sente nesse papel?
Apesar de ter antecipado uma certa atenção pelo fato de eu ser uma das poucas rabinas aqui no Brasil, eu não tinha dimensão do tamanho do barulho que isso iria causar. Não me imaginava, por exemplo, na primeira página do jornal O Estado de São Paulo. Mais do que qualquer outro sentimento, todo esse holofote aumenta o meu senso de responsabilidade, já que, ao falar para a imprensa, eu represento não só a mim mesma, mas a categoria “rabina”. Sinto como se estivesse em minhas mãos, como se dependesse do meu desempenho, a possibilidade de mulheres ganharem ou não mais espaço na comunidade judaica aqui no Brasil.
2) Você acha que ser rabina traz um diferencial ao rabinato como um todo que sempre foi masculino?
No meu ponto de vista, a proposta de uma religião igualitária não implica que homens e mulheres sejam iguais, mas sim que, justamente por serem diferentes, eles devem ter acesso à liderança religiosa; ambas as vozes devem ser ouvidas igualmente.
Como a tradição judaica foi construída durante séculos por lideranças masculinas, a mulher sempre recebeu o tratamento de “outro”: desconhecido, idealizado, misterioso, estranho. O processo de inclusão da mulher, do qual a ordenação rabínica é uma das últimas etapas, veio quebrar o uníssono milenar de nossa tradição, abrindo espaço para um diálogo. Ao incorporar a mulher, a nossa tradição interrompeu a coerência do monólogo, transformando afirmativas em perguntas, certezas em hipóteses, dogmas em pontos de vista.
Em termos práticos, a presença da mulher na liderança religiosa contribuiu para rever e modificar uma série de questões relativas aos rituais judaicos, tais como o lugar onde a mulher se senta na sinagoga (na ortodoxia, a mulher senta separada dos homens, muitas vezes num outro andar, só enxergando o culto através de uma treliça), a participação da mulher na cerimônia de casamento (na ortodoxia, a mulher não fala durante a cerimônia), seus direitos no processo de divórcio religioso, entre outras coisas.
Do ponto de vista religioso, a presença da mulher no rabinato inovou e expandiu o uso de rituais milenares. Alguns exemplos são o luto para casos de aborto natural e o uso da mikvá, o banho ritual, para mulheres que atingem a menopausa.
Estes são exemplos diretamente ligados à prática judaica. Mas acredito também que, ao ocupar uma posição de liderança dentro de uma comunidade religiosa, a mulher traz a reflexão a respeito das maneiras de exercício da liderança e autoridade, que já acontece no âmbito secular, para um âmbito espiritual/existencial. Com isso, a humanidade só tem a ganhar.
3) No Judaismo não encontramos uma figura feminina que tenha o status de divindade como é o caso da Virgem Maria no Cristianismo: parece ser uma religião mais fechada às mulheres. O que acha? É correta esta interpretação?
A comparação direta com o cristianismo é um pouco complicada. No Judaísmo não existe ser humano, homem ou mulher, que tenha este status de divindade de que você fala. Do ponto de vista bíblico, é verdade que o monoteísmo sugerido pela Bíblia judaica prioriza o masculino, ao se referir a Deus como “Hu” (“Ele” em hebraico), e não “Hi” (“Ela”).
Porém, o Judaísmo, tal como o conhecemos hoje, não é uma religião bíblica, e sim, como costumamos dizer, uma religião rabínica, resultado das interpretações que nossos rabinos deram à Bíblia e que foram editadas no Talmud. Nestas interpretações encontramos uma referência divina feminina, a Shechiná, uma presença divina muito frequente nos momentos em que o povo judeu precisa de consolo.
Uma das minhas professoras de Talmud no seminário rabínico, a Professora Judith Hauptman, defende a tese de que os rabinos da era talmudica procuraram melhorar o status de subordinação que as mulheres tinham na sociedade em geral. Um exemplo que a Professora Hauptman dá é o da Ketubá, o documento judaico de casamento, que, em caso de divórcio, garantia à mulher uma quantia monetária. Isto era extremamente importante numa sociedade onde a mulher não tinha direitos de propriedade nem fonte de renda própria.
É claro que para os padrões sociais de hoje, tais mudanças não são suficientes, mas elas servem de forte precedente e suporte para as mudanças que vêm ocorrendo. Se não a prática, o valor já estava presente em nossa tradição.
4) Uma das questões que norteiam nosso dossiê é a seguinte: o que as religiões dão as mulheres uma vez que estas compõem a grande maioria do público religioso? Como o Judaismo contribui para com a vida das mulheres?
Interessante esta pergunta. No colegial, tinha duas amigas muito próximas. Uma virou ortodoxa, eu virei rabina e a outra seguiu um caminho espiritual mais oriental, sem se desligar das suas raízes judaicas. O curioso é que, mesmo esporadicamente, mantemos contato e sempre que nos vemos temos muito que conversar e compartilhar. Eu sempre digo que canalizamos nossas energias para caminhos diferentes, mas que no entanto, a motivação de nossas buscas é a mesma.
Não acho que eu possa fazer uma generalização a todas as mulheres. Falo do que eu observo a respeito das mulheres da minha geração e grupo social: nós crescemos com uma consciência feminista embutida e pouco questionadora, num ambiente educacional que nos treinou para a vida profissional, mas muito pouco para a vida mesmo. Muitas de nós, sem hesitar, escolheram carreiras de alta competitividade e prestígio, achando que era isto o que nos faria felizes, mas ao chegarmos lá, descobrimos que não era bem isso o que nos daria satisfação pessoal. Descobrimos que faltava alguma coisa.
