“Assim diziam [as sereias], entoando um belo cantar. Meu coração desejava escutá-las; eu pedia aos companheiros que me soltassem, acenando-lhes com os sobrolhos; eles, porém, acurvando-se, remavam. Súbito, Perímedes e Euríloco levantaram-se e prenderam-me com laços mais numerosos e apertados. Quando, afinal, eles tinham passado além das Sereias e já não ouvíamos a sua voz e o seu canto, sem demora meus leais companheiros retiraram a cera com que eu lhes vedara os ouvidos e soltaram-me os laços.” (Homero)[1]
O artigo busca estabelecer uma comparação entre os personagens ficcionais de Odisseu de Homero e do Dr. Victor Frankenstein de Mary Shelley, no sentido de ressaltar semelhanças no modo de privilegiar a razão como meio de conduta e de maneira de ver e agir no mundo. Aponta ainda para questões relativas às conseqüências dessa opção pela conduta racional (que, sugiro, possa ser entendido como um processo pelo qual passou toda a humanidade a partir do advento da Modernidade): desenvolvimento da ciência, desprezo por outras formas de conhecimento e de visão de mundo, primazia da razão em detrimento dos sentimentos, acometimento da melancolia como doença da razão e da individualidade. Sustento que tais conseqüências sejam sintomas de uma idolatria da razão que acaba por gerar uma projeção da idéia de Deus e, portanto, gerar uma religião própria da razão.
Palavras-chave: Ulisses, Frankenstein, Razão, Melancolia, Ciência.
This article wants to stablish a comparison between the fictitious characters of the Homero’s Odisseus and Dr. Victor Frankenstein from Mary Shelley, in the sense of appoint semblances in the way to privilege the reason like manner to see and act in the world. Also reflects questions about consequences of this option for the rational conduct (that, I suggest, maybe be understood like a process of all humanity since the Modernity): science development, despising for other forms of knowledge and vision of world, primacy of the reason in detriment of the sentiments, melancholy like a disease of the reason and individuality. I sustain that these consequences are symptoms of reason’s idolatry that finish to create a projection of the idea of God and, therefore, create a religion from the reason.
Key Words: Odisseus, Frankenstein, Reason, Melancholy, Science.
A civilização ocidental precisou, em certo momento, criar uma nova forma de lidar com as forças da natureza, no intuito de desvelar seus mistérios a fim de controlá-la, ou seja, compreender seus procedimentos (a partir da astúcia humana, ou da razão), para dominá-la, possuí-la. Incorporando a si parte dessas forças, já que, na ânsia de compreendê-la, apartou-se dela, a ponto de não mais reconhecer-se como produto destas mesmas forças.
Setecentos anos antes da era cristã, Homero escreve o texto que é apontado por Adorno e Horkheimmer[2] (Dialética do Esclarecimento) como sendo aquele que inaugura o modo de pensar dessa civilização ocidental, a “Odisséia”[3]. A viagem de Odisseu/Ulisses de volta a seu reino (Ítaca) é o ícone deste embate entre homem e natureza. É o ponto de inflexão entre a aceitação do mundo de maneira irracional e, portanto, da condição humana como parte constituinte e constituída pelas forças naturais e da total independência da razão frente aos mecanismos e processos até então obscuros e mágicos, os quais passam agora a ser objeto de intervenção e dominação humana.
Tal viagem se dará ainda no campo mítico, porém é exatamente neste campo que os Deuses (forças naturais) sucumbirão, frente à infinitude da vontade e da inventividade humanas. É o início da liberdade da racionalidade humana e o primeiro desafio aos Deuses (vale lembrar que Odisseu declara sua independência em relação aos Deuses e é castigado por Poseidon, que tenta mostrar que nenhum feito de Ulisses seria possível sem sua intervenção). Liberdade esta que tem um preço - o fato de ter de assumir uma identidade, uma individualidade, já que ele se destaca de seus comuns (tapando seus ouvidos e impedindo-lhes o acesso ao gozo e à sedução). Preço que Odisseu se recusa a pagar (daí seu nome – Odisseu/Ulisses = Udeis = Ninguém), e usa essa recusa em seu próprio favor como no episódio do encontro com Polifemo – o cíclope.