Na religião, muitas de nós encontramos um espaço para resgatar, ou mesmo iniciar, uma conversa menos prática e mais essencial, que estava faltando na nossa formação. Encontramos uma linguagem que nos permitiu um outro tipo de reflexão.
Mas não acho que esta busca seja exclusiva das mulheres. Hoje vejo muitos homens procurando pela religião. Talvez o pioneirismo da mulher nesta área se deva ao fato da mulher ainda ter mais o luxo da dúvida do que o homem. Como o papel da mulher na família e na vida pública está em processo de reconstrução, ela se permite parar, refletir a respeito e reavaliar com menos culpa do que o homem.
O processo de busca da mulher tende a desencadear um processo semelhante entre os homens, ainda que ela ocorra de maneira mais lenta, já que, no caso do homem, o status quo a ser quebrado está muito consolidado.
5) Qual foi a participação das mulheres no Judaismo ao longo de sua história? No presente isso está mudando? De que modo?
Ao longo da história do Judaísmo houve muitas mulheres que se destacaram por sua liderança, inteligência e iniciativa. Só a título de exemplo: Débora (juíza nos tempos bíblicos), Hannah Rachel de Ludomir (hassídica que viveu no século XIV, na Ukrania, palestrando para visitantes de toda a comunidade judaica européia), Regina Jonas (a primeira rabina a ser ordenada em Berlim em 1935) e Golda Meir (terceira Primeira Ministra do Estado de Israel).
Muitas destas mulheres permaneceram anônimas até as últimas décadas do século passado, quando historiadoras descobriram e resgataram suas histórias. Nas próximas décadas, espera-se que a história de outras tantas mulheres que exerceram papel de destaque na comunidade judaica seja resgatada.
Porém, de modo geral, esta participação era uma exceção, ocorrendo de forma esporádica e eventual. Por vezes, o âmbito de atuação da mulher, mesmo em posição de liderança, era restrito, ou quando não era, a mulher adotava uma atitude masculina.
Hoje, a participação da mulher é mais generalizada. Ela não é resultado exclusivo de uma conquista individual, mas sim coletiva. Este caráter coletivo, ao meu ver, se reflete não somente no número maior de mulheres ocupando posições de liderança, mas na forma como esta liderança vem sendo exercida. Enquanto grupo, a mulher tem refletido mais a respeito do impacto e a contribuição que seu ponto de vista pode acrescentar, resultando numa participação feminina mais auto-consciente e crítica.
6) Qual é a figura histórica feminina no Judaísmo a quem você gostaria de se inspirar?
Uma das figuras que me inspira é figura bíblica Ruth, sobre quem lemos durante a festa judaica de Shavuot. Ruth combina dois dados biográficos que a princípios parecem paradoxais e irreconciliáveis. De um lado, ela é moabita, membra do arquétipo povo inimigo de Israel. Do outro, ela é ancestral do rei David, de cuja linhagem, segundo a tradição judaica, virá o Messias. A história de Ruth levanta a possibilidade de que redenção virá do lugar que menos esperamos, até mesmo daquele que julgamos inimigo. Trata-se de uma mensagem subversiva para os moldes tradicionais, mas extremamente importante para o mundo de hoje, com tendências religiosas tão dogmáticas e fundamentalistas. Na história, esta inversão de paradigma só é possível graças à iniciativa de duas mulheres, Ruth e sua sogra Naomi, que foram capazes de imaginar possibilidades além do status quo.
7) O Judaismo é por excelência uma das religiões mais tradicionais do Ocidente, como se articula seu legado com a realidade da mulher contemporânea?
Não podemos nos esquecer que o Judaísmo, assim como o cristianismo, é pluralista. Isto quer dizer que não existe uma única forma de praticar o judaísmo. Através da história, devido à longa diáspora judaica, as comunidades judaicas sofreram fortes influências das comunidades ao seu redor e tais influências podem ser percebidas até hoje nas diferentes práticas que existem entre judeus ashkenazim (do leste europeu), alemães, sefaradim (vindo de países árabes), italianos, yemenitas, entre outros.
É importante ressaltar que um dos principais “canôns” do judaísmo, o Talmud, é por excelência um texto pluralista que privilegia a diversidade de opiniões, dentre elas, opiniões muito condizentes com a sensibilidade social contemporânea. O que aconteceu é que ao longo dos anos, na medida em que a complexidade do Talmud foi sendo traduzida para códigos legais mais simples e objetivos, por uma influência social, algumas opiniões acabaram sendo privilegiadas. Nosso trabalho é resgatar aquelas outras opiniões que ficaram para trás, mas que também são representativas de nossa religião.
8) Quais sãos seus projetos como rabina para o futuro?
Meu principal foco no momento é a juventude da nossa comunidade que cresceu muito nos últimos anos. Quero que, desde cedo, eles tenham acesso a esta forma de judaísmo ao qual eu fui exposta muito mais tarde, quando já estava na faculdade. Um judaísmo consciente, crítico e vibrante, que não vive só para sua própria preservação, mas também para contribuir para um mundo melhor.
[*] Rabina Luciana Pajecki Lederman é formada em direito pela PUC-SP, cursou dois anos de psicologia na USP antes de começar seus estudos rabínicos no Jewish Theological Seminary, onde foi ordenada em maio de 2005. Atualmente estuda para um mestrado em educação pela mesma instituição (JTS)