Os cíclopes são gigantes de um único olho no meio da testa, o que significa que eles desconhecem a tridimensionalidade do espaço, desconhecem o universo da cultura. Ulisses havia sido advertido por Circe de que não deveria amanhecer na ilha dos Cíclopes para não ser por eles atacado. Porém sua curiosidade faz com que imagine um estratagema para poder explorar a ilha sem correr risco de vida. Embriaga Polifemo e, enquanto este se encontra adormecido, fere seu olho, cegando-o. Polifemo desperta com a dor, gritando ‘Udeis me feriu’. Os demais ciclopes acorrem, mas quando ouvem ‘Ninguém me feriu’ recolhem-se novamente, como Ulisses havia calculado. Portanto, uma vez consolidada esta racionalidade astuciosa, Ulisses ganha este nome.[4]
A racionalidade de Ulisses não é, ainda, completa, pois se assim o fosse não lançaria mão de tal estratagema, ele simplesmente não seria necessário. Uma mente plenamente racional não pode ser seduzida e nem ser curiosa de forma alguma, posto que deva ser guiada unicamente pela lógica. Seu instinto criador ainda não assume por completo a responsabilidade por sua criação, dificuldade que será mais marcante na idade moderna. O medo de Ulisses de assumir por completo esta individualidade se traduz no medo/desejo de perder-se a si próprio, ou seja, de violar o instinto primordial de auto-conservação. O episódio do canto das sereias é o que melhor demonstra tal medo. Odisseu se amarra ao mastro do navio (razão) para não mergulhar ao encontro delas. Ele quer ser seduzido (seducere = desvio), mas não quer perder-se por completo, não quer deixar sua identidade enquanto membro de um grupo. Não assume que se destacou desse grupo por vontade e que agora não pode mais ser o mesmo (comum), tem agora um papel diferente que lhe cabe. Sem perceber, elege uma parte de si para ser sacrificada (seu desejo e suas emoções) e outra para ser idolatrada e autoconservada através do auto-interesse (sua razão). Seu impulso à auto-conservação transforma-se em egocentrismo. “O eu se torna tão importante para si que tudo que lhe é exterior, outro em relação a si, não tem valor nenhum a não ser um, negativo: o outro é visto como hostil e perigoso, devendo ser dominado.”[5]
A razão e a emoção adotam caminhos diferentes para tal intento. Se o mito, cercado de magia, metáfora e emoção arrebatadora recorre ao mimetismo (mimese = imitação) como o xamã que frente ao desconhecido imita as forças da natureza, tornando-se parte delas, antropomorfizando a natureza; a ciência escolhe a identidade e a individualidade, objetivando a natureza, tornando-a outra, afastando-a, transformando-a de qualitativa e animada em quantitativa e formalizada, ou seja, a negação da alteridade já que somente a existência dessa alteridade é fonte de angústia, o outro deve ser reduzido ao si mesmo ou eliminado.
Ulisses domina a natureza pelo cálculo racional: ele representa a racionalidade contra o poder do destino. Esta racionalidade, porém, assume uma forma restritiva: só enfrenta a presença constante da natureza através da razão dominadora. Suas aventuras – o confronto com a Deusa Circe, a tentação das sereias, o Lótus – são desafios constantes à sua autonomia potencial. (...) Para garantir a auto-conservação deve perseguir uma política puramente pragmática de auto-interesse. Apenas através da repressão dos instintos e de sacrifício contínuo Ulisses sobrevive. A passagem da natureza para a cultura se faz pela renúncia. [6]
No entanto, Ulisses não assume para si o sacrifício (sacro-ofício = o ofício/função sagrada = a imolação), ele ludibria a natureza sacrificando apenas uma parte de si. A astúcia e, portanto, a injustiça, passa a ocupar esse vazio. O uso dessa astúcia expõe a racionalidade incompleta de Ulisses e lhe impõe uma constante e terrível vigilância contra suas manifestações emotivas. O menor traço de instinto e sentimento deve ser extirpado nele e no outro para o pleno funcionamento da razão sem coisas menores que a atrapalhe ou que a faça sentir medo/desejo. O problema de Ulisses é que ele, por mais que queira, não consegue matar seu desejo e a vigília constante promove o medo, daí por que o herói é melancólico. Os marinheiros com os ouvidos tapados desconhecem o perigo, mas também a beleza do canto. Ulisses, por sua vez, sendo dono do barco, sabendo do fascínio da melodia, deseja ouví-la, mas sacrifica seu desejo, e ao mesmo tempo o ludibria, amarrando-se ao mastro. Em linguagem jungiana isto equivaleria à escolha de uma persona (sua parte racional), em detrimento de algo que ele coloca na sombra (emoções).
Esta é a astúcia de Ulisses: ‘perder-se para se conservar’, afastar o múltiplo para ganhar a identidade. (...) O processo de dominação crescente exercida pelo sujeito racional, no qual a superioridade da natureza em relação aos homens é reafirmada, se consegue ao preço da crescente inflação da ‘segunda natureza’, uma camisa-de-força de coerções sociais e psíquicas. Só assim se forma a identidade do eu. [7]
Ulisses aceita todos os riscos, pois reivindica todos os lucros.
A transição do mundo grego para a Modernidade se dá por meio de um período caracterizado pelo contato deste pensamento com o Judaísmo e a produção, afirma Leo Strauss[8], do Cristianismo. Em parte devido ao apelo religioso e a visão da determinação do homem por vontade de Deus, sustentado por uma série de cânones e dogmas, torna-se mais difícil a intervenção do homem na investigação da natureza a partir unicamente de sua razão.
Isto será retomado por volta do século XV, com o advento conhecido por nós como Renascimento, quando os valores greco-romanos são resgatados, a arte se transforma de maneira a revalorizar o homem, que passa a sentir o mesmo sentimento de perda de si que Ulisses sentia – a melancolia, traduzida agora na forma da arte barroca, caracterizada pela perda da identidade com a Igreja. Se antes eram todos “filhos de Deus”, agora a questão da individualidade surge mais forte que nunca. Na filosofia e na ciência não é diferente: Giordano Bruno, Galileu Galilei, Renée Descartes, Francis Bacon, Nicolau Maquiavel, Michel de Montaigne são apenas alguns exemplos das tentativas de cisão entre Homem e Igreja, ou seja, da libertação da racionalidade do indivíduo frente a sua identidade de grupo.
Surge, assim, num processo lento, o protótipo do indivíduo moderno, aquele que, dotado de razão, tudo pode, como ficou evidenciado na figura de Leon Baptiste Alberti, sobre o qual se diziam histórias mirabolantes e feitos inacreditáveis, como pular um muro de mais de dois metros de altura, saltando com os pés juntos sem tomar impulso, além de seus admiráveis e reconhecidos dotes como pintor, escultor, escritor, e sua vasta cultura geral. O homem culto (gentil-homem) é esse indivíduo, é neste tipo de pessoa que o homem moderno deseja, ainda hoje, se transformar. As pessoas valorizadas socialmente são aquelas que demonstram cultura, aquelas que falam sobre tudo, que têm bons modos, são educadas e, de preferência, que são bem nutridas e possuem uma beleza física incomparável. Nasce aí, também, o ideal burguês de que os riscos justificam os lucros. A epopéia burguesa dos “Lusíadas” e a novela de Robinson Crusoé[9] são bons exemplos de até onde puderam chegar esses ideais. Sexta-feira é exatamente o exemplo do que sucedeu após essa identidade burguesa, o homem passa a ser algoz do homem. E tudo é feito de forma a que ele não perceba. Sua ingenuidade é usada pela astúcia da ratio (razão), assim como Odisseu engana e sacrifica seus desejos amarrando-se no mastro da razão.
Quando me dei conta do terrível segredo que tinha em mãos, hesitei longamente sobre como deveria empregá-lo. E decidi-me pela criação de um homem – a repetição de uma façanha só desempenhada até hoje na aurora da criação.[10]
O passo seguinte é o de usar sua ferramenta a ratio para a mais nobre das artes, a criação, assim como Plotino aponta o ato de criar como algo necessário para o Demiurgo. Nenhum personagem ficcional assume mais esta tarefa para si que o Dr. Victor Frankenstein idealizado (ironicamente ou não) por Mary Shelley. Estudioso de medicina, o jovem Frankenstein não se conforma diante da morte, não aceita os desígnios naturais da vida (assim como aconteceu, de fato, com Descartes). Parte, então, para estudos diferentes daqueles ortodoxos, ensinados nos bancos acadêmicos, ele quer uma nova ciência, que, a um só tempo, restitui algo de mágico que havia perdido. Em seu curso de medicina, desafia seus mestres e resgata autores renascentistas que eram considerados ultrapassados e fantasiosos como Paracelsus e Cornélius Agrippa. Quer uma ciência que dê conta de lhe explicar o que é a vida e, portanto, o que é a morte. Em sua busca frenética, ele se animaliza, doa parte de si para sua criatura, abandona a si próprio em prol de sua criação, a ponto de quase se perder, de quase não se reconhecer mais quando olha no espelho. Notemos que se trata de uma criação que é produto de sua razão, por isto ela trabalha em ritmo tão acelerado enquanto seu corpo é esquecido e chega ao esgotamento quase total. Numa criação que envolvesse a participação feminina, a preocupação com o corpo seria muito mais intensa para garantir a sobrevivência da criatura.
O que ele pretende criar não é algo propriamente novo, mas uma duplicação de si próprio, uma réplica e que, portanto, não tem corpo posto que sua identificação se dá com sua mente e não com seu corpo. Ele trata os pedaços de cadáveres que usa para construir sua criatura como mera matéria-prima.
A questão é que assumir-se enquanto ser criador/racional implica em: a) afastar-se da natureza que o criou; b) ter responsabilidade sobre a coisa criada.
a) Não se poderia manipular a natureza criadora, ou torturá-la, como sugeria Francis Bacon já no século XVI, sentindo-se parte dela, daí a necessidade de criar uma barreira, uma negação (que nega também a própria mortalidade do homem). Se a natureza é alteridade, é passível de suas intervenções, está exposta ao desvelamento realizado por sua razão.
b) Mas a partir do ato da criação, surge a responsabilidade para com a criatura e com ela a mais completa solidão (melancolia)[11], pois criar significa também doar parte de si (daí a dificuldade expressada por Victor Frankenstein em entender a imperfeição da criatura e dela em entender o ato criador). O doutor esperava, provavelmente, poder falar com sua criatura sobre filosofia, ciência, morte e vida, mas o que ele vê é algo meio informe e “mal acabado”, como diz, e que mal consegue andar. Daí sua rejeição em relação a ela. Não é possível, para ele, reconhecê-la. A criatura foge e entra em contato com os outros seres humanos que a tratam da mesma forma que seu criador. Fugindo para fora da cidade, ela encontra a casa de uma família pobre onde consegue abrigar-se na pocilga sem que a vejam e onde aprende a ler, observando por uma fresta as lições da mãe à menina. O encontro da criatura com o cego mostra o processo de tentativa de aceitação de si próprio. O cego a aceita, pois não pode julgá-la (ao menos pela aparência). Logo em seguida há a quebra dessa aceitação, evidenciada no encontro com a menina. E é esse rompimento que vai desencadear a busca de si a busca pela sua origem e identidade. A leitura das pistas de sua criação deixadas no diário de registros do doutor permite que essa busca tenha início. Em contrapartida, a primeira reação de Frankenstein diante da criatura é negá-la, é comentar sua imperfeição e dizer que é um alívio que esteja morta (assim o pensa). A reação da criatura diante do criador é a de questionar o ato da criação e da ausência de um nome para si. Sua primeira pergunta é somente: Por quê? A morte de ambos no Pólo Norte é emblemática quando sugere que um deseja a morte do outro, pois se condenam mutuamente, e também desejam a própria morte, já que se recusam a viver com tamanho fardo: o das imperfeições (para um) e o da responsabilidade (para outro), pelos quais são condenados e se condenam.
Difícil precisar onde e quando surgem as primeiras tentativas ou idéias a respeito da construção de autômatos. O que se sabe é que são muito antigas e recorrentes em diversas regiões e culturas, mas, com certeza, nunca foram tão difundidas e discutidas quanto no período que vai do Renascimento até hoje.
Os exemplos são tantos que alguns autores chegaram a criar uma classificação para os diferentes tipos de criaturas. Luiz Nazario (2004)[12], por exemplo, organiza-as em: 1- biomágicas; formadas a partir de matéria inorgânica (barro, argila, mármore) tornada magicamente orgânica; são desprovidas de alma ou de ascendência humana, mas podem humanizar-se, capacitando-se à produção biológica. A Galatéia de Ovídio e o Golem da tradição judaica são exemplos. 2- bimecânicas; formadas a partir de matéria inorgânica (ferro, lata, aço, prata, válvulas, tubos, silício), imitam, cada vez com mais perfeição, a anatomia animal e humana. A pomba mecânica de Arquitas de Tarento (400-365 a.C.), a águia de madeira de Regiomontanus (1436-1476), o leão animado de Leonardo da Vinci e a boneca mecânica de Descartes são alguns exemplos. 3- bioeletromecânicas; formadas a partir de uma combinação de material inorgânico (metais, eletrodos) com material orgânico (pedaços de corpos humanos ou animais); desprovidas, na origem, de alma própria, elas a adquirem na mistura entre suas partes. A criatura do Dr. Victor Frankenstein de Mary Shelley é o exemplo mais típico.
Talvez o desejo de criar um ser autômato (que se move sozinho), expresse um outro mais profundo que alguns traduziram por “Brincar de Deus”, ou seja, o de recriar a natureza, recriando, assim, a si mesmo. Este avanço em direção à autonomia, no entanto, sempre teve de alguma forma, de lidar com o interdito, a saber, com aquilo que não pode ser alcançado ou mudado. Trata-se, portanto, de um confronto entre aquilo que se acredita emanar de dentro de si (autonomia), com aquilo que se pensa provir do inteiramente outro (heteronomia). Este embate apresentou, no decorrer do tempo e nas várias culturas, diversas configurações e graus, ora pendendo mais para um lado, ora mais para o outro, o que promoveu as diversas noções de moralidade que podemos vislumbrar nos estudos sociais. Ora são as leis de um deus que impossibilitam a realização do impulso criador, ora é um sentimento interior que promove um arrependimento que se segue ao ato criador.
No caso do Golem, por exemplo, fica clara uma interdição externa, a violação a uma lei e um dom divinos (externos). A criação só é aceita porque é produto daquilo que a lei de Deus determina como sendo o desígnio humano: nomear. É quando o Rabino Loew nomeia o Golem que ele toma vida e quando a palavra que lhe dá vida é suprimida sua alma se esvai. Sendo assim, o interdito, neste caso, está ligado a uma forte heteronomia, a uma obediência àquilo que se elegeu como ídolo: Deus, ou o que é inteiramente outro.
Já para o impulso criador do Dr. Frankenstein, este interdito assume uma outra configuração. O medo relacionado ao que não podia ser realizado, não se encontra na ira divina, ou no castigo da transgressão da lei de Deus, mas sim na soberba idolatria da razão e a não previsão (da razão) da responsabilidade que envolveria tamanho ato criador. É como se a mente se sentisse culpada por não conseguir dar conta do peso desse ato criador. A criatura mete medo pelo seu aspecto grotesco e defeituoso, mas também pela autonomia que ganha da semelhança com seu criador e não por representar os desígnios de Deus. O interdito se dá pela dificuldade de lidar com a própria autonomia e com a autonomia da criação, quase como se pudesse (e se buscasse) haver controle sobre uma criação autônoma. É um susto perante as possibilidades infinitas da autonomia da razão humana, justamente por que foram produto de uma idolatria (ídolo=eidolon=simulacro / latria=adoração)[13]. A contemplação da criatura faz aflorar o sentimento de que nem tudo é possível à razão. Sentimento este que provém da lembrança de que um dia a razão foi subjugada por emoções que se apoderaram do ser. Amor, ódio, paixões das mais diversas são, do ponto de vista da razão, coisas inexplicáveis e que ficariam mais bem acondicionadas no limbo (sombra) formado pelo descolamento entre o ser e seu objeto de idolatria (persona).
A recorrência no texto de Shelley com relação à questão do destino se refere menos a algo sobrenatural do que ao encadeamento lógico das escolhas de seu personagem. A eleição de um de seus aspectos como sendo o símbolo máximo da perfeição faz com que outras características de seu ser sejam tomadas como menores e/ou repugnantes, faz com que ele (o Dr. Victor), decida prescindir de uma mulher para gerar um filho, o que seria o meio mais natural para se obter um. Este desprezo pela natureza e sua visão como sendo algo caótico e amorfo e a tentativa de sobrepujá-la é própria da época em que o romance é escrito, reflete o anseio (eminentemente masculino) de dominar as adversidades naturais que se impõem ao progresso da sociedade industrial surgente e ao ideal de cultura e individualidade que emerge a partir do Renascimento.
A criatura, horrenda em seus traços físicos, feita unicamente de partes mortas de outros seres, revela, no entanto, traços muito humanos e suaves no que diz respeito ao seu caráter. Ela só mata depois de tentar, por vezes, ser aceita no mundo dos homens e por seu criador. É melancólica e solitária, como aquele que a criou se tornou, seja por seus sentimentos, seja pelas mortes de seus parentes e afetos impingida como castigo pela criatura. Este aspecto, aponta Luiz Nazario, é o que faz do conto de Shelley verdadeiramente moderno. Não há magia ou divindade envolvida no processo criatório, apenas a eletricidade (apesar de carecermos de estudos sobre o significado deste termo à época de Shelley). Há, porém, a matéria-prima, encarada dessa forma pela primeira vez: a carne humana morta, que no passado, pode ter sido um diferencial impulsionador do surgimento da religião, é agora tomada como apenas uma substância indistinguível das outras e que pode servir para um “reaproveitamento”. Este é o interdito transgredido. É o que provoca o misto sentimento moderno de liberdade e solidão, de atomização (individualismo) e, a um só tempo, massificação, ou como dizem alguns: uma multidão solitária. Buscando dominar a natureza exterior, o Homem acabou por oprimir sua natureza interior [14], obrigando-a a permanecer num invólucro de onde só escapa em raros momentos. Talvez por isto o romance de Shelley provoque nossos sentimentos mais profundos em relação a isto, ele nos convida a vislumbrar o que é inteiramente outro, ainda que saído de nós mesmos, ou seja, ele tira o véu da idolatria da razão.
Ironicamente, e talvez por isto cause tanto espanto e sucesso, Mary Wollstonecraft Godwin Shelley, uma jovem com, então, 19 anos, consegue descrever e catalisar o assombro diante das criações humanas de seu tempo, bem como o poder devastador de certas teorias utilitaristas que cresciam na mesma época, inclua-se nisto seu próprio pai William Godwin, célebre defensor delas. Foi necessária uma mulher para perceber (de fora) o que se vislumbrava com o poderio e dominação masculina.
A professora Marilena Chauí[15] sustenta que na Modernidade não houve nenhuma supressão da figura de Deus, mas sim o fato de que Deus mudou de lugar. Ele passa a ocupar o palácio do governo, ou seja, se personifica no Estado. Extrapolando, poderíamos dizer que o Estado é produto da mente humana e que, portanto, Deus não está no Estado, mas sim na mente, o que deu origem a todo o secularismo presente hoje, mas também, e principalmente, abre a possibilidade da idolatria que me referia acima.
Este novo ídolo (ou deus), cria para si um aparelho ideológico[16] de auto-propagação: a Ciência. Tão eficiente que hoje poucos a tratam dessa forma, a ponto de termos tido o desenvolvimento de teorias cientificistas (principalmente no pós-guerra). Elas supunham que a ciência e a criatividade humanas fossem infinitas e que poderiam, assim, resolver todos os males e problemas que viéssemos a ter. Mais que isto, este modo de pensar pressupõe que se pode interferir quase sem restrições nos ciclos vitais e naturais do universo, como se fosse possível à escala temporal de existência humana, conhecer, entender e contornar estes ciclos e suas implicações ecológicas, hormonais, climáticas, evolutivas, vitais, corporais etc.[17] Adicione-se a isto o ideal burguês em processo de eclosão na mesma época (início da Modernidade) e temos o surgimento do que (busco sustentar em minha tese) seja uma nova religião. A religião da Razão.
Apartar-se da natureza traz consigo certa noção de utilidade, como se ela existisse apenas para, a partir dela, provermos nosso sustento (como sugere o Gênesis[18]).
Esse distanciamento entre o Homem e o que lhe é outro chegou a ponto de permitir que essa alteridade pudesse se dar não somente com relação à força criadora da natureza, mas também aos outros seres humanos, durante tanto tempo julgados inferiores, escravizados e mortos.
Em sua ânsia de conhecer o mundo pela razão, o Homem amarra-se a ela, assim como Ulisses fez com a sua, mas não consegue mais desviar-se (perder-se) pelo outro, não consegue olhar além de seu próprio reflexo[19]. Deseja tanto conhecer a si mesmo que para isto usará tudo, inclusive o outro. É inevitável, portanto, que o Homem moderno padeça do mesmo mal que afligiu Ulisses, a mesma solidão desmedida que leva à melancolia.
A não aceitação do outro como outro, como diferente de nós é que leva à destruição deste outro e a redução dele à dimensão de si mesmo, seja ele, o rio, o mar, a floresta, a cidade, o vizinho ou a cultura do local por onde passamos.
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STRAUSS, Leo. Jewish Philosophy and the Crisis of Modernity. Albany: State of New York University, 1997.
WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno. São Paulo, Jorge Zahar Editores, 1996.
[*] Mestre em Geografia Física pela Universidade de São Paulo, Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-SP, prof. do Colegiado de Geografia do Centro Universitário Fundação Santo André e Coordenador do Curso de Geografia da Universidade Camilo Castelo Branco.
[1] HOMERO, A Odisséia , p. 143.
[2] ADORNO & HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento.
[3] HOMERO, A Odisséia.
[4] MATOS, Olgaria Chain Feres, A Melancolia de Ulisses, a Dialética do Iluminismo e o Canto das Sereias. In NOVAES, Adauto (org.), Os Sentidos da Paixão, p. 156.
[5] Idem, p. 142.
[6] Idem, p. 144.
[7] Ibid, p. 148.
[8] STRAUSS, Leo – Jerusalem and Athen. In Jewish Philosophy and the Crisis of Modernity. Albany: State of New York University, 1997.
[9] WATT, Ian, Mitos do Individualismo Moderno, 316 p.
[10] CASTRO, Rui, Frankenstein: uma história de Mary Shelley contada por Rui Castro, p. 16.
[11] Na medicina hipocrática, a melancolia era tratada como uma doença gerada pela maior concentração do humor da bile negra no corpo do doente, gerando apatia diante da vida, pulsão de morte (thanatus) e escurecimento da pele da face (daí o nome melancolia = melanina – substância foto-sensível, responsável pelo bronzeamento ao Sol). Na Roma antiga indicava-se o Otium cun Letteris (Ócio com livros) para o tratamento da melancolia. Freud faz uma distinção entre tristeza (perda de um ser ou objeto amado identificável) e a melancolia (perda de um objeto amado, mas que não se consegue distinguir qual é, não se sabe o que se perdeu, ou seja, é a perda de si). Hoje associamos a melancolia com a figura psicanalítica da depressão.
[12] NAZARIO, Luiz, O Golem, o autômato e Frankenstein. In NAZARIO, Luiz e NASCIMENTO, Lyslei, Os fazedores de Golems, p. 46.
[13] DEVOTO, Giacomo, Avviamento alla etmologia italiana: dizionario etmologico, p. 324.
[14] MATTOS, Olgária Chain Feres, A Melancolia de Ulisses, a Dialética do Iluminismo e o Canto das Sereias. In NOVAES, Adauto (org.), Os Sentidos da Paixão, p. 143.
[15] CHAUÍ, Marilena, O Discurso Competente. In Cultura e Democracia, p. 05.
[16] Entendo ideologia aqui conforme as definições dadas pela professora Chauí no texto indicado acima, a saber, que ela é uma representação imaginária do real, que provoca uma inversão da idéia pela coisa em si e que pode ser usada para dominação, pois tem por função apagar a história e reduzir o sujeito à condição de objeto. Exatamente o que ocorre no caso da idolatria, ou seja, a adoração do simulacro e não da coisa real. Lembro ainda que a raiz semântica de ideologia e ídolo é a mesma (eidos= idéia, ver, verdade / eidolon= ídolo).
[17] Não se trata aqui de pregar a revanche da natureza contra o Homem, mas de assinalar que a ciência humana criou condições suficientes para provocar interferências e interrupções nos ciclos naturais e, justamente por não termos noção da duração desses ciclos (ou se são de fato ciclos), fica difícil considerar que possuímos clareza e competência para entendê-los e administra-los, ou mesmo de como conserva-los e de que efeitos sua supressão poderia provocar.
[18]
Gênesis 1-28 – “E Deus os abençoou e
lhes disse: Sede fecundos multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus
e sobre todo animal que rasteja pela terra.”
3-17 – “E a Adão
disse: Visto que atendesse a voz de tua mulher e comeste da árvore
que eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por
tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias
de tua vida. (...)No suor do rosto comerás o teu pão,
até que tornes à terra, pois dela foste formado;
porque tu és pó e ao pó tornarás.”
BIBLIA DE JERUSALEM, p.
[19] Interessante notar que eidolon em grego, quer dizer tanto simulacro (como usei acima) quanto espelho, ou seja, algo que só permite ver a mim mesmo.